A dificuldade da tolerância
O QUE É TOLERÂNCIA?
A tolerância requer de nós aceitar as pessoas e consentir suas práticas mesmo
quando as desaprovamos fortemente. Tolerância então envolve uma atitude
intermediária entre a absoluta aceitação e a oposição imoderada1. Esse status
intermediário faz da tolerância uma atitude complexa. Há certas coisas, como um
assassinato, que não devem ser toleradas. Existem limites para o que podemos
fazer a fim de prevenir que essas coisas aconteçam, mas não há necessidade de
que nos controlemos por conta de tolerância para com essas ações, como se elas
fossem uma expressão dos valores dos criminosos. Em outros casos, em que nossos
sentimentos de contrariedade ou desaprovação devem ser propriamente coibidos,
seria melhor se nos livrássemos completamente deles. Caso estejamos movidos por
preconceito racial ou étnico, por exemplo, a melhor solução não é simplesmente
tolerar aqueles que execramos, mas deixar de execrar as pessoas só porque
parecem diferentes ou provêm de uma origem diferente.
É possível que todos os casos se encaixem, idealmente, em uma ou outra dessas
duas classes. Exceto onde a total desaprovação e oposição são apropriadas, como
no caso do assassinato, o melhor seria se os sentimentos que geram conflito e
desentendimento pudessem ser eliminados por completo. A tolerância, como uma
atitude que requer de nós a contenção de certos sentimentos de contrariedade e
de desaprovação, tornar-se-ia então apenas a segunda melhor opção - uma maneira
de lidar com condutas sem as quais estaríamos em uma melhor situação, mas que
não são, infelizmente, elimináveis. Afirmar isso não significa condenar a
tolerância. Mesmo que ela seja, nesse sentido, uma segunda opção, uma adoção
disseminada de atitudes tolerantes representaria uma vasta melhora com relação
à matança facciosa de que se tem notícia diariamente, em várias partes do
globo. Estancar essa violência não seria uma façanha modesta.
Ainda assim, parece-me que existem casos puros de tolerância, nos quais ela não
é um mero expediente para se lidar com as imperfeições da natureza humana. Tais
seriam os casos em que o conflito e o desentendimento persistentes devem ser
esperados e são, diferentemente do preconceito racial, totalmente compatíveis
com o pleno respeito por aqueles de quem discordamos. Ao passo que o respeito
de uns aos outros não requer que abandonemos nossa discordância, ele certamente
impõe limites na forma como esse conflito pode ser tratado. No presente artigo,
pretendo investigar a possibilidade desse tipo de tolerância pura, com o
objetivo de melhor compreender nossa idéia de tolerância e a dificuldade de
alcançá-la. Uma vez que desejo particularmente entender com mais clareza por
que ela é uma atitude e uma prática difíceis de se cultivar, procurarei me
concentrar nos casos em que eu mesmo considero a tolerância difícil. Começo com
o conhecido exemplo da tolerância religiosa, o qual fornece o modelo para a
maior parte de nossas reflexões sobre os outros tipos de tolerância.
A ampla aceitação da idéia de tolerância religiosa é, ao menos na América do
Norte e na Europa, um legado histórico das guerras religiosas européias. Hoje a
tolerância religiosa é largamente reconhecida como um ideal, ainda que haja
muitos lugares no mundo em que, neste exato instante, sangue está sendo
derramado em função de divisões que são, ao menos em parte, religiosas.
Como alguém para quem a religião não é matéria de qualquer relevância em termos
pessoais, parece fácil para mim, ao menos a princípio, endossar a tolerância
religiosa. É assim, pelo menos, nos casos em que a tolerância é entendida nos
termos dos dois princípios da Primeira Emenda da Constituição dos Estados
Unidos: "Não poderá o Congresso legislar no que diz respeito à oficialização de
uma religião, ou proibir a livre prática religiosa". A aceitação desses
princípios, de meu ponto de vista, parece trazer apenas benefícios e nenhum
custo. Por que razão eu pretenderia interferir na prática religiosa das outras
pessoas, uma vez que elas não podem impor essa prática a mim? Tenderia a
afirmar que, se a tolerância religiosa tem custos, eles oneram a outros, não a
mim.
Parece assim que, à primeira vista (embora argumente mais tarde que isso é um
equívoco), a tolerância religiosa não envolve, para mim, a tensão que acabei de
descrever: eu não sinto a contrariedade que ela me pede para controlar. Por que
eu desejaria dizer aos outros qual a religião a seguir, ou ter alguma
instituída como nosso credo oficial? Por outro lado, para aqueles que desejam
essas coisas, a tolerância religiosa parece exigir bastante: se eu achasse
extremamente importante que todos cultuassem da forma correta, como poderia
aceitar a tolerância a não ser como uma trégua, aceitável na condição de
alternativa a uma matança interminável, mas ainda assim uma necessidade a ser
lamentada? A tolerância pura parece ter-nos escapado.
Pretendo argumentar que essa forma de ver as coisas está errada. A tolerância
envolve custos e riscos para todos, mas é, contudo, uma atitude que temos todos
razão para valorizar.
O QUE A TOLERÂNCIA REQUER?
