Investimento público no Brasil: propostas para desatar o nó
Sob uma perspectiva histórica, a questão do investimento público no Brasil
quase se confunde com a identificação das funções do Estado na economia
brasileira. Durante décadas, a expectativa entre diversas forças políticas por
um Estado forte, condutor do processo de desenvolvimento econômico, desdobrou-
se automaticamente na presença de instituições de natureza estatal no campo da
produção de bens e serviços, embora travestidas em formas do direito privado.
A crise dos anos 1980 deu lugar a dois eventos de grande impacto, considerando
o modo de funcionamento da economia das décadas anteriores. De um lado, a
falência da estrutura de financiamento do setor público desordenou a capacidade
do Estado em ser um elemento ativo na dinâmica do processo econômico. Ao
contrário, os setores com predominância de empresas estatais passaram a
enfrentar problemas de suprimento corrente de bens e serviços, e o
financiamento foi travado ou praticamente desapareceu. De outro lado, os
movimentos de abertura comercial dos anos 1980 (via exportações lastreadas na
desvalorização cambial) e 1990 (redução de tarifas e barreiras institucionais)
produziram a emergência de espaços para investimentos que, embora fragmentados
em comparação ao mercado interno anteriormente organizado, representavam
oportunidades para diversos agentes econômicos. Com isso, a dinâmica da
economia e os motores da expansão da capacidade produtiva e da produção
ganharam graus de liberdade, em magnitude expressiva, comparando-se com as
décadas anteriores, nas quais havia predominância da intervenção estatal no
comando do ritmo do processo econômico.
O início deste novo século presencia justamente o choque entre duas formas de
articulação econômica. De um lado, a dependência da ação estatal em
determinados segmentos em que a transição para o empreendimento realizado pelo
setor privado encontrou obstáculos ou não se completou adequadamente. De outro,
um novo tipo de heterogeneidade da estrutura produtiva privada, mais referida
ao resto do mundo, mais internacionalizada, mas nem por isso isenta da
realidade de uma economia nacional, especialmente no que toca à infra-estrutura
econômica.
O trato excessivamente ideológico deu à questão uma roupagem que impede que as
soluções sejam encaminhadas de forma mais ousada e pragmática. Alguns tentam
transformar essa discussão em um segundo round da velha disjuntiva entre
inflação e crescimento. Seria como se o país estivesse fadado à estagnação para
manter o equilíbrio fiscal ou como se pudesse desprezar o equilíbrio,
conquistado a duras penas, para possibilitar a expansão, tão desejada, do
produto a um ritmo minimamente satisfatório, puxado pelo velho Estado. Este
trabalho condena a visão maniqueísta do processo econômico. Ao contrário, lança
reflexões na busca de novos caminhos e instrumentos, sempre tendo como suposto
básico que a política de investimentos públicos a ser desenhada jamais
prescinda de uma disciplina fiscal sólida.
Logicamente, as posições aqui assumidas não são exatamente as do senso comum
sobre os fundamentos da economia. Busca-se iniciar uma releitura das condições
da economia brasileira e do Estado, sempre tendo em vista a busca da aceleração
do crescimento. O primeiro passo, para tanto, é questionar o papel do
investimento público na dinâmica do crescimento. O segundo é questionar as
teses que têm prevalecido e suas insuficiências diante dos desafios da economia
brasileira e das novas práticas internacionais. Finalmente, são apontadas
possibilidades de formatação de novas estratégias para o investimento público
que não conflitam com a responsabilidade fiscal e trabalhem no sentido de
remontar as estruturas de financiamento ao setor público.
CRESCIMENTO E INVESTIMENTO PÚBLICO
Uma economia que tem fundamentos sólidos, como os analistas de mercado
identificam a economia brasileira, e vem revertendo a fragilidade de suas
contas externas deveria estar em uma trajetória de franco crescimento,
especialmente em um contexto internacional favorável como o atual. No entanto,
não é isso que ocorre: o crescimento é lento e nada faz supor uma aceleração
expressiva. Avaliar as razões desse comportamento impõe que identifiquemos os
mecanismos que aceleram o ritmo de produção em uma economia como a brasileira.
É a expansão da indústria, e dos segmentos a ela ligados, que exerce papel
crucial para a conformação de uma trajetória de crescimento de maior fôlego.
São as decisões de investir em novos produtos, novos processos e nova
capacidade produtiva que dão a dinâmica do processo de crescimento. Essas
decisões geralmente vêm responder a impulsos de mercados em crescimento, sendo
retroalimentados pela própria expansão.
Esse impulso poderia ser proveniente de dois segmentos distintos. O primeiro
poderia ser o crescimento dos mercados externos (a expansão das exportações),
cuja importância tem sido expressiva nos últimos anos. Alternativamente, a
expansão do mercado interno de consumo tem experimentado um comportamento muito
menos auspicioso, mas poderia ser uma forma interessante de impulsionar o
crescimento. No entanto, não resta dúvida de que os dois fatores são
mobilizadores da expansão do produto, embora dependam de outros elementos para
que se estabeleça uma trajetória de crescimento sustentado.
A compreensão da decisão de investimento é a chave de todo esse processo. E,
pelo menos na situação atual, não é a baixa poupança que explica as limitações
postas ao investimento. As empresas têm recursos financeiros próprios para
investir. Mesmo que não os tivessem, projetos lucrativos encontrariam recursos
relativamente baratos, seja no mercado de capitais, seja por meio de captações
externas, seja em instituições públicas. É evidente que uma taxa de juros tão
singular como a brasileira é um enorme elemento impeditivo, mas tentaremos
trabalhar com a hipótese de queda ao longo dos próximos meses.
A decisão de investir envolve uma série de condicionantes para sua realização.
