Mito e história em Iracema: a recepção crítica mais recente
As letras devem ter o mesmo destino que a política. (...)
Há duas sublimes enfermidades do espírito humano
, a saudade e a nostalgia, uma é a lembrança da pátria,
outra é a lembrança do passado: como se chamará a saudade
que se tem das ilusões perdidas que por muito tempo
encantaram nossa existência, a nostalgia que sente
o homem longe do mundo que sonhou?
José de Alencar, Cartas sobre A Confederação dos Tamoios
GÊNESE DO ROMANCE: UMA POLÊMICA E UM ÉPICO NAUFRAGADO
Produto feliz da convergência de estilos, linguagens, gêneros e modelos
literários diversos, Iracema (1865) é a obra-prima do indianismo de Alencar
ou mesmo de toda a sua ficção, incluindo os dois grandes perfis de mulher,
Senhora e Lucíola, ao lado dos quais seria um terceiro, superior em
inventividade na apropriação tupi do modelo balzaquiano.
Na gênese do romance está o projeto naufragado do épico Os filhos de Tupã
(1863), como o próprio escritor trata de atestar no posfácio, alegando, entre
outras coisas, a maior flexibilidade e o alcance de comunicação da prosa
ficcional. O abandono da épica e a opção pela prosa de Iracema podem ser mais
bem compreendidos à luz das duras críticas dirigidas à obra de Magalhães, em
famosa polêmica travada por nosso Ig nas páginas do Diário do Rio de Janeiro em
1856 uma estratégia ousada do então jovem cronista de No correr da pena para
se inserir no acanhado mundo das letras nacionais, desafiando a norma da
cordialidade que aí também, literalmente, imperava, ao atacar de frente o
protegido de Pedro II2.
Dentre as cobranças e sugestões dirigidas por Alencar à "maquinaria pesada e
desgraciosa" (Antonio Candido) da Confederação dos Tamoios, é possível
reconhecer a prefiguração de algumas das soluções felizes apresentadas anos
depois em Iracema, a começar, naturalmente, pela recusa dos moldes da épica
clássica em prol de "um verdadeiro poema nacional onde tudo fosse novo, desde o
pensamento até a forma, desde a imagem até o verso"3. Não é demais supor que
essa "nova forma de poesia" seria concretizada pela prosa poética do livro de
1865, cuja força plástica e musical pretendia responder, igualmente, àqueles
que consideravam as línguas indígenas bárbaras, carentes de imagens, mal
soantes e pouco poéticas. Para alcançar a expressão viva e o frescor dessa nova
forma de poesia, diferentemente do que fez Magalhães, seria necessário, sempre
segundo Ig, abandonar a perspectiva do homem civilizado e flagrar as maravilhas
da terra toda nova pela ótica de um filho da natureza. Essa cobrança talvez
explique o fato de o narrador em terceira pessoa de Iracema "falar a mesma
linguagem metafórica de suas personagens, como se a história estivesse sendo
narrada desde dentro do mundo indígena, por um de seus membros"4.
Destaque-se, ainda, nas Cartas, a menção à "Eva indiana" que Magalhães não foi
capaz de nos dar, através de uma representação convincente da mulher como
"símbolo do amor, da virgindade e da maternidade", mas que Iracema saberá
encarnar plenamente. Nelas, inclusive, há a evocação daquelas "duas sublimes
enfermidades do espírito, a saudade e a nostalgia", que comparecerão em
Iracema, na forma de herança legada a Moacir e sua descendência mestiça. Mesmo
a estratégia de interlocução presente nas Cartas dirigidas a um destinatário
amigo lembra a situação evocada no prólogo e no posfácio do livro, também
concebidos na forma de uma missiva endereçada ao dr. Jaguaribe esclarecendo a
gênese e a destinação da obra. Em ambos os casos, além do mais, a reportação a
um espaço natural figurado como refúgio aprazível, no qual se instalam o
emissor das Cartas e o destinatário do prólogo do romance, parece ser um bom
exemplo de recriação primorosa da paisagem local, de que tanto carecia a
Confederação, conforme a crítica de nosso polemista.
HIBRIDISMO DA FORMA, MESTIÇAGEM DA LÍNGUA
Passando às questões propriamente formais que notabilizaram Iracema, vale
destacar os arcaísmos, o uso da terceira pessoa pela personagem indígena para
se referir a si própria, além das perífrases, símiles, dípticos e aliterações
que contribuem para a dimensão poética do romance, com sua grande densidade de
imagens e ritmos encantatórios. Dimensão essa alcançada também pela equiparação
da psicologia das personagens, da lógica da existência e da passagem do tempo
com os movimentos e ciclos da natureza, compondo um todo harmônico, sem as
cisões instituídas pela civilização.
Complementando essa configuração poética, o romance se caracteriza ainda pela
eliminação da noção de suspense, uma vez que o pano de fundo histórico dos
eventos narrados já é dado em uma sinopse preliminar; e pela concisão dos
capítulos, quase estrofes poéticas, muito raramente indo além de um par de
páginas e marcando "episódios auto-suficientes que terminam não em antecipação
ou revelação, mas em fechamento", com freqüência selado "pela imagem de
partida, resignação ou cair da noite"5.
Todavia, mais do que fusão de poesia e prosa, Iracema é fruto da síntese de
gêneros literários variados, dos quais Haroldo de Campos (inspirado pelos
cronotopos bakhtinianos) destaca a fábula de raiz folclórica, o mito de origem
e a narrativa simbólica de aventuras, com momentos
idílico-pastorais
6. O mesmo crítico reconhecerá, ainda, na "escrita tupinizada" de Iracema, a
criação de uma linguagem edênica que, distante de toda pretensão de fidelidade
filológica sobre a qual debateram diversos estudiosos desde o século XIX,
atendia, com liberdade e invenção, ao problema premente de fundar a língua
literária nacional, vista como tópica particular de uma demanda mais ampla: a
pesquisa da forma de expressão, central para o escritor brasileiro.
O que fora matéria de controvérsia marcante desde a primeira recepção do livro,
levando à condenação do "ensaio"7 de Alencar por filólogos como Henrique Leal
(para quem a prova de identidade nacional distinta da lusitana não passava
necessariamente pela língua), converte-se em matéria, ou melhor, forma digna de
celebração pela crítica mais recente. Não é o caso apenas de Campos, mas também
de David Treece, para quem a experimentação alencariana com o português e o
tupi, apesar do artificialismo do estilo e da sintaxe, sem relação com qualquer
vernáculo empregado no Brasil, não deixa de ser "uma notável façanha retórica"
e uma "celebração menos ambígua", se comparada ao entrecho, "do legado cultural
da miscigenação". Do mesmo modo, Renata Wasserman fala do custo implicado nesse
hibridismo da linguagem, no qual
[...] a combinação de elementos americanos e europeus [realiza]
aquilo que o enredo mostra ser só imperfeitamente possível. Nesse
processo, a perda de Iracema por Martim é traduzida na aquisição de
uma distinção importante entre o poder colonial e a nova nação: a
expressão característica da nova terra em sua própria linguagem. Os
sentimentos de nostalgia e melancolia provocados pela linguagem
preservam algo da reflexão sobre as condições de sua criação, mesmo
que Alencar não exclua essas condições de seu relato: a realidade da
dominação, conquista e morte permanece oculta, principalmente por
causa da ideologia da harmonia que o texto carrega, em um elaborado
jogo de esconde-esconde estabelecido com toda a aparência de boa-fé
8.
A essa ideologia da harmonia voltarei adiante, depois de inventariar os
principais diálogos intertextuais travados no romance e já reconhecidos pela
crítica, todos igualmente válidos e balizados por um repertório comum de época,
sem que se possa definir com facilidade a primazia de um sobre os demais.
INTERTEXTO: DIÁLOGOS MÚLTIPLOS
O intertexto abrange sobretudo o repertório europeu, mas não desconsidera a
prata da casa. Assim, entre os contemporâneos do escritor, Machado de Assis
reconheceu na heroína alencariana "a irmã mais moça de Moema e de Lindóia"9, ao
passo que Franklin Távora, em conhecida polêmica travada nas Cartas de
Semprônio10, evocava o episódio da ilha de Sem nos Mistérios do povo, de Sue,
com a intenção de desqualificar a criação de Alencar como mera cópia. Ainda
pela vertente francesa, mais de um intérprete tratou de aproximar o idílio
amoroso de Martim e Iracema ao de Paul et Virginie, de Bernardin de Saint-
Pierre, além das afinidades evidentes com o Chateaubriand de Atala e Les
Natchez, examinadas por Soares Amora e, depois, por Maria Cecília de Moraes
Pinto11. Pela vertente inglesa12, Eugênio Gomes chamou a atenção para a
presença discreta de Ossian, unindo Iracema e Malvina, além do gosto comum
pelas "sombras" em ambas as obras, nas quais as tardes e as noites recebem
tratamento preferencial.