Essa é uma questão difícil de responder, em parte porque há mais de uma
resposta, todas igualmente boas, em parte porque qualquer boa resposta será
vaga em importantes aspectos. Uma parte de qualquer resposta é legal e
política. A tolerância requer que às pessoas situadas do lado "errado" das
diferenças a que fiz menção não sejam por tal razão negados direitos civis e
políticos: o direito de voto, de ocupar cargos públicos, de se beneficiar de
bens públicos essenciais que são de outro modo abertos a todos, tais como
educação, segurança pública, garantias jurídicas, tratamento médico e acesso a
"programas sociais". Além disso, requer que o Estado não privilegie um grupo em
detrimento de outro na distribuição das prerrogativas e benefícios.
É essa a parte da resposta que me parece admitir mais de uma versão. Nos
Estados Unidos, por exemplo, a exigência de que todo grupo religioso tenha
direito igual às proteções e benefícios providos pelo Estado é interpretada no
sentido de que o Estado não pode apoiar, financeiramente ou de qualquer outro
modo, nenhuma organização religiosa. A principal exceção, nada insignificante,
é a de que qualquer organização religiosa pode requerer imunidade tributária.
Portanto, mesmo nossa idéia de "não-oficialização" corresponde a uma estratégia
mista: algumas formas de apoio não são permitidas a nenhuma religião, outras
são facultadas desde que estejam disponíveis para todas as religiões. Essa
mescla soa a mim mais como um compromisso político específico do que como uma
solução requerida unicamente pela idéia de tolerância religiosa. Uma sociedade
na qual houvesse uma qualificação religiosa para se ocupar cargos públicos não
poderia ser considerada tolerante ou justa. Mas eu não diria o mesmo com
respeito a qualquer forma de suporte estatal para a prática religiosa. Na Grã-
Bretanha, por exemplo, existe uma Igreja oficial e o Estado dá suporte tanto
aos colégios confessionais como aos laicos. A meu ver, o conjunto dessas
escolas é muito estreito para refletir a diversidade religiosa da Inglaterra
contemporânea, mas não vejo como qualquer sistema desse tipo possa ser acusado
de pouco tolerante. Mesmo que conceder a uma religião certas formas específicas
de apoio fosse intolerante, existem múltiplas combinações aceitáveis do que se
denegar a toda religião e do que disponibilizar a todas elas. A particular
combinação atualmente aceita nos Estados Unidos não é a única solução justa.
Essa indeterminação estende-se inclusive para o campo da liberdade de
expressão, que será particularmente importante no que se segue. Qualquer
sociedade justa e tolerante deve proteger a liberdade de expressão. Isso não
significa somente que a censura é vedada, mas requer igualmente que os
indivíduos e grupos disponham de meios efetivos para levar suas visões a
público. Existem, contudo, várias maneiras de levar isso a cabo2. Há, por
exemplo, muitas formas de se definir e regular um "fórum público", e nenhuma
delas é especificamente requerida. Os modos de expressão permitidos e
protegidos não precisam ser os mesmos em todo lugar.
Deixe-me passar agora dos aspectos institucionais mais claros da tolerância
para os mais atitudinais e menos institucionais, deslocando-me, desse modo, do
indeterminado para o vago. Havia dito que a tolerância envolve "aceitar como
iguais" aqueles que diferem de nós. No que disse até o momento, essa igualdade
significou a igual posse de direitos civis e políticos fundamentais, mas o
ideal de igualdade envolvido na tolerância vai além desses direitos em
específico. Pode-se colocar do seguinte modo: todos os membros da sociedade têm
direito igual a serem levados em consideração na definição do que seja nossa
sociedade e direito igual a participarem na determinação daquilo que ela virá a
ser no futuro. Essa idéia é inevitavelmente vaga e difícil de se aceitar. Ela é
difícil de aceitar na medida em que se aplica àqueles que diferem ou discordam
de nós, e que tornariam nossa sociedade algo diverso daquilo que desejamos que
seja. Ela é vaga por conta da dificuldade de se dizer exatamente o que esse
"direito igual" envolve. Uma forma de participação é, evidentemente, através da
política formal do voto, da disputa por cargos, da busca por angariar votos
para as leis e políticas que defendemos. Mas o que pretendo destacar no momento
é o modo como os requisitos da tolerância vão além desse ramo da política
formal, em direção ao que pode ser chamado de política informal da vida social.
A disputa entre grupos religiosos é um exemplo claro dessa política informal,
mas é apenas um. Outros grupos e indivíduos envolvemse no mesmo tipo de luta
política a todo tempo: nós damos e seguimos exemplos, procuramos ser
reconhecidos ou ver nossos ícones reconhecidos em todo aspecto da vida cultural
e social. Uma sociedade tolerante - quero sustentar - é aquela cuja política
informal é democrática. Essa democracia é uma questão de direito e de
instituições (uma questão, por exemplo, de regulação da expressão). Mas é
também, de forma relevante e irredutível, uma questão de atitude. Esse último
tipo de tolerância não é de fácil aceitação - ela envolve riscos e receios - e
não é de fácil realização, mesmo em nossas próprias atitudes, quando mais na
sociedade como um todo.
