Cultura urbana sob novas perspectivas: entrevista com Adrián Gorelik
Adrián Gorelik é uma das figuras mais expressivas da renovação dos estudos
sobre as cidades e a arquitetura latino-americanas em curso na Argentina (e no
Brasil) desde os anos de 1980. Graduado em arquitetura em Buenos Aires nos anos
de repressão e esvaziamento da universidade, um período de grande fermentação
intelectual e política, ele combina a leitura crítica da modernidade latino-
americana formulada por intelectuais como Ángel Rama, Beatriz Sarlo e Carlos
Altamirano à reflexão arquitetônica e urbanística levada a cabo pela Escola de
Veneza - uma tradição crítica incorporada à historiografia urbana argentina
sobretudo pelas mãos de José Francisco (Pancho) Liernur, um dos mentores
intelectuais da geração de Gorelik. Orientando de Manfredo Tafuri nos anos de
1970, Liernur integra em 1977 o grupo da Escuelita, uma "escolinha" fundada
dias antes do golpe por arquitetos destacados que, posteriormente, acolhe
intelectuais que voltavam do exílio no México. Além de Sarlo e Altamirano, nela
atuam figuras conhecidas da intelectualidade argentina como Hugo Vezetti, Oscar
Téran, José Maria (Pancho) Aricó, Jorge Dotti, e onde é criado um programa de
estudos urbanos de inspiração veneziana, o Programa de Estudios Históricos de
la Construcción del Habitar. Decisiva como a militância política nascida nos
anos finais da ditadura, a cátedra criada por Liernur na Universidade de Buenos
Aires após a experiência da Escuelita - Problemas da Arquitetura Contemporânea
- forneceu enquadramento institucional e unidade temática a um conjunto de
estudos que seriam publicados a partir do final dos anos de 1990 pela
Universidad Nacional de Quilmes: ao lado do doutorado de Gorelik, La grilla y
el parque: espacio publico y cultura urbana em Buenos Aires, 1887-1936 (1998),
os trabalhos de Graciela Silvestri, Anahí Ballent e Fernando Aliata,
respectivamente, El color del rio: historia cultural del paisaje del Riachuelo
(2003); Las huellas de la política: vivienda, ciudad, peronismo en Buenos
Aires, 1943-1955 (2005) e La ciudad regular: arquitectura, programas e
instituciones en el Buenos Aires posrevolucionario, 1821-1835 (2006).
Nos anos de 1990, Gorelik torna-se subeditor da revista Punto de Vista ao lado
de Beatriz Sarlo e passa a dirigir, junto com Oscar Téran, o Programa de
História Intelectual da Universidade Nacional de Quilmes. Com Téran (e
posteriormente com Carlos Altamirano) edita a revista Prismas - um anuário de
debates e discussão acadêmica que tem buscado dialogar com intelectuais
brasileiros, publicando contribuições de Sergio Miceli, Wander Melo Miranda,
Fernanda Peixoto, entre outros. Gorelik integra ainda o conselho editorial da
revista Block, uma importante publicação de arquitetura ligada ao Instituto
Torcuato Di Tella, que tem procurado estabelecer pontes com a historiografia
crítica da arquitetura brasileira - em 1999, um número especial sobre o Brasil
foi editado com Liernur e a colaboração do brasileiro Carlos Martins.
Desde o trabalho inicial sobre a atuação do arquiteto Hannes Meyer no México
(La sombra de la vanguardia: Hannes Meyer en México, 1938-1947 [1993], escrito
em parceria com Liernur), passando pelo renovador estudo sobre a criação do
espaço urbano da capital argentina e pelos textos sobre a Buenos Aires
contemporânea publicados em Punto de Vista (parte deles reunidos em 2004 na
coletânea Miradas sobre Buenos Aires: história cultural y crítica urbana), até
as pesquisas atuais sobre a circulação de idéias entre intelectuais e
planejadores norte-americanos na América Latina entre as décadas de 1940 e
1970, a arquitetura e a cidade aparecem em seu trabalho como um "universo de
fronteiras extensas", a ser descoberto pela crítica como um conjunto amplo e
historicamente variável de disciplinas. Nesta entrevista, realizada em Buenos
Aires em outubro de 2008 e maio de 2009, Gorelik recapitula parte de uma
trajetória marcada pela discussão política e pela militância coletiva e
interdisciplinar, retraça as linhas mestras de seu percurso intelectual e
recupera momentos importantes da história intelectual argentina das últimas
décadas. (Ana Castro e Joana Mello)
Você estudou arquitetura na Faculdad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo da
Universidad de Buenos Aires (FADU-UBA) entre 1975 e 1982, justamente os anos da
ditadura militar argentina. Em que medida esse contexto marca sua formação?
