Compreendendo a "África" e a "negritude" na Colômbia: a música e a política da
cultura
Introdução
Na Colômbia dos anos noventa, as idéias de "negritude" e "África", esta em
menor grau, ganharam uma importância política e cultural que tem poucos
precedentes na história republicana do país. Desde a reforma constitucional de
1991, as "comunidades negras" passaram a ter grande visibilidade na arena
pública e política, principalmente graças à inclusão de referências a elas na
nova Constituição e à promulgação subseqüente da Lei das Comunidades Negras
(Lei 70, de 1993), que concedeu direitos de posse da terra a algumas
comunidades negras da região colombiana costeira banhada pelo Pacífico uma
área cuja população é 80-90% negra e previu a participação das comunidades
negras na vida política e econômica da nação (Arocha, 1992; Grueso, Rosero e
Escobar, 1998; Pardo, 2000; Wade, 1995). O reconhecimento estatal das
comunidades negras como objeto de atenção caminhou de mãos dadas com a
organização e o ativismo políticos dos negros, embora, em formas mais
limitadas, isso tenha precedido a legislação de 1991 e 1993 em cerca de trinta
anos.
A idéia de "África" é acarretada, em maior ou menor grau, pela rápida expansão
popular da "negritude"; a legislação estatal (sobre a educação, por exemplo)
agora faz referência aos afro-colombianos, ao lado da expressão "comunidades
negras", que era mais comum no início da década de 1990. A "África" também é um
ponto de referência central para muitas outras pessoas que se envolvem no
estudo e na organização política dos negros. A história desse interesse pela
África remonta a alguns anos atrás, nos círculos acadêmicos, embora tenha sido
uma pequena preocupação da história e da antropologia colombianas, comparada ao
interesse pelos povos indígenas. O jesuíta José Arboleda, aluno colombiano do
antropólogo norte-americano Melville Herskovits, escreveu uma tese de mestrado
sobre a etno-história dos "negros colombianos" em 1950, e vários outros
compartilharam seu interesse pela sobrevivência de africanismos na cultura
colombiana (ver Friedemann, 1984; Wade, 1993, cap. 2; ver também Del Castillo,
1982; Granda, 1977; T. Price, 1955).
Mais recentemente, esse interesse pela África foi assumido com vigor renovado
pelos antropólogos Nina de Friedemann e Jaime Arocha (Arocha, 1991, 1996 e
1999; Friedemann, 1993; Friedemann e Arocha, 1986). Para eles, esta não é uma
simples questão acadêmica. Ambos contestaram o que Friedemann (1984) chamou de
"invisibilização" dos negros nas definições homogeneizantes da nação
colombiana; ambos participaram do processo de reforma constitucional e da
redação da Lei 70. A idéia de "África" é uma referência crucial para esses
estudiosos, tanto para compreender a cultura "afro-colombiana" ' aliás, o termo
"afro-colombiano" deve parte de sua popularidade atual ao uso que esses autores
fizeram dele ' quanto para contestar a marginalização dos negros no país, na
batalha contra o racismo. Friedemann e Arocha criticaram o conceito
herskovitsiano da simples sobrevivência de determinados traços culturais
africanos, que persistiriam mais ou menos inalterados nos contextos americanos.
Eles preferem a idéia de "orientação cognitiva", que adotaram de Mintz e Price
(1976), para ligar a África e a América. Tal visão sugere que os povos
africanos do Novo Mundo compartilhavam alguns princípios culturais básicos,
alguns valores e modos de pensar que moldaram a maneira como eles desenvolveram
novas formas culturais nas Américas. Isso deu origem ao que Arocha e Friedemann
chamaram de huellas de africanía [vestígios de africanismo].
Também para os ativistas culturais negros, a imagem da "África" tem uma
importância crescente. No passado e ainda hoje, muitas organizações culturais
negras da Colômbia buscaram inspiração nos Estados Unidos (Wade, 1995). Para as
populações rurais negras da região da costa do Pacífico, na Colômbia de hoje a
idéia de origens africanas não costuma fazer parte de uma memória coletiva nem
de uma tradição oral (Losonczy, 1997:354; Restrepo, 1997:302). No início dos
anos 90, algumas organizações negras estavam fazendo uma referência mais
explícita à África como fonte de símbolos e aspectos de uma identidade coletiva
(Restrepo, 1997:300). Em 1992, constatei que uma ONG negra da cidade portuária
de Buenaventura, no Pacífico, enfeitou seus escritórios com um cartaz que
arrolava as divindades iorubas, bem como com uma série de nomes africanos que
os ativistas da organização às vezes usavam para se identificar. Entretanto,
era muito raro ouvir referências a tais nomes na prática cotidiana. Numa longa
entrevista com alguns líderes dessa ONG (ver Escobar e Pedrosa, 1996:245-265),
a ausência da "África" tornou-se visível. Do mesmo modo, um exame da
documentação produzida por várias ONGs negras, na década de 1980 e no início da
de 1990, reforça a impressão de que, nessa época, a "África" não era um grande
ponto de referência, embora tenha ocorrido com maior freqüência no uso do termo
"afro-colombiano", no início dos anos 90. Ao contrário, a figura do cimarrón
(escravo fugitivo) e da palenque (comunidade de escravos fugidos) eram
referenciais mais comuns (Wade, 1995), e, conquanto essas figuras pudessem ser
ligadas à idéia de África, a conotação não era necessariamente muito explícita.
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No fim da década de 1990 e nos primeiros anos do século XXI, todavia, a idéia
da África passou a ganhar importância e visibilidade pública. Os termos "afro-
colombiano" e, em época mais recente, afro-descendiente, tornaram-se mais
comuns, e os vínculos com a África são explícitos, por exemplo, nos textos
recentes sobre o novo currículo afro-colombiano (por exemplo, Rovira de Córdoba
e Córdoba Cuesta, 2000; Ministerio de Educación Nacional, 2001). O ano de 2001
comemorou o 150º aniversário da abolição da escravatura na Colômbia, e deu
ensejo ao reconhecimento público das ligações dos afro-colombianos e dos
colombianos em geral com a África.
Em suma, no início dos anos 90, a "negritude" causou um impacto muito
significativo no panorama político e cultural do país, enquanto a "África" teve
uma influência menor. Nos últimos anos, todavia, embora a "negritude" continue
a ser uma idéia e um símbolo importantes, a noção correlata de "África" vem
ganhando peso.
Minha abordagem do contexto colombiano nunca negou os africanismos na cultura
colombiana, ao contrário do que dizem algumas críticas feitas a meu trabalho.
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Entretanto, enfatizei o modo como os negros colombianos usaram uma ampla
variedade de fontes culturais ' africanas, européias e indígenas ' para criar
novas formas identificadas como "negras" no contexto colombiano (Wade, 1993).
Com a nova ênfase da Colômbia ' especialmente da antropologia colombiana ' nos
africanismos, penso que alguns esclarecimentos se fazem necessários.
Teoricamente, trata-se de fazer um balanço entre a mudança e a continuidade, e
de apreender a construção discursiva da cultura ' nesse caso, os africanismos '
e a cultura "como tal". A continuidade pode existir, primeiro, na persistência
de traços africanos muito específicos na cultura afro-colombiana, tais como
enterrar a placenta sob uma árvore (Arocha, 1999; T. Price, 1995). Nesse tipo
de caso, a mudança seria concebida em termos do simples desaparecimento do
traço em si. Segundo, a continuidade pode existir na maneira como certas
orientações cognitivas ou certos princípios culturais subjacentes ' derivados
da África e que ganharam forma nos processos iniciais de crioulização ocorridos
nos portos escravagistas da África, nos navios negreiros e nas sociedades
escravocratas nascentes do Novo Mundo ' moldam e estruturam o desenvolvimento
contínuo de padrões culturais nas Américas. Nesse tipo de situação, a mudança é
parte integrante da maneira como se dá a continuidade: um princípio cultural
básico ' por exemplo, uma idéia estética sobre o que possa compor um desenho
agradável na forma ou na cor ' pode ser transmitida pela prática cotidiana de
gerações e influenciar esferas de atividade tão variadas quanto os projetos de
casas, a agricultura e a fabricação de tecidos. A idéia subjacente manifesta-se
de muitos modos diferentes, à medida que se alteram os contextos históricos
(Price & Price, 1999, cap. 8).
Essas duas formas de continuidade estão incorporadas no conceito de huellas de
africanía e ambas têm por foco as continuidades com a África. Entretanto, a
preocupação excessivamente intensa com essas formas de continuidade pode
acarretar o risco de nos cegar para o modo como os afro-colombianos criaram
novas formas de cultura a partir de muitas fontes diferentes, usando elementos
particulares e princípios culturais de fontes diversas, a fim de criar para
eles mesmos e para outras pessoas algo que seja identificável como cultura
"negra" ou "afro-colombiana", ou como configurações regionais particulares da
cultura (por exemplo, da região da costa do Pacífico) associadas à negritude.