Em primeiro lugar, o empreendedor avalia as receitas derivadas do investimento
em um horizonte de pelo menos cinco anos. Evidentemente, as condições da
própria economia são fundamentais para que o investidor consiga formular
hipóteses minimamente confiáveis sobre suas receitas futuras. Do lado dos
custos de produção, ocorre o mesmo. Itens fundamentais na estrutura de custos,
como energia, água e transportes, pesam muito na definição da rentabilidade dos
investimentos e, portanto, da viabilidade. Logicamente, essa decisão pertence
ao mundo das mercadorias em geral, mas guarda enorme relação com o âmbito das
finanças. Importam as condições esperadas de evolução da posse de ativos
financeiros, o que pode ser sintetizado pela taxa de juros. Importam, também,
as expectativas sobre a evolução do câmbio, tanto por causa do efeito sobre
custos e preços em mercados externos como por razões financeiras.
O objetivo desta reflexão não é discutir todos os elementos que influenciam a
decisão privada de investir, e sim sugerir uma questão concreta: qual a
importância do investimento público em infra-estrutura para essas decisões? Na
medida em que o setor privado (em todo o mundo) tem avançado enormemente nos
monopólios naturais e tem enfrentado investimentos de vulto, cabe indagar
também quais razões levam o país a prescindir do investimento público para
crescer.
A solução para o problema maior da infra-estrutura não é trivial, e existe um
consenso de que dela depende o ritmo de crescimento brasileiro nos próximos
anos. Uma minoria dos participantes no debate sobre o crescimento econômico
considera que o investimento em infra-estrutura será naturalmente viabilizado
após a expansão da economia. No entanto, esta tese ainda não encontra
demonstração na realidade. Outra parcela de debatedores, mais numerosa,
acredita que o estímulo e a elevação do investimento privado seriam suficientes
para suprir a lacuna aberta pela baixa inversão pública. Novamente, o
questionamento é mais que devido. Se esse preceito pode ser aplicado a regiões
mais desenvolvidas e setores que já têm um mercado cativo e sólido, não se pode
dizer o mesmo de investimentos em regiões menos desenvolvidas e em setores de
maior risco.
Não há dúvida de que o financiamento em mercado de capitais é uma alternativa a
ser construída, mas há um longo caminho a percorrer. O mercado de capitais
brasileiro está em franco crescimento e processo de sofisticação, mas ainda não
dispõe da maturidade dos mercados dos países centrais para gerar, por exemplo,
estruturas acessíveis para a securitização de recebíveis de uma forma ampla.
Vale notar que o desenvolvimento de papéis e instrumentos ainda não se
completou. Além disso, não há como negar que as ações do Estado ainda inspiram
desconfiança por parte dos meios empresariais e dos investidores. As regras do
jogo ainda parecem voláteis demais, seja na política macro (juros e câmbio, por
exemplo), seja na política específica para os setores em que a presença do
setor privado efetivou-se. Evidentemente, não há cálculo econômico que agüente
a volatilidade das regras dos jogo nas transições de governo.
É forçoso admitir que o tempo institucional e o tempo econômico encontram grave
assincronia. As condições institucionais carecem de maior solidez dos marcos
regulatórios, justamente para solidificar o ambiente econômico para o cálculo
dos riscos do investimento privado nas áreas tradicionalmente reservadas ao
Estado. Ao mesmo tempo, a incapacidade estatal em incrementar a capacidade de
oferta nesses segmentos ameaça a economia com gargalos que estancam o
crescimento antes mesmo que ele tome impulso.
Ainda que no Brasil essa questão se apresente de forma dramática, é um erro
supor que não seja aplicável a outras economias. Mesmo que o debate sobre a
articulação das políticas macroeconômicas tenha logrado grandes avanços nos
últimos anos, o campo da política fiscal ainda reclama maiores reflexões. Não é
por acaso que a discussão acerca do espaço fiscal relevante para a condução de
políticas macro ganhou destaque na literatura internacional mais recente.
Infelizmente, essa discussão ainda é praticamente ignorada na literatura
nacional.
A emergência das crises fiscais em diversos países, ainda na década de 1980,
fez surgir, entre o mercado e os analistas de políticas econômicas, indicadores
de resultado das contas públicas especialmente vinculados ao seu financiamento.
É importante notar que essa foi uma saída natural, posto que a principal
questão que afetava a credibilidade das políticas econômicas era justamente a
gestão da dívida pública em relação a aplicadores em títulos e detentores de
posições de elevada liquidez, configurando uma situação em que o financiamento
ao setor público passava a ser condicionado por fluxos de capital de
volatilidade cada vez mais acentuada. Ao mesmo tempo, a eficiência das ações
públicas, sobretudo como intervenção direta no domínio da produção, passou a
enfrentar um questionamento sem precedentes.
Na atual configuração da economia brasileira, o desafio que surge é dar conta
do reordenamento de espaços entre as ações públicas e privadas, preservando o
equilíbrio fiscal mas dando conta da necessidade de um patamar mais elevado de
investimentos públicos, enquanto as condições institucionais não ganham os
contornos necessários à plena atuação dos capitais privados. Logicamente, essa
realidade deriva da especificidade histórica de desenvolvimento do capitalismo
brasileiro e das formas de estruturação do setor público e das relações entre
este e o aparelho econômico.
As parcerias entre setor público e setor privado, as PPPs, foram guindadas a
posição de grande destaque na viabilização dos investimentos em infra-
estrutura.
Quando ficou mais claro que não seriam panacéias para solucionar os gargalos de
investimentos, o governo federal optou por privilegiar, em uma lista de
projetos-piloto em infra-estrutura, a exclusão da meta de déficit (mensurado
como Necessidade de Financiamento do Setor Público, NFSP, Não Financeiro) dos
investimentos realizados, tendo em vista o retorno futuro esperado dessas
intervenções. A magnitude do gasto agregado, entretanto, é muito pequena diante
da demanda e do tamanho da economia, sem contar que nem todos os projetos
listados correspondem a investimentos clássicos em infra-estrutura (como é caso
da modernização dos órgãos responsáveis pela cobrança dos tributos federais).
Mesmo sendo prioritários, tais projetos continuaram sendo alvo de
contingenciamentos e atrasos na contratação e, sobretudo, no efetivo pagamento
das compras e serviços contratados.