Para explicar o que tenho em mente, é mais fácil começar por controvérsias
comuns a respeito da liberdade de expressão e da "imposição da moral". O desejo
de se evitar que aqueles dos quais discordamos influenciem a evolução de nossa
sociedade tem sido um dos principais motivos para a restrição da expressão -
por exemplo, para a restrição do proselitismo religioso e para a restrição da
venda de publicações que tratem de sexo, mesmo quando elas não são vendidas ou
utilizadas de forma a forçar os outros a vê-las. Essa motivação sustenta não
apenas a censura, mas também um tipo de regulação do agir privado que levanta a
questão da "imposição da moral". As relações sexuais consentidas entre adultos
na intimidade de seus quartos não são "expressão", mas não é raro ver
tentativas de se regular tais condutas, bem como expressões a elas
relacionadas. Em ambos os casos, o que o impositor deseja é impedir a
disseminação de certas formas de comportamento e de postura, tanto ao
desencorajá-las como - tão importante quanto - ao fazer uso do direito penal
para conseguir uma declaração oficial de desaprovação social.
Uma forma de resposta liberal tem sido negar legitimidade a qualquer interesse
em se "proteger a sociedade" de certas formas de mudança (o análogo a se
declarar que a religião é um assunto exclusivamente privado). Tal resposta me
parece equivocada3. Todos nós temos profundo interesse em como os costumes e
práticas prevalecentes evoluem. Eu mesmo, por certo, possuo tal interesse e não
o considero ilegítimo. Não me importo se as outras pessoas, individualmente,
costumam nadar nuas ou não, mas não quero que a sociedade em que vivo venha a
ser uma na qual banhar-se nu torne-se regra a tal ponto que eu não possa vestir
um calção sem atrair olhares e ficar embaraçado. Não desejo ditar o que os
outros, individualmente, em pares ou em grupos, fazem em suas camas, mas
realmente preferiria viver em uma sociedade na qual fosse dada menos
importância à sexualidade e à atração sexual, qualquer que sejam suas formas,
do que ocorre hoje em nossa sociedade. Não me importo com o que os outros lêem
e ouvem, mas gostaria que a sociedade em que vivo fosse uma na qual houvesse ao
menos um número significativo de pessoas que conhecessem e admirassem as mesmas
literatura e música do que eu, de modo a que tal música estivesse acessível a
todos e, dessa forma, existissem outros com quem compartilhar minha apreciação
de seu valor.
Vista desse prisma, a tolerância religiosa oferece riscos muito maiores para
mim do que sugeri no início deste artigo: estou de acordo em deixar os outros
com as práticas religiosas de sua escolha na condição de que eles me deixem
livre para não ter nenhuma. Mas me sentirei bastante incomodado se, com o
tempo, isso fizer com que a sociedade em que vivo se torne uma na qual quase
todos sejam, de um modo ou de outro, profundamente religiosos, e na qual a
religião ocupe um papel central em todo discurso público. Além do mais, sentir-
me-ia da mesma forma mesmo se continuasse a dispor da proteção assegurada pela
Primeira Emenda. Receio não somente pela imposição legal de uma religião, mas
também por sua predominância social.
Logo, não vejo nada de errado ou de ilegítimo com relação, ao menos, a algumas
das preocupações que têm movido aqueles que advogam a imposição legal da moral
ou que buscam restringir a expressão no intuito de impedir o que vêem como uma
deterioração da sociedade em que vivem. Posso discordar deles no mérito, mas
não diria que preocupações desse tipo sejam algo que todos deveriam ou poderiam
evitar. O que é objetável quanto à "imposição legal da moral" é a tentativa de
se restringir a vida particular dos indivíduos como forma de controlar a
evolução dos costumes. O moralismo legal é um modo de intolerância, por
exemplo, quando se vale do direito penal para negar que os homossexuais sejam
participantes legítimos da política informal da sociedade.
Minha intenção até aqui não foi dizer como essa política informal pode ser
regulada. Foi, em vez disso, ilustrar o que entendo por política informal,
demonstrar o que nela considero de grande importância para todos nós e sugerir
que, por tal razão, a tolerância é para todos nós matéria de risco, uma prática
com altos valores em jogo.
O VALOR DA TOLERÂNCIA
Por que, então, dar valor à tolerância? A resposta encontra-se, acredito, na
relação entre os concidadãos que a tolerância torna possível. É fácil perceber
que uma pessoa tolerante e uma intolerante têm atitudes diferentes com relação
àqueles na sociedade de quem eles discordam. A atitude da pessoa tolerante é
essa: "Ainda que discordemos, eles são membros plenos da sociedade, assim como
eu. Têm o mesmo direito que eu tenho às garantias da lei, o mesmo direito que
eu de viver da forma que escolherem. Além disso (e essa é a parte difícil) nem
a forma de vida deles nem a minha é a forma de vida singular de nossa
sociedade. Elas são apenas duas dentre as perspectivas potencialmente muito
diversas que nossa sociedade pode incluir, cada qual com igual direito de ser
expressa ativamente como um modo de vida que outros podem adotar. Se nosso
ponto de vista for, em algum momento, numérica ou culturalmente predominante,
isso deve ser determinado pelas e dependente das escolhas somadas dos membros
individuais da sociedade como um todo".
Os indivíduos intolerantes recusam isso. Eles reivindicam uma posição especial
para seus próprios valores e forma de vida. Aqueles que vivem de forma
diferente - turcos na Alemanha, muçulmanos na Índia e homossexuais em algumas
partes dos Estados Unidos, por exemplo - não são, segundo sua visão, membros
plenos de sua sociedade, e os intolerantes reivindicam o direito de suprimir
essas outras formas de vida em nome da proteção à sociedade e aos valores
"dela". Procuram fazê-lo tanto pela força do direito penal como pela rejeição a
formas de incentivo público disponibilizadas aos demais grupos, tais como o
subsídio público às artes.