Nesse processo, entra ainda em jogo um senso de continuidade, mas ele deriva do
modo como as pessoas, afro-colombianas e outras, percebem e categorizam aquilo
que vivenciam, e tentam construir para si e para terceiros um mundo
significativo. Trata-se, basicamente, de processos discursivos de construção
cultural que usam rótulos como "negro", "afro-colombiano" ' ou, com igual
probabilidade, um rótulo regional como costeño (costeiro, isto é, da região
costeira banhada pelo Pacífico ou pelo Caribe) ' para categorizar práticas
culturais que podem vir das mais diversas fontes e ser um produto permanente de
hibridizações infindáveis. Um aspecto-chave desses processos são as relações de
dominação cultural e as ideologias nacionalistas de blanqueamiento
(embranquecimento cultural e biológico), segundo as quais a cultura negra
geralmente é vista como inferior e retrógrada, ao passo que o progresso
nacional é associado a uma crescente branquidade cultural e física. Um
importante elemento de continuidade deriva do fato de que o mundo não-negro da
Colômbia geralmente deseja definir tudo o que é feito pelos negros ' e o que
eles fazem se modifica o tempo todo, historicamente ' como "cultura negra" e,
por conseguinte, inferior e talvez ameaçadora. Do mesmo modo, um poderoso fator
de continuidade deriva do fato de que os afro-colombianos reconhecem esse
processo de rotulação e tentam lidar com a situação em que ele os coloca ' quer
mantendo suas próprias práticas culturais, quer tentando evitar o estigma da
inferioridade, modificando-se e modificando suas práticas culturais (ou
questionando todo o sistema de valores que os define como inferiores).
Meu objetivo neste artigo, portanto, de modo algum é negar os africanismos na
cultura colombiana ' é incontestável que eles estão presentes, é politicamente
importante revelá-los, e não há dúvida de que a pesquisa etnográfica e
arquivística rigorosa (por exemplo, do tipo da conduzida por Richard e Sally
Price [1999] sobre os descendentes Samaraka de escravos fugidos) revelará
outras influências africanas ainda mais sutis. Meu objetivo, antes, é mostrar
que o que se considera "africano" ou "negro" na Colômbia tem variado,
historicamente, de acordo com muitos fatores. Essas categorias foram
discursivamente construídas de maneiras complexas, e não é fácil separarmos os
africanismos "como tais" do modo como as pessoas percebem e falam da negritude
e da África. Quero também mostrar que, nesse campo discursivo, há certas
continuidades geradas pelas hierarquias da raça, da classe e do gênero, dentro
das quais se fazem atribuições e reivindicações de identidade negra e não-
negra. Se os diversos estilos musicais diferentes que se associam à negritude
são persistentemente vistos como "primitivos" na Colômbia, isso derivou tanto
de certas continuidades musicais básicas, algumas enraizadas na África, que
ligaram formas musicais mutáveis e "modernizantes" (por exemplo, a importância
dos ritmos dos tambores), quanto do fato de que, sejam quais forem as origens
da música, ela é classificada pelos não-negros, se estiver associada à
negritude, como "primitiva", mas "excitante", de algum modo. Esses dois
processos se entrelaçam e são muito difíceis de separar. Sally e Richard Price
(1999) usaram a noção de "o mesmo mutável", expressão cunhada por Leroi Jones
(também conhecido como Amiri Baraka), para evocar a abordagem de tais
processos. Poderíamos igualmente usar essa expressão para evocar o tipo de
continuidade estrutural a que me refiro, no qual "a continuidade cultural
aparece como a modalidade de mudança cultural" (Sahlins, 1993:19). Em outras
palavras, a tentativa de as pessoas manterem para si (e para os outros,
acrescentaria eu) uma continuidade cultural, ou uma diferença cultural, é a
modalidade da mudança cultural; ao sustentarem essa diferença ' que é, em
termos cruciais, um sentimento de diferença ' elas se valem do que quer que
pareça funcionar, quer se trate de "suas próprias tradições", quer de alguma
outra coisa.
A "África" e a "Negritude" na música popular colombiana, décadas de 1920 a 1950
3
Nas disciplinas acadêmicas do século XX e nos círculos estatais da Colômbia, os
negros não foram objeto de atenção ou legislação; eram "invisíveis"
(Friedemann, 1984). Na cultura e na literatura populares da Colômbia do fim do
século XIX e do século XX, houve muito mais interesse nos negros e/ou na
negritude como símbolo (por exemplo, na música). Esse interesse era limitado e,
muitas vezes, situava os negros numa posição social inferior, atribuindo-lhes
um caráter exótico ou aviltando-os explicitamente; mas os negros não eram, de
fato, "invisíveis", ainda que aspectos importantes de sua identidade fossem
apagados. Em certo sentido, apagar efetivamente os negros (ou os índios) das
representações da nação ia de encontro a toda a ideologia da mestizaje
(mestiçagem) em que se basearam ' e ainda se baseiam, em grande medida ' as
idéias da nacionalidade colombiana (Wade, 1998, 2000).
Há aí dois aspectos a destacar. Primeiro, a ideologia nacionalista da
mestiçagem implica, automaticamente, os troncos nocionais originais envolvidos
na criação da nação mestiça ' africanos, índios americanos, europeus ' e, por
conseguinte, reafirma a existência deles, ao mesmo tempo em que contempla seu
eventual desaparecimento. Entretanto, a eliminação completa dessas origens
ameaça roubar do país sua autodefinição como mestiço: sem a presença dos
ingredientes originais, o processo contínuo de mistura perde o sentido. A
ideologia da mestiçagem implica uma mescla contínua, assim como uma separação
contínua. Em segundo lugar, a ênfase constante na diferença racial é central
para a definição das elites como superiores ' mais brancas, mais ricas, mais
centrais, mais "civilizadas", mais "modernas", e assim por diante. Os negros e
índios são não apenas identificados como racialmente distintos, mas também
freqüentemente associados à pobreza, à marginalidade, à vulgaridade e ao
atraso.
Assim, se examinarmos a Colômbia, digamos, nas décadas de 1920 e 1930, veremos
que a negritude (e às vezes, por extensão, a "África") não estavam ausentes,
mas desempenhavam um papel específico. Como mostrei anteriormente (Wade, 1993:
16-17), os autores da elite podiam assumir posturas muito diversas. Luis López
de Mesa escreveu, em 1934, que "nós [os colombianos] somos a África, a América,
a Ásia e a Europa, todas de uma vez, sem grave perturbação espiritual". Embora,
ao mesmo tempo, ele depreciasse bastante os negros de sua época, não era tão
negativo quanto seu par, Laureano Gómez, que, numa palestra de 1928, afirmou
que as heranças negra e índia eram "marcas de completa inferioridade". Embora
as opiniões dos dois divergissem até certo ponto, esses autores convergiram ao
escrever sobre a negritude e a África, no contexto da definição do país e de
suas possibilidades. O que quer que eles pensassem da negritude e da
africanidade ganhou forma a partir desse contexto: as duas características eram
vistas como contribuindo para um processo de mistura permanente e eram
definidas em termos do que teriam a oferecer à nação como ingredientes básicos
' a força, a energia e o trabalho árduo figuravam entre as virtudes que esses
autores costumavam sublinhar, enquanto a preguiça, a tibieza moral e a
irracionalidade eram os vícios que eles temiam. Entretanto, é claro que o
próprio contexto da nação estava sendo formado por idéias preexistentes da
negritude. Obviamente, as visões estereotipadas sobre o que os negros teriam a
oferecer à nação não estavam desvinculadas das visões elitistas estereotipadas
que existiam sobre os negros no fim do período colonial na América Latina. Aí
podemos ver elementos de continuidade ligados a hierarquias persistentes de
poder e à hegemonia da elite "branca".
A nacionalização da cumbia e do porro
Para ilustrar com mais exatidão esse processo, examinarei algumas mudanças do
cenário musical colombiano ocorridas entre a década de 1920 e a de 1950, em
paralelo a mudanças havidas em outros países latino-americanos que, em geral
bem antes disso, assistiram ao despontar de formas populares urbanas
"nacionais", como o tango, na Argentina, a rumba, em Cuba, o samba, no Brasil,
e a rancheira, no México. Na Colômbia, vários tipos de música, entre eles o
porro e a cumbia, surgiram como estilos comerciais nacionais durante esse
período (Wade, 1998, 2000). Não só tiveram sucesso em âmbito nacional, em
termos puramente comerciais, como também se tornaram ícones nacionais. A
cumbia, em particular, passou a representar a música popular colombiana no
exterior, aproximadamente desde a década de 1960, mas o porro já exercia tal
papel antes dessa data. Esses gêneros, geralmente conhecidos como música
costeña ou música tropical, vieram da zona costeira caribenha do país, la
costa. Essa região tem uma população mista, com grupos significativos de índios
em algumas áreas bastante periféricas, e com um grande número de mestiços entre
cujos ancestrais se incluem muitas heranças africanas e índias, bem como
européias. Há também um grande número de pessoas "negras", embora o termo exato
usado por elas para se descreverem, ou usado por outras pessoas para descrevê-
las, dependa de uma multiplicidade de fatores contextuais. Essa região tem a
imagem de ser um lugar relativamente "negro" e a música a ele associada nas
décadas de 1930 e 1940 fez parte dessa imagem (Wade, 2000).