Meus anos de universidade coincidiram com o ciclo de terrorismo de Estado na
Argentina, uma fase não só trágica do ponto de vista político e social, mas
muito penosa em termos acadêmicos. A intervenção na Universidade realizada pelo
governo foi pautada pela mediocridade: criou uma ordem militarizada sem
qualquer conteúdo intelectual, na medida em que tinha como único objetivo
desativar a agitação política. Os grandes professores que haviam marcado a FADU
na década de 1960 já não faziam parte dos quadros universitários, salvo uma ou
outra honrosa exceção. Mas a despeito, ou talvez justamente por ser irrelevante
do ponto de vista acadêmico, a Faculdade acabou sendo extremamente importante
para minha formação intelectual e política. Desde 1979, quando a frente
ditatorial começa a mostrar fissuras, ela é palco de diferentes mobilizações de
alunos e professores, que resultam na formação de grupos de estudo e na minha
própria militância política. No mesmo período, eu havia começado a viajar pela
América Latina - a típica viagem iniciática de esquerda - e fiquei
impressionado com a situação efervescente do movimento estudantil chileno, que
possuía publicações e organizações de grande vitalidade e me sugeriu a forma
clássica de intervenção intelectual: editar uma revista. Com um grupo formado
por colegas da FADU, fiz então minha primeira revista, a Azul, editando três
números entre 1980 e 1982. Essa revista - hoje certamente ilegível - era
bastante ingênua na sua tentativa de elaborar uma atitude crítica em face da
arquitetura e da política, mas cumpriu uma função-chave ao permitir a definição
de um coletivo, algo como uma identidade geracional, que organizou a plataforma
a partir da qual pudemos reconhecer as mais ricas redes culturais e políticas
que surgiam em Buenos Aires. Funcionávamos como um grupo paralelo à Faculdade,
uma "casa-ateliê-comunidade". Organizávamos, além de cursos de arquitetura,
eventos culturais e políticos, capitalizando toda a efervescência desse momento
final da ditadura. Graças a essa iniciativa entrei em contato com uma figura
que seria responsável por minha orientação dali para frente, Pancho Liernur,
que em 1977 havia regressado de Veneza, onde estudara com Manfredo Tafuri.
Pancho logo se integraria à La Escuelita, uma instituição privada formada dois
anos antes por alguns dos arquitetos mais destacados dos anos de 1960, criando
ali um grupo, sob o nome Programa de Estudios Históricos de la Construcción del
Habitar (PEHCH), que iria editar a revista Materiales (1982-1985). Nesse
momento, eu acabava de conhecer Graciela Silvestri, com quem decidi ler o jovem
Lukács, que era um terreno "neutro", a possibilidade de tornar nossas
diferenças produtivas: ela vinha do comunismo e eu estava imerso em uma
militância raivosamente trotskista. Como parte dessa "busca", juntamo-nos ao
grupo de Pancho em 1983, que havia deixado La Escuelita para integrar a
Sociedad Central de Arquitectos (uma usina de atividades antiditatoriais nos
anos precedentes). Pancho não só construiu o ambiente no qual iria se dar nossa
formação como historiadores, como nos colocou em contato com dois grupos
político-culturais chaves na transição argentina e determinantes na minha
trajetória futura: o grupo da revista Punto de Vista e o grupo de exilados que
estavam voltando do México que, juntos, criariam o Club de Cultura Socialista.
Esses intelectuais nos deram uma base teórica mais sólida, uma rede de relações
com as figuras que estavam refundando as ciências sociais e as humanidades no
país e, especialmente, um vínculo inestimável com a experiência político-
intelectual dos anos de 1960, por meio de cursos privados e semiformais. Entre
eles, vale mencionar Beatriz Sarlo (que estava desenvolvendo sua revisão da
vanguarda literária argentina, interessada nas pontes com os temas da cultura
urbana e arquitetônica), Carlos Altamirano (que nos apresentava a autores como
Pierre Bourdieu e Raymond Williams, ou dava cursos sobre Adorno), Hugo Vezzetti
(responsável por aulas sobre Freud e Foucault) e Jorge Dotti (professor de
filosofia). Entre os que retornavam do México, merecem destaque Pancho Aricó
(criador da revista e da mítica editora do marxismo latinoamericano, Pasado y
Presente, com quem tínhamos lições de Marx, Gramsci e Benjamin) e Oscar Terán
(responsável por cursos sobre Nietzsche e Foucault). Essa formação coletiva e
em boa medida autodidata teve um conteúdo fundamentalmente político-
intelectual. Na velha tradição de cultura da esquerda, esses seminários
formavam parte de uma experiência de conhecimento que não tinha nenhuma
aspiração acadêmica, já que era inimaginável na Argentina desses anos, 1982-
1984, que esses saberes pudessem confluir em uma "carreira". Nenhum de nossos
intelectuais-guia havia feito um doutorado nem mesmo estavam na Universidade
(ainda que alguns deles rapidamente se convertessem em pilares da sua
reconstrução), nem nos parecia que pudesse ser de outro modo. A formação era
vista como uma parte essencial da militância intelectual e política. No
entanto, já em fins da década de 1980 começava a ficar evidente que estavam
surgindo vias institucionais para consolidar trajetórias de pesquisa. Foi a
partir daí que pudemos seguir uma carreira acadêmica, e não tenho dúvida de que
ela ficou marcada de modo indelével por essa formação ampla, que nos dava uma
idéia aberta sobre nossos objetos de estudo, a cidade e a arquitetura, vistos
como um universo de fronteiras extensas, no qual os mundos da história, da
crítica cultural e política, da literatura, da sociologia e da filosofia se
mesclavam com muita naturalidade.