O que acabo de oferecer é uma descrição, não um argumento. Mas o primeiro modo
de se argumentar em prol da tolerância é simplesmente indicar, com base nessa
descrição, que a tolerância envolve uma relação mais interessante e atraente
entre os grupos opostos em uma sociedade. Qualquer sociedade, não importa o
quão homogênea, incluirá pessoas que discordam em relação a como viver e a como
querem que seja a sociedade em que vivem (e as discordâncias em uma cultura
relativamente homogênea podem ser mais intensas do que aquelas em uma sociedade
fundada na diversidade, como os Estados Unidos). Dado que deve haver
desentendimentos e que aqueles que discordam precisam de algum modo viver
juntos, não seria melhor, se possível, manter essas discordâncias contidas em
uma estrutura de respeito mútuo? Parece que a alternativa é estar sempre em
conflito, mesmo no mais profundo nível, com um número elevado de nossos
concidadãos. A qualificação "mesmo no mais profundo nível" é aqui crucial.
Estou assumindo que em qualquer sociedade existirão ao longo do tempo
conflitos, desentendimentos sérios, quanto à natureza e à direção da sociedade.
O que a tolerância expressa é o reconhecimento de uma filiação comum que é mais
profunda do que esses conflitos, o reconhecimento dos demais como dotados do
mesmo direito que nós de contribuir para a definição de nossa sociedade. Sem
isso, somos apenas grupos rivais em disputa sobre o mesmo território. O fato de
que cada um de nós, por boas razões históricas e pessoais, considere-o como
nosso território e nossa tradição somente torna o conflito ainda mais profundo.
Aceite-se isso como justificação suficiente para a tolerância ou não, é fácil
de ver a diferença que a tolerância faz em nossa relação com aqueles que são
"diferentes". O que é menos óbvio, mas tão importante quanto, é a diferença que
faz a tolerância em nossa relação com aqueles de quem somos próximos. Nossos
filhos fornecem o exemplo mais claro. Na condição de meus filhos, eles são
membros plenos de nossa sociedade tanto quanto eu. É a sociedade deles o tanto
quanto é minha. O que se aprende como um pai, entretanto, é que não há garantia
de que a sociedade que eles irão querer seja a mesma que eu quero. Intolerância
implica que o direito deles de viver como escolherem e de influenciar os outros
a fazer o mesmo seja condicionado a concordarem comigo quanto ao modo correto
de se viver. Se acredito que os outros, na medida em que discordam de mim, não
têm o mesmo direito que eu de moldar os costumes de nossa sociedade comum,
então devo pensar o mesmo com relação a meus filhos, caso eles aderissem a essa
oposição. É possível que eu sustente que o simples fato de serem meus filhos dê
a eles uma posição política privilegiada. Mas isso me parece questionável.
Menos questionável, acredito, é que esse exemplo revela o dado de que a
intolerância envolve uma negação da plena filiação aos "outros". O que há de
particular em relação a nossos filhos, no caso, é apenas que a filiação deles é
impossível de se negar. Mas a intolerância nos força a negá-la, por torná-la
condicionada à concordância substantiva com nossos próprios valores.
Meu argumento até aqui foi o de que a justificação para a tolerância está no
fato de que rejeitá-la envolve uma forma de alienação em relação a nossos
concidadãos. É importante reconhecer, contudo, que a força desse argumento
depende de que estejamos falando da filiação a uma "sociedade" como unidade
política. Isso pode ser demonstrado ao se considerar de que modo o argumento em
prol da tolerância se aplicaria em uma sociedade privada, tais como uma igreja
ou uma organização política4. Desentendimentos devem surgir dentro de qualquer
grupo desse tipo, com relação à forma de se interpretar seus valores
compartilhados. Seria então intolerante pretender excluir do grupo aqueles com
visões divergentes, negar a eles o direito de participar nas convenções e
concorrer com a legenda do partido, negar a eles os sacramentos ou deixar de
convidá-los para as reuniões? pode-se dizer que isso também envolve a espécie
de alienação que descrevi, ao tornar a condição de membros dos demais
dependente da concordância com nossos valores. Mas certamente os grupos desse
tipo possuem boas razões para excluir aqueles que discordam. Os grupos
religiosos e as organizações políticas perderiam o sentido caso tivessem que
incluir qualquer um.
Em ao menos um sentido as idéias de tolerância e intolerância que descrevi se
aplicam, de fato, às associações privadas. Como disse, desacordos devem surgir
em tais grupos e, quando surgirem, é intolerante tentar negar àqueles de quem
se discorda a oportunidade de persuadir os demais a adotar sua interpretação
dos valores e da missão do grupo. Uma tolerância desse tipo é necessária em
função da idéia mesmade uma associação fundada no compromisso com "valores
compartilhados". Em que sentido poderiam tais valores ser "compartilhados" a
menos que haja algum processo - como a política formal e a informal às quais me
referi - por meio do qual eles se desenvolvam e um acordo quanto aos mesmos
possa ser sustentado5? Existem, contudo, limites. O próprio significado dos
bens em questão - os sacramentos, a legenda partidária-requer que eles sejam
condicionados a certas crenças. Logo, não é intolerante que o grupo como um
todo, após devida deliberação, negue esses bens àqueles que claramente não
adotam tais crenças.