Antes do sucesso dessa música, a música "nacional" da Colômbia era um estilo
associado ao interior andino do país, uma região que é central em termos
geográficos, econômicos e políticos, além de muito "mais branca". Essa música
era chamada de bambuco e consistia em canções executadas em vários tipos de
violão, com acompanhamento de uma percussão leve. Como forma musical
considerada a essência da nacionalidade colombiana, havia bastante interesse e
debate a respeito de suas origens. A negritude fez parte dessas discussões. Os
debates sobre a origem dessa música versaram sobre as contribuições relativas
dos elementos constitutivos da tríade africano-índio-europeu, que é
constantemente invocada em tais discussões na Colômbia; de algum modo, tudo tem
que remontar a essas origens. Entretanto, pessoas diferentes davam pesos
diferentes a cada pólo da tríade. Algumas consideravam que esse gênero musical,
e especificamente seu nome, derivavam da África; outras lhe atribuíam uma
origem européia ou, pelo menos, enraizada na região andina da Colômbia. Esses
debates prosseguem até hoje (Ochoa, 1997).
Em relação ao porro e à cumbia, houve menos ambigüidade quanto à presença de
elementos negros, africanos e indígenas, em parte pela associação desses
estilos com a região costeira do Caribe. Contudo, exatamente o que havia de
"negro" nessa música e o que significava a negritude eram muito passíveis de
interpretações múltiplas, mais ainda do que no caso do bambuco. Para apreender
esse dado, precisamos saber um pouco mais sobre como essa música surgiu e
ganhou impacto nacional.
Em toda a América Latina e no Caribe, a partir de 1900, as cidades tiveram um
crescimento rápido, a industrialização aumentou, as populações rurais mudaram-
se para áreas urbanas e o espaço urbano tornou-se mais estratificado em termos
de classes. A música popular urbana começou a se consolidar mais ou menos na
época em que se instalaram as indústrias radiofônicas e fonográficas, primeiro
nos Estados Unidos, entre 1900 e 1920, e logo depois no restante das Américas.
Os estilos de música popular urbana preferidos pelas classes proletárias foram
apropriados pelas classes médias como símbolos da cultura nacional (samba,
tango etc.). Na Colômbia, a música popular vinda da América Latina, do Caribe,
da América do Norte e da Europa ficou em moda nas cidades na década de 1920.
Nessa época, o produto "nacional" ainda era o bambuco, que já fora gravado por
alguns artistas colombianos em Nova York. Na Colômbia, assim como no resto das
Américas, surgiram conjuntos instrumentais locais [semelhantes às jazz bands
norte-americanas], que executavam uma ampla variedade de canções populares.
Embora não tardassem a aparecer por todo o país, essas bandas foram
inicialmente vistas na região costeira do Caribe, em parte por sua própria
localização e, em parte, pela influência de muitos imigrantes estrangeiros em
portos como Barranquilla.
Os conjuntos instrumentais de Barranquilla e outras cidades regionais começaram
a incluir estilos que se dizia provirem da área rural dessa região. O porro era
um desses estilos e veio do repertório dos conjuntos de instrumentos de sopro
que tocavam nas festas provinciais ' conjuntos que constituíram uma tendência
não só na Colômbia, mas em toda a América Latina, a partir do início do século
XIX ' e que, por sua vez, teriam absorvido os estilos camponeses e "inventado"
o porro. Os líderes desses conjuntos musicais às vezes vinham de cidadezinhas
provincianas ou até da zona rural, havendo-se formado em bandas de instrumentos
de sopro e mantido o contato com grupos musicais camponeses. Em sua forma
orquestral, o porro e outros estilos correlatos popularizaram-se nos clubes
sociais de elite das cidades costeiras, embora, a princípio, tenham deparado
com uma certa resistência, por serem considerados excessivamente plebeus e
vulgares ' e demasiado "negros" ' por algumas pessoas. Partindo da região
costeira do Caribe, eles penetraram nas cidades do interior, como Bogotá,
Medellín e Cáli, com bandas como a de Lucho Bermúdez, que foi uma figura de
destaque nesse processo. No fim da década de 1940, essa música costeira era um
sucesso nacional e havia começado a definir a música popular colombiana no
exterior. Essa música também teve uma acolhida hostil por parte de alguns
comentaristas das cidades do interior, sendo considerada musicalmente
desagradável, licenciosa, vulgar e demasiadamente negra e africana.
Qual era o contexto global em que diferentes pessoas definiam a "negritude" ou
faziam referência à "África" ao falarem da música costeira? O principal quadro
de referência era a nação. O nacionalismo raras vezes foi extremamente
passional e intenso na Colômbia (Bushnell, 1993), mas, durante as primeiras
décadas do século XX, entraram em marcha alguns processos rápidos de
modernização, que fizeram da nação, seu passado e seu futuro um conceito
importante. Para muitos comentaristas da elite e da classe média, a idéia de
negritude era algo a ser superado, já que cheirava a falta de "cultura" (isto
é, refinamento), conforme definida pelos padrões das elites européia e norte-
americana. Assim, um comentarista de jornal lamentou a perda de certos costumes
festivos "tradicionais" do Natal. Estes tinham sido sobrepujados por "uma
orquestra explosiva de sons africanos [que] agora ameaça festividades das quais
estão ausentes o sentimento e a simplicidade típicos das comemorações
anteriores" (El Tiempo, 17 de dezembro de 1940:5). Outro autor descreveu danças
contemporâneas de Bogotá em que "os tambores batem e os integrantes da
orquestra gritam com trágica fúria, como se estivessem dando tempero a um
alegre piquenique para algum 'mister' [isto é, patrão branco] numa selva da
Oceania" (Sábado, 3 de junho de 1944:13). A referência à Oceania, em vez da
África, obedecia a uma tendência primitivista da época a fundir as duas
(Rhodes, 1994) e o sentido geral fica claro: a música costeira era vista como
não-nacional, negra e primitiva, além de sumamente emocional, exagerada e
incontida (os homens "berravam" num caos emocional de tragédia, fúria e
alegria). Assim, a negritude e a "África" adquiriram significado num discurso
de nacionalismo que buscava para o país um futuro europeizado, e era proferido
por uma elite propensa a destacar seu próprio status, vilipendiando a cultura
popular.
O discurso nacionalista faz referência a um contexto internacional, já que a
"nação" só existe em relação a outras nações, e isso nos leva a uma segunda
dimensão transnacional em que a negritude e a africanidade foram construídas.
Na Europa e na América do Norte ' justamente os centros para os quais se
voltavam muitas pessoas da elite e da classe média colombianas, para definir as
idéias de "cultura" ', o primitivismo, durante as primeiras décadas do século
XX, foi uma tendência importante nas correntes do modernismo. A arte
primitivista, o Renascimento do Harlem, Josephine Baker e o bronzeado como
estética da elite, tudo isso agitava os mundos da moda e das artes (Barkan
& Bush, 1995; S. Price, 1989; Rhodes, 1994; Torgovnick, 1990). A África e a
negritude foram sendo construídas de modos que nada tinham de novos ' como
poderosas, sensuais, rítmicas, emocionais, autênticas, brutas e belas ', mas
que eram mais positivos, ainda que altamente exoticistas. Ser moderno e, em
especial, estar na moda podiam incluir o contato com a negritude dessa maneira
primitivista.
Na Colômbia, essas correntes do modernismo e do primitivismo também se fizeram
sentir e foram ligadas à região da costa do Caribe (cf. Moore, 1997, sobre
Cuba). Gilard (1991) mostrou que um dos únicos jornais de vanguarda da
Colômbia, o Voces (1917-1920), veio do porto caribenho de Barranquilla. Afirmou
também (1986, 1994) que, na década de 1940, surgiu uma négritude literária que
influenciou as elites intelectuais de Bogotá. O livro Tambores en la noche, do
poeta negro Jorge Artel (1940), retratou a cultura negra da região costeira do
Caribe como repleta de sensualismo, música e ritmo além de dor e tristeza.
