"O que o rei não viu": música popular e nacionalidade no Rio de Janeiro da
Primeira República
Não existe razão
que um samba não vença
é toda minha ilusão
e também minha crença
(Batatinha ' Lula Carvalho)
Relatando as impressões do escritor carioca João do Rio a respeito do
aprofundamento da cisão social provocada pela reforma urbana sofrida pela
cidade do Rio em princípios do século XX, Nicolau Sevcenko (1998b:543) comenta:
"Na verdade, [como constata João do Rio], surgiam dois Rios de Janeiro frutos
da reforma, o da Regeneração, da nova norma urbanística, racional e técnica, e
o outro, o labirinto das malocas, do desemprego compulsório e 'livre de todas
as leis'".
Porém, os domínios territoriais e sociais dos "dois Rios de Janeiro" muitas
vezes se confundiam. Isso provocava a indignação de alguns, como podemos
observar numa crônica de 1906, assinada pelo poeta Olavo Bilac, que lamentava a
'selvagem' presença negra na recém-inaugurada Avenida Central,
principal ícone da Regeneração: [...] Num dos últimos domingos vi
passar pela Avenida Central um carroção atulhado de romeiros da
Penha: e naquele amplo boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido,
contra a fachada rica dos prédios altos, contra as carruagens e
carros que desfilavam, o encontro do velho veículo [...] me deu a
impressão de um monstruoso anacronismo: era a ressurreição da
barbaria era uma idade selvagem que voltava, como uma alma do outro
mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da idade civilizada [...]
Ainda se a orgia desbragada se confinasse ao arraial da Penha! Mas
não! acabada a festa, a multidão transborda como uma enxurrada
vitoriosa para o centro da urbs [...] (Bilac, 1906)
Tentemos compreender a razão de sua ira, colocando-nos na perspectiva do poeta:
a cidade havia sido remodelada para possibilitar a circulação de automóveis e
bondes elétricos; no entanto, vinha aquela "enxurrada vitoriosa" de "romeiros
da Penha", montados em seu "carroção", desaguar justamente ali, na Avenida
Central! Fica evidente a idéia de que o centro da cidade, com sua nova
arquitetura e equipamentos urbanos, deveria ser desfrutado apenas pelas camadas
mais abastadas da população, enquanto o restante deveria confinar-se às áreas
periféricas.
Contudo, essa nova lógica de ocupação do espaço urbano não conseguiria se impor
facilmente, como por certo pretendiam seus mentores. Afinal de contas, aquele
mesmo território estava tradicionalmente marcado por intensa circulação das
camadas mais pobres da cidade. As maltas de capoeira, por exemplo, numerosas
durante o Segundo Reinado, disputaram palmo a palmo a hegemonia sobre os
bairros centrais da capital.1 As ruas daquela região também eram tomadas pelos
populares durante o Carnaval desde meados do século passado, seja jogando
entrudo, desfilando fantasiados de velhos, príncipes e diabinhos, de forma
autônoma ou como participantes de cordões e zé-pereiras, ou simplesmente
assistindo aos préstitos das "grandes sociedades" carnavalescas.2 Além disso,
havia também as festas cívicas e religiosas, que pontuavam o calendário do
período imperial. Ao lado das festas oficiais da realeza, organizou-se também
uma agenda de festas populares, como as cavalhadas, congadas, batuques, folia
de Reis e festa do Divino. Grande parte das festividades tinham como palco a
área central da cidade (Schwarcz, 1998:247-278).
Porém, além do privilégio de uso exclusivo do centro da cidade pelas elites, as
críticas de Bilac deixam transparecer também uma explícita condenação à cultura
popular, aliás um outro item caro à política da Regeneração. Dessa forma, a
festa dos romeiros seria uma "orgia desbragada" que, por isso mesmo, deveria se
restringir ao "arraial da Penha".
Que "alma do outro mundo" era esta que tanto o apavorava? Que ameaça traria
quando, insistindo em sair do domínio a ela destinado, adentrava o coração da
urbs? A julgar pelo texto, o perigo era que viesse a reinstaurar a barbárie no
lugar da civilização. E, como a referência diz respeito à Festa da Penha, um
local privilegiado de encontro social e principalmente musical de negros e
mestiços, o alvo é certeiro: a condenação recai aqui sobre as tradições
culturais negras.
Na verdade, o esforço conjunto das elites e do governo oligárquico da Primeira
República ia no sentido de contenção das assim denominadas "classes
perigosas",3 especialmente no tocante à sua herança africana. Contudo, apesar
das vertigens que causava a Bilac e das tentativas de reprimi-la, a presença
negra foi, pouco a pouco, se fazendo sentir na cidade. E isso sob as formas
culturais sensíveis da música, da festa, do canto, da dança: havia a popular
Festa da Penha, a festa do Carnaval, as rodas de samba na casa das "tias"
baianas (em especial a da "tia" Ciata), as sedes das sociedades carnavalescas
(ranchos e cordões), os salões de bailes populares e o teatro de revistas,
dentre outros divertimentos.
As primeiras décadas deste século marcaram a entrada definitiva do Brasil na
chamada modernidade com a introdução do rádio, da gravação de discos, do
gramofone e do telefone, entre outros. Contudo, tais benefícios estavam
desigualmente distribuídos pelo conjunto da sociedade, ainda que fossem uma
aspiração de todos. Como afirma Sevcenko (1998b), as classes populares
vislumbravam na modernidade algumas brechas que lhes oferecessem alguma
oportunidade de ascensão social.
Nesse sentido, a música oferecia-se como uma possibilidade de inserção das
classes populares na era moderna por meio da ainda incipiente cultura de
massas. Porém, para fazê-lo, não lhes era possível que se opusessem
frontalmente às censuras, aos constrangimentos e às restrições que lhes eram
impostos. Afinal de contas, como sabiamente alertava o título de uma peça de
teatro rebolado, encenada em 1928, Manda quem pode (J. Cristobal e Sá Pereira).
Nesse artigo, procuro entrever como, por meio da música, as classes populares
conquistam a ampliação de espaço social e político durante a Primeira
República, observando com quem seus agentes se aliam e com quem se indispõem
nessa empreitada. Enfrentando-se indiretamente com as censuras e proibições,
suas atitudes combinarão, simultaneamente, acato com desacato, isto é, uma
aparente adesão à ordem que esconde sempre um desrespeito à mesma. A galhofa e
a pilhéria serão recursos largamente utilizados por eles, tanto em seus
confrontos com as autoridades como nas querelas que tinham entre si.
Não foi minha intenção aqui reconstituir a história da música popular carioca
nas três primeiras décadas do século XX. O que procurei fazer foi interpretar a
maneira pela qual uma certa modalidade de samba, produzida no Rio de Janeiro
nas primeiras três décadas do século XX, deixa, paulatinamente, os redutos
populares e, ao longo das décadas de 1930 e 1940, vai se firmando, num tempo
surpreendentemente breve, como um dos mais destacados ícones nacionais, tanto
para dentro como para fora do país. Os outros gêneros musicais produzidos no
Brasil passarão então a ser vistos como regionais4 (Vianna, 1995:111).
As tradições culturais negras: entre a repressão e a exaltação
No período que medeia entre o final do século XIX e as primeiras três décadas
do século XX, observa-se um enfoque ambivalente por parte de literatos,
intelectuais e políticos brasileiros em relação à cultura negra. Deparamos com
uma condenação de práticas consideradas "bárbaras" e, simultaneamente, com um
enaltecimento das mesmas, exaltadas como produtos da "originalidade nacional".
Por um lado, a cultura negra é apreendida pelo critério da falta: as danças e
os ritmos negros não têm "estética nem arte" (Freitas, 1985 [1921]:153), não
possuem "tom nem som" e tampouco gozam de "espírito e gosto" (apud Rodrigues,
1977 [1933]:157). Os instrumentos musicais dos negros são "rudes", "bárbaros" e
fazem uma "algazarra infernal".