A tolerância no nível da sociedade política é uma questão diferente. Os bens em
jogo nesse caso, tais como o direito de voto, de ocupar cargos públicos e de
participar no fórum público, não perdem seu significado se forem estendidos a
pessoas de quem discordamos com relação ao tipo de sociedade que gostaríamos de
ter, ou mesmo àqueles que rejeitam seus princípios mais básicos. É possível
tornar-se um membro da sociedade, e assim ter direito a esses bens, apenas por
se ter nela nascido (assim como de outras formas) e exige-se a obediência às
suas leis e instituições enquanto se permanecer em seu território. O argumento
em prol da tolerância que estou delineando é baseado nessa idéia de sociedade e
na idéia de que a relação de "concidadania" nela envolvida é algo que temos
razão para valorizar. A forma de alienação que mencionei ocorre quando os
termos dessa relação são violados: quando negamos aos outros, que são tão
membros da sociedade em que vivemos quanto nós, o direito a ter seu papel na
definição e na formação dessa última6.
Como havia dito, algo semelhante pode ocorrer quando negamos a consociados de
uma associação privada sua parcela legítima na formação da mesma. Mas a relação
de "consociação" que é violada é diferente da relação de "concidadania" e deve
ser valorizada por razões diferentes. As razões para se dar valor a tal relação
em específico impõem com freqüência limites ao seu espectro de aplicação. Seria
absurdo, por exemplo, que os presbiterianos considerassem todos aqueles
nascidos nos cinqüenta Estados Unidos como membros de sua igreja, e não seria,
portanto, intolerante negar a alguns deles o direito de participar no
desenvolvimento dessa instituição. Mas a relação de "concidadania" deve
necessariamente coligar ao menos todos os nascidos em uma sociedade e manter-se
dentro de suas fronteiras. Logo, ela não impõe - e, na verdade, é incompatível
com - quaisquer limites mais estreitos.
A DIFICULDADE DA TOLERÂNCIA
Os exemplos de intolerância estão todos à nossa volta. Para citar uns poucos
exemplos recentes nos Estados Unidos, temos os referendos contrários aos
direitos dos gays no Oregon e no Colorado, as tentativas do senador Jesse Helms
e outros de impedir que o Fundo Nacional para as Artes e o Fundo Nacional para
as Humanidades financiassem projetos que eles desaprovam, as recentes
declarações do governador do Mississipi de que "a América é uma nação cristã" e
declarações similares nos discursos da Convenção Nacional Republicana de 1992,
provindas de representantes da direita cristã.
É fácil, contudo, ver intolerância em nossos oponentes, porém mais difícil
evitá-la em nós mesmos. Penso aqui, por exemplo, em minha reação à disputa,
recorrente nos Estados Unidos, entre o ensino do evolucionismo e da "ciência
criacionista" nas escolas públicas, e na proposta de se emendar a Constituição,
se necessário, de forma a permitir a prática institucionalizada de orações
nessas escolas. Acredito piamente que a "ciência criacionista" é um engodo e
que as aulas de ciências não devam apresentar uma teoria científica e uma
doutrina religiosa como alternativas com um mesmo e análogo direito a uma
aceitação de mesma ordem. Não creio, portanto, que seja intolerante per se
opor-se aos criacionistas. Mas confesso me dar conta de uma certa sensação de
partidarismo nesses casos, uma sensação de superioridade em relação àqueles que
propõe tais coisas e um desejo de não deixá-los vencer uma querela, mesmo que
isso não representasse muito custo a ninguém. No caso do ensino de ciências,
existe um custo, do mesmo modo que no das orações nas escolas. Mas também me
inclino a defender a remoção de "In God We Trust"** de nossa moeda e a apoiar o
fim da prática de orações em eventos públicos.
Essas alterações fazem sentido para mim porque tornariam a simbologia oficial
de meu país mais completamente secular, logo, mais de acordo com minha visão
pessoal, e posso ainda alegar que representam uma adesão mais consistente ao
princípio constitucional de "não-oficialização" da religião. Alguns entendem
essas duas razões como inconsistentes. Na visão deles, não estou apenas
removendo um posicionamento particularista de nossa simbologia oficial, mas ao
mesmo tempo substituindo-o por outro; não estou tornando nossa atividade
pública neutra com relação ao secularismo e à religiosidade, mas demandando uma
medida oficial que entronizaria ainda mais o secularismo (que já é
"oficialmente endossado" de várias outras formas, eles diriam) como nossa visão
nacional. Tenho de admitir que, qualquer que possa ser a resposta apropriada
para o dilema constitucional (e ela pode ser indeterminada), essa objeção traz
consigo um tanto de verdade quando colocada como uma representação de minhas
motivações, as quais são fortemente partidárias.
Mas por que razão elas não deveriam ser partidárias? Deve parecer que eu
esteja, nesse caso, passando dos limites, fazendo alguns malabarismos à moda
genuinamente liberal. Afinal, o argumento de que, ao requisitar a remoção
daquele slogan de nosso dinheiro, estaria requisitando um endosso oficial à
irreligiosidade é, na melhor hipótese, esquivo e não muito persuasivo. Ao passo
que o slogan, por seu turno, tem de fato aquele agressivamente inclusivo (logo,
potencialmente excludente) "nós" (we): "In God We Trust".
Significaria isso que em uma sociedade verdadeiramente tolerante não possa
haver manifestações públicas dessa ordem, nenhuma defesa ou ordenação, pelo
Estado, de qualquer doutrina em particular? Nem mesmo a da tolerância ela
própria? Isso parece absurdo. Deixe-me considerar o problema por partes.