Ele foi lido por intelectuais de Bogotá, inclusive pelo poeta Eduardo Carranza,
que escreveu: "Artel tem a voz melodiosa da raça escura" (1944). O escritor
negro Manuel Zapata Olivella foi também uma figura importante da época: levou
músicos costeños a Bogotá para apresentações "folclóricas" e publicou romances
sobre a zona costeira do Caribe, enquanto seu irmão, Juan, em 1940, deu início
a "La hora costeña", um programa de rádio de Bogotá que transmitia música
popular costeña. Zapata Olivella também esteve ligado ao chamado Grupo de
Barranquilla, um grupo de escritores e jornalistas surgido na década de 1940 e
que incluiu Gabriel García Márquez, que então escrevia para jornais costeños.
Ao mesmo tempo, pintores costeños como Alejandro Obregón e Enrique Grau
trabalharam com temas sensuais e cores vivas em seus quadros, às vezes usando
negras em sua pintura (Medina, 1978:367).
Em muitas esferas artísticas, portanto, uma negritude primitivista estava
ficando cada vez mais em voga, impulsionada por um modernismo artístico
transnacional que tinha, na Colômbia, uma sólida base na região costeira do
Caribe. Esses vínculos da região e sua música com uma modernidade transnacional
foram reforçados pela popularidade da música de influência negra, comumente
música para dançar, que estava despontando no rápido desenvolvimento de uma
indústria fonográfica internacional sediada em Nova York, mas que, desde os
primeiros estágios, foi sumamente transnacional, em termos de suas estratégias
de gravação e suas redes de comercialização.
Assim, a negritude tornou-se interpretável como moderna e elegante ' o
colunista que associou o porro à Oceania também pilheriou dizendo que "o
modernismo exige isto: que dancemos como os negros para estar na moda" (Sábado,
3 de junho de 1944:13) ' e a modernidade era uma meta a que os nacionalistas
aspiravam. Algumas das contradições implicadas nisso puderam ser resolvidas
explorando-se as ambivalências gêmeas da negritude e da modernidade. A
modernidade costumava ser considerada boa, quando implicava progresso, avanço
científico e tecnológico, aperfeiçoamento educacional e cultura "refinada", mas
também podia implicar alienação, perda da tradição, imitação servil de exemplos
estrangeiros, consumismo vulgar e devassidão moral. Similarmente, a
ambivalência da negritude, que antecedia em muito ao modernismo primitivista do
início do século XX, significou que ela podia ser vista pelos não-negros como
má e ameaçadora, mas também como dotada de poderes especiais. Se, nesse momento
histórico, a negritude vinha sendo associada a uma modernidade elegante, também
podia ser interpretada como nada além da "moda" ' quando muito, um simples
modismo e, na pior das hipóteses, uma ameaça à cultura e à moral nacionais.
O colunista que percebeu com tanta clareza a ligação entre o modernismo e
"dançar como negros" também mencionou que, no cenário da época, a cultura
considerada como estando na moda era a que tinha "o cheiro acre da selva e do
sexo" (ibidem). O sexo era constantemente vinculado à música costeña, assim
como era ligado, na época, à música negra de todas as Américas, e como o tinha
sido até na época colonial (ver Wade, 1993:279). Nessas décadas do século XX,
entretanto, também estava em voga uma abordagem mais explícita e liberada da
sexualidade em alguns círculos da Europa e da América do Norte. Na Colômbia,
onde a ortodoxia católica é historicamente forte, seria um erro falar de
mudanças radicais da moral sexual, mas Uribe Celis (1992:45) observou que o
feminismo exerceu um impacto na Colômbia a partir da década de 1920 e que, nos
anos 30 e 40, houve um grande número de mulheres migrando para as cidades, onde
elas trabalhavam como empregadas domésticas e operárias de fábricas. Essas
mulheres tinham renda própria, e minha pesquisa das lembranças das pessoas
sobre as décadas de 1940 e 1950 indicou que as trabalhadoras jovens das regiões
urbanas tinham certa autonomia em termos de suas atividades de lazer ' o que
incluía sair com grupos de amigas para dançar. Em suma, a música "negra" (ou a
música com conotações de negritude) era moderna em termos da sexualidade que
supostamente evocava ou evidenciava. Naturalmente, essa ligação também podia
ser interpretada como uma ameaça assustadora à moral por aqueles que temiam os
aspectos negativos do modernismo.
Se a negritude foi vinculada à modernidade, ou, mais exatamente, ao modernismo,
nem por isso ela perdeu as conotações negativas de primitivismo, atraso, falta
de "cultura" e assim por diante. Contudo, nos quadros de referência nacionais e
transnacionais, essas associações, quando adequadamente distantes ou
"embranquecidas", também podiam ser reinterpretadas por um prisma positivo. Uma
das ameaças percebidas na modernidade era a perda da "tradição", o declínio do
autenticamente nacional diante da cultura "estrangeira" moderna e elegante. Um
dos colunistas já citados viu a música "de sonoridades africanas" como a ameaça
estrangeira nesse contexto, ao passo que, ironicamente, as canções natalinas
foram interpretadas como autenticamente colombianas. Mas também era possível
fazer com que a negritude significasse "tradição", ou algo autóctone. (O
indigenismo podia ser mais facilmente interpretado dessa maneira e, em algumas
ocasiões, reivindicaram-se raízes indígenas do porro, em comentários
jornalísticos sobre essa música.) O porro, ao que parece, era autenticamente
colombiano e, por isso, podia competir no palco internacional com o tango, o
samba ou a rumba, como representantes legítimos de identidades nacionais. O que
o tornava autenticamente colombiano era sua origem numa região que, apesar de
moderna em sua vida urbana de Barranquilla, era também tradicional e
"folclórica" e impregnada de negritude e indigenismo, os quais, por sua vez, no
discurso nacionalista padrão sobre a mestiçagem, podiam ser tomados como
elementos pertencentes ao passado.
Podemos encontrar uma ilustração disso nos escritos de Antonio Brugés Carmona,
um intelectual e político costeño que, em vários artigos na imprensa, produziu
descrições do povo, da música e dos eventos da costa. Em 1943, ele descreveu
como o porro nascera da música tradicional de La Costa: "uma vez que [o porro]
era da mesma família da cumbia, nas noites quentes e brilhantes em que se
dançava a cumbia, o filho mais novo surgia no círculo [de dançarinos] iluminado
pela loucura, introduzindo ritmos novos nos regozijos monótonos da cumbia.
[...] [O porro] tomou conta das festas e acabou ultrapassando as fronteiras de
seus predecessores, tornando-se não costeiro, mas colombiano" (El Tiempo, 28 de
fevereiro de 1943, seção 2:2). Em geral, achava-se que a cumbia tinha origens
antigas, sobretudo com raízes principalmente negras e indígenas, de modo que
derivar o porro da cumbia enraizava-o no passado negro e índio. Lucho Bermúdez,
o grande chefe de orquestra que tanto fez pela popularização do porro e de
outros estilos de música costeña a partir da década de 1940, também enfatizou
esse tipo de enraizamento local e racial: "Em minhas músicas, sempre falo da
magia, dos brujos, dos negros, de todas as lendas de Santa Marta, Cartagena e,
em geral, de toda a costa do Atlântico. Acho que sempre se deve estar próximo
do próprio pueblo [povo, aldeia, nação], e foi por isso que nasceram 'Carmen de
Bolívar' e todas aquelas outras canções que levaram uma mensagem a toda a
Colômbia" (Arango, 1985:19).
4
Muito tempo depois, quando Bermúdez morreu, em 1994, o presidente César
Gaviria fez um discurso em que declarou: "Lucho Bermúdez compôs obras que, por
sua qualidade artística e suas profundas raízes populares, fazem hoje parte da
herança cultural do patrimônio folclórico de nosso país" (El Espectador, 26 de
abril de 1994). A ênfase no "patrimônio folclórico" é muito significativa,
quando referida a um músico extremamente cosmopolita, com formação musical
acadêmica e que tocava principalmente nos clubes sociais de elite da Colômbia
(ver adiante).
É neste ponto que as narrativas sobre as origens do porro e da cumbia tornam-se
muito importantes. A maioria dessas narrativas foi construída em forma escrita,
a partir da década de 1960, por folcloristas e historiadores amadores, assim
como por acadêmicos profissionais (ver Wade, 2000, cap. 3). William Fortich,
por exemplo, é um professor universitário e folclorista costeiro que teve um
papel central na criação, em 1977, do Festival Nacional do Porro, realizado
anualmente e dedicado a preservar o porro das bandas de instrumentos de sopro.