Ao que tudo indica, esse quadro não mudará muito com o Plano de Aceleração do
Crescimento (PAC), anunciado pelo governo federal nos primeiros dias de 2007 (e
início do segundo mandato do presidente Lula). É um conjunto de medidas e metas
pontuais, com muitas obras prometidas na infra-estrutura, mas sem mudar o
arcabouço conceitual. O foco é elevar a lista e o montante dos projetos
considerados piloto, porém mal chegando a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) e
apenas mudando de atitude ao passar a descontar tais gastos na apuração do
superávit primário (na prática, reduziu essa meta em igual magnitude). Como
meios, foram reduzidos custos de crédito bancário oficial e concedidas algumas
desonerações tributárias na forma de regime especial e com alcance limitado (no
tempo e em termos de conjunto de contribuintes)1.
Cabem ainda algumas observações sobre a situação das empresas estatais e ao
tratamento a elas dispensado quanto ao acompanhamento de metas fiscais e dívida
líquida. Nos últimos anos, importantes mudanças institucionais afetaram o
desenho das finanças públicas no Brasil, como a desestatização; a reformulação
do processo orçamentário, eliminando operações extrafiscais; a consolidação e o
refinanciamento das dívidas subnacionais com o governo federal; a implantação
de um eficaz sistema de controle e restrição ao endividamento público; e a
criação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Esse processo todo foi
completamente ignorado na formulação da definição, tanto das NFSP como da
Dívida Líquida do Setor Público (DLSP).
É bom situar que a mensuração de déficits em países latino-americanos, e não
apenas no Brasil, assumiu um perfil mais abrangente do que o verificado em
outras situações regionais. Só para ter uma referência, apenas 15% dos países
da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) têm nas
estatísticas fiscais, publicadas nos informes do Fundo Monetário Internacional
(FMI), um conceito abrangente de setor público não financeiro. Na maior parte
dos países, a informação fornecida diz respeito às administrações públicas, em
seus diversos níveis. No entanto, os informes sobre a América Latina contêm, em
mais de 80% dos países, a informação sobre as contas do setor público não
financeiro, incluindo, portanto, empresas em todos os níveis de governo e todas
as formas de fundos públicos.
A questão não é apenas contábil. O motor que levou a mensuração das contas
públicas latino-americanos a ter essa forma mais abrangente tem duas
explicações que se confundem com o próprio estilo de desenvolvimento desses
países e sua realidade financeira. A primeira explicação decorre de forma
direta da hipertrofia do Estado, característica dessas economias. Como o Estado
desdobrou-se em diversas formas institucionais, desde a empresa até os fundos
parafiscais, passando pelas operações de crédito diretamente realizadas pelas
autoridades monetárias, de fato não haveria sentido em avaliar as contas
públicas sem abarcar todas essas dimensões.
A segunda explicação refere-se ao caráter financeiro da crise que se abateu
sobre o Estado. Não se tratava, evidentemente, de uma questão de eficiência
econômica ou descompasso entre os agregados macroeconômicos. Os anos de crise
realçaram as dificuldades das moedas nacionais em manter mínimas condições de
estabilidade diante do poder de arbitragem dos capitais constitutivos dos
grandes fluxos internacionais e da magnitude dos desequilíbrios acumulados. É
importante frisar: a recomposição da credibilidade na gestão da política
econômica passava, necessariamente, por uma avaliação da capacidade financeira
de sustentação das contas públicas. Isso só poderia ser feito tomando-se o
conjunto do Estado, em todas as suas instâncias (tanto fiscais como
financeiras).
A explosão do Estado em diversas entidades, dotadas de maior ou menor
autonomia, e a crise de credibilidade, por parte dos financiadores, na
capacidade de sustentação financeira, explicam, portanto, a profunda adequação
de um conceito como as NFSP à mensuração das condições fiscais. Sua força
residiu justamente na abrangência e na avaliação financeira proporcionada ao
mercado.
O conceito NFSP deriva diretamente da crise financeira do Estado, por isso sua
principal aplicabilidade deve ser justamente nos eventos dessa natureza. Nesse
aspecto, pouco importa se o ajuste for realizado no campo das despesas
financeiras ou no campo relativo às despesas de custeio ou capital. O que está
em questão, nesse âmbito da política econômica, é a capacidade do Estado em
administrar o seu endividamento e seus graus de liberdade para executar
políticas monetárias e cambiais lastreadas pelas contas públicas. Fora do
período de crise, a simples avaliação dos números do déficit e do superávit
primário passa a ser questionada do ponto de vista de sua sustentabilidade
intertemporal. Em um prazo mais longo, logicamente os agentes econômicos não
podem atentar apenas para a capacidade de a administração pública reduzir
despesas. Está em jogo o complexo conjunto de demandas que o aparelho econômico
coloca ao Estado, bem como as tensões sociais que se apresentam em todo o
processo de escolha sobre gastos e pressão tributária.
A discussão da abrangência do setor público não é menos relevante nesta
abordagem da questão fiscal. A decomposição do gasto público entre empresas
estatais e administração pública tradicional determina perfis completamente
distintos para a dinâmica do gasto público durante o ciclo econômico.
Evidentemente, quanto mais forte a participação do Estado no suprimento de bens
e serviços e na construção da infra-estrutura, maiores serão os danos causados
por entraves apresentados ao investimento público.
Vale ainda comentar algumas inter-relações entre as políticas monetária e
fiscal, em termos conceituais. Nos momentos de crise, é natural que todas as
atenções se voltem para o mercado financeiro, colocando as políticas de
controle monetário e taxas de juros no centro do processo decisório. Se já era
assim quando a mobilidade de capitais era menor, nos tempos da globalização,
com as políticas de livre flutuação cambial, as taxas de juros tendem a se
tornar o principal instrumento sob o arbítrio direto das autoridades
econômicas. Essa é uma realidade das crises no formato moderno dos mercados, a
supremacia da política monetária sobre os demais elementos da política
econômica. O problema é que as economias acabaram executando políticas
econômicas em situações de crises prolongadas. A capacidade de arbitragem dos
agentes econômicos, tanto no movimento de suas aplicações dentro dos mercados
como entre espaços cambiais de países distintos, promoveu uma continuidade dos
padrões de enfrentamento das crises para um horizonte de longo prazo.