Contudo, de outro lado, esboça-se uma visão que tende a conceber essa mesma
cultura como dotada de conteúdo, sendo que algumas tradições culturais negras
serão, pouco a pouco, representadas como nacionais. Como já notei em estudo
anterior sobre a capoeira (Reis, 2000), ao mesmo tempo em que é criminalizada
pelo Código Penal de 1890, surge uma representação positiva dessa luta que
deplora os que vêem nela apenas o que tem de "mau e bárbaro" e a reclama como
"nossa gymnastica nacional, herança da mestiçagem no conflito de raças" (Moraes
Filho, 1979 [1893]:257).
Observe-se que o autor dessa assertiva, o folclorista baiano Mello Moraes
Filho, busca aqui uma associação entre mestiçagem e nacionalidade, uma vez que
a brasilidade da capoeira é atribuída justamente à sua origem híbrida. No
entanto, a capoeira que vai se tornando um esporte em âmbito nacional, embora
seja uma luta mestiça não é aquela das elites cariocas da virada do século XIX
para o século XX, as quais tinham para ela um projeto nacional, mas a capoeira
popular baiana, alicerçada em um projeto étnico que ganha importância a partir
da década de 1930 em Salvador (Reis, 2000). Porém, é possível notar uma certa
proximidade entre algumas idéias e práticas daquela capoeira ilustrada carioca
e a capoeira popular baiana. Em ambas, por exemplo, ressalta-se uma forte
preocupação em difundir sua prática como um esporte, embora este seja
representado de forma diversa.
Não existe, assim, uma ruptura entre esses dois modos de "esportização" da
capoeira, observando-se aqui um movimento dinâmico de renovação de sentidos
sociais que põe em contato as culturas branca e negra no país. Se, de um lado,
a cultura negra se embranquece, de outro a cultura branca se enegrece, o que se
desenrola, evidentemente, sob o signo da dominação e tem, como sua necessária
contrapartida, a confrontação negra. Para evitarmos a armadilha de uma redução
dicotômica da cultura em dois pólos, o "popular" e o "erudito", talvez possamos
chamar a esse modelo híbrido da capoeira popular baiana, que se tornou
nacional, de uma sorte de "formação cultural de compromisso" (Ginzburg, 1991).5
Também em relação ao maxixe podemos observar uma dupla percepção que aponta,
simultaneamente, para a admiração e para a censura. O maxixe ' uma dança e um
gênero musical ' teria surgido nos bailes da chamada "pequena África do Rio de
Janeiro",6 por volta da década de 1870, tendo se vulgarizado em princípios do
século XX. Condenado por ser "lúbrico" e "enquadrar-se admiravelmente dentro da
canalhice bárbara" (Efegê, 1974:162) seria, no entanto, levado a Paris, no
começo do século XX, por Duque, membro de uma família baiana abastada que se
celebrizaria juntamente com suas partenaires nos requebros de la matchiche, a
chamada "dança nacional" do Brasil.
Esta dupla perspectiva, que marca particularmente a sensibilidade estética das
elites em relação à cultura popular, relaciona-se a um dos grandes dilemas de
grande parte dos intelectuais e governantes no que se refere à constituição do
corpo político da Primeira República. Naquele momento, os critérios darwinistas
sociais eram um empecilho à plena incorporação do negro à esfera pública.
Porém, em contrapartida, as tradições culturais negras, preteridas como sinal
de "decadência", eram já parte constituinte da expressão do nacional.
Como explica Maria Lúcia Montes (1998) em sua análise sobre as matrizes
barrocas da cultura brasileira, a tradição cultural ibérica barroca no
continente americano "era capaz de soldar num mesmo todo o alto e o baixo, as
elites e a grossa massa do povo, tendo por mediação fundamental esta forma por
excelência sensível, sensual, essencialmente estética, de transmissão de um
ethos e de uma visão de mundo representada pela festa" (p.157). No entanto, a
partir de princípios do século XIX, com a formação dos Estados nacionais
latino-americanos, essa cultura da festa de heranças barrocas, que não separa o
sagrado do profano, será aos poucos preterida pelas elites e perderá a
hegemonia, permanecendo restrita ao universo das classes populares.
Se no barroco as expressões populares negras se combinavam com a política
porque a esfera pública não se separava da privada, a República brasileira, ao
laicizar o Estado, irá abandonar aquela gramática política anterior e terá que
se enfrentar com a dificuldade de criar as regras de um novo pacto social.
Esse divórcio entre cultura e política atenua-se apenas quando as teorias
darwinistas sociais entram em declínio e começa a afirmar-se uma interpretação
mais social do país, tendência esta que se tornaria dominante a partir da
década de 30, com a publicação dos trabalhos de Gilberto Freyre (1933) e Sérgio
Buarque de Holanda (1936), dentre outros.
Na pista do "mistério do samba"
O samba carioca, do modo como o conhecemos atualmente, consagrado de norte a
sul do país (e mesmo no exterior) como o ritmo nacional por excelência, na
verdade parece ter se constituído enquanto tal muito recentemente. Entretanto,
ainda que pensemos no samba como um símbolo nacional reconhecido no nível
interno, é duvidoso que tenha conquistado plena aceitação. Além do mais, esse
processo de legitimação, ainda em curso, é ambíguo, como o é o lugar do negro
(ou das manifestações culturais negras) na sociedade brasileira, oscilando
ainda entre a exaltação e a detração.
A metamorfose do samba de música negra em música nacional ainda é pouco
estudada. Hermano Vianna empreendeu uma primeira análise mais aprofundada sobre
esse tema em seu livro O Mistério do Samba (1995). Por meio do estudo do
processo de nacionalização do samba no Brasil, cuja ênfase recai sobre o
período compreendido entre as décadas de 1910 e 1930, Vianna enfoca a
especificidade do padrão de relações raciais no país e a vinculação entre a
música popular e a construção da identidade nacional.
Para o autor, a nacionalização do samba é a coroação de um processo secular de
interação das chamadas cultura popular e erudita, proporcionada pela atuação de
"mediadores culturais", responsáveis pelo intercâmbio de elementos entre essas
duas esferas de cultura. Neste sentido, Vianna considera emblemático um
encontro entre membros da elite intelectual da época e músicos populares para
uma "noitada de violão", ocorrido no Rio de Janeiro em 1926 (1995:19-36).
Contudo, como procurarei mostrar ao longo deste artigo, a conquista da
legitimidade do samba foi (e ainda o é) árdua e carregada de conflitos.7 E isso
porque não se pode desvinculá-la do processo de reconhecimento social do negro
no Brasil. No final do século XIX, a abolição da escravidão pôs fim às antigas
relações senhoriais de domínio. Com a ampliação da cidadania para os ex-
escravos, a temperatura da tensão racial entre negros e brancos tende a se
elevar. Como lembra Lilia Schwarcz (1993), é exatamente nesse momento, quando a
igualdade jurídica é conferida a todos, que as teorias deterministas raciais
ganham força no país e, ao estabelecerem distinções biológicas e hereditárias
entre negros e brancos, acabam por naturalizar a diferença entre as raças.
Nesse sentido, é a perfectibilidade da imensa massa de ex-escravos que estava
sendo posta em questão na fundação do novo pacto político republicano, cujos
termos estavam sendo então estabelecidos.
O aprofundamento da análise do debate científico da época sobre a questão
racial está ausente na análise de Vianna. Ainda que, como afirma o autor, tenha
havido, aos poucos, uma positivação do elemento mestiço no país, não se pode
ignorar que, desde as últimas décadas do século XIX até o princípio do século
XX, predominava um modelo racial de análise que via na miscigenação um sinal de
degeneração.