Que impacto esse vínculo entre arquitetura e crítica cultural teve nos temas
que esses intelectuais e vocês próprios do grupo de Pancho começaram a
pesquisar?
Acho que, para o nosso grupo, o primeiro fruto dessa vinculação foi a tarefa de
revisar o período das vanguardas. Ao mesmo tempo em que nos interessava estudá-
las num sentido mais amplo, recuperando para isso os debates para além da
arquitetura, outros intelectuais, especialmente Sarlo, voltavam-se para a
cultura arquitetônica e urbana dos anos de 1920 e 1930, tecendo ligações com a
produção literária de Buenos Aires. Havia também Aricó, que em sua revisão do
marxismo dava importância à produção de figuras como Walter Benjamin, às
potencialidades da cultura das vanguardas européias e russas, que haviam ficado
rebaixadas pelas leituras ortodoxas do processo revolucionário.
A centralidade do tema das vanguardas não decorreu também, no caso do grupo de
história da arquitetura, da revisão historiográfica da arquitetura moderna
latino-americana que Liernur começa a fazer, informado pela crítica formulada
pelos teóricos da Escola de Veneza, especialmente por Manfredo Tafuri, e que se
concretiza na cátedra Problemas da Arquitetura Contemporânea (Universidad de
Buenos Aires, 1996-1998)?
Sim, esse pequeno grupo de historiadores da arquitetura que finalmente se
constituiu a partir da experiência em torno de Pancho Liernur desde a Escuelita
até a Cátedra - especialmente Anahí Ballent, Fernando Aliata, Graciela e eu -
se caracterizou pela forte influência de Tafuri e da linha historiográfica e
teórica da Escola de Veneza. Do meu ponto de vista, Tafuri foi a figura mais
importante da segunda metade do século XX na cultura arquitetônica, porque é a
partir dele que se pode discutir a arquitetura moderna como parte de uma crise
cultural civilizatória muito mais ampla. Se a arquitetura não tivesse ficado
num lugar tão periférico na cultura, Tafuri certamente seria muito mais
conhecido, porque a transformação que ele produziu no modo de pensar a cultura
arquitetônica vai muito além dela mesma, o que é compreensível numa Itália onde
os temas da arte e da arquitetura fazem parte do debate público, cultural e
político. Desse modo, pode-se compreender como os primeiros artigos de Tafuri
são publicados na Contropiano, uma revista política de esquerda, neomarxista, a
despeito do seu grau de especificidade arquitetônica. E também que figuras como
Massimo Cacciari - cuja leitura de Simmel e Benjamin no fim dos anos de 1960
anunciou boa parte dos temas atuais - ou Franco Rella - que persegue as linhas
oblíquas da modernidade - se voltaram a um projeto que tinha em seu centro a
história da arquitetura. Por outro lado, não se pode esquecer que a Itália é um
caso muito particular em função de seu marxismo e do lugar que ele ocupou na
cultura do país. Quando se pensa nos anos de 1950 e 1960, e em toda a cultura
nova que se produz ali em torno do marxismo, vê-se que ela foi enormemente
original e muito pouco dogmática. Tudo isso gera uma cultura política e
intelectual particular, da qual Tafuri é parte.
Desde o primeiro contato, meu fascínio pelos textos de Veneza se deu porque
eles mostravam que o radicalismo político podia funcionar no interior de uma
análise da arquitetura de grande sofisticação. Têm-se criticado bastante as
limitações do programa de "critica à ideologia" que marca o primeiro período da
obra de Tafuri, em especial seu caráter necessariamente teleológico. Contudo,
não se pode desconhecer sua contribuição à desmontagem da ideologia da
arquitetura moderna e as suas conseqüências, a revelação crítica das três
experiências de ponta na modernidade - a União Soviética, a social-democracia
vienense e alemã e os Estados Unidos - que o relato ideológico do "Movimento
Moderno" havia impedido de tornar compreensível. Mas, mais do que isso, a
importância da obra de Tafuri vai além de seu próprio programa, porque consegue
embaralhar todas as relações entre a cultura arquitetônica e o processo de
construção material do mundo moderno, como se pode notar muito bem em sua
definição de vanguarda.
Quando começamos a estudar Tafuri sistematicamente no PEHCH, nos anos de 1980,
já era o Tafuri de "Projeto Histórico" (que, não devemos esquecer, se inicia
com uma grande citação de Carlo Ginzburg)1, muito influenciado pelo pós-
estruturalismo francês, ainda que mantendo elementos fortes do marxismo. Nesse
momento, como forma de complementar nossos estudos dos críticos de Veneza, foi
muito importante o "materialismo cultural" de um autor que eles não utilizavam,
Raymond Williams, que oferecia uma via metodológica diferente para superar as
alternativas limitantes estrutura/superestrutura ou verdadeira/falsa
consciência, mostrando o rendimento de um trabalho crítico de recomposição das
relações entre o mundo das idéias e o mundo das transformações materiais.
Você acha que foi a leitura de Tafuri, aliada à leitura de Williams, que
permitiu a abertura de novos campos de investigação, caracterizando de algum
modo o trabalho desse grupo de história da arquitetura?