A grande questão é que essa realidade é altamente perversa para a política
fiscal, ou melhor, a política de geração de superávits primários acabou
submetendo todos os movimentos da política fiscal às necessidades da política
monetária e da gestão da dívida pública. As políticas tributárias foram
severamente limitadas, como também foi reduzida a capacidade do Estado em
intervir diretamente na demanda agregada (ao menos nas economias emergentes).
Nesse contexto, o manejo da taxa de juros tende a monopolizar as atenções da
política econômica e a condicionar cada vez mais os demais instrumentos dessa
política macro. O receituário para enfrentar as crises financeiras mais
imediatas, na prática, acabou ganhando status de políticas de longo prazo.
Entretanto, fora do curto prazo, não é sustentável que países emergentes, em
especial os de grande mercado interno, mantenham posições fiscais completamente
determinadas pelo desenho das políticas financeiras e de combate à inflação. É
preciso buscar alternativas.
Os elementos postos nas diversas posições em debate acerca das relações entre o
ajuste fiscal e o investimento público permitem que sejam delineadas novas
alternativas para o caso brasileiro. O objetivo dessas alternativas é dar conta
de várias preocupações anteriormente arroladas e, ao mesmo tempo, impedir que
as flexibilizações abram espaços para a fragilização do ajuste fiscal.
Especificamente a respeito do tratamento dispensado às empresas estatais no
Brasil, vale destacar que a legislação já diferencia claramente as que dependem
do controlador para funcionar e as que se autofinanciam. A LRF dispensa à
estatal dependente exatamente o mesmo tratamento dado à administração direta e
suas entidades descentralizadas (autarquias, fundações e fundos). A empresa
pode até ser constituída pelas regras do direito privado, mas, como depende
economicamente do controlador para sobreviver, passa a estar sujeita às mesmas
restrições e limites a ele aplicadas, como o limite de gastos com pessoal e de
dívida, assim como a observância de metas anuais de resultado. Do ponto de
vista macroeconômico, porém, é irrelevante o peso das estatais classificadas
como dependentes.
Uma proposta simples seria estender a mesma regra da LRF para o controle das
NFSP e DLSP. As empresas que não fossem classificadas legalmente como estatais
dependentes seriam excluídas daquele controle. É antecipada a resistência a
essa proposta devido ao fato de que as empresas estatais há algum tempo
apresentam tendência superavitária, a ponto de registrarem saldo credor na
apuração da dívida líquida do setor público. O desempenho das estatais é ditado
basicamente por dois grandes grupos, a Petrobras e a Eletrobrás. Essas empresas
têm acumulado elevadas e crescentes disponibilidades financeiras, portanto a
simples exclusão das empresas estatais significaria elevação da dívida líquida
do setor público e redução do superávit primário anual.
Essa proposta passa necessariamente pelo problema da mensuração da NFSP/DLSP.
Na prática, abater da dívida mobiliária em mercado a parcela dos títulos na
carteira das empresas estatais em nada garante aos tomadores dos papéis que a
dívida será honrada, porque, por direito, todos os detentores de títulos
merecem o mesmo tratamento. O Tesouro Nacional não pode resgatar um título em
poder de uma empresa privada e deixar de fazer o mesmo, com o mesmo papel, em
poder de uma empresa por ele controlada. Portanto, a dívida líquida não é um
conceito de solvência; no máximo, é um indicador financeiro, para avaliar a
necessidade de captação ou não de recursos no setor privado.
A dívida assumida pelos Tesouros (o montante devido pelas administrações
diretas em âmbito federal, estadual e municipal) é, portanto, muito maior que a
do setor público consolidado (que considera também a administração indireta,
inclusive empresas, e desconta as disponibilidades financeiras e os créditos
contra o setor privado). Do mesmo modo, o superávit gerado pelos governos tem
sido menor que o que seria registrado se as empresas estatais fossem excluídas
tanto da NFSP como da DLSP. Essa discussão nos remete a um debate mais profundo
sobre os conceitos utilizados nos cálculos da NFSP e DLSP2.
Em 2002, pela primeira vez o Fundo aceitou, para efeito de programa de Stand
By, a proposta do governo brasileiro para reduzir a meta do superávit primário
em montante igual à despesa com investimento da Petrobras. Curiosamente, após a
excepcionalidade anunciada em 2002, o assunto não voltou a merecer registro
público das autoridades econômicas federais. Enquanto o caso é ignorado no
Brasil, é citado positivamente em raro documento do Departamento Fiscal do
Fundo como um caso exitoso de espaço aberto para a retomada dos investimentos3.
Outro ponto relevante a ser destacado neste debate é a questão da vinculação de
recursos, que tradicionalmente é usada para financiar despesas de capital. No
Brasil, a única vinculação constitucional para investimentos envolve a
contribuição destinada a financiar o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que
custeia os benefícios do seguro-desemprego, sendo exigido que 40% da receita
corrente forme uma espécie de poupança aplicada no banco federal de
desenvolvimento (o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES)
para financiar projetos de investimentos, constituindo seu principal funding. A
movimentação do FAT tem basicamente dois efeitos na contabilidade fiscal do
setor público:
os recursos repassados ao BNDES
(por ser instituição financeira, é excluído do setor público) têm
efeito superavitário. Este só é anulado se o BNDES empresta tais
recursos a empresas públicas. E, mesmo quando o faz, apenas é anulado
aquele efeito, mas jamais gera aumento das NFSPs;
<formula/> o estoque de créditos
emprestados pelo FAT ao BNDES reduz a dívida bruta do governo, e, de
novo, se não forem repassados ao setor público, no conjunto, é
reduzida a dívida no conceito líquido.
As discussões sobre o tratamento dispensado às empresas estatais e ao acúmulo
de disponibilidades financeiras resultante de receitas vinculadas no atual
cálculo das NFSPs e DLSPs sugerem um tema maior para um debate futuro e mais
profundo: a abrangência das dívidas públicas mensuradas que atenda às
formulações teóricas em torno da sustentabilidade da dívida e da definição do
nível adequado de seu tamanho em relação ao produto nacional.