Um caminho para o aperfeiçoamento da raça negra foi apontado pela chamada
"teoria do branqueamento". Adeptos do darwinismo social, seus propositores
propugnarão pelo branqueamento da população brasileira a ser obtido através de
um processo gradativo de seleção natural e social, que conduziria a uma
"mestiçagem eugênica", isto é, à depuração das características negras dos
mestiços.
O "homem de ciência" João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional,
convicto das idéias do evolucionismo social, foi o representante oficial no
Primeiro Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em 1911, onde
apresentou seu ensaio "Sur les métis au Brésil". Ele participou do Congresso
com a intenção de defender a tese do branqueamento da raça ' a ser atingido por
intermédio da mestiçagem ' como forma de resolução do "problema racial
brasileiro".
Contudo, é interessante notar que Lacerda atuava como porta-voz do presidente
Hermes da Fonseca (1910-14), o mesmo que, no ambiente mais intimista e privado
do palácio presidencial, recebera o rancho carnavalesco Ameno Resedá e cuja
mulher tocou ao violão o corta-jaca de Chiquinha Gonzaga numa recepção a
estrangeiros. Era também o mesmo que comparecera à casa da tia Ciata ' um dos
redutos do samba carioca na Primeira República ' para divertir-se nas festas
que ocorriam nesse recinto reservado. Mas também era o mesmo que, publicamente,
proibira a execução do maxixe pelas bandas militares. Ao que tudo indica,
parece que a boa imagem pública não combinava com "africanismos", reservando-se
os apreços por essas manifestações negras para as ocasiões em que era possível
ficar-se entre quatro paredes.
A posição equívoca das elites em relação às tradições culturais negras aparece
aqui com clareza. As relações íntimas que se desenvolveram entre senhores
brancos e escravos negros no espaço reservado da casa-grande, deram origem a
uma gama de laços pessoais. Após a Abolição, esse passado de contatos
interétnicos continua a agir, ainda que restrito à esfera privada. E isso
porque, no espaço público da Primeira República, essas relações não podem ser
valorizadas, pois isso corresponderia a admitir negros e mestiços como atores
desse mesmo espaço.
Parece portanto que, tanto no caso do samba, quanto no da capoeira8 e das
religiões afro-brasileiras,9 não há oposição absoluta entre os personagens da
trama. Isso nos revela algo sobre a peculiaridade das relações raciais vigentes
no Brasil. Nesse sentido, enseja-se um modo de sociabilidade específico que
supõe uma cumplicidade entre os círculos eruditos e populares, implicando uma
circularidade cultural movida pela contínua domesticação da herança negra e
africanização da herança branca.
Em um breve artigo publicado em 1982, Peter Fry (2001) analisou a maneira pela
qual o samba e o candomblé, dois itens originalmente elaborados pelos negros
sob dominação, teriam sido posteriormente apropriados pelos produtores de
símbolos nacionais e da cultura de massas. Na ocasião, o autor interpretou essa
conversão de símbolos étnicos em nacionais como uma estratégia política para
acobertar e mascarar a dominação racial, dificultando inclusive a sua própria
denúncia. Em outro artigo, publicado após 25 anos, Fry (2001) reviu suas
conclusões ' inclusive citando Vianna (1995) entre os responsáveis por isso '
afirmando que a sociedade brasileira não pode ser pensada como sendo formada
por "dois atores coletivos estanques (elite/povo ou brancos/negros)" (p. 50).
Isso ocorreria porque no Brasil, cuja herança colonial portuguesa tem como
marca uma lógica de assimilação, "os candomblés, macumbas e espiritismos
contemporâneos são o precipitado de embates e negociações entre elite e povo,
brancos e negros, letrados e iletrados [...] ao longo dos anos". Considerando
que o racismo não deixou de estar oculto nem de ser denunciado no Brasil, Fry
aponta que sua opinião hoje é de que "o Brasil vive em constante tensão entre
os ideais da mistura e do não-racialismo [...] por um lado, e as velhas
hierarquias raciais que datam do século XIX, de outro" (pp. 50-52).
Se é certo que temos no Brasil um "modo múltiplo" de classificação racial,
diferente do "modo binário" norte-americano (Fry, 1995-96), cuja colonização
anglo-saxã deu origem a uma lógica segregacionista, não podemos, contudo,
deixar de lado a discussão acerca da cultura do poder, substituindo-a por uma
ênfase demasiada no poder da cultura como, me parece, faz Vianna (1995),
relevando a importância do contexto sociopolítico da Primeira República e dos
conflitos sociais do período.10
Vários estudiosos, em busca de nossas especificidades locais, já apontaram para
a promiscuidade entre os domínios da ordem e da desordem no Brasil, o que
adviria de uma indefinição das fronteiras entre o espaço público e o privado,
fruto de uma sociedade altamente hierarquizada e autoritária.11
Antônio Candido (1970) ressaltou a imprecisão das fronteiras entre o público e
o privado no país, apontando para um dos "princípios constitutivos da sociedade
brasileira" que chamou de "dialética da malandragem", responsável pela
interação recíproca do universo da ordem com o da desordem no país. Analisando
a obra Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida
(escrita entre 1852 e 1853), Candido tenta estabelecer uma simbologia do
nacional através da figura do malandro, o qual transitaria, com grande dose de
sabedoria política, entre os espaços pouco delimitados do lícito e do ilícito.
A dialética da ordem e da desordem, salienta o autor, é o princípio estrutural
que ordena o sistema de referência das relações humanas do livro.
Parece-me que o sabor especial do samba Pelo Telefone (ao qual voltarei
adiante), primeiro samba gravado e que obteve grande repercussão na época está,
justamente, na denúncia cínica e brincalhona do conluio entre a ordem e a
desordem, o que corrobora a proposição de Antônio Candido sobre a presença da
ética da "dialética da malandragem" na sociedade brasileira.
Assim, além da ausência do aprofundamento sobre o debate da questão racial,
falta também ao trabalho de Vianna (1995) uma maior contextualização do embate
político que a nascente República brasileira travou para obter sua legitimação.
Dessa forma, para continuarmos na pista do deslindamento do "mistério do
samba", interessa também recuperar um outro debate acerca da natureza e
sobretudo da legitimidade do novo regime.
A República que se instaura no país a partir de 1889, refratária à participação
política da imensa maioria da população e às suas manifestações culturais, não
consegue, efetivamente, republicanizar o país (Carvalho, 1987:161-4). Se, por
um lado, o desencanto com a República, no interior das próprias elites
políticas, tornava-se evidente ("essa não é a república dos meus sonhos",
lamentavam-se alguns descontentes), por outro lado, as classes populares não se
reconheciam naquela nação que as confinava, a elas e a sua cultura, a suas
"malocas".
Entretanto, para garantir respaldo popular, o regime procurou criar em torno de
si uma simbologia. Como mostra José Murilo de Carvalho, o modelo europeu de
cidadania que a República persegue a levará a inspirar-se na França para a
formação de um imaginário popular. Embora conclua pelo fracasso da tentativa de
implantação de uma simbologia republicana, Carvalho realça que as duas únicas
tentativas bem-sucedidas foram aquelas em que as autoridades souberam ceder
lugar à tradição: no caso do hino ("única vitória popular no novo regime"),
herdado do Império, e da bandeira, também inspirada em sua antecessora
monárquica. Ou seja, o hino e a bandeira vingaram como símbolos republicanos
enquanto reelaboração de símbolos monárquicos (Carvalho, 1990:109-128).
Porém, nessa mesma República podemos observar a existência de grupos e
agremiações populares que faziam política a seu modo, ainda que distantes dos
canais oficiais de participação (Carvalho, 1987). Um exemplo disso era a Festa
da Penha que, como conclui Rachel Soihet (1998:41), após acompanhar detidamente
a história da mesma, "tornou-se a festividade mais popular do Rio de Janeiro
depois do Carnaval". A grande concentração de grupos musicais, cordões, ranchos
e blocos carnavalescos e o entusiasmo popular fariam desta festa uma preliminar
das folias de Momo. Alguns que, posteriormente, seriam consagrados como
expoentes da música popular brasileira eram seus assíduos freqüentadores, como
Sinhô, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha, Caninha, João da Baiana e Donga.