Passando ao plano mais universal do mito, no que diz respeito à tradição greco-
romana, Iracema já oscilou entre Diana caçadora e Helena de Tróia, como pivô da
guerra entre gregos e troianos sem falar em outras personagens da Eneida de
Virgílio tão admirado por Alencar. Quanto à mitologia judaico-cristã, afora a
associação freqüente com a Eva bíblica, Cavalcanti Proença preferiu enfatizar o
diálogo com o Cântico dos cânticos na caracterização da heroína, morena
trigueira com seus "lábios de mel" e os cabelos lisos como o "talhe da
palmeira", semelhantes aos atributos físicos da amada de Salomão, nigra sum sed
formosa. Isso sem falar em outras passagens bíblicas identificadas no romance,
que permitem aproximar Moacir de Benoni, este também "filho da dor" de Raquel e
"cabeça de tribo judaica de que provieram reis e homens ilustres. Um pouco de
bairrismo cearense", conforme a observação bem-humorada de Proença13.
Na verdade, como Treece trataria de demonstrar posteriormente, Alencar
apropria-se de todo um complexo de mitos bíblicos, que vai da queda edênica ao
nascimento de um novo redentor, com sérias implicações político-ideológicas, a
que me reportarei mais à frente, depois de comentar um último diálogo
intertextual digno de nota. Ele diz respeito à conhecida ópera de Bellini e foi
há muito denunciado por Joaquim Nabuco que, polemizando com Alencar, iria se
reportar com desprezo a "essa Norma Tupi" encarnada por Iracema. Recentemente,
esse diálogo veio a ser examinado de forma detida por Renato Janine Ribeiro
que, através de confronto com a ópera, também evidenciou as referidas
implicações do mito fundador criado por Alencar.
No confronto com Norma, Iracema também surge como uma espécie de vestal,
detentora de um saber responsável pelo equilíbrio harmônico reinante entre seu
povo e a terra (o segredo da jurema). Do mesmo modo que a primeira, apesar dos
votos de castidade, torna-se amante do invasor, inimigo de sua raça. No caso da
ópera, obviamente, o cerne do conflito reside no choque entre esse amor
secreto, cheio de culpa, da sacerdotisa suprema dos gauleses pelo procônsul
romano Polião, a quem deu dois filhos, e os anseios emancipacionistas que
culminarão na rebelião gaulesa contra a tutela exercida por Roma na Antiguidade
na verdade, uma alegoria da própria situação da Itália sob domínio austríaco
no século XIX. No caso do romance, a mesma ordem de conflito comparece, mas de
maneira diversa, a começar pelo fato de que, diferentemente dos gauleses, não
há unidade entre os povos indígenas, divididos entre tribos e alianças
distintas com o europeu e guerreando entre si. Além disso, o invasor aqui é
parte constitutiva do povo mestiço, cuja origem é recriada por Alencar no
sentido de assumir sim o elemento ameríndio, mas sem negar a legitimidade da
invasão e da ação dos portugueses no continente e excluindo o terceiro
elemento formador, o negro. Nesse sentido, diferentemente do impulso
progressista de Bellini, o do romance alencariano corre o risco de incorrer na
legitimação do status quo, em vez de problematizar o existente. Quanto ao
desenlace trágico de ambas as obras, cada qual à sua maneira, em Norma os
amantes terminam engolidos pelas chamas da pira, de modo a evidenciar que, no
conflito entre o amor pessoal e a pátria, a única solução possível é a morte.
Os filhos, poupados, acabam sendo criados pelo avô gaulês, supostamente
assumindo a identidade do povo rebelado. Já em Iracema temos a morte só da
mulher e, com ela, a destruição simbólica de seu povo e de sua identidade:
É essa morte que, coincidindo com o nascimento de Moacir, "filho do
sofrimento", legitima a ocupação do solo pelo europeu. O pai
sobrevive para sustentar no primeiro cearense a legitimidade de sua
conquista como um Polião que saísse da ópera com os filhos,
convertendo os gauleses à fé romana, enquanto a mulher ardesse
sozinha na pira. [...] Nossa história nasce em Martim Soares Moreno e
em seu filho, o primeiro cearense. Iracema, a nativa, a mãe, a
natureza, fica como lenda
14.
MITO SACRIFICIAL E ALEGORIA DA HISTÓRIA
Apesar da contribuição efetiva representada pelo confronto detido com a ópera
de Bellini, não se pode dizer que a análise das implicações ideológicas e as
conclusões do ensaio de Janine Ribeiro sejam propriamente novas na recepção
crítica do livro. A tese de que a história de amor entre Martim Soares Moreno e
Iracema alegoriza o encontro entre o colonizador europeu e o índio que deu
origem à nacionalidade, legitimando a posse da terra pelo invasor à custa do
sacrifício indígena, já havia sido examinada detidamente por intérpretes como
Bosi, Treece e Sommer.
Na verdade, a dimensão alegórica já fora denunciada antes mesmo desses
intérpretes, desde o ensaio de Afrânio Peixoto o primeiro a chamar a atenção
para o anagrama contido no nome da heroína , que define o romance como um
"hino brasileiro, noivado da Terra Virgem com seu Colonizador Branco, pacto de
duas raças na abençoada terra da América, poema épico, definidor de nossas
origens histórica, étnica e sociologicamente"15. A diferença, como se vê, é que
Peixoto lê a alegoria em perspectiva celebradora ou mesmo cívica, sem atentar
para seu comprometimento ideológico como leitura da história da colonização. É
esse comprometimento que os três críticos citados tratarão de evidenciar,
antecipando-se à leitura de Janine Ribeiro. E o farão articulando-as não só à
época da Conquista e da colonização, mas também ao momento de consolidação do
Estado nacional no século XIX. De modo que é quase possível falar em uma
espécie de dupla alegorização presente nos romances indianistas de Alencar,
como representação, a um só tempo, do encontro e das alianças entre colonizador
e colonizado nos primeiros séculos da Conquista, e da cena política
contemporânea do nosso escritor, na qual esteve visceralmente envolvido, seja
como polemista, seja como deputado ou ministro. É o que evidenciará, a seguir,
a recensão das três interpretações.
A primeiro delas, de Alfredo Bosi, em ensaio dedicado na verdade a O guarani,
acaba por estender o mesmo complexo sacrificial reconhecido no romance de 1857
para a "doce escravidão" d'Iracema (no dizer de Machado de Assis). De acordo
com o crítico e historiador, tal mito sacrificial, tomado no sentido da
imolação voluntária do índio ao branco, tendeu, com sérias implicações
ideológicas, à abstração da violência do processo de colonização e legitimação
da posse do continente pelo europeu: "[...] o risco do sofrimento e morte é
aceito pelo selvagem sem qualquer hesitação, como se sua atitude devota para
com o branco representasse o cumprimento dum destino, que Alencar apresenta em
termos heróicos e idílicos"16.
Bosi formula a hipótese de essa sujeição do índio ao branco se afinar com o
esquema feudalizante de interpretação da nossa história, visto que tal
dominação aparece como conatural em um contexto marcado pelas relações de servo
e senhor. Ligada a tal sujeição, vemos, em O guarani, "a figura do índio belo,
forte e livre" moldado "em um regime de combinação com a franca apologia do
colonizador". Comprometida com essa visão legitimadora da colonização, temos,
em Iracema, não só a sujeição e o sacrifício da protagonista, como também o
contraponto entre personagens secundárias simetricamente opostas, como Poti e
Irapuã, respectivamente herói e vilão da história. De acordo com tal
contraponto, é como se Alencar reconhecesse que ao indígena cabe um papel na
construção de nossa civilização, desde que tenha consciência de seu lugar e
saiba aceitar sua posição subalterna, a exemplo de Poti. Por isso ele é o duplo
civilizável do indomável líder tabajara, que por amor de Iracema/América,
declara guerra ao colonizador. Essa visão conformista e legitimadora da
colonização é reiterada pela transformação da história em lenda ou mito, que
desobriga o escritor de ter de se haver com o problema da infidelidade aos
fatos históricos que envolvem o processo violentíssimo da colonização.
Ainda em seu ensaio, o autor de Dialética da colonização articula a
contraposição entre o indianismo sacrificial de Alencar e a visão trágica da
colonização em Gonçalves Dias com a realidade política das Regências e a do
Segundo Reinado. Demonstra, assim, que a visão do maranhense, do índio como
vítima das conseqüências militares e sociais da Conquista, é até certo ponto
motivada pelo antilusitanismo que marcou as revoltas provinciais, dentre as
quais a Balaiada, que o poeta conheceu de perto em sua província natal. Já em
Alencar, a composição de alianças entre o colonizador e o índio, à custa da
sujeição, quando não do sacrifício deste último para a construção de uma
civilização nos trópicos, é associada à política de Conciliação do Segundo
Reinado.