É possível antecipar algumas questões que poderiam marcar um debate de maior
fôlego em torno da forma como é caracterizada a dívida pública no Brasil, para
melhor avaliar esse instrumento na formulação e execução das políticas fiscais.
A análise da evolução da relação dívida/PIB no Brasil deveria ser mais
cuidadosa perante o fato de que a DLSP é um conceito demasiado complexo,
repleto de relações intra-setor público e seletivo nas relações com o setor
privado.
É sempre importante ter presente que, nesse contexto, o tamanho da dívida
líquida pouco tem a ver com a dimensão da dívida mobiliária em poder do
público, e que a evolução das duas dívidas não aponta necessariamente para a
mesma direção. Se muitos dizem que a dívida do setor público brasileiro é
elevada, a maioria ignora que são igualmente volumosas as parcelas envolvidas
na sua apuração não só no cômputo da dívida bruta (passivo) como também das
deduções (ativos) realizadas para se chegar ao saldo líquido, valores muito
expressivos são contabilizados.
Vale ilustrar com a última posição divulgada pelo Bacen para dezembro de 2006.
O estoque da dívida mobiliária em mercado era de 50,1% do PIB, já superando em
0,13% do produto o estoque da dívida líquida de todo o setor público ou
suplantando em cerca de 16 pontos do PIB o mesmo estoque específico do governo
federal. Esse grande diferencial é explicado pela enorme dimensão que assumiu o
estoque de ativos do Tesouro Nacional na forma de créditos renegociados com
outros governos e empresas estatais, que chega perto dos 20% do PIB.
Maior ainda é o descasamento dos prazos de vencimentos entre passivos e ativos.
Para comparar dívidas e créditos antes citados, o relatório do Bacen menciona
que o prazo médio dos títulos emitidos pelo Tesouro Nacional, em dezembro de
2006, era de 31 meses. Do outro lado da apuração oficial da DLSP, constam os
refinanciamentos concedidos pelo mesmo Tesouro a outros governos e empresas
estatais contratados com um prazo inicial de 360 meses, com opção de
prorrogação por mais 120 meses.
Ora, a literatura internacional que levou à concepção teórica sobre a
sustentabilidade da dívida, ao que tudo indica, sempre associou tal passivo
governamental ao estoque de títulos emitidos pelo poder público e colocados em
mercado, seja por essa ser a forma típica de financiamento do déficit
orçamentário nos países mais desenvolvidos, seja por ser a forma mais próxima
da moeda. A adaptação do conceito de DLSP ora adotado obscurece ainda mais a
questão do padrão de financiamento do poder público no Brasil e em economias
emergentes, encobrindo a forte deformação que costuma marcar suas estruturas.
As dívidas bancárias ou contratuais não têm grande relação com os supostos
teóricos que baseiam a utilização da relação dívida/PIB, especialmente porque
envolvem as posições firmadas a longo prazo, que não podem ser revertidas por
opção unilateral.
Outro problema na aplicação do conceito da DLSP no Brasil diz respeito à
incorporação instantânea dos movimentos cambiais à variação dos estoques, em
especial da dívida externa (contratual e mobiliária) contraída com agentes
financiadores do exterior. A racionalidade da pressão sobre portfólios tem
sentido na relação com os financiadores internos da dívida pública. Quando os
financiadores são organismos internacionais e aplicadores em bônus
internacionais de longo prazo, desaparece aquela racionalidade, dado que se
rompe o vínculo entre financiadores do poder público e gestão da liquidez
interna, próprio da abordagem teórica que fundamenta o monitoramento da relação
entre dívida e PIB. Não se sustenta a idéia de que haja algum efeito de pressão
financeira sobre os credores externos se a evolução da dívida brasileira é
apenas mais um ativo entre centenas de outros no mercado financeiro
internacional. Rigorosamente, a não ser no que tange à dívida mobiliária
interna dolarizada, em que o agente credor interno percebe seu patrimônio
valorizado, não há justificativa teórica para incorporar os movimentos cambiais
à evolução da dívida líquida.
Por último, não é demais registrar a diferença da razão dívida/PIB entre os
conceitos bruto e líquido (o primeiro também é formalmente divulgado pelo
Bacen, mas ninguém atenta para o fato). Quando avaliadas apenas as
administrações diretas (excluídas empresas estatais), no final de dezembro de
2006 o governo geral consolidado acusava uma dívida bruta de 72,9% do PIB. Como
as deduções equivalem a 22% do PIB, a razão do governo geral diminuía para
51,1% do PIB. Se computadas também as empresas estatais (com posição líquida
credora), o mesmo indicador para o setor público caía para 50,0% do PIB (em
geral o número citado e comentado).
Toda a reflexão exposta realizada teve como objetivo focalizar mais uma vez a
questão do equilíbrio fiscal. Não se deseja questioná-la, mas apenas mostrar
que não há dúvida de que a teoria corrente está ainda muito longe de ter algum
tipo de visão completa e abrangente sobre o debate. Mais que tudo, não há como
negligenciar um elemento de importância absoluta: a natureza financeira da
participação do Estado na economia transforma a questão fiscal, emprestando-lhe
uma dimensão que passa a abarcar o crédito e as formas de manutenção de ativos
e riqueza. Vale frisar que a resolução das questões fiscais não se esgota na
diferença entre impostos e despesas reais, e sim alcança os domínios da
utilização de títulos da dívida pública como moeda e forma de manutenção de
capital. Nesse contexto, o próprio investimento público deve ser entendido de
outra forma, e não como simples tipo de gasto. A rearticulação das formas de
financiamento desse investimento passa a ser crucial.
Algumas visões partiram de um suposto antagonismo entre investimento público e
privado. A idéia geral é que o desequilíbrio fiscal implica endividamento
crescente, que, por sua vez, faz pressão para elevar a taxa de juros. O
movimento inverso, com redução da relação dívida/PIB, seria a forma de elevar o
investimento privado, dada a redução da taxa de juros mediante a redução da
pressão sobre os fundos emprestáveis. A tese ganhou status de política, em
2004, por meio do Ministério da Fazenda no documento "Reformas microeconômicas
e crescimento de longo prazo"4.