Afirma ele que o porro derivou, essencialmente, dos conjuntos de gaitas
camponeses tradicionais, baseados em flautas de origem ameríndia e em tambores
documentados como existentes pelo menos desde a década de 1830, mas que Fortich
diz terem origens "tão remotas que se confundem com a lenda" (1994:2). A gaita
é uma flauta de origem ameríndia, de modo que o que Fortich enfatiza são os
elementos indígenas nas origens míticas do porro. Entretanto, os tambores
usados na música da região costeira caribenha são atribuídos à influência
africana e, assim, Fortich (ibidem:12-15) faz uma referência tangencial ao vodu
e à santería (sem ligá-los explicitamente à Colômbia ou ao porro), antes de
mencionar uma sociedade secreta africana chamada poro, encontrada na África
Ocidental.
Fortich concentra-se, então, numa figura fundadora do fim do século XIX,
Alejandro Ramírez Ayazo, que aprendera clarinete com um músico formado e
gostava de convidar conjuntos de gaitas para sua casa, onde tocava clarinete
com eles (ibidem:67-68). Foi esse o contexto transicional em que "o antigo
porro dos gaiteros [gaitistas] serviu como o núcleo que pôde ser desenvolvido
por músicos com certa formação acadêmica" (ibidem:6), e há uma concordância
geral em que foi do porro que surgiu o repertório dos conjuntos de sopros.
Essa mesma narrativa básica de uma tradição musical contínua, superficialmente
moldada por novos intérpretes, perpassa a fase seguinte, na qual os conjuntos
musicais adotaram o porro das bandas de instrumentos de sopro na década de
1930. Dizem que líderes de bandas como Lucho Bermúdez pegaram o porro e outros
estilos semelhantes e os "vestiram de fraque". Portaccio, por exemplo, um
locutor de rádio costeño que é historiador amador, faz uma referência
obrigatória às origens "tri-étnicas" do porro: dos "brancos" veio a dança,
especificamente a abertura da música em estilo de "minueto"; dos "negros" veio
a percussão; e dos "índios" veio a flauta de bambu, precursora do clarinete
(1995:44-45). Portaccio acrescenta que, nos anos 30, esse gênero era
considerado bastante vulgar, de modo que Bermúdez "pegou elementos das Big-
Bands da época, especialmente [as] de origem branca, suavizando o porro e com
isso dando-lhe maior circulação" (1995:46).
Essa descrição sumamente típica de um corpo central de tradições, com a
roupagem leve de um novo estilo, é também característica da historiografia da
cumbia. Em geral, a história é mais simples, concentrando-se menos nos
conjuntos de sopros do século XIX e referindo-se à cumbia, quer como música,
quer como dança, como tendo origens coloniais remotas, as quais, é claro, são
tri-étnicas. A cumbia é comumente tida, como nas palavras de Delia Zapata
Olivella, professora de dança folclórica de certo renome e irmã de Manuel, como
"uma síntese musical da nação colombiana" (1962). O texto da capa de um CD do
cantora costeña negra Totó la Momposina diz que a cumbia é "um belo exemplo da
combinação de sentimentos da cultura indígena, espanhola e africana"; originou-
se como "uma dança de galanteio [...] entre homens negros e mulheres índias,
quando começou a haver casamentos entre essas duas comunidades". O texto também
cita as palavras da própria Totó, dizendo que "a música que toco tem suas
raízes numa raça mestiça: sendo negro e índio, o coração da música é
completamente percussivo" (Totó la Momposina y sus Tambores, La candela viva,
Talento/MTM/Realworld 7260008019, 1993). Portanto, a cumbia é apresentada como
uma variante regional ' particular pelo papel menor concedido às influências
européias ' do ato metafórico central de união sexual que fez com que a
mestiçagem se tornasse crucial para o nacionalismo. Tudo isso situa a cumbia
como uma forma de música e dança tradicional e até originária.
Esses comentaristas enfatizam a tradição e a continuidade, concedendo um peso
maior às influências indígenas e africanas do que às européias. Eles traçam,
retrospectivamente, linhas específicas por um emaranhado de sincretismos
sincretizados e influências recíprocas, que também poderiam ser traçadas de
outras maneira. Poderíamos considerar a preparação formal recebida por Lucho
Bermúdez e sua gratidão confessa para com músicos e professores não-
colombianos, saídos dos conservatórios, e concluir que o porro que ele tocava
era uma variante de um estilo musical contemporâneo pan-latino-americano e
caribenho, o qual ele optou por chamar de porro, a fim de lhe conferir um certo
apelo nacionalista e de distingui-lo no competitivo mercado musical
transnacional. Esses comentários tradicionalistas permitem-nos ver como
"África" ou "negritude" é interpretada como um ponto de referência ' ainda que
muito distante, esboçado em invocações de sociedades secretas ou tambores
africanos ' da identidade do país. As genealogias indígenas e negras são
privilegiadas e traçadas em linhas diretas de descendência que permitem a
manutenção de um núcleo central, o qual liga auditivamente o porro e a cumbia
do século XX ao ato sexual que deu origem à nação. Poderíamos defender
verdadeiras continuidades musicais, que iriam das associações coloniais dos
escravos com seus tambores, passando pelos conjuntos dos camponeses, até os
conjuntos de sopros e as bandas instrumentais. Bermúdez, por exemplo, preserva
alguns marcadores rítmicos suavizados que ligam sua música à música camponesa
local, tanto quanto nos é possível conhecê-la através das descrições
contemporâneas que dela nos são fornecidas (Bermúdez, 1996). Meu objetivo não é
negá-las, mas demonstrar que também elas são discursivamente construídas ' seja
por folcloristas, seja por colunistas racistas ', de modo que o julgamento
sobre o que constitui uma "verdadeira" continuidade musical nada tem de
simples.
O que quer que tenham sido a negritude e a africanidade, portanto, esteve
sujeito a inúmeras leituras: elas podiam ser modernas e elegantes, ou
primitivas e atrasadas; podiam ser modernas exatamente por serem "primitivas";
podiam ser sensuais, mas esse sensualismo poderia ser um impulso subjacente da
mestiçagem e da nacionalidade, ou uma ameaça à moral, ou uma força libertária
que contestaria as convenções sociais conservadoras; poderiam representar as
raízes e a autenticidade, algo de autoctonemente colombiano, ou representar o
passado atrasado que era preciso superar.
Mestiçagem e corporificação
Até aqui, discuti os constructos da negritude e da africanidade no nível do
discurso sobre a música, no contexto nacional e transnacional. Mas o tema da
sexualidade sugere um nível muito mais pessoal em que operam esses processos de
identificação. Duas idéias me levam para essa direção. Primeiro, já mencionei
que no discurso nacionalista sobre a mestiçagem há uma tensão permanente entre
uma imagem de homogeneidade e uma imagem de diferença contínua; uma depende da
outra. Isso transparece em termos de pronunciamentos sobre o passado e o futuro
da nação e em termos de discriminações contra pessoas isoladas (rejeitadas como
parceiros conjugais, por serem "demasiadamente negras"), ou contra determinadas
formas culturais, como os estilos musicais (também rejeitados por serem
"demasiadamente negros") ' apesar de a pessoa que faz esse tipo de
discriminação se identificar como mestiça e entender a cultura colombiana como
produto de misturas. Em sua dissertação sobre o culto de María Lionza, na
Venezuela, Placido (1998) examinou como os fiéis desse culto às vezes pensam
nos mestiços como pessoas lúgubres e enfadonhas, nas quais os três ingredientes
originais da mistura ' África, América e Europa ' mesclaram-se na criação de um
produto desbotado, insípido e sem maior destaque. Ela identificou um discurso
alternativo em que as pessoas vêem esses três elementos como coexistindo num
mosaico, sem perderem sua identidade original. As pessoas servem-se
ecleticamente de símbolos e recursos identificados com origens diferentes,
conforme suas necessidades e desejos. A variedade implicada nessa coexistência
é vista como rica em possibilidades, matizes e potencial. Em termos concretos,
dentro dos termos gerais do "culto" (que não é um grupo fechado e sistemático,
mas um conjunto muito aberto e variado de crenças sobre espíritos que baixam em
médiuns), a coexistência dos elementos manifesta-se nas três figuras
espirituais centrais, las tres potencias: El Negro Felipe (negro), María Lionza
(branca, embora também possa ser interpretada como índia) e El Indio
Guaicaipuro (índio). Estes três, e mais uma multiplicidade de outros espíritos,
podem baixar em médiuns que então conversam com outros fiéis (ver, também,
Taussig, 1997). A idéia de elementos coexistentes, em vez de fusionados, sem
dúvida é sugerida em alguns dos comentários sobre a música colombiana, que
freqüentemente insistem em identificar determinados aspectos dos estilos
contemporâneos como "negros/africanos", "brancos/europeus" e "indígenas". A
idéia de os espíritos estarem no corpo sugere que essas "potências", ou
potencialidades, são vistas, ou até vivenciadas, como partes do eu num sentido
corporal, como aspectos da personalidade corporificada.