Um exame mais amplo, sistemático e aprofundado dessa articulação entre a imagem
do índio como aliado do colonizador e o contexto político contemporâneo de
Alencar viria a ser promovido por David Treece. Visando fundamentar
teoricamente a política de coligações, Treece recorre a estudos como o de José
Honório Rodrigues17, que lhe permite estabelecer a continuidade entre esses
dois períodos distantes no tempo (séculos XVI-XVII e XIX), na medida em que
explica a Conciliação do Segundo Reinado não como uma prática restrita ao
gabinete Paraná, mas sim como estratégia recorrente que atravessa nossa
história, deitando raízes justamente nos acordos e nas alianças entre brancos e
índios nos primórdios da colonização.
Para essa articulação, Treece fornece argumentos mais consistentes, inclusive
os que envolvem a política indigenista oficial do Segundo Reinado, ela própria
expressão dessa atmosfera de consenso, na qual uma linguagem liberal de
tolerância e pluralismo clamava por reconciliar interesses antagônicos, mas sem
afetar minimamente o poder e a autoridade dos antigos proprietários. A
reivindicação de um programa liberal mais humano, de integração social e
econômica, contra a política colonial de extermínio e escravização mantida até
o Primeiro Reinado, resultou no Regulamento das Missões (1845) que prolongava o
sistema de aldeamentos, visto como uma transição para a assimilação completa
dos índios. Logo em seguida, a Lei de Terras (1850), consolidando o poder e o
domínio dos latifundiários, permitia que índios (assim como sertanejos e
pequenos proprietários) fossem desapropriados de suas áreas tradicionais e
realocados em espaços onde estariam bem mais sujeitos ao controle social e
econômico. Em dada medida, a nova política indigenista atendia a uma demanda
crescente de mão-de-obra em certas regiões, precipitada com a abolição do
tráfico negreiro em 1850. Tal política, ainda assim, não foi benquista por
todos os proprietários, sobretudo por certos fazendeiros poderosos (como o
senador Vergueiro), cujo capital estava investido em escravos ou mostravam-se
comprometidos com programas de substituição da mão-de-obra negra pela
imigrante. Um porta-voz desses interesses contrários foi Varnhagen, autor do
Memorial orgânico que desencadeou conhecida polêmica, cujas conexões com o
debate literário indianista foram pouco consideradas, mesmo envolvendo, em
ambos os casos, intelectuais e escritores proeminentes18. Por uma contradição
própria da época, foi em uma revista de tendência liberal, a Guanabara, que se
estampou esse memorial de caráter explicitamente conservador, negando todo e
qualquer direito ao índio, invasor nômade, alheio ao pacto social, sem direito
à posse da terra que ocupa e sem capacidade moral ou intelectual para cuidar de
si.
É dentro dessa moldura histórica, política e ideológica que o crítico inglês
promove a leitura dos dois romances indianistas de Alencar. Treece demonstra
como o sonho de reconciliação e regeneração da Nação-Estado Imperial
simbolizado pela união fantasiosa de Ceci e Peri no livro de 1857, que
projetava o drama da miscigenação em um futuro pós-diluviano ainda vazio de
história, encontrará o relato de sua frustração em Iracema, o qual,
efetivamente, promove a narrativa do casamento inter-racial empregando todo o
complexo de mitos bíblicos mencionados mais atrás. Sempre nas palavras do
crítico, esta foi a
[...] segunda tentativa de Alencar de substituir uma narrativa mítica
de constituição nacional pelo legado irresoluto das contradições
internas herdadas pela independência, que logo retornariam à
superfície da vida política no Brasil. No mesmo ano, a Guerra da
Tríplice Aliança contra o Paraguai lançou o Império em uma nova fase
de levantes que marcou o fim definitivo do consenso político mítico
adotado nos anos da Conciliação.
No exame do complexo mítico-cristão empregado no romance, explica Treece que,
diferentemente de Magalhães e outros que reconheciam no Império "o triunfo
histórico, redentor da civilização cristã sobre a ordem colonial pecaminosa",
coube a Alencar "focalizar o legado subjetivo da culpa da nação pelo sacrifício
dos índios para aquele triunfo. Só assumindo e internalizando a contradição
entre a capacidade dos europeus para a violência e a traição, e o sacrifício
material e cultural dos índios, poderia a consciência brasileira conciliar-se
consigo mesma" embora o problema maior de tal reconciliação residisse no fato
de ela prescindir da necessidade de mudança efetiva da ordem sociopolítica
herdada pela Independência.
Para representar tal contradição e o legado da culpa, Alencar cuidou
engenhosamente de reconstruir a narrativa bíblica da queda, traição, sacrifício
e nascimento do redentor, realizando todos esses eventos de uma só vez, logo no
início da história de nossa colonização. No que concerne à queda, Treece
contraria certa leitura corrente, segunda a qual a virgem tabajara, enquanto
encarnação da Eva bíblica, por força da tentação e da sedução de seu amado,
seria a responsável pela queda e conseqüente expulsão do paraíso. Por isso,
também teria recaído sobre ela o castigo perpetuado do parto com dor, que
marcaria o nascimento de seu filho, "filho do sofrimento", parido na solidão e
na tristeza que a levarão à morte. Mas para o crítico, embora Martim se coloque
na posição de vítima moral pelo conflito entre a lealdade à noiva branca
distante e a presença sedutora da índia trigueira e ardente à qual acaba por
ceder como bom cristão, fechando os olhos e entregando a Deus a decisão, sem
pensar nas conseqüências trágicas desse envolvimento para a virgem tabajara e
sua tribo , a verdade é que
Alencar inverte os papéis tradicionais de tentação e vítima como eles aparecem
no mito do Gênesis; Iracema é descrita como o vulnerável "saí, hipnotizado pela
serpente" que é Martim. Iracema atribui o germe da corrupção a ela mesma [...],
mas [...] ela aparentemente permanece sem culpa, pois Martim, em vez de assumir
abertamente a responsabilidade que as políticas do colonialismo impuseram sobre
ele, busca meios de evitar a culpa de traição enquanto desfruta a realização de
sua fantasia sexual exótica. Desejando ter seu bocado de prazer [...] Martim
trai ambas as mulheres e produz um filho privado de mãe e terra natal.
Portanto, a traição da narrativa bíblica associa-se à atuação de Martim, que é
[...] o arquétipo do colonizador promíscuo realizando com a índia
submissa suas fantasias da experiência sexual exótica e proibida. Seu
uso explorador do licor narcótico e afrodisíaco, a jurema, traduz num
nível psicológico o processo de opressão e traição coloniais que,
para Alencar, jazem no cerne da crise de identidade de seu país.
Quanto ao sacrifício, ele diz respeito, está visto, à própria heroína, que
imola segredos, valores, identidade, cultura e a própria vida em nome do amor
devotado a Martim. Por último, o nascimento do redentor, não há dúvida, refere-
se a Moacir, "filho do sofrimento", cuja orfandade e exílio ligam-se, por um
lado, ao próprio sentimento de alienação do escritor em relação ao seu Ceará
nativo, tanto em termos de separação geográfica como em termos de afastamento
crescente das tradições políticas familiares. Não se pode esquecer que o
prólogo é a confissão de um filho ausente endereçada à província natal. Por
outro lado, entretanto, o filho de Iracema e Martim é também não só o primeiro
cidadão da província cearense, mas sobretudo representante de todo o povo
brasileiro, alienado de sua identidade mestiça e divorciado de suas raízes
indígenas.
Pensando ainda em termos de narrativa bíblica, Treece retoma a associação já
mencionada de Moacir com o filho de Raquel e Jacó, como ele também batizado de
Ben-Oni, "filho da minha aflição", de "minhas tristezas", uma vez que seu parto
causou grande sofrimento e custou a vida da própria mãe (Gn 35,18). O pai,
entretanto, julgando injusto o filho arcar com o peso da dor e da morte da mãe
inscrito no próprio nome, optou por rebatizá-lo como Benjamin, "filho da mão
direita" ou "de bom augúrio". Treece reconhece nessa renomeação do mito
relacionado a Moacir um indício de que o nascimento trágico deste último também
dará lugar à esperança e a um futuro sem culpa para o primeiro brasileiro e
toda a sua descendência mestiça.
Para encerrar o repasse das principais leituras que abordam as relações entre
mito e história no romance, gostaria de comentar o estudo de Doris Sommer, que
também endossa a tese da alegoria da Conciliação, embora prefira definir sua
abordagem como uma leitura alegórica (a representação política) e sinedóquica
(a representação ficcional de uma raça inteira ou de uma formação social
através de uma personagem ou de um relacionamento). Nesse sentido, é quase
possível falar não mais em dupla, mas tripla alegorização, sobretudo n'O
guarani, que, de acordo com a ensaísta, condensaria três versões simultâneas da
história: o casamento inter-racial que dará origem ao primeiro brasileiro; a
aliança entre liberais e conservadores; e as formas relativamente tranqüilas de
transferência de poder na história do país19. Sommer chega a reconhecer em Peri
a figuração alegorizada do próprio Pedro II e do Poder Moderador por ele
encarnado20.