Primeiramente, seria intolerante impor o comportamento tolerante e impedir que
o intolerante aja conforme suas crenças? Certamente não. Os direitos dos
discriminados exigem essa proteção e a demanda por tolerância não pode se
tornar uma demanda por se fazer tudo aquilo que se acredita correto.
Em segundo lugar, é intolerante adotar a tolerância como doutrina oficial?
Poderíamos colocar em nossa moeda: "Acreditamos na Tolerância" (Nada mal para
um slogan, acredito, muito embora deves-se ser enunciado com cuidado). É
intolerante se ensinar a tolerância nas escolas públicas e promovê-la em
campanhas de conscientização patrocinadas pelo Estado? Certamente não e,
novamente, pelas mesmas razões. A defesa da tolerância não nega a ninguém o seu
lugar legítimo na sociedade. Ela confere a cada pessoa ou grupo um status na
medida de sua reivindicação, ao mesmo tempo em que concede o mesmo aos demais.
Por último, é contrário à tolerância negar aos intolerantes a oportunidade que
outros possuem de enunciar seus pontos de vista? Isso parceria negar-lhes um
status concedido aos demais. Contudo, exigir que toleremos os intolerantes até
desse modo parece exigir uma conduta quase irrealizável. Se um grupo sustentar
que eu e as pessoas como eu simplesmente não têm lugar em nossa sociedade, que
devemos deixá-la ou ser eliminados, de que modo posso considerar esse ponto de
vista como um entre outros, igualmente autorizado a se fazer ouvir e a ser
levado em conta em nossa política informal (ou mesmo formal)? Parece que exigir
tal conduta é exigir demais.
Para que a tolerância faça sentido, portanto, devemos distinguir entre nossa
atitude com relação ao que é defendido por nossos oponentes e nossa atitude com
relação aos próprios oponentes: não é que seus pontos de vista tenham o direito
de ser representados, mas são eles (como concidadãos, não como detentores
daquele ponto de vista) quem têm o direito de ser ouvidos. Esforcei-me, assim,
para chegar à afirmação recorrentemente atribuída a Voltaire7, ou seja, a uma
platitude. No contexto de nossa discussão, contudo, acredito que isso não seja
somente uma platitude, mas também a identificação de uma dificuldade, ou de
múltiplas dificuldades.
O que a afirmação de Voltaire nos recorda é que a atitude requerida pela
tolerância com relação aos outros deve ser entendida nos termos de diretos e
proteções específicos. Ele menciona o direito à fala, mas esse é apenas um
exemplo. A forma vaga do reconhecimento dos outros como detentores de direito
igual a contribuir para a política informal, bem como para a mais formal, pode
ser mais bem definida por meio da enumeração dos direitos específicos de
discursar, de dar um exemplo mediante a própria conduta, de ter sua particular
forma de vida reconhecida por meio de formas específicas de apoio oficial. A
isso precisamos acrescentar a especificação dos tipos de apoio que nenhuma
forma de vida pode requerer, tais como a proibição do comportamento alheio
simplesmente por se desaprová-lo. Essas especificações dão à atitude da
tolerância um conteúdo mais definido e a tornam mais defensável. É possível
exigir de nós (ou assim acredito) que reconheçamos possuírem os demais esses
direitos específicos, não importa o quanto façamos objeção ao que eles dizem.
Tal passo reduz o que antes chamei de vagueza da atitude de tolerância, mas nos
deixa com o que havia denominado de indeterminação dos direitos mais formais.
Essa indeterminação residual envolve dois problemas.
O primeiro é conceitual. Embora alguma especificação de direitos e os limites
de uma exemplificação e da aplicação sejam necessários para se dar conteúdo à
idéia de tolerância e torná-la sustentável, a idéia de tolerância não pode
jamais ser plenamente identificada com qualquer sistema particular de tais
direitos e limites, como o sistema de direitos à livre expressão e associação,
direito à privacidade e direito ao livre exercício (mas sem a oficialização) da
religião, que são atualmente aceitos nos Estados Unidos. Vários sistemas
diferentes de direitos são aceitáveis, nenhum deles é ideal. Cada um está,
portanto, permanentemente aberto à contestação e à revisão. Aquilo a que
chamarei de espírito da tolerância é parte do que nos leva a aceitar tal
sistema e nos guia ao revisá-lo. É difícil afirmar com mais exatidão em que
consiste esse espírito, mas eu o descreveria de certa forma como um espírito de
conciliação, um desejo de encontrar um sistema de direitos cuja aceitação pelos
demais (todos aqueles no amplo espectro alcançado pela relação de
"concidadania") possa também ser exigida. Suspeito que seja esse o espírito que
pode estar faltando em minha própria atitude com relação às orações públicas e
à impressão em nossa moeda. É necessário que eu pergunte a mim mesmo a questão
da conciliação: a recusa estrita de qualquer referência à religião é mesmo a
única política que posso considerar aceitável ou existe algum outro compromisso
entre o secularismo e as muitas variações de convicção religiosa que eu estaria
disposto a levar em conta?
O segundo problema, intimamente relacionado, é político. Há pouco incentivo
atualmente na política para se propor essa questão da conciliação, e geralmente
existem muitas razões mais fortes, tanto boas como más, para se deixar de fazê-
lo. Uma vez que as fronteiras da tolerância são indeterminadas e as formas
aceitáveis de se demarcá-las podem ser retratadas de modo a conferir
legitimidade a nossos oponentes, a acusação de intolerância é uma poderosa
moeda política.