O problema é que o investimento é um agregado macroeconômico que se concretiza
em mercados específicos. Nesse âmbito, a realidade das complementaridades com
outros investimentos e a necessidade de formas institucionais que sejam seguras
aos olhos do investidor passam a ser expressivas. Nunca é demais notar que a
economia brasileira tem um histórico de presença estatal superdimensionada no
domínio econômico, não só como produtor de bens e serviços, mas também como
regulador de preços, comércio exterior e de um grande conjunto de normas. Nesse
contexto, é importante refletir mais sobre a interação entre ações, decisões de
investir e investimentos dos setores público e privado.
Desde a desorganização do padrão de financiamento do setor público, ainda nos
anos 1980, o grande desafio para o crescimento vem sendo a substituição do
antigo formato por uma nova configuração. Em uma primeira etapa, adotou-se a
tese de abertura de segmentos ao setor privado, com as bem-sucedidas
transferências dos setores de siderurgia e petroquímica. Na seqüência começaram
as transferências por meio de concessões, que atingiram principalmente o setor
de transportes. Já na década de 1980, a segunda grande onda de privatizações
experimentou sucessos, como nas telecomunicações, e problemas, como no setor
elétrico.
O esgotamento do processo de transferência de responsabilidades ao setor
privado ensejou a inauguração de um novo formato: as PPPs. As parcerias
público-privadas já começaram a ser organizadas e implantadas, porém de forma
ainda tímida (em termos macro) e focada nos governos subnacionais (nada
aconteceu na esfera federal). Evidente que, se os fundamentos estivessem
sólidos (como muitos analistas sustentam), o investimento privado já deveria
ter invadido as áreas de infra-estrutura necessárias para desatar o
crescimento. As razões para que isso não tenha ocorrido só podem ser
encontradas na própria configuração da economia brasileira e na construção de
suas práticas públicas e empresariais.
A Lei das Parcerias Público-Privadas foi aprovada em 2004. O projeto envolvia
não só investimentos em infra-estrutura como também provisão de serviços em
educação, saúde e assistência social, entre outros setores, transferindo para o
setor privado funções que antes deveriam ser exercidas pelo Estado. Essas
parcerias apareciam como a melhor solução para atrair investimentos em áreas
nas quais o retorno não era suficientemente alto para o investidor, e portanto
não seria possível realizar concessões para a provisão do serviço. Embora tenha
sido aprovada uma nova lei nacional com regras bem detalhadas, os investidores
privados não se animaram a realizar maiores iniciativas. Ainda há muita
incerteza e os investidores esperam garantias mais sólidas e líquidas.
O grande obstáculo, porém, são as dúvidas sobre o marco regulatório, não apenas
das próprias parcerias, como também das modelagens de setores estratégicos. Da
carteira de 23 empreendimentos lançada em 2003, apenas quatro são considerados
prioritários e somente um tem o estudo de viabilidade e a modelagem concluídos.
A demora e a complexidade dos estudos e processos de licitação dificultam mais
ainda a realização do projeto.
Embora todo o controle e a burocracia prejudiquem o processo, acredita-se que
não faltam recursos disponíveis no setor privado para tais parcerias. Fundos de
pensão, por exemplo, são uns dos principais candidatos para isso. Uma fatia
considerável da carteira dessas instituições está aplicada em renda fixa, e com
a tendência de queda dos juros elas devem buscar alternativas mais rentáveis.
Contudo, antes é preciso melhorar obstáculos como o problema da regulação e de
leis ambientais.
As agências de regulação brasileiras, criadas na década de 1990, foram
fundamentais para o funcionamento de setores privatizados e com iniciativa
privada, no entanto foram bastante enfraquecidas durante o último governo. Uma
das formas encontradas para enfraquecê-las foi acabar com a independência
financeira, sem a qual é impossível contratar gente qualificada para fiscalizar
as empresas e realizar os estudos necessários. O governo fez isso ao reter
parte do dinheiro destinado às agências, arrecadado por meio de tarifas
embutidas nas contas de luz e telefone, por exemplo. Somente em 2005, as seis
principais agências deixaram de receber 4,5 bilhões de reais que lhes
pertenciam.
Outro fator que tem minado a iniciativa privada é a falta de clareza por parte
do governo sobre o papel das agências ambientais. As leis ambientais não são
claras e os processos de licenciamento permitem uma infinidade de novas
exigências aos investidores. Os embargos ambientais viraram um dos maiores
entraves aos novos projetos de infra-estrutura. Ao mesmo tempo, alguns
empreendedores manipulam falhas na legislação para solapar o poder regulador,
melhorando a rentabilidade de seus empreendimentos.
De qualquer forma, o setor privado até poderia se ocupar da maior parte dos
setores essenciais para o cálculo de rentabilidade do investimento, com grandes
vantagens, em termos de custo econômico e social. Isso ocorre em diversos
países. No caso brasileiro, embora não possamos deixar de ter como meta a
responsabilização crescente do setor privado pelos investimentos essenciais,
seria pouco realista achar que isso vá se dar em um piscar de olhos. Vale
ressaltar que o Brasil experimentou décadas de presença estatal absoluta nos
setores de energia, telefonia, saneamento e siderurgia, entre outros. A
transição foi rápida em alguns deles, devido às mudanças tecnológicas e aos
ganhos de produtividade derivados da privatização. Em outros casos, as escalas
de capital exigido e as dificuldades com o aparato regulatório agiram como
entraves ao desenvolvimento.
Os investimentos nos setores de infra-estrutura urbana e de transportes sem
dúvida poderão aproveitar no futuro as oportunidades abertas pelos novos
instrumentos financeiros gestados pelo mercado de capitais. Eles poderão usar
as novas formas jurídicas que o project finance engendrou e deverão diluir os
diversos tipos de risco do empreendimento por meio das engenharias de seguros e
formatações empresariais.