Na passagem da análise d'O guarani para o romance que lhe faz pendant, como
complemento inverso21, a ensaísta norte-americana enfatiza, como Treece, a
transição, em menos de uma década, da celebração da Conciliação no livro de
1857 para o inventário das perdas no de 1865. Perdas sobretudo da índia
tabajara, mas também de seu amado, que só volta a amá-la e a sentir sua falta
depois de irremediavelmente perdida. Como a noiva branca ausente e a terra
natal distante, a mulher-continente só se torna o amor e o lar desejados quando
se converte em lembrança desse "herói confuso, intersticial". Iracema
[...] é menos complicada e mais admirável; ela é o lugar em que o
amor e o desejo coincidem. Ela é o sonho da presença de Alencar
[...]. Martim e seus compatriotas se tornam ligados a ela,
tragiparadoxalmente, apenas depois que eles a destruíram. Eles gostam
dela com o tipo de masoquismo que Martim tornou popular, um desejo
agudo ou saudade que é quase um sentimento nacional.
Trazendo essa análise para o plano da alegorização política, assim resume
Sommer:
O Império Português pode ter sentido saudade depois de flertar com a
colônia sedutora. Dom João resistiu à pressão para ficar, deferindo,
como Martim, àqueles que insistiam que a casa estava em um outro
lugar e no passado. Porém, em um outro nível mais imediato, a
nostalgia do romance pode se referir ao Governo da Conciliação, a
mesma conciliação que parecia tão promissora no sonho de cruzamento
de O guarani
. Logo depois, Alencar aparentemente irritou-se com aquele governo.
Essa mudança de opinião mostrava sinais de inquietação, se é que não
mostrava também razões para desapontamento. Ainda não era o
desapontamento pessoal de perder a nomeação para senador, mas muito
provavelmente já era uma desilusão com o ritmo lento e a indecisão
que o incomodavam nesse casamento de altos e baixos que Dom Pedro
impôs a partidos opostos. Talvez a Conciliação nunca tivesse
realmente dado certo, ou talvez fosse apenas um caso de amor
passageiro
22.
Seja com for, o fato é que esse casamento ou caso produziu um fruto
"promissor", cujo futuro, entretanto, é "imprevisível":
A dor que dá nome ao filho de Iracema e a saudade que ele certamente
irá sentir de sua mãe são tão essencialmente brasileiros quanto sua
mistura mestiça de raças. Moacir é uma nova linhagem, em que um
passado inconfundivelmente brasileiro se mescla com um futuro
imprevisível; ele é a resposta à brasilidade, tanto tupi quanto não
tupi
23.
REPAROS E CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE
Feita, em síntese, a exposição das principais leituras do romance que apontam
para esse encaminhamento mais recente da discussão sobre mito e história em
Iracema, gostaria de retomar alguns pontos mais polêmicos para discussão, de
modo a evidenciar a minha posição diante delas.
Acho importante frisar que a reescrita do mito edênico em Iracema não parece se
justificar apenas em função de seu caráter de narrativa fundadora, que recorre
ao modelo arquetípico do Grande código (Frye) para todo relato de origem,
independentemente da cultura. Nem se explica apenas pela observação de
Starobinski (embora possa compreendê-la), de que o Gênese reaparece "nos
movimentos simples do espírito, que constituem o primeiro estágio da
reconstrução genética das faculdades intelectuais da espécie humana", seja no
selvagem, na criança ou no homem do começo dos tempos que "vivem em contato
imediato com o mundo: são como Adão no paraíso"24. Na verdade, o romance
alencariano parece reativar, também, certo imaginário edênico que foi
associado, desde as descobertas, ao Novo Mundo e examinado, no caso do Brasil,
por Sérgio Buarque de Holanda em Visão do paraíso. No entanto, se os viajantes
e primeiros cronistas evocavam a prodigalidade e a exuberância da natureza
tropical como justificativa para a identificação do paraíso terreal com a
América (expandindo o topos clássico do locus amoenus de um recanto aprazível
para um continente inteiro)25, Alencar trataria de resgatar essa velha
associação para representar sobretudo o momento seguinte, da corrupção, queda e
conseqüente perda desse paraíso momento associado ao processo colonizador. Se
Rousseau já havia transportado o drama da queda para a própria história, nosso
escritor trataria de reatualizá-lo no contexto mais restrito da Conquista.
Ainda em termos de intertexto bíblico, julgo procedente a inversão dos papéis
de sedutor e vítima na queda original, entre nossa Eva tabajara e Martim,
evidenciada por Treece, cabendo a ela a condição vulnerável da saí diante da
serpente embora o romance não pareça isentá-la também de uma parcela de
culpa; seu sofrimento final e o parto com dor não deixam de ser um modo de
expiação da culpa na mesma perspectiva do mito bíblico. O que, todavia, me
parece mais problemático é quando o crítico inglês fala da imagem de Martim
como "o arquétipo do colonizador promíscuo, realizando com a índia submissa
suas fantasias de experiência sexual exótica e proibida". É óbvio que se trata
de um retrato absolutamente coerente, mas do ponto de vista da história, não da
ficção alencariana. Embora saibamos bem do processo de violência e exploração
(inclusive sexual) que marcou a presença do colonizador nos trópicos, não é
essa a imagem que o romancista cearense nos dá de Martim, mas a de um nobre
guerreiro (já no nome) de linhagem camoniana26. E o grande peso do compromisso
ideológico do romance vai incidir justamente nessa imagem enobrecedora, cortês
e heróica, depurada de toda barbárie, do colonizador seja por se tratar do
representante da principal etnia formadora do povo brasileiro, que por isso
mesmo necessitava ser sublimada e dignificada, do mesmo modo como se procedeu
com o bárbaro íncola sob as vestes do cavaleiro cortês, seja porque visto pela
pureza da ótica do índio.
Um último comentário à análise do intertexto bíblico feita por Treece
compreende a imagem do novo redentor. A associação de Moacir com Benoni me
parece não só válida como proposital, o que não implica levá-la,
categoricamente, às últimas conseqüências, como faz o crítico. Ou seja, se a
afinidade entre ambos parece justa e mesmo deliberada tanto que já
reconhecida antes por outros intérpretes , não sei se é possível balizar os
desdobramentos da história integral do mito bíblico para o caso do filho de
Iracema. Seguramente, Moacir e Benoni igualam-se apenas na condição de filhos
da dor ou do sofrimento. Quanto à conversão posterior de Benoni em Benjamin o
que vale dizer, de filho do sofrimento em filho da mão direita ou de bom
auspício , não há equivalência explícita na história de Moacir, história de um
povo mestiço cujo destino é parcamente figurado no romance, talvez mesmo para
frisar a indefinição e a incerteza que o cerca. Por isso Sommer, mais
cautelosa, preferiu falar em um "futuro imprevisível"27.
Aliás, diferentemente do mito bíblico, o sofrimento associado ao nome e ao
nascimento de Moacir é reiterado em mais de um momento. Logo após o parto
doloroso e solitário, e a nomeação fatídica, Iracema volta a se dirigir a seu
rebento com novo epíteto que nada fica a dever ao primeiro: "filho de minha
angústia"28. E no capítulo seguinte, em virtude de um novo sofrimento padecido
pela heroína para poder amamentar o filho29, o narrador tratará de observar que
Moacir era "agora duas vezes filho de sua dor, nascido dela e também nutrido".
A essa herança reiterada dos sofrimentos maternos somam-se a saudade e o
desterro como legado paterno, que responde pela famosa indagação do capítulo
final, por si mesma algo melancólica e não muito otimista: "O primeiro
cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação
de uma raça?".
Convenhamos, não parece lá muito auspiciosa uma predestinação dessa ordem,
marcada de luto e sofrimento causados pela mãe perdida e pela condição de
eterno exilado (mesmo que na própria terra) de Moacir e toda a sua descendência
mestiça o que, a meu ver, é suficiente para relativizar qualquer certeza de
um futuro otimista ou garantia de felicidade que se aproxime da de Benoni-
Benjamin já implícita no seu rebatismo.
Essa predestinação, inclusive, tende a se confirmar nos três significados
atribuídos à personagem. Como auto-retrato do próprio escritor, Moacir revela
não só o afastamento espacial em relação à província natal, mas também a
distância com respeito às tradições e aos valores liberais da família
politicamente influente, segundo Treece. Como imagem do primeiro cearense, ele
representa a condição de errância de um povo migrante, constantemente expulso
pela seca e 1848 já havia dado um exemplo trágico dessa realidade: é nessa
chave que a personagem foi lida por críticos e historiadores locais30. Por fim,
como figuração do primeiro brasileiro, Moacir ilustra a condição nacional de um
povo mestiço desterrado na própria terra que o trouxe ao mundo, da qual se
aparta com a morte da mãe para ser criado e formado sob influência e valores do
pai português, de quem se torna o companheiro de infortúnio, de acordo com o
narrador. Portanto, já na gênese de nossa suposta identidade encarnada por esse
primeiro mestiço, sintomaticamente sem rosto ou feições nítidas no romance, o
encontro e a união das raças e culturas formadoras apóiam-se em um descompasso
estrutural entre a influência hegemônica do branco e a escamoteação, o
sacrifício e, mesmo, a supressão da alteridade indígena: é a lógica da formação
supressiva, argutamente definida por Pasta Júnior como constitutiva de nossa
história31.