Além disso, havia ainda as agremiações carnavalescas. Em sua análise sobre o
carnaval carioca entre 1880 e 1920, Maria Clementina Pereira da Cunha (2001),
evitando uma abordagem evolucionista do assunto, aponta para o carnaval
multifacetado que tomava conta das ruas do Rio de Janeiro desde meados do
século XIX. Como mostra a autora, ainda que fosse o modelo "civilizado" do
carnaval europeu que se desejasse impor, outras formas populares de folia
conviviam com as Grandes Sociedades Carnavalescas desde meados do século XIX e
até nelas se inspiravam para organizar seus desfiles, apropriando-se de alguns
elementos, mas atribuindo-lhes significações distintas.
Em outro estudo relacionado à multiplicidade de formas de se brincar o zé-
pereira durante o carnaval carioca entre as últimas décadas do século XIX e
princípios do século XX, Cunha (2002) chama atenção para os perigos de uma
leitura presentista para o Carnaval. Suas críticas recaem sobre boa parte da
historiografia brasileira relativa ao tema (pp. 383-88) que, ao permanecer no
nível do discurso de parte da intelectualidade carioca de princípios do século
XX, a qual via na festa de Momo uma marca de brasilidade, acabou por fazer, de
forma anacrônica, da história do carnaval "[...] um simulacro da história de
uma identidade construída e atribuída à nação [...]" (p. 386). Segundo a
autora, construiu-se uma história política linear e etapista para o carnaval
brasileiro, sendo este abordado como uma síntese sincrética e festiva da
miscigenação racial.
Nesse sentido, Cunha, acertadamente, sugere que, mais profícuo do que ver no
carnaval uma festa unívoca e nacional, é procurar ver o que fez dele "um
colorido campo de batalha", quer dizer, "[...] manifestação de conflitos em
torno de normas e padrões de comportamento, de disputa pela legitimidade da
presença de diferentes setores e grupos no interior da festa, em um tenso
diálogo social" (ibidem:388).
Assim, devemos ter cuidado para não incorrermos em um anacronismo cultural ao
atribuirmos ao samba um sentido de ícone representativo da brasilidade em um
momento no qual vários ritmos eram apreciados.
Deve-se atentar inicialmente para a indeterminação do momento histórico vivido
pela música popular brasileira das primeiras décadas do século XX. Nos anos
1910 e 1920, observa-se no Rio de Janeiro uma profusão de ritmos nacionais e
internacionais: maxixe, tango, tango argentino, tango carnavalesco, toada
sertaneja, batuque, embolada, valsa, mazurca, xote, samba, samba carnavalesco,
lundu, corta-jaca, marcha carnavalesca, charleston, one step, fox-trot, rag-
time, cateretê, samba-canção, choro, choro-modinha, choro-canção, modinha,
toada, marcha, marcha-rancho, dentre outros.
Entre os ritmos nacionais, parecem predominar os sertanejos,12 o choro e as
variações rítmicas do samba (aliás, nesse momento há ainda uma indefinição em
torno da designação "samba", usada para indicar um certo ritmo de origem rural
ou urbana, mas também para designar festa ou dança). Na verdade, embora
disputem a primazia em relação à preferência dos ouvintes, não há uma oposição
entre esses gêneros. João Pernambuco, por exemplo, além dos ritmos nordestinos,
compunha também sambas e batuques e, inclusive, sua canção Cabocla de Caxangá
(em parceria com Catulo da Paixão Cearense), que divertiu o público no carnaval
de 1914, foi gravada sob o rótulo de "batuque sertanejo". Inspirados nessa
canção, os que mais tarde ficariam famosos como os 8 Batutas ' cujo repertório
era formado por choros, sambas, toadas, valsas e outros ritmos, tendo em sua
formação músicos populares que se tornariam célebres como Pixinguinha e Donga '
formaram o Grupo de Caxangá, apresentando-se vestidos em trajes nordestinos.
Se o samba foi, ao longo das três primeiras décadas deste século, conquistando
paulatinamente o gosto musical de uma significativa parcela da população
brasileira, seu significado não era o mesmo para todos. A visita oficial do
casal real da Bélgica ao Rio de Janeiro, em 1920, por exemplo, é um episódio
que nos revela como esse ritmo servia tanto para que as elites expressassem a
imagem que queriam construir para o Brasil, como também para que as classes
populares o fizessem a sua maneira. Assim, supostamente por evocarem a
brasilidade com sua música, os 8 Batutas serão convidados a apresentar-se para
tocar durante o almoço oferecido ao rei Albert e à rainha Elizabeth da Bélgica
no palácio presidencial. Mas os Batutas também aproveitaram o mesmo evento para
dar suas arranhadas naquela imagem idílica do Brasil das elites. Em 1921,
montaram a revista O que o Rei não Viu. Arranjada pelos dois irmãos
Pixinguinha, China e por Dias Pinto, seu título tinha um duplo alvo: referia-se
ao mesmo tempo ao músico Sinhô, desafeto dos dois irmãos, e também troçava com
a visita do par real belga ao Rio de Janeiro, pois naquela ocasião as
autoridades, com a intenção de causar uma boa impressão, empenharam-se na
limpeza urbana e, arbitrariamente, efetuaram inúmeras prisões preventivas
(Ruiz, 1984:24-25).
Este samba polifônico seria amplificado pelos recursos audiovisuais que a
nascente cultura de massas introduzira ' a gravação de discos, a introdução do
rádio, a difusão do teatro de revista e a abertura das primeiras salas de
cinema, como o cine Palais, no Rio de Janeiro (aí os músicos apresentavam-se
antes e durante a exibição de filmes)13 ' resultado de uma árdua negociação
entre músicos populares e gravadoras, cantores de sucesso provenientes das
classes médias, empresários teatrais, membros da elite e intelectuais.
O desafio que permanece, me parece, é explicar o "mistério do samba", isto é,
por que dentre todos os ritmos populares da época, será o samba aquele que se
tornará, paulatinamente, o ritmo nacional por excelência. Não pretendo aqui,
evidentemente, esgotar o assunto, que ainda requer muito estudo, mas apenas
sugerir uma interpretação que contribua para perscrutar esse "mistério" que
permanece praticamente insondável, ainda que Vianna (1995) tenha se esforçado
em "decifrá-lo".
"Pelo telefone": a indústria fonográfica amplifica a voz do samba
Uma das grandes novidades daquele começo de século foi a gravação de discos. A
Casa Édison, cuja matriz era norte-americana, foi pioneira no ramo das
gravadoras no Brasil e instalou-se no Rio de Janeiro em 1900. Aos poucos,
outras gravadoras viriam para a capital federal, dentre as quais: Columbia
Phonograph, Victor Record, Favorite Record, Grand Record Brasil, Odeon,
Parlophon, Brunswick, Discos Phoenix e Discos Gaúcho (Cabral, 1996b: 8, 18-19).
Em 1916 foi feita a gravação do samba Pelo Telefone. A canção saiu pela Casa
Édison, na voz do cantor Baiano, no final de 1916, com a finalidade de lançá-la
para o carnaval que se aproximava. Foi registrada na Biblioteca Nacional, em
dezembro daquele mesmo ano, como samba carnavalesco, com música de autoria de
Donga e letra do jornalista Mauro de Almeida (Peru dos Pés Frios).
O retumbante sucesso do Pelo Telefone fez dele um divisor de águas na música
popular brasileira.14 O tema central da canção é certamente um dos fatores que
mais concorreram para essa grande repercussão. Trata-se de uma sátira à
cumplicidade entre um delegado da polícia e o jogo ilícito, cuja denúncia,
aliás, era recorrente na cidade do Rio de Janeiro.