O problema é que assim como temos diversos gargalos produtivos, nossas
instituições financeiras ainda não desfrutam do nível de sofisticação vigente
em outros países. Não queremos dizer que esses instrumentos não possam ser bem-
sucedidos. Eles já podem operar, como a PPP do Metrô paulista mostrou, mas o
que está em questão é a escala. E esta só virá com um tempo de que não
dispomos.
Tendo em vista a lentidão com que vêm sendo implementadas as parcerias e a
timidez das medidas fiscais, como a dos projetos-piloto, é cada vez mais
necessário pensar em outras alternativas, mais ousadas e ambiciosas, para
enfrentar uma questão tão grave como o reduzido investimento público no Brasil.
Uma estratégia inovadora poderia buscar a elevação de investimentos, sem
prejuízo da preservação do equilíbrio fiscal, com uma condução pública, mas com
a chancela do mercado. A proposta consiste em identificar vinte ou trinta
projetos fundamentais para o desenvolvimento do país, os quais, embora de
difícil equacionamento na forma PPP, pudessem ser realizados por empresas de
propósito específico. E, ainda que organizadas pelo poder público, seriam
geridas de forma profissionalizada.
É indispensável abrir espaços para projetos identificados como economicamente
viáveis com relação a suas taxas internas de retorno. Do mesmo modo, projetos
que tenham taxa interna de retorno inferior, mas tenham impacto sobre a
economia e assim apresentem impactos econômicos indiretos positivos, poderiam
ter apoio para sua realização. Esses projetos teriam de ter o novo projeto como
base, tanto na formulação como na execução, desenvolvendo ações gerencialmente
eficientes e financiáveis pelo mercado.
O financiamento dos projetos deveria contar com recursos específicos,
levantados diretamente no mercado. Nessa estratégia de captação de recursos,
caberiam operações de crédito contratadas em bancos e recursos levantados em
fundos de investimento, ou mesmo por meio de emissão de títulos contra
recebíveis. Logicamente, o ponto crucial seria a estrutura jurídica armada para
dar segurança aos aplicadores quanto à condução profissionalizada da gestão.
Caso a taxa interna de retorno dos projetos seja inferior à rentabilidade
requerida pelo mercado, seja na fase inicial, seja durante toda a realização do
projeto, teria de ser feita uma provisão de recursos para a equalização de
taxa, devendo ser contabilizada como necessidade de financiamento, ano a ano.
Mesmo que, na prática, o processo assumisse a forma de uma colocação prévia de
títulos que ficariam depositados em garantia, a existência de ativos e passivos
a serem utilizados no curso do projeto distribuiria o subsídio implícito no
tempo, bem como o impacto sobre a NFSP.
O financiamento pelo mercado é a maior garantia da qualidade dos investimentos.
Ao mesmo tempo, essa formatação não exigiria um sistema de securitização tão
complexo quanto o que é necessário para as PPPs. A salvaguarda para as contas
públicas se daria pela penalização aos projetos mal executados. Em caso de
descompasso entre a trajetória financeira inicialmente desenhada e a realizada,
o diferencial seria computado como novo déficit público. Mas isso não daria aos
investidores nenhum direito de ressarcimento, justamente para garantir as
melhores decisões de investir e o monitoramento da condição da empresa.
Três precondições seriam apresentadas: desenvolvimento de uma avaliação
econômica detalhada do empreendimento, com auditoria externa; constituição de
diretoria profissional, sem interferência política e com ativa participação dos
investidores; estruturação do financiamento da empresa realizado em mercado,
com agentes privados.
Essa configuração, por si só, poderia legitimar que os recursos levantados para
investimentos não fossem incorporados à apuração oficial do déficit público. De
fato, o financiamento pelo mercado é a maior garantia da qualidade dos
investimentos. Ao mesmo tempo, essa formatação não exigiria um sistema de
securitização tão complexo quanto o necessário para as PPP.
Essa proposição teria três efeitos importantes para o país: economizaria tempo
na viabilização de projetos essenciais; iniciaria a remontagem de uma estrutura
de financiamento ao setor público que fuja da concentração do endividamento na
dívida mobiliária; e permitiria que o mercado financeiro desenvolvesse práticas
e instrumentos compatíveis com o financiamento de operações de porte, que
posteriormente poderão ser diretamente realizados pelo setor privado. Além
disso, mas não menos importante, eximiria o país da mediocridade da disjuntiva:
crescimento ou equilíbrio fiscal.
É importante frisar que a modelagem acima proposta é muito superior ao Projeto
Piloto de Investimentos (PPI), que seleciona um rol de investimentos e
simplesmente deduz o valor correspondente do déficit público. Em primeiro
lugar, os analistas de mercado têm tratado esse mecanismo como simples embuste.
Em segundo, realmente não se trata de nenhum conceito ou formato novo, que
melhore a eficiência, a gestão ou solvência do setor público. Ao contrário, a
PPI mais parece uma lista de projetos escolhida por importância política.
Por fim, é importante comparar o desenho aqui proposto e a modelagem das PPPs
reguladas por lei federal. Elas não são excludentes, dado que as parcerias
comandadas pelo setor privado já podem ser realizadas. O grande diferencial é
que as PPPs acessam recursos de um fundo que poderá se tornar um grande
esqueleto, enquanto a proposta em pauta liquida seus desvios, diante do
planejamento inicial, a cada ano, produzindo o déficit correspondente no
próprio ano. Dessa forma, estaria preservado o critério de apropriação dos
prejuízos de modo a não afetar gerações futuras.
O crescimento é o maior desafio da economia brasileira na segunda metade desta
década. Há vários anos, o Brasil vem promovendo mudanças estruturais em sua
economia e sociedade, desde o sucesso na abertura ao exterior, passando pelo
controle da inflação, pela desestatização da economia, pelo maior ativismo
estatal nas políticas sociais e indo até mesmo à alternância de poder sem
ruptura de preços, contratos, ordem e propriedade. O amadurecimento democrático
e institucional que permitiu ao país promover a alternância do poder político
deveria nortear mudanças no campo da economia. É praticamente um consenso
absoluto o que se busca: conciliar estabilidade de preços com crescimento a
taxas mais elevadas; aumentos mais vigorosos na produção, no emprego e, por
conseguinte, no bem-estar social, de modo que o combate à pobreza e às
desigualdades sociais seja efetuado com mudanças estruturantes e não apenas
paliativos assistencialistas.