Enfim, para encerrar a discussão sobre o retrato da personagem, nessa sua
tripla significação que remete tanto ao passado fundador quanto ao presente do
escritor, Moacir parece assumir, em sua associação bíblica com o novo redentor,
uma dimensão quase figural, conforme a célebre definição de Auerbach, em que
seres e acontecimentos primeiros prenunciam outros, temporalmente distantes e
posteriores, que os abrangem e os preenchem ou complementam32.
Chego, finalmente, ao cerne da discussão propriamente ideológica da obra,
observando logo que a presença do mito sacrifical no romance me parece
inegável, do mesmo modo como julgo muito pertinente sua vinculação com a
política de conciliação do Segundo Reinado. Antes de comentá-la, acho
importante observar que, no caso específico de Iracema, a hipótese da alegoria
política, mais que opção de leitura ou atribuição do intérprete, é,
efetivamente, um dado constitutivo do romance. Para corroborar essa tese, creio
que valeria insistir mais, como subsídio para sua análise e fundamentação, em
um aspecto pouco explorado mesmo por aqueles que a defendem. Refiro-me ao fato
de Alencar mostrar-se completamente envolvido no debate político e ter-se
pronunciado reiteradas vezes sobre essa fórmula de coligações partidárias e
suas conseqüências em várias crônicas e escritos políticos, assumindo,
inclusive, posições distintas que podem contribuir para iluminar certa variação
no modo como focalizou a aliança entre brancos e índios nos seus dois
principais romances no gênero.
É assim que, em uma crônica de Ao correr da pena datada de 13 de maio de 1855,
ele vê nessa política de coalizões um caminho possível para superar o
indiferentismo político e a perda de princípios e diretrizes dos partidos que
agiam apenas em função de interesses e necessidades do momento. Essa proposta
conciliatória é compreendida como a combinação de princípios para a formação de
um novo e grande partido:
É difícil, é quase impossível dizê-lo, mas parece-me que a
conciliação, que o ministério não conseguiu realizar nos homens, se
há de operar nesta confusão de idéias extremas que deve formar o novo
partido
33.
Há, portanto, uma crença na solução conciliatória, que talvez responda pela
celebração do encontro e da aliança entre branco e índio n'O guarani, revelada
pela dedicação extrema de Peri ao velho Mariz e, sobretudo, pelo amor-devoção
mariolátrico dedicado a Ceci. A perspectiva otimista dessa aliança ou união
responderia, assim, pela cena final, pós-diluviana do romance, em que o casal à
deriva, sobre o tronco da palmeira arrastado pela torrente, teria, todavia, à
sua frente, a perspectiva aberta a um futuro promissor, semelhante à lenda do
Noé indígena (Tamandaré) evocada por Peri.
Entretanto, depois de uma década da oficialização dessa política de consenso
pelo gabinete Paraná (1853-1856) e de sua sobrevida nos gabinetes seguintes,
até seu abandono em 1861, será bem outra a visão de Alencar a respeito da
natureza e das conseqüências da Conciliação. É o que se pode notar em passagens
como esta das Cartas de Erasmo (1865), estampadas no mesmo ano de Iracema:
Essa corrupção geral dos partidos e dissolução dos princípios[,] que
tinham até então nutrido a vida política no Brasil, é o que se
convencionou chamar conciliação: termo honesto e decente para
qualificar a prostituição política de uma época34.
Embora poupando a figura do marquês de Paraná e elogiando sua atuação com
artífice da Conciliação, nosso Erasmo insistirá nessa prostituição dos partidos
e dissolução dos princípios, que persistirão mesmo depois do fim oficial da
política de coligações, levando à rápida sucessão de ministérios a partir de
186135, com "o triste espetáculo de uma maioria movediça" que viu três
gabinetes em apenas oito dias. Por isso apela reiteradamente ao imperador
(destinatário das Cartas) para abandonar sua posição indecisa e omissa, de modo
a intervir diretamente e impor com firmeza sua vontade aos partidos, a fim de
debelar a crise, valendo-se, para tanto, da autoridade que lhe conferia o Poder
Moderador o que não deixava de ser um modo de reivindicar um modelo de
governo autoritário, absolutista mesmo36.
Não bastassem os pronunciamentos reiterados sobre as coligações, as camarilhas
e o sobe-e-desce de partidos, para atestar o completo envolvimento de Alencar
com a cena política da época, ele ainda julgou por bem se reportar a eles até
mesmo no posfácio de Iracema que, com o prólogo, forma a moldura histórica
contemporânea do livro. Com isso, ele parece atestar claramente que os sucessos
políticos do momento e as impressões que deixaram em seu espírito atuaram na
gênese do próprio romance:
Há de se recordar você [diz ele ao dr. Jaguaribe] de uma noite que[,]
entrando em minha casa, quatro anos a esta parte, achou-me rabiscando
um livro. Era isso em uma quadra importante, pois que uma nova
legislatura, filha da nova lei, fazia sua primeira sessão; e o país
tinha os olhos nela, de quem esperava iniciativa generosa para melhor
situação. Já estava eu meio descrido das coisas, e mais dos homens; e
por isso buscava na literatura diversão à tristeza que me infundia o
estado da pátria entorpecida pela indiferença.
Se não há erro no cálculo elementar, "quatro anos a esta parte" remete
exatamente a 1861 que, além do fim da conciliação e início do sobe-e-desce de
gabinetes, data também o início da atuação de Alencar como deputado eleito por
seu estado natal, ao lado de seu parente e amigo Jaguaribe, a quem dirige o
prefácio e o posfácio do romance.
Ora, não deve ser à toa que Alencar evoca tão explicitamente esse contexto
político como justificativa para a desilusão ou descrença "das coisas, e mais
dos homens", que o levara a buscar consolo na ficção, abandonando o projeto da
épica quem sabe até pela natureza do gênero, que não se prestava mais à
tristeza que lhe infundia o estado da pátria entorpecida pela indiferença. É
nesse estado de espírito que ele optará pela prosa de Iracema, em que a
melancolia perpassa cada página. Se a literatura deveria, em princípio, servir-
lhe como forma de evasão e "diversão", ela acabou, no fim das contas, por se
contaminar com as tintas da melancolia do presente.
Nesse sentido, não partilho da posição daqueles que, diferentemente das
análises inventariadas aqui, negam qualquer espécie de vinculação entre o
posicionamento político e a produção ficcional de Alencar. É o caso mais
recente de Lúcia Helena, que se mostra "chocada" com esse tipo de associação
supostamente "mecânica"37. Ora, o próprio escritor que um dia chegou a dizer,
nas cartas sobre a Confederação, que "as letras devem ter o mesmo destino que a
política", o próprio escritor parece balizar esse tipo de aproximação ao
reportar-se ao contexto político de 1861 no posfácio que trata da gênese do
romance. Isso sem esquecer o comentário, bastante significativo a esse
respeito, feito por Araripe Júnior, sobre essa passagem do posfácio, como uma
das primeiras e raras alusões políticas contidas na ficção alencariana até
então, que, no entanto, viriam a se ampliar e se multiplicar nos livros
seguintes, "repositórios disfarçados de suas queixas", a ponto de se anularem
"os intuitos literários, a vitalidade mesmo dos personagens, para só aparecer
forte, vigorosa, a sua misantropia encarnada nos heróis dos novos romances"38.
Seja em obediência a uma lógica mais causalista ou mais mediada, o fato é que a
perspectiva ideológica de Alencar comparece inscrita no cerne da obra,
convertida ou sedimentada em
ideologia da forma
39. Se é próprio da ideologia determinar também as formas estético-literárias
que melhor e mais "naturalmente" a exprimem40, então a perspectiva ideológica
de Alencar parece justificar plenamente a conversão da história em lenda ou
mito, naturalizando a entrega fatalista e o sacrifício do índio ao branco. É a
visão do mito como terror, que segundo Hans Blumenberg concebe realidade e
existência como impossíveis de dominar, subordinadas que estão a um poder que
excede e ameaça. A história deixa de ser tomada como produto da vontade e da
ação dos homens, para se revelar como fatum, subordinada a uma lei maior ou
natural41.
Em Iracema, essa concepção fatalista é sinalizada não só por força da
equiparação freqüente entre os pensamentos e ações das personagens e os símiles
naturais, como também pelos constantes presságios, que apontam para o fim
esperado, confirmando, assim, a presença de um destino previamente traçado. O
episódio mais famoso talvez seja a fala profética de Batuireté, antes de sua
morte, ao ver Martim e Poti lado a lado, o gavião branco e a narceja a ser
predada e destruída pelo primeiro:
O velho soabriu as pesadas pálpebras, e passou do neto ao estrangeiro
um olhar baço. Depois o peito arquejou e os lábios murmuraram:
Tupã quis que estes olhos vissem antes de apagarem, o gavião branco
junto da narceja.
O Abaeté derrubou a fronte aos peitos, e não falou mais, nem mais se
moveu
42.