É significativo que a temática do primeiro samba a estourar nas paradas de
sucesso tenha sido a revelação dessa aliança espúria que aponta para o conluio
entre a ordem e a desordem. No caso da perseguição ao samba, por exemplo,
apesar da truculência ser a tônica da atuação policial da época em relação aos
sambistas, um depoimento de Donga deixa entrever uma certa cumplicidade entre
estes e os policiais, os quais, vale lembrar, tinham muitas vezes a mesma
origem social. Inicialmente, o artista recorda-se de ocasiões em que "festas
íntimas", realizadas nas residências, eram bruscamente interrompidas por
policiais que levavam os moradores ao distrito para dar explicações "por estar
dançando samba, este que [hoje] toda gente admira e dança". Mas, em seguida, o
compositor lamenta a "falta de sorte dos sambistas", quando a abordagem era
efetuada por policiais menos tolerantes para com o samba e seus instrumentos de
acompanhamento: "Na Festa da Penha, os pandeiros eram arrebatados pela polícia,
por medida de precaução, quando por falta de sorte dos sambistas, não estava de
serviço na Penha, o piquete da cavalaria do 1º ou 9º regimentos [...] que
sempre nos protegeu" (apud Moura, 1983:73).
Observe-se também nesse relato a súbita interrupção das "festas íntimas" pela
polícia, o que revela como o espaço privado das classes populares era
continuamente violado. Aliás, os sambas A Polícia já foi lá em Casa (Olegário
Mariano e Júlio Cristobal), de 1929, e Se a Polícia Deixasse (Rafael Mujica e
Martinez Grau), de 1927, denunciam em seu título, ainda que de forma divertida,
a mesma arbitrariedade. Dessa forma, as normas de cidadania que a República
introduzira e o alargamento da dimensão individual que a modernidade impunha,
ao mesmo tempo que ampliavam o espaço privado das elites, restringiam aquele
dos despossuídos (Sevcenko, 1998b:543-44).
Foi também a apreensão de um pandeiro na famosa Festa da Penha que deu origem a
uma passagem reveladora dessa mesma imbricação entre a ordem e a desordem. Nela
estiveram envolvidos o afamado sambista João da Baiana, filho de baianos, e,
nada mais nada menos do que o caudilho gaúcho senador Pinheiro Machado, um dos
políticos mais influentes da República Velha. Quem narra o episódio é o próprio
João da Baiana:
A polícia perseguia a gente. Eu ia tocar pandeiro na festa da Penha e
a polícia me tomava o instrumento [...] Houve uma festa no Morro da
Graça, no palacete do (senador) Pinheiro Machado e eu não fui.
Pinheiro Machado perguntou então pelo "rapaz do pandeiro". Ele se
dava com os meus avós, que eram da maçonaria. Irineu Machado,
Pinheiro Machado, marechal Hermes, coronel Costa, todos viviam nas
casas das baianas. Pinheiro Machado achou um absurdo e mandou um
recado para que eu fosse falar com ele no Senado. E eu fui [...] Ele
então perguntou por que eu não fora à casa dele e respondi que não
tinha aparecido porque a polícia havia apreendido o meu pandeiro na
festa da Penha. Depois, quis saber se eu tinha brigado e onde se
poderia mandar fazer outro pandeiro. Esclareci que só tinha a casa do
seu Oscar, o Cavaquinho de Ouro, na Rua da Carioca. Pinheiro pegou um
pedaço de papel e escreveu uma ordem para seu Oscar fazer um pandeiro
com a seguinte dedicatória: "A minha admiração, João da Baiana.
Pinheiro Machado". (Cabral, 1996a:27-8)
Este depoimento revela a presença de figuras ilustres da época, entre elas um
presidente da República, marechal Hermes da Fonseca (1910-14), e seu aliado
político, o senador Pinheiro Machado, na casa das "tias" baianas. Também um
outro presidente do país, Venceslau Brás (1914-18), ficara muito grato à tia
Ciata por tê-lo curado de um ferimento na perna por intermédio de rituais
religiosos afro-brasileiros.
Mas esse episódio também evidencia algo fundamental. Ao mandar fazer o pandeiro
com seu nome inscrito, o senador da República estava, por certo, procurando
intimidar o policial que eventualmente fosse tentar apreender o instrumento.
Porém, a pergunta inicial de Pinheiro Machado a João da Baiana ("quis saber se
eu tinha brigado") sugere que, mesmo para ele, o samba "ao ar livre", isto é,
enquanto manifestação pública, era passível de repressão, o que não ocorreria
com o samba tocado e dançado em espaços privados (como o de seu palacete ou o
da casa da tia Ciata, por exemplo).
Dessa maneira, na intimidade das casas das "tias" baianas (sendo a mais afamada
a da Ciata), os dois Rios de Janeiro (o "Rio da Regeneração" e o "Rio das
malocas"), separados no espaço, encontram-se num ambiente festivo, devocional
ou não. Ali, mundos sociais distintos se interpenetram. Cidadãos pobres, como
João da Baiana que, na qualidade de artista freqüenta o palacete de Pinheiro
Machado, adentram através de sua arte, e ainda que parcialmente, a privacidade
do lar dos mais ricos (Sevcenko, 1998b: 544-45). Aí estabeleciam-se alianças e
obtinham-se favores.
Voltando ao samba Pelo Telefone, provavelmente para evitar dissabores, não foi
a versão original ' na qual a pilhéria era usada como recurso para a
desmoralização de uma autoridade pública ' aquela apresentada oficialmente
pelos autores para registro musical, mas ela circulou de boca em boca, sendo
até hoje lembrada. Na versão registrada, o "chefe da polícia", transfigurado em
rei Momo, vira o "chefe da folia" e são homenageados os carnavalescos Peru do
Pés Frios (co-autor da música) e Morcego, ambos da sociedade carnavalesca Clube
dos Democráticos.
Apresento em seguida as duas versões. A versão não registrada é a seguinte:
O chefe de polícia/ Pelo telefone/ Mandou avisar/ Que na Carioca/ Tem
uma roleta/ Para se jogar / Ai, ai, ai/ O chefe gosta da roleta/ Ó
maninha/ Ai, ai ai/ Ninguém mais fica forreta/ É maninha/ Chefe
Aurelino/ Sinhô, sinhô/ É bom menino/ Sinhô, sinhô/ Pra se jogar/
Sinhô, sinhô/ De todo jeito/ Sinhô, sinhô/ O bacará/ Sinhô, sinhô/ O
pinguelim/ Sinhô, sinhô/ Tudo é assim (Moura, Roberto, 1983: 78).
A versão registrada é assim:
O chefe de folia/ Pelo telefone/ Manda avisar/ Que com alegria/ Não
se questione/ Para se brincar/ Ai, ai, ai/ É deixar mágoas pra trás/
É rapaz/ Ai, ai ai,/ Fica triste se és capaz/ E verás/ Tomara que tu
apanhes/ Pra não tornar a fazer isso/ Tirar amores dos outros/ Depois
fazer seu feitiço/ Ai, ai, rolinha/ Sinhô, sinhô/ Se embaraçou/
Sinhô, sinhô/ É que a avezinha/ Sinhô, sinhô/ Nunca sambou/ Sinhô,
sinhô/ Porque esse samba/ Sinhô, sinhô/ De arrepiar/ Sinhô, sinhô/
Põe perna bamba/ Sinhô, sinhô/ Mas faz gozar/ Sinhô, sinhô/ O "Peru"
me disse/ Se o "Morcego" visse/ Eu fazer tolice/ Que eu então saísse/
Dessa esquisitice/ De disse que não disse/ Ai, ai, ai/ Aí está o
canto ideal/ Triunfal/ Viva o nosso Carnaval/ Sem rival/ Se quem tira
amor dos outros/ Por Deus fosse castigado/ O mundo estava vazio/ E o
inferno só habitado/ Queres ou não/ Sinhô, sinhô/ Vir pro cordão/
Sinhô, sinhô/ Do coração/ Sinhô, sinhô/ Por este samba (Moura, 1983:
79).