Acho que o mais importante é que pudemos ler Tafuri ao lado não apenas de
Williams, mas de outros autores que não faziam parte de sua perspectiva, como
Gramsci ou Bourdieu, e orientar essas leituras para um enfoque de história
cultural, cujas novas aproximações antropológicas estavam então em plena
ebulição; basta pensar em Ginzburg, fundamental para nossa definição de
trabalho histórico. Parece-me também que a situação particular vivida na
Argentina nos anos de 1980 - de transição democrática e de revisão da política
revolucionária - nos fez aprofundar ainda mais a componente reformista na
crítica, que era uma preocupação alheia a Tafuri. Williams não é um nome
secundário nisso, porque seu materialismo cultural é adequado não apenas para
interpretar, mas sobretudo para imaginar as transformações da sociedade,
problema que a Escola de Veneza não considerava. O interesse que a crítica
cultural de Raymond Williams podia ter nos anos de 1980 e 1990, do ponto de
vista estritamente historiográfico e crítico, somava-se aos instrumentos que
ela podia oferecer para pensarmos a nossa inserção numa situação política que
nos inspirava, ou melhor, instigava a intervir e a participar, e não apenas
como simples críticos negativos. Algum distanciamento de Veneza teve a ver com
esta necessidade de refletir sobre o reformismo diante da radicalidade da
crítica negativa de um lado e, de outro, com a aparição de uma série de
perguntas que não faziam parte da agenda e do programa venezianos.
Uma dessas questões novas parece ser a relação das vanguardas com o Estado,
tema do seu livro Das vanguardas à Brasília: cultura urbana e arquitetura na
América Latina. Você poderia falar um pouco sobre isso, como essa questão se
formula?
Acredito que o estudo da América Latina obriga a mudar a maneira de olhar o
problema das vanguardas. Em primeiro lugar, porque aqui a modernidade modifica
a componente trágica, central no grupo de pensadores europeus que haviam
orientado a reformulação teórica empreendida por Veneza (Simmel e Benjamin em
primeiro lugar). Ainda que durante os anos de 1920 e 1930, em nossos países se
seguisse muito atentamente o clima cultural de "A decadência do Ocidente",
aquelas conclusões pessimistas aqui se invertiam, porque se acreditava que o
"jovem" continente era uma terra mais predisposta para a construção ex nihilo
de uma nova sociedade. Se isso inverte a "tragédia da cultura" simmeliana
(questão precocemente notada por José Guilherme Merquior), inverte também a
análise weberiana, já que entre nós a modernidade foi pensada como um
instrumento para alcançar a modernização. Sarmiento é precursor nesse sentido,
já que concebe a modernidade como um meio para alcançar o desenvolvimento,
criando uma tradição que iria se realizar a partir da década de 1930, quando o
Estado toma para si essa tarefa, como mecanismo para concluir o processo de
unificação nacional. Essa é uma chave que explica as relações completamente
atípicas geradas em nossos países entre o Estado e a arquitetura moderna, que
aparece como manancial de novas formas para a construção de um imaginário
nacional moderno capaz de homogeneizar nossos territórios, vastos e com pouca
comunicação entre si. E isso demonstra que estamos diante de uma noção de
vanguarda completamente diferente, pois nossas vanguardas não cumprem nenhum
dos "requisitos" teóricos das vanguardas clássicas: a negatividade, o "combate
às instituições" ou à tradição, o internacionalismo. Pelo contrário, as
vanguardas latino-americanas, em boa parte dos casos, propuseram a construção
de uma língua nacional, a construção de uma tradição e de uma nova ordem, e
encontraram no Estado nacionalista-benfeitor o melhor instrumento para
conseguir fazer tudo isso.
Pois bem, na origem destes postulados há um elemento que provém de Tafuri. Como
vimos, ele havia reconstruído a história das vanguardas como um ciclo dialético
que vai da arte (negativa) à arquitetura (construtiva). Eu amplio essa
conclusão para notar que entre a Europa e a América Latina pode ser
estabelecido um jogo análogo. Se o ciclo "da vanguarda à metrópole" devia ser
pensado como um período unitário, no qual a arquitetura aparecia como o pólo
construtivo da dialética produtiva da vanguarda, a América Latina podia ser
pensada como o pólo positivo de sua dialética espacial, já que nos anos de 1920
e 1930 ela aparecia como o lugar onde a construção não era apenas possível, mas
inevitável. Isso é o que atrai tantos viajantes modernistas para o nosso
continente e, mais importante, essa é a raiz do otimismo que se vê em boa parte
de nossas vanguardas literárias já nos anos de 1920, que rapidamente
depositaram sua confiança na construtividade da arquitetura - porque ela
parecia realizar materialmente a tão ansiada língua nacional -, uma confiança
que conduz diretamente ao Estado benfeitor dos anos de 1930 e, em seguida, ao
Estado desenvolvimentista da década de 1960.
Você disse que a situação particular vivida pela Argentina nos anos 1980 fez
com que vocês se aproximassem do reformismo de Williams e em certo sentido se
afastassem de Tafuri. Essa nova aproximação teria contribuído para que a
questão anterior, da relação entre Estado e vanguardas, fosse elaborada?