Mas desde o início do livro há outros presságios, como a própria reação de
Iracema ao ver Martim pela primeira vez já prefigurando a doce escravidão,
referida por Machado, da virgem pagã ao guerreiro cristão. Ou ainda a chegada
de ambos à cabana de Araquém, acompanhada do pio agourento da cauã43. Há, além
disso, as constantes aproximações e recuos da ará, a jandaia cujo canto dá nome
à província. Mais do que símbolo das tradições americanas, os psitacídeos, aves
falantes ou cantantes, foram tomados pelo imaginário cristão associado a muitas
visões do paraíso como transfigurações de anjos do céu, das almas dos justos ou
dos profetas, segundo informa Sérgio Buarque de Holanda. É nesse sentido que
podemos entender a reação da companheira fiel de Iracema, que tende a se
achegar a esta quando Martim se encontra ausente, e a se afastar, alvoroçada e
aos gritos, quando ele se aproxima, prenunciando e lamentando, assim, a
desgraça que sua presença representará para a índia e seu povo. (Nesse sentido,
a reação da jandaia opõe-se à fidelidade canina de Japi, presente de Poti e
símbolo da sujeição e da lealdade deste ao guerreiro branco.)
Voltando ainda à discussão ideológica, embora discorde, pelas razões expostas
até aqui, das reservas de Lúcia Helena a respeito da associação entre o
posicionamento político do autor e sua produção ficcional, não posso deixar de
reconhecer com ela a presença de certos impasses melancólicos no romance. Mas,
a meu ver, eles ainda são produto das vicissitudes políticas e das opções
feitas pelo escritor em sua época. Sem dúvida, tais impasses melancólicos
problematizam a perspectiva adotada até então por Alencar, ligada à crença
depositada na fórmula conciliatória celebrada no romance de 1857. Mas, apesar
de problematizar, não creio que essa melancolia seja suficiente para romper em
definitivo com o compromisso ideológico do escritor.
Embora não haja em Iracema a convergência presente em O guarani entre a relação
amistosa (Peri-Mariz) e a amorosa (Ceci-Peri), no sentido de celebrar, ambas, a
política de alianças, tal celebração não deixa de comparecer através da relação
fraternal entre Martim-Poti, em nome da qual a amorosa (Martim-Iracema) é
preterida, contribuindo para o abandono e o sofrimento que redundarão na morte
da heroína. Sem dúvida, essa morte sacrificial comparece para sinalizar,
melancolicamente, os custos trágicos dessas alianças para a pátria (assim como
a heroína) preterida ou abandonada, segundo o posfácio, em prol desses
interesses, mas sem chegar a condená-las, comprometê-las ou rejeitá-las. Poti
continua a ser louvado e heroicizado por sua fidelidade subalterna e por sua
conversão cristã ao mesmo tempo em que Irapuã é convertido em vilão por
resistir a tais alianças, conforme vimos. De igual modo, Martim, embora
metaforicamente identificado com a serpente inoculando a corrupção no paraíso,
não deixa de ser poupado e louvado em sua honra, coragem e valentia. E quando
chegamos ao fim, deparando-nos com a derradeira frase inspirada no fecho de
Atala, esse "tudo passa sobre a terra" e note que não "passa" apenas "o que
foi bom, virtuoso e sensível", como em Chateaubriand, mas um genérico tudo, o
que supostamente deve incluir o sofrimento, o sacrifício e a morte trágica
narrados leva a crer que, apesar da melancolia, eles acabam sendo aceitos
pelo narrador como uma fatalidade. A melancolia pelo sofrimento, o sacrifício e
a morte da mulher-continente passam a ser assumidos como um atributo do povo,
cuja origem a lenda buscou simbolizar.
FUNDAÇÃO DA PROVÍNCIA, FUNDAÇÃO DA NAÇÃO
Para concluir, gostaria de formular uma hipótese sobre o romance que se baseia
em um aspecto aparentemente óbvio, embora não contemplado por nenhuma das
interpretações de que tenho notícia. Refiro-me ao fato de que, apesar de
Iracema ter sido lido como um mito fundador da nação, ele não deixa de ser,
primeiramente, uma lenda do Ceará, como o subtítulo indica. Ou seja, trata-se
antes de tudo de uma lenda sobre a origem da província cearense que se permite
ler, ao mesmo tempo, como narrativa fundadora da própria nação44.
Ora, conceber um mito fundador para o Brasil a partir da própria narrativa de
fundação do Ceará é conferir uma relevância nacional para uma província até
então inexpressiva, mesmo no contexto regional e isso por uma razão
econômico-política muito clara:
[...] a ausência de uma economia canavieira alijou o Ceará do
processo histórico que envolveu o Nordeste da Zona da Mata, o
"Nordeste Canavieiro". O Ceará, com enorme superfície sertaneja, só
vai despontar significativamente no contexto histórico do Nordeste a
partir do interesse do mercado externo pelo algodão nordestino,
especialmente o cearense de fibra longa
45.
Portanto, é em função desse interesse e do incremento da produção algodoeira, a
partir de 1860, que a província cearense alcançará alguma projeção nacional e
até mesmo internacional, o que favoreceu o processo de urbanização da capital,
o desenvolvimento de uma rede de transportes, vias férreas e portuárias para
escoamento da produção agrícola, além de outros serviços e equipamentos:
[...] pela rede de comércio criada, interna e externamente, e por sua
função político-administrativa a partir do próprio recrudescimento
da centralização política efetivada pelo Segundo Reinado Fortaleza
consolida-se como Capital (sede do poder) e grande centro urbano
cearense, o que passa a ser reproduzida em escala ampliada
resultado da integração do Ceará à economia nacional e mundial
46.
É curioso pensar que, justamente nesse momento de projeção e desenvolvimento
econômico, Alencar se volte para a província natal. Mais do que expressão
apenas de bairrismo cearense, como quer Proença, ao fazer coincidir o mito
fundador da província natal com o da nação, Alencar parece contribuir para essa
projeção e o esforço integrador do Ceará na economia nacional e, ao mesmo
tempo, para a política de centralização do império.
De acordo com tal política centralizadora, a mesma função da capital imperial
no plano nacional seria desempenhada pelas capitais-provinciais no plano
regional, por meio do esvaziamento dos municípios interioranos e o conseqüente
fortalecimento delas pela concentração da produção agrícola para exportação e
pelo controle administrativo-político-militar, organizando os interesses das
classes dominantes no centro e contendo, assim, o poder dos proprietários e as
possíveis intenções autonomistas das oligarquias regionais47.
Associado a esse esforço centralizador, Ria Lemaire já havia observado, de uma
perspectiva diversa, que o indianismo, à época de Alencar, não tinha mais o
papel primordial de forjar uma identidade própria para a nação recém-
independente, distinta da do colonizador europeu, mas o de definir e legitimar
a unidade nacional contra a onipresença de tendências separatistas. Pela
"glorificação do índio como a origem comum de todas as províncias da nação
brasileira", ele satisfazia o desejo de "uma legitimação ideológica para o
processo violento de unificação de uma nação"48.
O curioso, entretanto, é que coincida com esse esforço centralizador o
movimento de dinamização comercial da província, quando a capital cearense verá
despontar o desejo de autonomia (sobretudo em relação às influências e auxílios
da poderosa província pernambucana) e de afirmação da identidade local.
Identidade étnica, pautada pela imagem de uma terra de indígenas e portugueses,
deixando na sombra outras composições étnicas.
Colaborando significativamente para essa afirmação identitária, Tristão de
Alencar Araripe empenhava-se em resgatar o nome e a memória do pai, do tio
Martiniano de Alencar e demais comprovincianos, da imagem deturpada que deles
já traziam os livros e compêndios escolares, nos quais figuravam como
"cearenses bárbaros" e vis, pelo liberalismo radical que marcou suas atuações
na Confederação de 1824, levando à morte do primeiro (tio de nosso escritor).
Para tanto, começava a escrever, nos mesmos idos de 1860, sua História da
província do Ceará, narrando, segundo a perspectiva liberal de sua tradição
familiar, a violência e a selvageria que marcaram, desde a origem, o encontro
entre brancos e índios, enfatizando as injustiças da metrópole para com os
nativos e reivindicando, entre outras coisas, a naturalidade cearense de heróis
como Felipe Camarão, nos mesmos termos de Alencar na exposição do argumento
histórico de Iracema49. Pela mesma época, o romance do primo escritor passava a
circular no incipiente meio letrado da capital provincial, contribuindo, e
muito, com sua lenda (duplamente) fundadora, para certo orgulho cearense de ser
o berço do povo brasileiro50.
Essa mesma província que o elegera deputado em 1861, dele se esquecera quando
da tentativa de reeleição em 1863 de onde, possivelmente, o lamento, no
prefácio do livro, do "filho ausente, para muitos estranho, esquecido talvez
dos poucos amigos, e só lembrado pela incessante desafeição". E mais adiante:
"O nome de outros filhos enobrece nossa província na política e na ciência;
entre eles o meu, hoje apagado, quando o trazia brilhantemente aquele que
primeiro o criou".