O popular ritmo amaxixado do samba também contribuiu para a sua rápida
aceitação. Além disso, o refrão da música continha alguns versos retirados de
uma canção folclórica nordestina apresentada numa revista de sucesso, encenada
em 1916 no teatro São José.
Porém, a autoria do samba Pelo telefone é controvertida. Ainda quando o samba
estava recém-lançado, na véspera do carnaval de 1917, sairia no jornal uma
nota, assinada pelo Grêmio Fala Gente, anunciando que seria cantado na Avenida
Rio Branco o "verdadeiro tango Pelo telefone, dos inspirados carnavalescos João
da Mata, mestre Germano, nossa velha amiguinha Ciata e o inesquecível bom
Hilário; arranjo exclusivamente do querido pianista J. Silva (Sinhô), dedicado
ao bom e lembrado amigo Mauro, repórter da Rua, em 6 de agosto de 1916, dando
ele o nome de Roceiro" (Alencar, 1980:119). Reproduzia-se então a letra da
cantiga que ironizava a apropriação da mesma por Donga, também participante das
rodas de partido alto e que, segundo as pessoas citadas na nota, todas bastante
reconhecidas no meio negro, teria agido de forma oportunista ao registrá-la em
seu nome (em relação a Mauro, autor da letra, não havia qualquer contestação):
Pelo telefone/ A minha boa gente/ Mandou me avisar/ Que o meu bom
arranjo/ Era oferecido/ Para se cantar/ Ai, ai, ai/ Leve a mão à
consciência/ Meu bem/ Ai, ai, ai/ Mas por que tanta presença, meu
bem?/ Ó que caradura/ De dizer nas rodas/ Que este arranjo é teu!/ É
do bom Hilário/ E da velha Ciata/ Que o Sinhô escreveu/ Tomara que tu
apanhes/ Pra não tornar a fazer isso/ Escrever o que é dos outros/
Sem olhar o compromisso (Alencar, 1981:26).
De fato, é aceito pelos estudiosos da música popular que a canção teria sido
composta nas rodas de samba da casa da tia Ciata, uma espécie de embaixada do
samba da "pequena África" do Rio de Janeiro em princípios do século. Migrante
baiana, tia Ciata (Hilária Batista de Almeida) veio para o Rio em 1876, tendo
se casado com o baiano João Batista, que trabalhou como linotipista no Jornal
do Commercio e posteriormente em várias funções no serviço público, inclusive
numa delegacia de polícia, cargo obtido por influência do presidente da
República, Venceslau Brás, como gratidão por uma cura espiritual que, como já
vimos, obtivera de Ciata.
Ciata era sacerdotisa do candomblé de João Alabá e em sua casa realizava também
cerimônias religiosas e lúdicas. Além disso, era quituteira e ainda costurava
fantasias de baianas para o carnaval e o teatro de revistas. A atividade
profissional do marido de Ciata, a crescente ascendência que ela própria foi
ganhando no meio negro, além da presença de pessoas influentes nas festas,
garantem uma certa "imunidade" ao local que marcaria a memória cultural negra
da cidade.
Os protestos dos co-autores de Pelo Telefone, bem como a apropriação indevida
da música por Donga, testemunham uma nova ética que se impunha aos músicos
populares e a que o sambista Sinhô (o mesmo, aliás, cuja co-autoria em Pelo
telefone havia sido omitida) definiria de forma lírica: "samba é como
passarinho, é de quem pegar" (Alencar, 1981:67). O nascente e promissor mercado
fonográfico, trazido pelos novos ventos da modernidade, introduziu mudanças. A
antiga criação coletiva e improvisada das rodas de partido alto tinha que
conviver agora com a projeção de valores individuais que a profissionalização
do samba possibilitava. As acusações mútuas de plágios eram constantes. O
próprio Sinhô foi por mais de uma vez acusado de plagiário por Hilário Jovino,
um de seus parceiros em Pelo telefone, e Heitor dos Prazeres, que, gozando da
alcunha de "rei do samba" dedicada ao grande compositor, escreveu uma canção
intitulada Rei dos Meus Sambas.
Para auxiliar na difusão de seus discos, as gravadoras contariam nos anos 20
com o rádio que, no entanto, se tornaria seu forte aliado apenas a partir dos
anos 30. Em 1922 foi transmitida do Rio de Janeiro a primeira emissão
radiofônica. Entretanto, as deficiências técnicas relativas à transmissão,
difusão, programação ou mesmo emissão do sinal adiariam por cerca de dez anos o
grande impacto que esse potente veículo de comunicação teria na transformação
da cultura brasileira (Sevcenko, 1998b:587-88).
Velhas rivalidades são então acionadas em razão do novo tipo de relação social
que a modernidade inaugurara, como uma antiga disputa regional entre cariocas e
baianos residentes no Rio de Janeiro em torno da autenticidade do samba. O
berço do samba seria o Rio de Janeiro ou a Bahia? Como sabemos, essa discussão
acerca da "pureza" da cultura é sobretudo política, produto do embate de grupos
sociais e, nesse sentido, como ensina Eric Hobsbawm (1984), as tradições serão
sempre, de certa forma e em diferentes gradações, inventadas.
É em torno dessa autenticidade ou "pureza" do samba baiano e carioca que se
cria uma polêmica musical deliciosa. Ela se estendeu de 1917 a 1921, opondo, de
um lado, o carioca Sinhô e, de outro, o baiano Hilário Jovino Ferreira (o "bom
Hilário") e os cariocas descendentes de baianos Donga e João da Baiana, além de
outros que lhes emprestaram solidariedade como Pixinguinha e China. Além do
gosto pela provocação, um traço característico de Sinhô, outros motivos
desencadearam a briga musical. Parece que Sinhô rivalizava com os baianos nas
rodas da casa da tia Ciata e também havia se indisposto com Pixinguinha e seu
irmão China quando reivindicou para si a autoria do arranjo Pelo Telefone. A
polêmica é longa e envolve muitas canções e, por isso, retirarei destas apenas
os trechos que interessam para o debate que faço aqui.
Sinhô, em A Bahia é Boa Terra (ou Quem são Eles), sucesso do carnaval de 1918,
ironiza a Bahia, o que fica patente logo nos primeiros versos: "A Bahia é boa
terra/ Ela lá e eu aqui, Iaiá/ Ai, ai, ai".
Parece que a letra fazia alusão a uma briga política baiana daquele momento,
mas, por extensão, dirigia-se aos baianos de um modo geral. Estes, por sua vez,
entendem o recado. O "bom Hilário" devolve com o samba Não És Tão Falado Assim,
e Donga arremata com Fica Calmo que Aparece. Porém, a resposta mais veemente
foi dada por Pixinguinha e China no samba Já Te Digo, de 1919, em que
aproveitavam para achincalhar não só com a qualidade musical, mas também com o
aspecto físico de Sinhô (eles eram velhos conhecidos, pois Sinhô havia sido
hóspede da Pensão Viana, propriedade dos pais dos autores da cantiga):
Um sou eu/ E o outro eu já sei quem é/ Ele sofreu/ Para usar
colarinho em pé/ Vocês não sabem quem é ele/ Mas eu lhes digo/ Ele é
um cara feio/ E fala sem receio/ E sem medo ao perigo/ Ele é alto,
magro e feio/ e desdentado/ Ele fala do mundo inteiro/ No Rio de
Janeiro/ No tempo em que tocava flauta/ Que desespero/ Hoje ele anda
janota/ À custa dos trouxas/ Do Rio de Janeiro (Cabral, 1997: 43)
Sinhô devolve com o samba Fala meu Louro, de 1920, no qual satiriza o senador
Rui Barbosa, mas novamente os baianos, de modo geral, eram o seu alvo:
A Bahia não dá mais coco/ para botar na tapioca/ para fazer o bom
mingau/ para embrulhar o carioca/ Papagaio louro/ Do bico dourado/ Tu
falavas tanto/ Qual a razão que vives calado?/ Não tenhas medo/ Coco
de respeito/ Quem quer se fazer não pode/ Quem é bom já nasce feito.