Isso nos leva ao segundo tema: a importância de pensar nas identidades raciais
em termos de corporificação. A corporificação tem sido abordada pelas
perspectivas da Antropologia Médica e dos estudos sobre o gênero e a
sexualidade, mas não se sabe muito bem que diferença faz que as identidades
raciais sejam vividas de maneira encarnada. Não me refiro aqui à simples idéia
de que as identidades raciais possam ser fenotipicamente marcadas; procuro,
antes, haver-me com o modo como as pessoas acham que sua identidade racial (por
exemplo, seu "sangue") se expressa e faz parte de sua pessoa. Não posso
estender-me aqui sobre essas indagações, mas me interessa o fato de a música e
a dança serem atividades intensamente corporificadas e que foram extremamente
racializadas nos contextos colonial e pós-colonial. As idéias sobre a origem
racial de determinados elementos musicais podem ser consideradas do ponto de
vista de como as pessoas levam sua vida de maneira corporificada. Freqüentar
uma aula de dança para aprender cumbia pode ser entendido como um projeto
pessoal de trabalhar o próprio corpo, a fim de que ele expresse e, a rigor,
desenvolva a "negritude" que o indivíduo "tem dentro de si" como um potencial.
Ou, ainda, uma simples saída em Bogotá, Cáli, Barranquilla ou Medellín, para
dançar salsa, além de um pouco de cumbia e talvez, hoje em dia, um ou outro
currulao (um estilo da costa do Pacífico), pode ser um modo de expressar a
"negritude" que se tem no corpo e mantê-la viva. Também podemos pensar na
importância de certos ditos comuns, como "se le salió el negro" (literalmente,
"o negro nele(a) veio à tona"), que se ouve desde a Argentina até Cuba, quando
uma pessoa que pode ser "branca" ou "mestiça" comporta-se de um modo tido como
"negro"; a implicação é que a "negritude" ainda está "lá dentro" em algum
lugar, e pode sair espontaneamente ou ser conscientemente desenvolvida.
Algumas entrevistas-piloto que fiz com bailarinos e músicos negros em Cáli, em
1998, também apontam nessa direção. Todos reconheceram uma forte ligação entre
os negros, o ritmo e a aptidão para dançar. Alguns acharam que isso estava "no
sangue" (en la sangre), enquanto outros expressaram opiniões mais
"ambientalistas", quer por estarem explicitamente cônscios do potencial racista
dos argumentos que invocam "o sangue", quer por haverem aprendido por
experiência própria que os não-negros podiam ser excelentes dançarinos, e os
negros, não. Todos, no entanto, enfatizaram que, para eles, tornarem-se
dançarinos tinha sido um processo intensivo de preparação corporal, quaisquer
que fossem suas aptidões "naturais". Um homem, cantor de um grupo de rap (ver a
seção seguinte), relatou suas experiências ao aprender a salsa e, mais tarde,
entrar no reggae, no ragamuffin e, finalmente, no rap, e falou de sua
identificação com "ese golpe fuerte" (a batida forte) que havia encontrado
nesses estilos diferentes. Desenvolver essa "batida forte", como um projeto
pessoal corporificado de ser um bom bailarino e, eventualmente, um músico,
também se vinculou ao próprio desenvolvimento de sua identidade como negro, o
que ele expressou igualmente ao deixar crescerem as trancinhas e ao adotar um
discurso que incluía elementos da consciência negra e do afrocentrismo. Em
certo sentido, embora esse homem tenha rejeitado explicitamente a idéia de que
o ritmo fosse "natural" nos negros em geral, ele estava desenvolvendo a
"negritude" dentro de si, conscientizando-se dela, expressando-a e encenando-
a através do corpo, de modo a chegar à identidade de negro na Colômbia da
década de 1990.
Tudo isso é um tanto especulativo e não disponho de dados empíricos
sistemáticos para respaldá-lo, mas oferece-nos um modo diferente de abordar os
processos pelos quais as pessoas identificam o que é "negro" em suas culturas
locais, regionais e nacionais. Sugiro que seria proveitoso ver esse processo
como intensamente pessoal e corporal. Assim ' voltando à música colombiana de
meados do século ', a transição histórica mediante a qual a música costeira
substituiu o bambuco como o som nacional mais popular pode ser entendida, em
certo sentido, como o "enegrecimento" da Colômbia (embora com uma forma
embranquecida de negritude, por assim dizer), mas também como um "pôr para
fora" a negritude que os colombianos poderiam sentir que estava dentro deles
(nem todos tinham esse sentimento; alguns sem dúvida o negaram vigorosamente).
Curiosamente, constatei que muitas vezes as pessoas usavam imagens intensamente
corporais ao narrar suas experiências das mudanças musicais ocorridas na
Colômbia nas décadas de 1940, 1950 e 1960. A imagem mais comumente usada era a
do calor: os migrantes que saíram da região costeira caribenha para o interior
do país, fossem eles negros ou mestiços, e os nativos da zona interiorana
falaram, todos eles, sobre como os costeños e a música costeña haviam
"esquentado" o frio interior do país, deixando-o mais livre, mais pitoresco,
menos restrito e assim por diante. Isso sugere que dançar e ouvir música
poderiam ser entendidos como um modo de "encarnar a nação". O indivíduo poderia
reproduzir-se, conceitual e corporalmente, como cidadão "nato", ao expressar
certos aspectos de sua pessoa ' negros, brancos, índios, mestiços ' através da
prática corporificada da dança e da música. É claro que esse processo de
reprodução situaria imediatamente essa pessoa num contexto tanto transnacional
quanto nacional, já que os elementos implicados (por exemplo, "o ritmo negro")
evocam tanto a diáspora quanto a nacionalidade; e, é claro, a pessoa poderia
dançar ao som da música "estrangeira". Mas esse poder internacionalizante da
imaginação, quando canalizado pelos meios de comunicação de massa, é igualmente
válido em relação a todos os processos de imaginar comunidades nacionais, e não
apenas musicais.
Esta seção examinou as maneiras públicas e pessoais pelas quais as pessoas
fazem afirmações e atribuições sobre a identidade racial de vários
"ingredientes" diferentes, percebidos como constitutivos de formas culturais,
estilos musicais e pessoas. Essas afirmações e atribuições são feitas no
contexto de: idéias da nação num mundo transnacional; tentativas da indústria
fonográfica internacional de comercializar gêneros musicais; idéias sobre
modernidade e tradição; idéias sobre moral sexual e as relações mutáveis do
gênero; e desenvolvimento pessoal do eu corporificado. Nesses contextos, a
"África" e a "negritude" são discursivamente construídas de maneiras mutáveis,
que não têm uma relação direta com as "realidades" dos africanismos na cultura
colombiana, em parte porque esses discursos também têm o poder de construir a
percepção dessas realidades.
Por outro lado, é claro que existem algumas continuidades estruturais
importantes, além das que podemos traçar em termos do ritmo africano ou da
estética musical derivada da África. As atribuições e as afirmações ligadas à
origem e à identidade tendem a ser feitas dentro de hierarquias de raça,
classe, gênero, poder e valor moral que conservam aspectos importantes de sua
estrutura. Assim, a "negritude" e a "africanidade" da Colômbia e, em termos
mais gerais, das Américas, costumam ter uma localização social subalterna; a
"música negra" ' como quer que o termo seja interpretado por pessoas diferentes
' é vista, muitas vezes, como ruidosa, vulgar e primitiva, mas também
possivelmente atraente. Também num sentido geral, certos valores hegemônicos
básicos da branquidade prevaleceram: ao mesmo tempo que a música introduziu
elementos de tropicalismo e negritude e até da "África" no panorama cultural
nacional, tais elementos surgiram sob forma bastante embranquecida: o porro
tornou-se "mais suave" e os músicos negros não eram vistos com freqüência nas
grandes bandas instrumentais.
Cáli5
A questão das continuidades emergiu com força particular no contexto da
Colômbia da década de 1990, quando a Constituição de 1991 definiu a nação como
"multiétnica e pluricultural" e deu um certo espaço simbólico e político-
jurídico específico às comunidades negras e indígenas. Será que a "África" e a
"negritude" foram substancialmente redefinidas nesse contexto? Ou será que
existem continuidades importantes? A resposta, talvez previsivelmente, é: um
pouco de cada coisa.
Para examinar essa questão, enfocarei um caso muito específico: o de uma
pequena "associação etnocultural" num bairro de baixa renda da cidade de Cáli,
na Colômbia, onde fiz algum trabalho de campo em 1997. Essa associação, que é
também um grupo de rap, chama-se Ashanty, o que nos dá alguma indicação de onde
estão seus interesses.