Mais que isso, foi a evidência da crise do Estado nos anos de 1980 e 1990 que
nos levou a reconsiderá-lo, a repensar seu papel e a colocá-lo no centro do
interesse. Até então, a esquerda havia mantido uma visão tradicional do Estado,
criticando-o pelo seu autoritarismo e por sua função de guardião do poder das
classes dominantes. Mas a seu modo essas críticas acabaram contribuindo com o
processo de depreciação e desmontagem do Estado social, ativado pela crítica
neoliberal de direita. Essa nova conjuntura inspirou não apenas o meu trabalho
como o de todo nosso grupo e também o de outros historiadores da arquitetura
fora da Argentina, como Carlos Martins e Nabil Bonduki no Brasil, que passaram
a se dedicar a uma análise mais complexa do Estado. O caso da habitação é
bastante emblemático. Na pesquisa que desenvolvo atualmente, sobre a circulação
de idéias e de técnicos e planejadores urbanos norte-americanos entre as
décadas de 1940 e 1970 na América Latina, analiso como já nos anos de 1950 há
uma verdadeira competição entre dois "modelos" de solução para os problemas da
habitação. Um modelo que chamo de "latino-americano", em que os Estados
produzem grandes conjuntos modernistas, e um modelo "pan-americano", de ajuda
mútua e autoconstrução, que tem muito a ver com a ideologia técnica norte-
americana e que se experimenta pela primeira vez em Porto Rico. Curiosamente, o
que era percebido pelos técnicos estatais latino-americanos naquele momento
como um "modelo norte-americano" (o "pan-americanismo" era considerado apenas
um eufemismo) acabou sendo recuperado nos anos de 1960 e 1970 pela militância
de esquerda. Para um historiador cultural, esse processo de cruzamento cultural
e ideológico é bastante curioso. É óbvio que isso não significa que tudo o que
se vincula à autoconstrução esteja equivocado - pelo "pecado original" de haver
sido parte de uma receita norteamericana para América Latina - nem que, ao
contrário, agora se tenha que fazer uma defesa cega dos conjuntos de habitação
social construídos no período pelo Estado que, em muitos casos, se converteram
em desastres sociais e urbanos. Mas é necessário reavaliar a produção desse
momento, seus cruzamentos ideológicos, tão pouco pensados quanto interessantes.
É preciso também entender seu caráter único, no sentido de que naquele momento
é possível ver os Estados latino-americanos em plena ação, investindo enormes
orçamentos para atacar as formas urbanas da pobreza, algo absolutamente diverso
do que se faz hoje. Vêse inclusive uma cultura arquitetônica diferente da
atual, que colocava no centro de suas preocupações a habitação popular, criando
soluções de grande originalidade e audácia.
Você acha que de alguma maneira o tema da sua tese de doutorado, que procura
entender e examinar a produção do espaço público em Buenos Aires, fez parte
desse projeto de revisão do papel do Estado na América Latina?
A tese busca compreender como a Buenos Aires moderna foi produzida por um plano
público, quando toda a historiografia (de esquerda ou direita) pensava que a
cidade tinha sido produto exclusivo do mercado. Nesse sentido, o tema fazia
parte da mesma preocupação e, sem dúvida, foi essa perspectiva que me permitiu
perceber a importância decisiva que o Estado teve na cidade no final do século
XIX, ao montar um "tabuleiro" público urbano sobre o qual a sociedade civil
construiria seus espaços de sociabilidade - preocupação que estava presente nos
textos simultâneos à tese, que fui publicando na revista Punto de Vista nos
anos de 1990, como crítica da cidade produzida pelo neoliberalismo. Isso me
obrigou a fazer uma pergunta teórica que me distanciava da literatura européia
ou norte-americana sobre o espaço público: é possível a sua produção a partir
de cima, a partir do Estado e não da sociedade? Em caso afirmativo, que tipo de
espaço público resulta daí? É preciso lembrar que a queda da ditadura na
Argentina coincidiu com uma reavaliação internacional da democracia e do
sistema liberal que recolocou o problema do espaço público (que Habermas e
Hannah Arendt já haviam estudado na década de 1950), pensando-o como uma
categoria capaz de unir dimensões muito diferentes. Hoje, sou muito mais
crítico desse momento de epifania vivido entre os anos de 1980 e 1990, no que
diz respeito às possibilidades que a categoria de espaço público abria, quando
se pensava que ela, por si só, colocava em contato (virtuoso) uma idéia de
cidade, uma idéia de arquitetura e uma idéia de sociedade. Isso que denomino
"romance do espaço público" aparece hoje sob uma luz quase patética quando
percebemos que os novos projetos urbanos geram espaços públicos "espectrais",
cenários espetaculares para o "marketing urbano" - que Otília Arantes tão bem
analisou - ou quando vemos que para os administradores urbanos a idéia de
espaço público funciona como uma espécie de talismã por meio do qual parecem
acreditar que ao projetar uma pracinha, por obra e graça do emprego da
categoria "espaço público", não estão fazendo só uma pracinha, mas construindo
os pilares da sociabilidade democrática.