(Vasconcelos, 1985:202)
O "bom Hilário" (Hilário Jovino), acusando-o de plágio, revida a ofensa com
Entregue o Samba a seus Donos, de 1920, reivindicando para os baianos a
autenticidade do samba:
Entregue o samba a seus donos/ É chegada a ocasião/ Lá no Norte não
fazemos/ Do pandeiro, profissão/ Falsos filhos da Bahia/ que nunca
pisaram lá/ que não comeram pimenta/ na moqueca e vatapá/ mandioca
mais se presta/ muito mais que tapioca/ Na Bahia não tem mais coco/ É
plágio de um carioca. (Alencar, 1981:33)
Sinhô, freqüentador assíduo da casa do pai-de-santo Assumano, no Rio de
Janeiro, devolve a provocação no samba Sempre Voando (1921), dessa vez no campo
religioso, duvidando da competência dos pais-de-santo baianos. Opõe-se aqui a
"pureza" da negritude carioca à "pureza" do legado negro baiano, o que
representa, acima de tudo, uma disputa política por prestígio no interior da
qual inventam-se e desinventam-se tradições. Tal ironia de Sinhô é hoje
absolutamente impensável devido ao grande prestígio de que gozam os pais-de-
santo baianos, o que, a se julgar pela canção, naquela época não era uma
"tradição": Já descobri meu bem/ Coisa que causa espanto/ Na Bahia tem, tem/
Gente que é pai-de-santo (Alencar, 1981:34).
Essa discussão, de certa forma, se estende até os dias de hoje. O compositor
baiano Caetano Veloso, em uma canção recente, parece ter tentado colocar um
ponto final na questão, elegendo a escola de samba carioca da Mangueira como o
lugar "onde o samba é mais baiano" e lembrando as "Ciatas" que trouxeram o
samba baiano para o Rio de Janeiro.
Entretanto, a discussão mais interessante não é tanto acerca da origem do
samba, uma vez que as tradições servem aos grupos sociais, antes de mais nada,
como um argumento político. Parece-me mais proveitoso observar aqui como o
samba é uma linguagem que serve para expressar diferenças regionais, desavenças
pessoais ou mesmo insatisfações populares com os poderosos. Não obstante, são
evidentes as continuidades históricas entre o samba baiano e o carioca em
virtude, como já vimos, não só da intensa migração baiana para a capital
federal na virada do século, como também da igualmente intensa atuação dos
baianos tanto nas atividades lúdicas quanto religiosas dos redutos negros da
capital federal.15
"A frutinha nacional": o teatro de revistas e a imagem da mulata
Outro meio poderoso de divulgação de sambas, artistas e músicos negros nas
décadas de 1910 e 1920 foi o popular teatro de revistas.
Tendo sido introduzida no Rio de Janeiro por empresários portugueses em meados
do século XIX, a revista ganharia textos nacionais com Arthur Azevedo e seu
parceiro Moreira Sampaio em finais do século, dupla que marcaria a história do
teatro de revistas no Brasil,16 inaugurando um novo gênero teatral, a revista
de ano. O que lhes garantiu sucesso foi o fato de que introduziram em suas
peças "além das alusões aos fatos políticos e sociais mais marcantes do ano
anterior, tratados de forma satírica, e do uso sempre reiterado das alegorias
como recurso de representação e observação crítica, [...] a caricatura
explícita de personalidades públicas [...]" (Mencarelli, 1999:133).
A revista exerceu papel importante no sentido de popularização do teatro, até
então restrito às camadas mais abastadas da população, que costumavam
comparecer aos espetáculos montados pelas grandes companhias estrangeiras
francesas e italianas.
O historiador e crítico da música popular brasileira, José Ramos Tinhorão,
enfatiza a relevância do teatro de revistas para a divulgação da música e mesmo
de uma dramaturgia populares:
Essa estreita ligação com o gosto de camadas cada vez mais amplas da
população [...] deu origem a duas importantes conseqüências: conferiu
uma característica brasileira ao gênero, na base de aproveitamento de
tipos populares como o matuto, o coronel-fazendeiro, o português, a
mulata, o guarda, o capadócio (depois chamado malandro), o
funcionário público, o camelô etc., e fez essa pequena humanidade
dançar e cantar durante meio século ao som das maiores criações
musicais e coreográficas do povo ' o lundu, o maxixe e o samba.
(Tinhorão, 1972: 21)
Conhecidos humoristas cariocas também escreveram para o teatro de revistas em
princípios do século XX. Monica Pimenta Velloso, em Modernismo no Rio de
Janeiro (1996), analisa a trajetória de um grupo de caricaturistas que, na
virada do século XIX para o século XX, pensaram a identidade nacional através
do humor e da irreverência, inspirados no cotidiano das ruas do Rio de Janeiro.
Se, no Rio de Janeiro, o modernismo teve um caráter fragmentário e não se
configurou em um movimento, como na capital paulista, também lá havia grupos de
artistas e intelectuais preocupados com os traços definidores da identidade
brasileira.
A autora destaca o intercâmbio do grupo de humoristas cariocas com alguns
espaços da cultura popular. Bastos Tigre e Raul Pederneiras escrevem para o
teatro de revistas, sendo este último compositor também de canções inspiradas
no folclore nordestino. Além disso, acompanhados por outros intelectuais, como
Emílio de Menezes, Hermes Fontes e Afonso Arinos de Mello Franco, costumavam
sair para noitadas musicais junto a Donga, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres.
Também compareciam à festa da Penha, onde "improvisavam conferências e
caricaturas" (1996:21-34, 43).
No período anterior ao carnaval, eram montadas as chamadas "revistas
carnavalescas", que auxiliavam na difusão dos sambas. Mas, também ao longo do
ano, o teatro rebolado divulgava o trabalho dos compositores populares. O
extraordinário compositor Sinhô projetou-se no Rio de Janeiro por meio dele.
Conhecido como o "Rei do samba", foi o maior expoente desse gênero musical nos
anos 20, tanto pela quantidade quanto pela qualidade de sua produção.
Foi também o teatro de revistas que lançou a primeira grande cantora brasileira
de sambas, que viria a exercer influência fundamental em cantoras das gerações
seguintes, entre elas Carmen Miranda. Era Araci Cortes, a "Linda flor". Ela se
autodenominava uma "mestiça terrível ' filha de brasileiro com espanhol e neta
de paraguaio" (Ruiz, 1984:12).