Quando alguém faz uma afirmação que vejo como uma ameaça à reputação de meu
grupo, tendo a sentir um forte desejo, talvez mesmo a obrigação, de não deixá-
la sem resposta. Como havia dito, sinto tal desejo mesmo nos casos
relativamente sem importância. Mas com freqüência, sobretudo nos casos
importantes, uma forma particularmente eficaz de resposta (de "contradiscurso")
é contestar os limites do sistema de política informal, por meio da alegação de
que não se pode requerer de nós a aceitação de um sistema que permite o que os
outros fizeram e, desse modo, exigir a mudança do sistema em nome da própria
tolerância, de maneira a que ele proíba tais ações.
A fórmula é bastante comum. No início da década de 1970, por exemplo,
universidades nos Estados Unidos foram tumultuadas por manifestantes exigindo
que as palestras de estudiosos do QI, tais como Richard Herrnstein e William
Schockley, fossem canceladas. O argumento oferecido era o de que permitir que
eles discursassem contribuía para a difusão de suas idéias e, assim, para a
promoção da adoção de políticas educacionais prejudiciais às minorias entre as
crianças. À primeira vista, isso se mostrou irracional, pois os próprios
protestos deram aos palestrantes uma audiência muito maior do que eles poderiam
esperar de início. Mas o debate gerado por tais protestos também recebeu uma
visibilidade muito maior, em benefício dos contendores. Uma vez que a
"liberdade de expressão" estava sendo contestada, defensores das liberdades
civis, alguns dos quais normalmente simpáticos à causa dos manifestantes,
outros nem tanto, entraram na disputa. O resultado, transcorrido em vários
campi, foi um episódio dramático e emocionante, que despertou cobertura
midiática e editoriais chorosos e coléricos em diversos jornais. Quer a
contestação às regras prevalecentes da tolerância tenha feito algum sentido
teórico ou não, ela fez bastante sentido como uma estratégia política.
Uma análise muito semelhante me parece aplicável a controvérsias mais recentes,
tais como aquelas geradas pela regulamentação de "discursos de ódio"*** no
campus e pelos estatutos antipornografia de Indianápolis e Minneapolis. Acho
difícil acreditar que a adoção dessas regulamentações faria muito pela proteção
dos grupos em questão. Mas sua proposição, apenas por contestar princípios da
livre expressão aceitos e valorados, tem sido uma forma muito eficaz de trazer
as questões do racismo e do sexismo às mentes do restante da comunidade (mesmo
que isso tenha também implicado em custos, ao oferecer a seus adversários uma
arma no formato de reclamações quanto ao "politicamente correto").
A contestação às regras de tolerância aceitas é ainda um modo eficiente de se
mobilizar apoio dentro dos grupos afetados. Como havia afirmado, não se pode
esperar das vítimas de ataques racistas e antisemitas que os considerem
expressões de "apenas mais um ponto de vista" que mereça ser levado em conta no
julgamento pela opinião pública. Mesmo nos casos menos significativos, nos
quais não somos de forma alguma ameaçados, freqüentemente não conseguimos
distinguir (como havia dito acontecer comigo) entre a oposição ao que é dito e
a convicção de que permitir que isso seja dito é uma forma de partidarismo por
parte do Estado. É, portanto, natural que as vítimas dos discursos de ódio
estejam determinadas a banir tais discursos como prova de fogo para o respeito
a que fazem jus8. Mesmo que essa não seja uma exigência razoável, como acredito
ser o caso com freqüência, a indeterminação dos referenciais de tolerância e a
influência política por eles sofrida a tornam politicamente irresistível.
Por conta da indeterminação de tais referenciais - uma vez que a forma exata
que deve assumir nosso sistema de tolerância é sempre, em alguma medida, uma
questão aberta - não parecerá fora de propósito, mesmo para muitos defensores
da tolerância, requisitar que uma forma específica de conduta seja proibida
para que se proteja um grupo vitimado. Isso pode acontecer mesmo quando a
modificação proposta seja, na prática, inviável, por não poder um sistema
efetivo de tolerância oferecer essa forma de apoio a todo grupo. Por outro
lado, por causa dessa mesma indeterminação, um sistema de tolerância não
funcionará a menos que seja altamente valorizado e cuidadosamente protegido
contra a erosão. Isso significa que qualquer modificação proposta será sensível
à política, provocará uma forte oposição e, logo, uma valiosa publicidade para
o grupo em questão.
Além do mais, uma vez que essa proteção tenha sido reivindicada por aqueles que
falam pelo grupo - uma vez que se tenha feito dela uma prova de fogo para o
respeito - tornase muito difícil para os membros individuais do grupo não
apoiarem tal reivindicação9. O resultado é uma espécie de impasse político no
qual a idéia de tolerância é uma poderosa força motivadora em duas frentes: de
um lado, na forma do desejo de se proteger os grupos potencialmente excluídos;
de outro, na forma do desejo de se proteger um sistema efetivo de tolerância.