No livro resultante da tese, La grilla y el parque: espacio público y cultura
urbana en Buenos Aires, você afirma que a proposta urbanística da Prefeitura de
Buenos Aires de 1898, publicada em 1904 - que previa o prolongamento da
quadrícula espanhola por todo o recémdefinido território da Capital Federal -,
apesar de não ter sido considerada um plano urbano, nem na época, nem na
historiografia, foi o instrumento que definiu o desenho da cidade. E que este
plano teria sido complementado pelo sistema de parques proposto
contemporaneamente pela municipalidade, garantindo espaços públicos
distribuídos de forma equilibrada em todo o novo território e a qualidade do
espaço urbano de Buenos Aires. O trabalho une dois elementos do pensamento
urbanístico considerados quase irreconciliáveis: a quadrícula, vista como a
representante dos interesses do mercado, e o parque, instrumento de reforma
social e urbana. Como você construiu essa hipótese?
A grelha e o parque são artefatos materiais, mas também são artefatos
construídos historicamente como figuras da cultura, em cuja forma se baseia uma
série de interpretações sobre o processo de constituição do espaço público
metropolitano. Foi a partir das diferentes aproximações a essas duas figuras -
às vezes vistas como instrumentos de intervenção pública ou da teoria
urbanística, às vezes como idéias condensadoras de um imaginário mais amplo,
outras como metáforas sociais e, muitas vezes, como meras materialidades,
espaços de realização das práticas sociais - que eu busquei desenvolver a
hipótese de que, entre os anos finais do século XIX e as três primeiras décadas
do século XX, foram produzidas em Buenos Aires modalidades peculiares de
organização do território, de transformação cultural, de sociabilidade popular
e de políticas públicas urbanas, que tiveram como resultado o surgimento de um
espaço público metropolitano na cidade. E que esse processo teria conferido a
essa cidade sua qualidade específica.
Num primeiro momento, trouxe para o centro da investigação a questão do "espaço
público", que era, como vimos, um tema de época. No meu caso, a preocupação
desde o começo era reunir numa mesma categoria o urbano e o cultural, o
político e o social, algo que não era bem realizado nos estudos que eu
conhecia. Sem saber como resolver essa questão, tive a priori a preocupação de
fazer uma interpretação por assim dizer "materialista" do espaço público, em
que a própria definição política tivesse a ver com os processos urbanos. Se eu
queria dizer algo novo sobre espaço público tinha que encontrar uma forma de
articular as duas dimensões (a política e a urbana) que ele promete como
categoria. E a encontrei na quadrícula e no parque, no modo como ambos definem
o "novo" tabuleiro da cidade, dando um caráter aos bairros populares que
surgiam, tornando-os fundamentais na cultura e na política de Buenos Aires no
século XX. Vocês sabem que a idéia de bairro, entendida a partir da cidade
européia, é a de um núcleo urbano preexistente ao crescimento da cidade, que
acaba incluído nela, mas nunca é absorvido por ela, devido à sua forte
identidade cultural e etnográfica. Os bairros de Buenos Aires, ao contrário,
produziramse inversamente: foram o resultado da expansão suburbana e
rapidamente construíram uma identidade. Minha primeira hipótese era que os
parques finisseculares haviam tido um papel muito importante nesse processo.
Mas logo me dei conta de que a quadrícula, esse fundo homogêneo sobre o qual o
parque atuava como qualificador, devia ter também as suas próprias condições de
produção - como toda a historiografia, eu também naturalizara a quadrícula de
Buenos Aires. Apenas depois de formular a pergunta de como essa quadrícula
tinha sido produzida é que pude começar a pesquisar, e encontrei, enfim, o
plano que pela primeira vez havia proposto esse desenho, a partir do qual foram
construídas essas ruas retas, quadriculadas, que caracterizam Buenos Aires,
mostrando que esse desenho não havia sido um produto "natural" do mercado, nem
a continuidade também "natural" do tabuleiro da cidade colonial, mas um projeto
público do final do século XIX, inspirado pela típica ambição igualitária do
reformismo conservador argentino. E me dei conta ainda de que os parques haviam
surgido como uma resposta contemporânea do mesmo poder público, como reação aos
efeitos da quadrícula que ele mesmo acabara de criar e que buscava moderá-los,
formando um "cinturão verde" que pusesse limites ao crescimento suburbano que o
plano estimulava.
Percebi então que os papéis imaginados para a quadrícula e para o parque se
frustravam continuamente, gerando efeitos impensados (por essa razão refiro-me
à quadrícula como uma "máquina reformista"): era nessa ação contraditória e
conflituosa que havia sido formado o tabuleiro público sobre o qual a sociedade
suburbana pôde começar a produzir esse novo dispositivo, o bairro. É por isso
que o bairro em Buenos Aires não é um lugar antropológico, como na tradição
urbana européia, mas um lugar político, um espaço público, que possibilitou a
cidadania moderna com seus ideais de progresso urbano, ainda que, para se
converter em bairro, tivesse que inventar rapidamente uma mitologia de origem
através do tango, do futebol e da literatura de vanguarda. Na base desse
processo cultural, social e político, estão esses dois artefatos urbanos: a
quadrícula e o parque, formando um oximoro pleno de conseqüências.
De fato, dando status de plano urbanístico à proposta de 1898-1904, o seu
trabalho inverte a leitura corrente sobre o desenvolvimento urbano de Buenos
Aires, que tendia a tomá-la como cidade européia e lança, assim, um novo olhar
sobre a chamada "haussmannização" da cidade, apontando para os limites do
conceito de "influência". Gostaríamos que você falasse um pouco sobre esses
limites e como você procurou superálos mediante o conceito de transculturação
elaborado pelo crítico literário uruguaio Ángel Rama.