6
O grupo, formado por volta de 1992, mantém-se unido graças a um pequeno número
de membros regulares ' três em 1997 e 1998. Ele se incumbe de projetos
comunitários dentro do bairro e também organiza eventos derapem maior escala.
Os membros principais são homens na casa dos vinte anos, que também trabalham
em várias atividades para ganhar a vida. Examinarei os vários campos diferentes
de práticas que influenciam suas definições de negritude e africanidade, e que
influem também no modo como essas definições são acolhidas por outras pessoas
da cidade. Não tenho a pretensão de afirmar que as idéias desses três homens
sejam representativas das opiniões dos afro-colombianos de Cáli ou da Colômbia.
Simplesmente uso o caso da associação Ashanty como ilustração do que constitui
uma situação muito diversificada na Colômbia de hoje.
Um campo central é o da própria reforma constitucional e da legislação
proveniente dela. Na década de 1990, a negritude ganhou um perfil público maior
do que jamais tivera (embora, vez por outra, o medo das revoltas de escravos
tenha lhe rendido bastante destaque nas questões públicas da Nova Granada
colonial). Esse perfil evidencia-se nos debates políticos sobre a legislação a
favor das comunidades negras, nos decretos do governo sobre a inclusão de temas
afro-colombianos nos currículos escolares e na multiplicação muito rápida de
organizações negras, tanto rurais quando urbanas, as quais, apesar de se
concentrarem na região costeira do Pacífico, onde é possível reivindicar
direitos de posse da terra, são também encontradas em muitas outras áreas,
especialmente nas cidades principais. O mesmo perfil também se evidencia nos
documentários de televisão sobre a região costeira do Pacífico, na inclusão da
"cultura negra" contemporânea em exposições de museus estatais, e na
visibilidade crescente da música associada à região da costa do Pacífico.
A associação Ashanty surgiu exatamente nessa onda de interesse pela cultura
negra. Os problemas cotidianos com que seus membros depararam, na luta pela
sobrevivência e pela manutenção de algum tipo de segurança material e cultural
' pobreza, violência, falta de serviços urbanos e desemprego ', foram
intensamente canalizados para idéias sobre o racismo. Essas idéias provieram de
duas fontes: primeiro, da experiência de racismo do próprio grupo em Cáli ' uma
cidade com uma grande população negra nativa, mas também com um número de
imigrantes negros da região da costa do Pacífico que vem crescendo muito
depressa (Urrea, 1997), e, segundo, das percepções que os membros têm do
racismo em outros lugares, como Jamaica (particularmente através do reggae de
Bob Marley) e Estados Unidos (por meio de filmes como Malcolm X). Ao mesmo
tempo, o grupo envolveu-se em questionamentos mais domésticos do racismo, como
os feitos pelo Cimarrón (Movimento Nacional pelos Direitos das Comunidades
Negras da Colômbia), a alguns de cujos seminários os membros compareceram.
Os integrantes da Ashanty também têm uma ligação com os circuitos acadêmicos,
até certo ponto, uma vez que foram "estudados" por alguns acadêmicos e que um
deles também trabalhou como auxiliar de pesquisa num estudo franco-colombiano
da migração negra para Cáli.
7
Num seminário organizado por esse projeto, em 1998, dois integrantes da
Ashanty estiveram presentes e participaram dos debates, havendo um deles, por
exemplo, criticado meu artigo, precisamente no tocante à questão da "África", à
qual lhe pareceu que dei ênfase insuficiente. Assim, todo o debate acadêmico
sobre os africanismos na cultura colombiana também se infiltrou no mundo da
Ashanty, através da crescente reflexividade do conhecimento acadêmico, que é
característica das ciências sociais do fim do século XX e compõe o segundo
campo de prática que influencia as definições da negritude nesse nível local.
A associação Ashanty faz parte do número crescente de pequenas ONGs negras de
base que algumas instituições maiores ' o Estado, a Igreja Católica e ONGs
internacionais ' começaram a respaldar. Em Cáli, por exemplo, em 1996, o
governo municipal criou uma Divisão de Assuntos Negros. Isso introduz um
terceiro campo de práticas que afeta a definição da identidade da Ashanty: os
circuitos de financiamento estatal e de ONGs dentro dos quais as organizações
comunitárias em pequena escala competem por patrocínio. A Ashanty teve algum
sucesso nessa competição. Em 1996, por exemplo, organizou um concerto de rap
para toda a cidade, como culminação de uma série de seminários que abarcaram
vários aspectos da cultura e da história negras, bem como a história e as
técnicas da "cultura do hip-hop". O projeto foi inteiramente financiado pela
Igreja, por um órgão da administração municipal e por uma ONG internacional.
Por outro lado, também constatei que o governo municipal, em órgãos como a
Secretaria da Juventude, relutava em financiar a Ashanty, por considerá-la
demasiadamente radical, por um lado, e desorganizada demais, por outro. Em
outras palavras, os membros da Ashanty enfatizavam demais o racismo e a
negritude aos olhos dos funcionários municipais, quase todos brancos, e, pelos
padrões desses funcionários, não pareciam ter uma "cultura" suficientemente
estável e duradoura para justificar um investimento de verbas públicas
destinadas a criar bons cidadãos. Em certo sentido, a lógica da nova
constituição multicultural e a criação de entidades como a División de
Negritudes, de Cáli, consiste em que os negros e, a rigor, todas as pessoas têm
uma "cultura". Não obstante, o governo municipal também quis poder avaliar se
uma "cultura" era digna de ser considerada como tal para fins de financiamento
e apoio (Wade, 1999).
Para competir por financiamento nesses tipos de redes locais, nacionais e até
internacionais, o grupo Ashanty precisa ter uma representação coerente de quem
ele é. Uma vez que parte de suas afirmações implica a identidade e a diferença
étnicas, a associação tem que construir uma "cultura" ou, pelo menos, uma
"subcultura" específica que seja representável como "negra" (embora alguns
integrantes da assembléia municipal preferissem vê-la representada como
"jovem"). Isso nos leva a um quarto campo de práticas, que é a objetificação da
cultura observada nos circuitos globalizantes que a transformam em mercadoria.
Os membros da Ashanty alimentavam sua identidade, como grupo e como indivíduos,
com salsa, reggae, ragamuffin e rap, imagens de Bob Marley veiculadas pela
mídia e o filme Malcolm X, de Spike Lee. A iconografia visível nos locais
freqüentados por eles incluía astros do basquete norte-americano, rappers dos
Estados Unidos e cantores de reggae jamaicanos; às vezes também se via a figura
de Nelson Mandela. O concerto de rap organizado pelo grupo em 1997 teve todos
os sinais característicos de uma apresentação comercial de música popular '
inclusive o patrocínio de uma cervejaria colombiana. Naturalmente, os membros
da Ashanty personalizaram esses símbolos. Dois deles usavam trancinhas e,
muitas vezes, cores dos rastafáris; um deles pintou um letreiro em cores
rastafári para a barbearia, cujo nome era Peluquería África. Não pretendo
implicar, portanto, que o uso de produtos globalizados para construir uma
identidade local seja inautêntico em algum sentido (ver Campbell, 1987; Miller,
1995). A questão é que as idéias de negritude e africanidade são construídas de
modos influenciados por esse campo de práticas. Isso, é claro, não chega a ser
novidade. Como mostrei acima, a música colombiana, a partir da década de 1930,
desenvolveu-se no campo comercializado sumamente transnacional da indústria
internacional da música; um símbolo-chave da negritude na Colômbia era a música
popular afro-cubana, por exemplo. Nos anos 90, uma diferença observada foi a
velocidade de circulação desses produtos, sua acessibilidade e seu caráter
disseminado, especialmente no nível do barrio. A outra diferença é o uso mais
consciente desses símbolos, para construir ativamente uma identidade em torno
de uma idéia objetificada de cultura (o que não quer dizer que, por isso mesmo,
tal identidade seja "falsa"). Na década de 1940, embora a cultura musical
costeña tenha sido objetificada e comercializada, ela esteve menos envolvida
numa construção consciente da identidade.
Dados esses campos diferentes de práticas, de que modo a negritude e a
africanidade vêm sendo construídas nesse contexto de Cáli? Como no caso da
música colombiana, podemos ver que o que é identificado como negro e/ou
africano é situado num campo nacional (a reforma constitucional, a crescente
legitimidade pública da negritude nas definições da identidade nacional) e num
campo internacional (os circuitos globais de troca); isso é influenciado pelas
pesquisas acadêmicas (sobre as origens africanas) e pelo "caráter vendável",
digamos, de uma identidade (nesse caso, a "venda" da identidade da associação
Ashanty a entidades de financiamento públicas e ONGs). A corporificação também
é importante. Para os membros da Ashanty e outros jovens negros que participam
do rap e de grupos "folclóricos" no âmbito do bairro, que praticam a música e a
dança currulao da costa do Pacífico ' muitas vezes, os mesmos indivíduos têm
experiência nesses dois contextos musicais muito diferentes ', as habilidades
motoras adquiridas através da prática dos movimentos de dança associados a
esses estilos musicais não apenas expressam, mas também constituem sua
negritude (e sua juventude).