Não tenho uma solução para tais problemas. Na realidade, parte de meu argumento
é de que a natureza da tolerância os torna inevitáveis. A estratégia sugerida
pelo que disse é procurar, o tanto quanto possível, evitar medidas hostis ao
sistema de tolerância, para que não se torne uma "prova de fogo" para o
respeito. Defensores das liberdades civis, como eu, que acorrem em defesa desse
sistema, não deveriam somente gritar "Você não pode fazer isso!", mas deveriam
também formular a questão da conciliação: "Existiriam outras formas, não
prejudiciais ao sistema de tolerância, mediante as quais o respeito pelos
grupos ameaçados pudesse ser demonstrado10?".
CONCLUSÃO
Avaliei, de início, o caso paradigmático da tolerância religiosa, uma doutrina
que parecia à primeira vista oferecer reduzidos custos ou riscos, quando vista
da perspectiva de um liberal laico com uma proteção constitucional assegurada
contra a "oficialização" de uma religião. Prossegui explicando por que a
tolerância em geral - e a tolerância religiosa em particular - é uma política
que implica em riscos e altos valores em jogo, mesmo dentro da moldura de uma
democracia constitucional estável. Os riscos envolvidos encontram-se nem tanto
na política formal das leis e constituições (ainda que possa haver nela riscos
também), mas, em vez disso, na política informal, por meio da qual a natureza
da sociedade é constantemente redefinida. Acredito na tolerância a despeito
desses riscos, porque me parece que qualquer alternativa me colocaria em uma
relação antagônica e alienada com meus concidadãos, tanto amigos como inimigos.
A atitude de tolerância é, todavia, difícil de se cultivar. Só se pode atribuir
conteúdo à mesma por meio de alguma especificação dos direitos dos cidadãos
enquanto participantes da política formal e da informal. Mas qualquer sistema
de direitos do tipo será convencional e indeterminado, e está sujeito a ser
vítima freqüente de ataques. Para se cultivar e interpretar tal sistema,
necessitamos de uma maior atitude de tolerância e de conciliação, uma atitude
que é, ela própria, difícil de se manter.
[*] Agradeço a Joshua Cohen e a Will Kymlicka por seus valorosos comentários a
versões iniciais deste artigo. [N. do Ed.: Texto publicado originalmente em
Heyd, David (ed.). Toleration: an elusive virtue. Princeton: Princeton
University Press, 1996. ]
[**] "Acreditamos em Deus" (N. do T.).
[***] Hate speech (N. do T.).
[1] Como aponta Horton, John. "Toleration as a virtue". In: Heyd, David (ed.).
Toleration: an elusive virtue. Princeton: Princeton University Press, 1996.
[2] Para ser mais exato, há várias maneiras de tentá-lo. Acredito que nossas
idéias de liberdade de expressão devam ser entendidas nos termos de um
compromisso tanto com certos fins quanto com a concepção de determinados
arranjos institucionais como meios cruciais para aqueles fins. Mas os meios
nunca são plenamente adequados aos fins, o que leva à constante evolução dos
mesmos. Para uma discussão sobre essa "instabilidade criativa", ver Scanlon, T.
M. "Content regulation reconsidered". In: Lichtenberg, J. (ed.). Democracy and
the mass media. Nova York: Cambridge University Press, 1991.
[3] Valho-me aqui dos argumentos apresentados na seção 5 de meu artigo "Freedom
of expression and categories of expression". University of Pittsburgh Law
Review, vol. 40, 1979, pp. 479-520.
[4] Sou aqui tributário dos questionamentos muito úteis feitos por Will
Kymlicka. Não sei se ele concordaria com a forma como os respondo.
[5] Conforme escreveu Michael Walzer, ao tratar de questão semelhante: "Quando
as pessoas discordam quanto ao significado dos bens sociais, quando
interpretações são controversas, a justiça requer que a sociedade seja
respeitosa com as discordâncias, promovendo canais institucionais para sua
expressão, mecanismos de ajuizamento e distribuições alternativas" (Spheres of
justice. Nova York: Basic Books, 1984, p. 313).
[6] A intolerância também pode se manifestar quando negamos aos outros a
oportunidade de se tornarem membros com base em fatores raciais ou culturais.
Mas eu me desviaria muito do tema ao discutir aqui os limites das políticas de
justa imigração e naturalização.
[7] Diz-se que ele teria afirmado: "Discordo do que dizes, mas defenderei até a
morte o direito de dizê-lo".
[8] Ver, por exemplo, Matsuda, Mari. "Public response to racist speech:
considering the victim's story". Michigan Law Review, vol. 87, 1989. Matsuda
enfatiza que a proibição legal é buscada porque representa uma condenação
pública da postura racista.
[9] Penso aqui particularmente no caso de Salman Rushdie. A determinação do
Aiatolá Khomeini de que Os versos satânicos fossem banidos não era razoável.
Contudo, muitos muçulmanos que viviam na Inglaterra sentiam-se tratados com
falta de respeito por seus concidadãos. Mesmo que pudessem entender que a
determinação do Aiatolá não era razoável, seria difícil que não a apoiassem
logo que fosse lançada. A situação, no caso, foi ainda mais complicada (e a
referência à "inviabilidade", problemática) devido à existência de uma lei
britânica de punição da blasfêmia que protegia o cristianismo, mas não o
islamismo. O resultado foi um impasse da espécie descrita no texto.
[10] Não pretendo sugerir que isso seja sempre requerido. Depende do caso e do
grupo. Mas os casos difíceis serão aqueles em que a tolerância fala em favor da
proteção de um grupo e, a um só tempo, contrariamente à medida por eles
reivindicada.