A historiografia tradicional havia visto a modernização da cidade latino-
americana como uma cópia degradada da proposta haussmanniana, numa
interpretação muito marcada ideologicamente. Estou me referindo à
historiografia hispano-americana, já que a brasileira tem uma relação menos
conflituosa, digamos, com a modernidade. O mainstream dessa historiografia tem
uma matriz fortemente nacionalista e populista, que vê a modernização como um
rompimento e até como uma traição às raízes espanholas e católicas, uma espécie
de entrega do patrimônio cultural ao cosmopolitismo e a um novo domínio
europeu. A revisão da especificidade da modernização de Buenos Aires à qual me
vinculo foi, em primeiro lugar, uma reação contra esta historiografia que
identificava modernização e haussmannização, e ambas com "dependência
cultural". Não se tratava, é óbvio, de "defender" a modernidade urbana, mas de
compreendê-la, entendendo, ao mesmo tempo, que numa cidade como Buenos Aires
essa é a única tradição realmente existente. Mas isso colocou em foco uma
questão maior, a de como pensar o impacto das idéias "centrais" em nossas
culturas "periféricas", deixando de fora a redução que a noção de "influência"
traz; tema que no campo literário brasileiro havia produzido reflexões maduras
e sofisticadas, como as de Antonio Candido e Roberto Schwarz, análogas às que
Ángel Rama estava produzindo, com o uso enriquecido da noção de
"transculturação". Mas essa renovação teórica demorou a chegar aos temas da
cidade e da arquitetura, como revelam os próprios trabalhos de Rama ou Schwarz
ao se referirem às "máscaras" do ecletismo fin-de-siécle da arquitetura latino-
americana, como se fosse um problema específico do espírito de cópia local,
quando, na verdade, a luta pela "autenticidade" contra as "máscaras ecléticas"
dominou todo o debate europeu desde a crise da Academia de Belas Artes na
segunda metade do século XIX até as vanguardas.
De meu ponto de vista, o que deveria ser transferido do mundo da crítica
literária e sociológica para o campo da compreensão da cidade é o fato de que a
modernidade supõe uma globalização dos contatos culturais, e que se todas as
culturas estão tomando elementos às outras, isso não pode mais ser pensado como
um traço endêmico dos países dependentes. De fato, e utilizando a fórmula de
Carlos Real de Azúa, não tem sentido falar de "dependência" em termos
culturais, mas de "interdependência desigual": existe o domínio e, por isso, há
desigualdade entre as partes, mas o domínio não afeta da mesma maneira as
diversas dimensões, econômicas, políticas, sociais ou culturais, que entram em
jogo nesses contatos. Napoleão III também "copiou" a modernização dos parques
de Londres nas orientações que deu ao Barão Haussmann para seu projeto
parisiense. Em todo caso, o problema mais interessante para formularmos é o que
faz desse olhar de Paris sobre Londres menos desigual do que aquele que Buenos
Aires ou Rio de Janeiro vão lançar, em seguida, sobre Paris. Por outro lado. se
retomamos a idéia de "influência", vale dizer que ela supõe uma viagem de mão-
única entre um "centro" criador e a "periferia" imitadora. Mas na modernidade
nunca há apenas um só centro que domine toda a relação cultural - como bem
mostra Edward Shils -, há vários "centros" em competição, que oferecem modelos
diversos entre os quais os vários setores da cultura "periférica" fazem suas
escolhas. Porque, nessa interdependência desigual e múltipla, há escolhas, não
apenas perdas, e como ensina Rama, o contato "transculturador" é presidido pela
"flexibilidade cultural", ou seja, nesse processo se inventa a idéia mesma de
tradição e se produz um novo objeto cultural que nem sempre chega a oferecer
grande originalidade, mas que é sempre singular. É essa singularidade que o
historiador cultural deve compreender.
No caso do impacto das idéias haussmannianas em Buenos Aires, há que se atentar
ainda para duas coisas específicas: uma, que o apelo a Haussmann já era, no
final do século XIX, uma fonte de prestígio entre os dirigentes urbanos em todo
o mundo, e a segunda, que o objetivo das autoridades municipais nessa cidade
era o inverso do de Haussmann em Paris. As grandes diagonais não serviam aqui
para racionalizar um traçado labiríntico, como o da Paris medieval, mas para
oferecer "perspectivas pintorescas" no monótono (e racional) tabuleiro
colonial, diferença que cria interessantes mal-entendidos. Assim, por mais que
tenham chamado o prefeito Torcuato de Alvear de "o Haussmann argentino", e por
mais que ele mesmo acreditasse sê-lo, seu plano de modernização teve efeitos
únicos e singulares. O plano de Alvear tinha uma indubitável componente
"francesa", mas muito anterior a Haussmann, pois provinha da mesma tradição da
que o próprio Barão havia se alimentado em sua época: da longa tradição
politécnica (napoleônica), que estava presente em Buenos Aires desde o começo
do século XIX - como demonstrou esplendidamente Fernando Aliata em La ciudad
regular: arquitectura, Programas e instituciones en el Buenos Aires
posrevolucionario, 1821-1835.