Quem sabe, para reavivar o brilho do nome paterno ligado à história da
província e da própria nação, no seu processo emancipacionista, é que Alencar
se dirige à terra natal, por intermédio do parente e amigo que já traz no nome
o do principal rio cearense, para garantir a boa acolhida: o marquês de
Jaguaribe, que, por ironia, acabaria ocupando uma das vagas ao Senado pleiteada
por Alencar, poucos anos depois, pela mesma província do Ceará. Se a política
não permitiu ao filho ausente reavivar o brilho do nome junto à província, que
ele tornasse, então, a refulgir pela ficção, produto do gênio que é, com o
diamante, de acordo com o referido prefácio, "as duas mais brilhantes expansões
do poder criador" que irradia dessa natureza tropical que o viu nascer.
[1] O presente ensaio foi elaborado como um estudo introdutório a uma reedição
de Iracema a sair pela Nankin Editorial. Uma versão muito condensada do ensaio
foi apresentada em simpósio sobre a Formação do Romance no Brasil, organizado
por Jacqueline Penjon em novembro de 2005 na Universidade de Paris III
Sorbonne Nouvelle, como parte das comemorações do ano do Brasil na França.
[2] Cf. interpretação mais recente de João Cezar de Castro Rocha, Literatura e
cordialidade: o público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro:
Editora da UERJ, 1998.
[3] Todas as citações feitas no parágrafo das cartas de Alencar assinadas sob o
pseudônimo de Ig (como se sabe, abreviação de Iguassu, heroína do poema de
Magalhães) foram extraídas da edição de José Aderaldo Castello A polêmica sobre
"A Confederação dos Tamoios". São Paulo: Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras USP, 1953.
[4] A observação é de David Treece. Exiles, allies, rebels: Brazil´s indianist
movement,indigenist politics, and the imperial nation-state. Londres: Greenwood
Press, 2000, p. 203.
[5] Cf. Treece, op. cit., p. 203.
[6] Campos, Haroldo de. "Iracema: uma arqueografia de vanguarda". Revista USP,
nº 5, São Paulo, mar.-abr.-maio 1990. A aproximação com o
idílio pastoral já fora notada por Brito Broca e, antes deste, Araripe Júnior
falara em "pastoral tupi".
[7] O termo ensaio foi empregado pelo próprio Alencar para se referir à
experimentação de linguagem em Iracema.
[8] Wasserman, Renata. "The red and the white: the Indian' novels of José de
Alencar". PMLA, vol. 98, nº- 5, out. 1983, pp. 823-4.
[9] Assis, Machado de. "Iracema". In: Crítica literária. Rio de Janeiro: W. M.
Jackson, 1936, pp. 74-86.
[10] Távora, Franklin. Literatura brasilieira. Cartas a Cincinato, estudos
críticos de Semprônio sobre O gaúcho e Iracema. Recife: J. W. Medeiros, 1872.
[11] Soares Amora, Antonio. Iracema e Atala. Assis, 1962. (Separata, cujo
resumo consta de O romantismo. São Paulo: Cultrix, 1970). Pinto, Maria Cecília de Moraes. A vida selvagem: paralelo entre
Chateaubriand e Alencar. São Paulo: Annablume/USP, 1995.
[12] Não enfatizo aqui o diálogo com Scott, nem, na tradição norte-americana,
com Cooper (cuja influência, entretanto, sempre foi negada por Alencar),
justamente porque a presença de ambos se faz sentir melhor em O guarani
embora Treece tenha reconhecido nos fortes laços de amizade entre Poti e Martim
reminiscências do mito norte-americano dos "bons companheiros no deserto",
presente nos Leatherstocking tales do autor de O último dos moicanos. Para um
exame detido das afinidades com Cooper, ver Renata Wasserman. "Re-inventing the
New World: Cooper and Alencar". In: Comparative literature, vol. 36, nº- 2,
Oregon, primavera de 1984, pp. 130-45.
[13] Cf. a introdução à cuidadosa edição crítica do centenário preparada por
Cavalcanti Proença. In: Alencar, Iracema: lenda do Ceará. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1965.
[14] Ribeiro, Renato Janine. "Iracema ou a fundação do Brasil". In: Marcos C.
Freitas (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo:
Universidade São Francisco/Contexto, 1998.
[15] Diz ele ainda: "Não foi, pois, sem emoção, que descobri, nessa 'Iracema',
o anagrama de 'América', símbolo secreto do romance de Alencar, que, repito, é
o poema épico, definidor de nossas origens, histórica, étnica e
sociologicamente". Peixoto, Afrânio. "Nativismo político e literário.
Idealização do selvagem". In: Noções de história da literatura brasileira. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1931, p. 163. A hipótese do
anagrama, aceita pela maioria dos intérpretes, veio a ser contestada apenas por
Wilson Martins contestação que, a meu ver, não se sustenta. Através de seu
anagrama, Alencar estava, na verdade, transpondo para o literário uma alegoria
recorrente na iconografia da colonização, representando o continente (a
América) pela figura de uma índia.
[16] Bosi, Alfredo. "Um mito sacrifical: o indianismo de Alencar". In:
Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 176 ss.
[17] Rodrigues, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio
histórico-cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
[18] Embora sem qualquer referência ao livro de Treece, Pedro Puntoni veio,
mais recentemente, historiar a gênese do antiindianismo de Varnhagen, sua
polêmica com os "patriotas caboclos" (como ele se refere aos indianistas), o
contexto de emergência de seu Memorial e sua História geral do Brasil, bem como
a repercussão e as polêmicas em torno dessas obras e do posicionamento
ideológico de seu autor. Ver "O sr. Varnhagen e o patriotismo caboclo: o
indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira". In:István Jancsó
(org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí: Hucitec/FAPESP/
Editora UNIJUÍ, 2003, pp. 633-75.
[19] Sommer, Doris. Ficções de fundação: os romances nacionais da América
Latina. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004, p. 199. Sobre a
questão da mestiçagem como matriz da brasilidade, a ensaísta explora uma
possível aproximação entre o pensamento de Alencar e o de Martius (p. 179).
[20] A representação de Peri como encarnação "do equilíbrio da Conciliação,
como fez aquele outro rei autóctone conhecido como Poder Moderador", segundo a
ensaísta compareceria de forma bem literal, entre outros momentos, "na cena em
que o índio está sobre um galho, entre Álvaro, à sua direita, e Loredano, à sua
esquerda, enquanto os três olham com desejo para dentro da janela de Ceci"
(Sommer, op. cit., p. 197).
[21] "Esse romance (Iracema) inverte as designações de cor do herói e da
heroína de O guarani, e assim retoma o padrão das crônicas que relatam inúmeros
encontros entre conquistadores brancos e índias facilmente conquistadas"
(Sommer, op. cit., pp. 170-1).
[22] Ibidem, p. 200.
[23] Ibidem, p. 201.
[24] Starobinski, Jean. "Fábula e mitologia nos séculos XVII e XVIII". In: As
máscaras da civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 254-5.
[25] Cf. Holanda, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no
descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
[26] É Soares Amora (op. cit.) quem chama a atenção para o vínculo entre a
alusão ao deus da guerra, contida no nome de Martim (como este mesmo trata de
evidenciar), e a épica camoniana, sinalizando o espírito belicoso de nossos
conquistadores lusitanos. O crítico fala, assim, em Martim como o "guerreiro
branco", camoniano, em "fé, honra e lealdade".
[27] Sobre as perspectivas e o destino de Moacir como representante de um povo
mestiço, ver ainda os comentários de Silvina Carrizo, Fronteiras da imaginação.
Os românticos brasileiros: mestiçagem e nação. Niterói: EdUFF, 2001, pp. 94 ss.
[28] Alencar,Iracema, cap. XXX.
[29] Trata-se do episódio em que Iracema tem de dar o seio intumescido e seco
para o filhote de uma irara sugar e estimular a produção do leite, que acaba
por verter, ainda rubro de sangue, podendo ela, assim, nutrir e manter vivo o
filho.
[30] Ver, por exemplo, as contribuições de críticos e historiadores cearenses
em número da revistaClã comemorativo do centenário do romance. Clã, nº 21,
Fortaleza, dez. 1965.
[31] Pasta Júnior, José Antonio. "O romance de Rosa temas do Grande sertão e
do Brasil". Novos Estudos CEBRAP nº 55. São Paulo, nov. 1999, p. 64. Ver ainda, do mesmo autor, Pompéia: a metafísica ruinosa d'O Ateneu.
São Paulo: FFLCH-USP, 1991, pp. 66 ss. Tese de doutorado.
[32] Auerbach, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997, p. 46.
[33] Alencar. Ao correr da pena. In: Obra completa. Rio de Janeiro: José
Aguilar, 1960, vol. IV, pp. 781 ss.
[34] Alencar, Obra Completa, p. 1061.