Qual o diagnóstico básico do problema? O crescimento é resultado de um conjunto
de fatores, entre os quais podemos identificar dois como os mais relevantes no
horizonte imediato: a adequação das políticas de juros e câmbio e o formato da
presença do Estado na economia.
Embora haja enorme evidência de que os dois principais preços da economia
(juros e câmbio) estejam fora de lugar, não foi esse o objetivo da presente
discussão. Partiu-se do suposto de que as grandes variáveis macroeconômicas
deverão se ajustar para permitir avanços na discussão sobre as formas de romper
a enorme armadilha fiscal em que o país ficou preso. Em verdade, a política
fiscal se tornou completamente passiva e acabou sobrecarregada pela necessidade
de dar conta de um ônus financeiro relativo às crises monetárias e à
dificuldade de controle dos fluxos de capital.
As soluções de política sustentaram-se na produção de superávits primários,
viabilizados por novas elevações da carga tributária, convivendo com
inconseqüente ampliação dos gastos correntes, relegando o investimento público
a níveis insignificantes. A carga tributária brasileira, que já chega perto dos
40% do PIB, iguala-se à carga tributária média de países industrializados e é
muito superior à carga média dos países em desenvolvimento (27,4% do PIB).
É inegável que a atual estruturação da política fiscal é altamente restritiva.
Diversos conceitos e formas de medida das contas fiscais apresentam um viés
altamente contrário aos gastos em investimento. Como foi visto, esses conceitos
são muito mais rígidos no caso da economia brasileira que em âmbito
internacional, seja em economias maduras, seja em economias emergentes.
Nos últimos anos, a insuficiência do trato governamental em relação aos setores
regulados pelo Estado chegou a limites insustentáveis. O caráter quase errático
com respeito ao formato da presença do Estado na economia e a falta de
compreensão das relações entre o público e o privado produziram o esfacelamento
da já débil estrutura da regulação antes apoiada pelas agências reguladoras,
que acabaram perdendo a capacidade e a autoridade para a regulação setorial.
As duas tentativas de incentivar investimentos públicos e envolver recursos
privados nas áreas em que tradicionalmente o setor público é supridor não
tiveram o desempenho inicialmente esperado. De um lado, o PPI, redução do
déficit limitada a projetos com piso de retorno aceitável, não teve condução
expressiva e sempre foi percebido pelo mercado como simples falseamento das
contas fiscais. De outro, a PPP, dadas as dificuldades envolvidas na formatação
do project finance, deverá ser um instrumento em construção por período
apreciável de tempo.
Dessa forma, o grande desafio que se coloca neste momento para a formulação das
políticas é a proposição de formas de investimento em infra-estrutura, pela
ação do Estado, sem que os ganhos derivados da responsabilidade fiscal sejam
postos em risco. Para isso, buscou-se desenhar um novo formato de bloco de
investimentos, caracterizado pela formação de uma empresa controlada pelo
Estado, mas de fim específico. Uma empresa de gestão privada, sob diretrizes
governamentais. O investimento realizado não seria contabilizado como déficit
público, justamente porque a realização passaria pelo crivo do mercado, como
seu financiador. Quaisquer insuficiências de fundos ou deficiências inesperadas
de taxa de retorno deveriam ser imediatamente assumidas como ônus governamental
e contabilizadas como déficit público.
Os ganhos nesta estratégia vão além de apressar investimentos inadiáveis, pois,
ao mesmo tempo, assume novos contornos a recomposição do padrão de
financiamento público e as próprias formas privadas de estruturação de
financiamentos vão ganhando densidade e preparando o setor privado para uma
presença mais forte na capacidade de ofertar infra-estrutura.
[1]Não se deve desprezar o efeito de tais desonerações. A maior parte dos
estudos sobre infra-estrutura no Brasil chama a atenção para os problemas
causados pela carga tributária brasileira. Além da carga global já chegar perto
de 40% do PIB, o sistema tributário é um dos que mais tributam o setor de
serviços básicos no mundo. De acordo com um estudo da consultoria McKinsey
sobre os principais problemas que afligem a economia brasileira, a tributação
representa 48% do preço final da eletricidade, 47% da telefonia e 39% dos
transportes.
[2] Ver J. R. Afonso e G. Biasoto, "Oferta de infra-estrutura e desenvolvimento
econômico: O desafio do investimento público no Brasil", Universidade Federal
de Viçosa, outubro de 2006.
[3] "In the case of Brazil, the decision was made under the 2002-5 Stand-By
Arrangement to include an adjustor to the primary surplus performance criterion
to allow higher-than-programmed investment spending by Petrobras, because it
was deemed to be a commercially run public enterprise. In making such an
assessment, Petrobras met the following criteria: it earned an average rate of
return and had a debt/equity ratio (adjusted for country risk) comparable to
those of its international competitors; it had a diversified ownership
structure, with the government's share amounting to one-third of the company;
it met international accounting standards, was subject to external audits, and
had its shares listed on a major international exchange; it was not subsidized;
and it was subject to the same regulatory and tax environment as private sector
firms. However, there were criteria that Petrobras did not meet: it did not
have an independent board of directors (5 of the 9 directors are appointed by
the government); there was not fully independent decision-making with respect
to investment and pay policies (while in practice this was the case, legally
the government had oversight in these areas); and there was some guaranteed
borrowing (one World Bank loan was guaranteed by the government as required
under the loan terms). The judgment was made by staff that there were adequate
safeguards to minimize any risks linked to these arrangements". Ver "Public
Investment and Fiscal Policy", mimeo. Fiscal Affairs Department and the Policy
Development and Review Department. International Monetary Fund, março de 2004,
p. 21.
[4] Ver site do Ministério da Fazenda: www.fazenda.gov.br/spe/publicacoes/
reformasinstitucionais/_estudos/Texto_VersaoFinal5.pdf.