Essa forma distinta de ver a capital argentina é um modo muito sofisticado de
contar a história da cidade, que geralmente é analisada ou sob um ponto de
vista urbanístico, mais técnico, por assim dizer, ou apenas na chave das
transformações culturais. O que você faz é propor uma trama de abordagens e
significações que vão tecendo esta história, reconstruindo o que já foi dito,
visto agora por diversos prismas. Gostaríamos que falasse um pouco sobre esse
modo de pensar a cidade e a constituição de uma nova disciplina: a história
cultural urbana.
Eu não diria que seja uma nova "disciplina", mas que se trata de um cruzamento
de perspectivas. Tentar pensar a história cultural urbana como uma disciplina
seria supor prolegômenos de leitura e corpus teóricos específicos, e me parece
que isso é absolutamente impossível e até mesmo indesejável. Sempre se soube
que não pode haver uma teoria da cidade, porque a cidade é um objeto aberto,
multifacetado, que recusa toda intenção de redução teórica. Mas, se para os
campos tradicionais de conhecimento urbano (como a sociologia urbana, por
exemplo) isso sempre pareceu ser uma desvantagem, uma falha que deveria ser
resolvida, a riqueza da história cultural urbana está no fato de que, pelo
contrário, ela pode aproveitar o potencial que reside nessa "falha" e, assim,
obter uma visão muito mais rica da cidade. A história cultural urbana abrese a
todas as disciplinas que tenham algo a dizer sobre a cidade, e com isso
redefine todas as questões que giram em torno dela: a literatura, a política, a
sociologia, a arquitetura, que também acabam reformuladas ao passarem pelo
filtro da cidade. A perspectiva que desenvolvo é a de ver a cidade como um
objeto que ao mesmo tempo em que está atravessado por todas essas lógicas, que
supõem disciplinas específicas, tem também uma lógica própria. Uma história
cultural urbana deve entender quais dessas lógicas se cruzam produtivamente em
cada momento da cidade. Por exemplo, quando estudo Borges nos anos de 1920, é
evidente que ele está olhando e interpretando a mesma Buenos Aires atravessada
por processos urbanos e estruturais que a estavam transformando profundamente.
Isso se percebe tanto em sua literatura como nas extraordinárias fotografias
desse companheiro de caminhada de Borges, que é o fotógrafo Horacio Coppola. O
que eu quero dizer é que a poesia e os ensaios de Borges nos anos de 1920 são
sensíveis às transformações da cidade e que tratam também de dar sentido a ela.
Não é somente o que Borges diz da cidade, mas o que Borges faz na cidade e o
que a cidade faz em Borges. Isso só é compreensível quando se percebe a lógica
literária, cultural ou política atuando na própria lógica urbana e, vice-versa,
a lógica urbana atuando nas demais. Por isso digo que se trata de um problema
de perspectiva. O desafio é identificar quais são os pontos de interseção (e
quais os momentos em que ocorrem) onde as distintas lógicas sejam igualmente
potentes. Por isso, nem todos os escritores que escrevem sobre uma cidade são
interessantes para pensá-la, e esse é outro problema a ser enfrentado, porque o
objetivo da história cultural urbana é construir um objeto que ilumine com a
mesma potência a literatura (por exemplo) e a cidade, de forma que não se
busque na literatura algo que já se sabe sobre a cidade por outras fontes, nem
se utilize a cidade para "ilustrar" a literatura. Trata-se de pensar relações
entre cidade e sociedade, entre cultura material e história da cultura, o que
também significa pensá-la entre os diferentes tempos que a atravessam. Para
isso, o caminho da história cultural urbana é começar a se perguntar, de modo
aparentemente banal, por que a cidade é como é, por que suas formas são como
são, e de que modo essas formas se relacionam com a cultura, a sociedade e a
política. E, de outro lado, buscar a cultura, a sociedade e a política nas
formas da cidade, nos próprios processos materiais, nas discussões e nos
projetos que a idealizaram, nas suas representações. E também perceber o que,
no meio disso tudo, pode produzir interpretações novas - pelo menos, essa é a
aposta. Em nossas tradições historiográficas continua predominando um forte
"conteudismo": as formas são a aparência enganosa que se deve superar, o
reflexo especular, ideológico, de outra instância em cuja superfície a chave do
real deve ser lida de forma invertida. A história cultural urbana recoloca essa
questão, não porque suponha que todas as respostas às indagações históricas
possam ser encontradas nas formas da cidade, mas porque, ao situar essas formas
como protagonistas, organiza uma nova agenda de problemas, obrigando a fazermos
novas perguntas que redefinem toda a problemática histórica. Acho que esse é o
ponto: unir as diferentes visadas sobre a cidade para poder entendê-la em sua
completude e, mais ainda, para produzir uma nova visão sobre ela. Isso é a
história cultural urbana e essa pode ser a sua contribuição aos outros campos
do conhecimento.
[*] As autoras agradecem a colaboração de Fernanda Peixoto, Raquel Imanishi,
Laura Sokolowicz e Ana Lanna
[1] Referência à Introdução do livro La sfera e il laberinto: avanguardie e
acrchitettura da Piranesi agli anni 70 (1980).