[35] Entre outras coisas, 1861 marcou o término dessa política de consenso
entre conservadores e liberais, a qual, mesmo depois do fim do Ministério da
Conciliação (1853-1856), havia perdurado, de algum modo, nos ministérios
seguintes até o ano em questão. Cf. Fausto, Boris. História do Brasil. São
Paulo: Edusp/FDE, 1999, p. 197.
[36] A defesa do fortalecimento do Poder Moderador por nosso escritor e
político conservador foi vista por alguns como um apelo ao absolutismo, ao que
responderia ele em uma das Cartas: "O absolutismo? Quem não o vê? Não convive
ele conosco? Onde a minoria subjuga a maioria, aí está a tirania; seja de um,
seja de muitos" ("Carta ao redator do Diário". Obra Completa pp. 1109-10).
Comenta Brito Broca, a esse respeito, que era "justamente contra esse
absolutismo de fato conclui-se de suas palavras, em que uma camarilha
manifestava a vontade do povo e da nação [] que procurava ele reagir,
preconizando a aliança sincera da realeza com a democracia para regenerar o
elemento aristocrático, inoculando-lhe novos brios e estímulos capazes de
preservá-lo da corrupção. Em suma, o poder pessoal do monarca, apoiado no povo,
teria um sentido mais ou menos ditatorial, que o termo democracia não conseguia
disfarçar. Hoje diríamos as coisas com outras palavras; um estado autoritário e
uma espécie de imperador fascista, talvez talhado pelo modelo de Napoleão III.
Embora acusado de autoritarismo e visto, mais tarde, pelos republicanos como um
verdadeiro tirano, D. Pedro II não possuía a envergadura desse monarca
reclamado por Erasmo" (Broca, "O drama político de Alencar". In: Alencar, Obra
Completa, p. 1041). Importa ainda observar que o nosso Erasmo,
embora apele nas Cartas a esse poder pessoal do monarca, virá denunciar, poucos
anos depois, o abuso desse poder por parte de Pedro II, em crítica estampada do
Jornal do Commercio [1870?] (Cf. Obra Completa, pp. 851 ss.)
[37] Diz ela, sobre Alencar: "[...] tem-me chocado a dificuldade da crítica de
lê-lo fora da relação quase mecânica entre o possível conservadorismo político
do autor e sua produção literária. Na tentativa de focalizá-lo em outra pauta,
quero evocar que o tratamento que em seus textos é dado à questão da solidão
abre para a crítica literária um importante desafio: o de se relerem os
impasses melancólicos que seus personagens enfrentam, em diálogo com a proposta
de Rousseau". Helena, Lúcia. "A solidão tropical e os pares à deriva: reflexões
em torno de Alencar".Luso-Brazilian Review, vol. 41, nº- 1, 2004, p. 14.
[38] Cf. Araripe Júnior. In: Alfredo Bosi (org.), Teoria, crítica e história
literária. Rio de Janeiro/São Paulo: LTC/EDUSP, 1978, pp. 75-6. Essa presença mais acentuada das alusões políticas nos livros
corresponderiam a um suposto "período de declínio" (1865-1877), de acordo com a
lógica tainiana do crítico naturalista. Podemos descartar essa lógica
naturalista e pensar a hipótese do declínio pela da desilusão.
[39] Para a concepção de ideologia da forma, bem como para uma discussão com
Althusser sobre as formas históricas da causalidade, remeto ao capítulo
introdutório do estudo de Fredric Jameson: "Da interpretação". In: O
inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo:
Ática, 1992.
[40] Cf. Eagleton, Terry. Criticism and ideology: a study in Marxist literary
theory. Londres: Verso, 1995, pp. 100-1.
[41] Hans Blumenberg apud Rolf-Peter Janz. "Expérience mythique et expérience
historique ao XIXe siècle". In: Heinz Wismann (org.). Walter Benjamin et Paris.
Paris: Éditions du Cerf, 1986, p. 454.
[42] Alencar,Iracema, cap. XXII.
[43] Ibidem, cap. III.
[44] Se pensarmos em termos de pátria, o próprio conceito, etimologicamente,
comporta essa dupla dimensão relativa ao país ou a uma parte específica dele
(estado, província, cidade ou vila).
[45] Silva, José Borzachiello da. "Formação sócio-territorial urbana de
Fortaleza". In: Os incomodados não se retiram: uma análise dos movimentos
sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992, pp. 21-2.
[46] Fuck Jr., Sérgio C. de França. "Aspectos históricos da expansão urbana no
sudeste do município de Fortaleza Ceará Brasil". Caminhos da Geografia,
vol. 9, nº- 13, out. 2004, p. 149.
[47] O comentário, a esse respeito, é de Maria Auxiliadora Lemenhe: "Na
instituição do regime centralizado de poder, que marca a rigor todo o período
imperial, destacam-se duas ordens de questões, importantes para a compreensão
do que consideramos 'privilegiamento' [sic] das capitais-provinciais. Primeiro,
enquanto não ocorre a confluência de interesses entre as facções regionais e a
dominante no centro e o acomodamento das facções 'liberais' e 'conservadoras'
no controle político do Estado-Nação, surgem conflitos urbanos e rebeliões
armadas em várias províncias. Para garantir a unidade ameaçada, reprimindo as
rebeliões, emergem as capitais-provinciais, como nucleadoras [sic] do poder
político e militar, reproduzindo ao nível das regiões o papel exercido pela
capital imperial. Neste sentido, sua função é manter a ordem, à luz das
inspirações centralizadoras. No caso particular de Fortaleza, que apenas
iniciava [...] o processo de aglutinação agrícola para exportação, a posição de
centro intermediário de controle político-militar iria conferir ao núcleo poder
sobre os demais, como sede da administração e do aparato militar. Segundo, a
centralização instituída para organizar os interesses da classe dominante no
centro, quer para conter o poder exercido pelos proprietários nos domínios-
empresa, quer para barrar as intenções autonomistas das oligarquias regionais,
foi viabilizada pelo esvaziamento econômico dos municípios interioranos e
fortalecimento das capitais-provinciais como núcleos intermediários na captação
dos produtos para o mercado externo e de tributos para o centro". Apud José
Ernesto Pimentel Filho. A produção do crime: violência distinção social e
economia na formação da província cearense. São Paulo: FFLCH-USP, 2002, pp.
289-90. Tese de doutorado.
[48] Lemaire, Ria. "Re-reading Iracema: the problem of representation of women
in the construction of a national Brazilian identity". Luso-Brazilian Review,
vol. 26, nº- 2, 1989, p. 66. Observa ainda em nota que a
defesa dessa unidade nacional partia de uma nova aristocracia que vivia na
Corte, em torno do imperador, contra o separatismo dos grandes proprietários
rurais que teriam de abandonar sua total autonomia e poder tradicionais para se
sujeitar às leis e à hierarquia impostas por um Estado unificado. "Alencar",
diz ela, "é explícito sobre a função ideológica que seu romance deveria exercer
com vistas a esta classe da aristocracia rural: a carta que acompanha o romance
é dirigida da Corte para seu amigo sentado na varanda rural do Ceará" (p. 71,
n. 3). Não se pode crer, entretanto, que o destinatário fosse alguém que
partilhasse dessa ideologia separatista. Jaguaribe, parente de Alencar, foi
eleito com ele pelo partido conservador e depois assumiria a vaga pleiteada
pelo escritor para o Senado e negada por Pedro II.
[49] Contrariando a afirmação categórica de ambos, a historiografia, hoje, crê
que Poti, irmão de Jacaúna, tenha nascido no Rio Grande do Norte. No caso de
Alencar, que já havia ensaiado uma biografia de Camarão, quando estudante em
São Paulo, a reivindicação da origem cearense do herói potiguara, na exposição
do argumento histórico do romance, chega a ser inflamada, justamente por se
tratar de uma disputa bairrista com um pernambucano (como era de esperar): "Há
uma questão histórica relativa a este assunto; falo da pátria do Camarão, que
um escritor pernambucano quis pôr em dúvida, tirando a glória ao Ceará para a
dar à sua província".
[50] "A visão autêntica do ideal romântico no Ceará ainda é a do literato José
de Alencar com sua Lenda do Ceará. Sua fama e sua romântica retribuição ao
carinho e às "qualidades" do povo cearense fizeram dele e do romance a via
possível de encontro entre as classes abastadas e o povo. Surge como
possibilidade fantasiosa e sentimental, a fusão da elite com o mundo popular
num só ethos. Esse imaginário cobraria uma alma e um orgulho em ser elite de um
povo brasileiro (a partir das identidades locais)." Pimentel Filho, José
Ernesto. Urbanidade e cultura política: a cidade de Fortaleza e o liberalismo
cearense no século XIX. Fortaleza: Caso José de Alencar/UFC, 1998, p. 185. Agradeço ao autor pela cópia do capítulo desse estudo, que
trata do confronto entre o romance alencariano e a historiografia da província
de Tristão de Alencar Araripe no contexto da urbanização de Fortaleza no século
XIX. Ainda para as repercussões do desenvolvimento econômico e comercial da
província cearense no plano da urbanização e da cultura cearenses, ver, do
mesmo autor, A produção do crime, op. cit., pp. 290 ss.