Nesses contextos, portanto, encontramos ' pelo menos no caso da Ashanty, mas
também em temos mais gerais ' uma definição muito mais assertiva e menos
embranquecida da negritude, na qual a "África" é um elemento simbólico
importante, ainda que vago, e na qual diversos elementos se combinam, à maneira
de uma montagem, num processo consciente de formação da identidade em que as
relações reflexivas entre acadêmicos e ativistas entrelaçam-se com mais firmeza
do que antes. Novas imagens da negritude vêm sendo criadas com base no rap, no
reggae, no ragamuffin e nas imagens dos Estados Unidos e da própria África,
paralelamente à sempre popular salsa. No mundo musical da região da costa do
Caribe, isso é paralelo, até certo ponto, ao advento da champeta, também
conhecida, mais recentemente, como terapia ' denominações locais de uma mistura
eclética do soukous zairense, do highlife nigeriano*, do konpa haitiano, da
soca e do reggae, a qual, desde os anos setenta, popularizou-se em determinados
setores de jovens da classe operária de Cartagena e outras cidades e municípios
da região (Mosquera e Provensal, 2000; Pacini, 1993; Streicker, 1995; Waxer,
1997). Essas faces da negritude tendem a se harmonizar muito mal com outras
versões mais nacionalistas, para as quais afiguram-se muito "estrangeiras" '
como aconteceu com o porro na década de 1940, aos olhos de algumas pessoas.
Podemos discernir aí algumas continuidades nas hierarquias de poder e moral
dentro das quais se fazem atribuições e reivindicações referentes à negritude:
a negritude ainda é predominantemente subalterna e predominantemente operária;
em algumas de suas formas, ainda é interpretada por terceiros como
"desorganizada" e ' em vista de sua ênfase norte-americanizada no racismo (que
parece "estrangeira") ou em estilos musicais "estrangeiros" ' ameaçadora para a
imagem da democracia racial (nacional), agora reformada como multiculturalismo
tolerante. Enquanto isso, outros exemplos da cultura negra, como o currulao da
costa do Pacífico, podem ser transformados em mercadoria e vendidos em
festivais "culturais" como autenticamente colombianos e emocionalmente
libertários. (Na verdade, esses dois aspectos não são tão separáveis quanto
isso sugeriria: como mencionei acima, muitos rappers negros de Cáli faziam
parte de grupos "folclóricos" de bairro, especializados nos estilos de música e
dança "tradicionais" do currulao.)
Em suma, portanto, a negritude vem sendo construída de modo mais assertivo, por
um lado, mas também de um modo nacionalista bastante conservador, por outro. Em
ambos os casos, pode-se apelar para o multiculturalismo, embora as versões
nacionalistas deste sejam, em muitos aspectos, uma variação do tema mais antigo
da mestiçagem, baseado na tríade África-América-Europa. Também em ambos os
casos, a "África" é uma presença mais visível (ou audível), embora continue a
ser uma evocação bastante vaga, à qual se ligam significados muito diferentes:
ela pode legitimar uma diferença cultural específica no campo da política
identitária (para a Ashanty e outras organizações negras), ou pode ligar-se aos
campos das tendências de transformação da "música mundial" em mercadoria.
Conclusão
O propósito central deste ensaio foi mostrar que a "negritude" e a "África" têm
que ser compreendidas em seus contextos históricos mutáveis; estes incluem
aspectos tão variados quanto as definições da identidade nacional, o
capitalismo transnacional, a política local, a produção do saber acadêmico e o
modo como as pessoas concebem a si mesmas como encarnando aspectos diferentes
da herança da nação, exprimíveis por uma prática corporificada. Essa ênfase no
caráter contextual, todavia, precisa ser temperada pelo interesse nas
continuidades. Estas últimas podem ser situadas em termos de "vestígios de
africanismo", mas é preciso fazê-lo com conhecimento das múltiplas
interpretações da "África" que já vêm sendo dadas por outras pessoas nos
contextos delineados acima ' interpretações cujas próprias continuidades
estruturais são geradas por relações de dominação e que se entremeiam com as
continuidades da prática cultural transmitidas ao longo das gerações.
Um aspecto de particular interesse para os estudiosos nesses processos
complexos é o modo como a produção do saber acadêmico harmoniza-se com o
sentimento de continuidade e de mudança. Qual é o impacto de minha tese? Qual é
o impacto da abordagem de Arocha? Que acontece quando Arocha sugere (1996:327),
de modo reconhecidamente especulativo, que os véus brancos que ele viu
pendurados num teto, durante um velório na região colombiana da costa do
Pacífico, evocavam, por sua forma e sua aparência, os dois triângulos
eqüiláteros interligados que simbolizam o machado de Xangô nos altares iorubas
de Cuba, do Haiti e do Brasil? As pessoas do lugar que se encontravam no
velório certamente não estavam pensando nessas ligações, mas é possível que
elas ou outras começassem a fazê-lo, quer essas ligações se revelassem
"verdadeiras", quer não (segundo os padrões acadêmicos que têm curso na
História e na Antropologia). O efeito é reconstruir a "África" em mais uma
forma no contexto colombiano. A essência de minha postura não está em negar que
existam ligações entre a África e a Colômbia, nem em negar que desvendá-las
valha a pena e tenha importantes implicações políticas. A intenção, antes, é
dizer que os modos como a "África" e a "negritude" foram construídas e
interpretadas na Colômbia tornam esses termos tão variáveis, que não podemos
restringir-nos ao esforço de trazê-los à luz. As implicações de minha tese
estão em que a "negritude" e a "África" são e podem ser muito mais do que as
origens genealógicas que possamos desvendar para elas, e em que sua importância
política não precisa depender de atribuições de uma origem autêntica.
NOTAS
1. Cunin (1999) mostrou que, na cidade de Cartagena, na costa caribenha da
Colômbia, a representação das identidades negra e afro-colombiana, no contexto
pós-1991, foi dominada por palenqueros negros da aldeia de Palenque de San
Basilio, um antigo palenque que hoje preserva uma identidade cultural e
lingüística afro-colombiana clara e singular.
2. Ver Arocha (1999:25). Mas ver, por exemplo, Wade (1993:267): "O estilo
musical, se não a forma e o conteúdo de grande parte da música negra [na
Colômbia], é muito africano [...] danças como a conga e as máscaras do carnaval
de Barranquilla têm, claramente, sólidas origens africanas [...]. É claro que
os africanos importados pela Colômbia tiveram grande impacto na evolução da
cultura do país".
3. As pesquisas sobre a música costeña foram financiadas por uma verba da
Fundação Leverhulme (1994-1995). Basearam-se em entrevistas com músicos,
pessoas da indústria musical e ouvintes "comuns" em Bogotá, Medellín e
Barranquilla, bem como num exame de arquivos da imprensa e da bibliografia
secundária.
4. Santa Marta e Cartagena são cidades de origem colonial na costa do Caribe;
"Carmen de Bolivar" foi uma canção que Bermúdez dedicou a sua cidade natal.
5. As pesquisas em Cáli foram financiadas pela Fundação Nuffield (1997) e pela
Universidade de Manchester (1998). Esses projetos estiveram ligados ao projeto
"Organización social, dinámicas culturales e identidades de las poblaciones
afro-colombianas del Pacífico y suroccidente en un contexto de movilidad y
urbanización", conjuntamente dirigido, de 1996 até 2000, pelo CIDSE (Centro de
Investigaciones y Documentación Socioeconómica) da Faculdade de Ciências
Sociais e Econômicas da Universidade del Valle, Cáli, e pelo IRD (Institut de
Recherche pour le Développement, Paris). Sou grato a Fernando Urrea, do CIDSE,
por sua ajuda neste trabalho.
6. Uso o nome verdadeiro do grupo, uma vez que ele já é de domínio público e
que seus integrantes me deram permissão explícita para fazê-lo.
7. Trata-se do projeto mencionado na nota 5, supra: "Organización social,
dinámicas culturales e identidades de las poblaciones afro-colombianas del
Pacífico y suroccidente en un contexto de movilidad y urbanización",
conjuntamente dirigido, de 1996 até 2000, pelo CIDSE (Centro de Investigaciones
y Documentación Socioeconómica) da Faculdade de Ciências Sociais e Econômicas
da Universidade del Valle, Cáli, e pelo IRD (Institut de Recherche pour le
Développement, Paris).