Aos poucos ela se firmará como a primeira grande intérprete de sambas e tornará
célebre nos palcos a personagem da "mulata brasileira". Como diz seu biógrafo
Roberto Ruiz, referindo-se ao papel da cantora na criação de uma revista
nacional, desvencilhada do modelo luso que lhe dera origem: "[...] foi Araci
que, pode-se dizer, consolidou o tipo [da 'mulata'] e fez do samba uma força de
brasilidade na marcha descolonizadora da revista" (ibidem:35). Calçando
"chinelinhas de baiana", a estrela Araci se notabilizou pela sensualidade do
requebrado e sapateado que marcava suas coreografias. Um dos sambas que pôs em
delírio o público do teatro do Recreio em 1929, composto por Ary Barroso, foi o
malicioso Samba da Gelatina, que insinuava uma analogia entre os movimentos
dessa guloseima e os da "mulata":
Treme, treme/ Requebrando/ Treme, treme/ Rebolando/ Mulata vai
devagar/ Com tanta malemolência/ Mulata, tenha paciência/ Pode
quebrar!/ Canjica de milho verde/ Polvilhada de canela/ Tremelicando
no prato/ Como sei de donzela/ Mexo, mexo, remelexo/ Requebrando meus
quadris/ Ai que gelatina assim/ Juro que eu nunca fiz! (Ruiz, 1984:
127)
Um grande número de sambas interpretados por Araci Cortes fazem referências às
mulatas (e aos mulatos), às vezes nos próprios títulos, como por exemplo: O
Choro das Mulatas, 1927; Esse Mulato Vai Ser Meu, 1930; Mulata, 1929; Mulata
Revoltosa, 1931; Mulato Bamba, 1932; Preto e Branco, 1930. Apareciam também,
embora em menor número, as "morenas", uma classificação racial que talvez
equivalesse a de mulata. As referências às brancas são praticamente
inexistentes. Contudo, nessa terra de mulatas, parecia não sobrar muito lugar
para as negras também já que, como dizia um samba, lançado por Araci em 1934,
Crioula Só por Necessidade.
Mas, embora Araci tenha dado maior visibilidade ao tipo da "mulata", bem antes
dela ele já aparecera no teatro rebolado. Em 1906, estreava no Palace-Teatro a
revista Vem cá, mulata (José do Patrocínio Filho, Chicot e Thoreau) e no teatro
Carlos Gomes a revista O maxixe (Costa Júnior, Paulino Sacramento e Luís
Moreira), ambas tendo como música principal a canção carnavalesca daquele mesmo
ano Vem cá, mulata (Arquimedes de Oliveira e Bastos Tigre). Em O maxixe, a
intérprete era Maria Lino, a mesma que mais tarde acompanharia Duque para
dançar maxixe em Paris.
Esta canção, cantada no carnaval e na revista, obteve um estrondoso sucesso,
chegando a ganhar uma versão parisiense que, em 1912, foi editada também em
Berlim com o nome La maxixe brésilienne (Alencar, 1980:98-99). O estribilho
famoso era o seguinte: "Vem cá, mulata!/ Não vou lá não /Sou Democrata/ de
coração". Sobre este maxixe, há a passagem anedótica em que um certo marechal
de guerra alemão, o ministro Von Reicheau, em visita oficial ao Brasil no ano
de 1907, ao ser homenageado por uma banda militar, pediu ao maestro que tocasse
alguma música brasileira. Podia ser aquela "do fem cá mulate", dizia ele,
referindo-se ao sucesso carnavalesco de 1906, Vem cá, mulata!. A banda atacou o
maxixe, deixando enfurecido o então ministro da Guerra, marechal Hermes da
Fonseca, que determinou a proibição da execução do maxixe pelas bandas da
corporação, ao menos nas solenidades oficiais (Efegê, 1974:158).
Assim, também no exterior ia aos poucos se difundindo a imagem da mulata
brasileira. Alguns anos mais tarde, o músico da vanguarda artística francesa
Darius Milhaud encanta-se com o samba O boi no telhado, e o recria, incluindo-
o em suas apresentações em Paris. A letra do samba alude à mulata, companheira
na folia carnavalesca:
Vem mulata ter comigo/ Vamos ver o Carnaval/ Eu quero gozar contigo/
Esta festa sem rival/ Vem cá, vem cá, vem cá/ meu bem/ Como eu não
há, não há/ ninguém/ Pula, pula, perereca/ E segura esta boneca/ Vem
cá, vem cá, vem cá (bis)/ Olá/ Segura o cabrito/ O boi é bem manso/
Mulata cutuba (bis)/ Agüenta o balanço.
Seria, sobretudo, com a famosa revista Forrobodó (Carlos Bittencourt e Luís
Peixoto com músicas de Chiquinha Gonzaga), montada em 1912, que a "mulata",
interpretada por Cecília Porto, ganharia definitivamente a platéia. É
importante notar que se, nas revistas Vem cá, mulata, O maxixe e Forrobodó, as
mulatas eram interpretadas por atrizes brancas, as próximas "mulatas" que
fariam sucesso nos palcos, Otília Amorim e Araci Cortes, eram, elas mesmas,
mestiças.
Na revista Forrobodó, a "mulata" é cantada como uma mulher constantemente
assediada, nossa "frutinha nacional", mas que podia ser fatal se ingerida:
Sou mulata brasileira/ feiticeira/ frutinha nacional/ Sou perigosa e
matreira/ sou arteira/ como um pecado mortal /[...]/ Tenho sempre uns
renitente/ pela frente/ mas em todos dei a lata/ Nesta terra,
francamente/ minha gente/ não se pode ser mulata! (ibidem: 101)
Mas, além de servir para expressar a representação de um símbolo nacional
popular, o tipo da "mulata" servia também para abordar um outro tema
corriqueiro no cotidiano da cidade: as relações afetivo-sexuais interétnicas.
Dessa forma, em várias composições a mestiçagem racial, principalmente entre o
clássico par mulata-português, é tematizada através da figura da mulata. Na
revista Diz isso Cantando (Ary Barroso, J. Cristobal, Augusto Vasseur, Luís
Peixoto), estrelada por Araci Cortes em 1929, a música Boneca de Piche traz um
diálogo entre um casal formado por um negro e uma mulata. Diante da constatação
que ele faz sobre a atração do branco pela "fruta", ela ameaça trocá-lo por um
português:
[...] Da cor do azeviche!/ Da jabuticaba! / Boneca de piche!/ É tu
que me acaba!/ Sou preto e meu gosto/ Ninguém me disputa/ Mas há
muito branco/ que gosta da fruta! (bis)/ Eh! Eh!/ Tem português assim
nas minhas águas!/ Que culpa eu tenho de ser boa mulata?/ Nêgo, se tu
"borrece" as minhas máguas/ Eh! Eh!/ Eu te dô a lata! [...] (adaptado
de Ruiz, 1984: 156-158).
Mas "mulata" podia ser também a sedutora favela, como no samba Minha Favela (Sá
Pereira e Marques Porto), interpretado também por Araci Cortes na revista
Pensão Meira Lima, de 1930. Nessa bela composição, a mesma favela que
envergonhava o "Rio da Regeneração" era motivo de orgulho para o "Rio das
malocas": Minha doce companheira/ És mulata, és brasileira/ És minha
fascinação!/ Minha favela/ Tens na luz pálida, amena/ Todo cheiro da morena/
Que embriaga o coração.
Além disso, também a cor da "mulata" e sua brasilidade podiam servir como
metáfora política para expressar a alternância de presidentes paulistas e
mineiros durante a Primeira República, como no maxixe Café com Leite (Freire
Júnior), de 1926:
Nosso mestre Cuca movimentou/ O Brasil inteiro/ Pois cada um Estado
pra cá mandou/ O seu cozinheiro/ Mexeu-se a panela, fez-se a comida/
Com perfeição/ Assim foi a bóia bem escolhida/ Com perfeição/ Café
paulista/ Leite mineiro (bis)/ Nacionalista/ Bem brasileiro/ É preto
com branco café com leite/ Cor democrata/ É preto com branco meu bem
aceite/ Cor da mulata/ O leite é bem grosso, o café é forte/ Agüenta
a mão/ As novas comidas têm que dar sorte/ Na situação. (Alencar,
1980: 169-70)
Vemos assim que, nesse registro popular, o tema da mestiçagem é protagonizado
pela imagem polissêmica da mulata. Mulher sedutora e objeto do desejo de negros
e brancos, ela é também representante da brasilidade, nossa "fruta nacional",
da política nacional do café com leite, ao mesmo tempo que é identificada com o
local de moradia, a "favela mulata". Assim, lida nesta chave, a imagem da
mestiçagem é difusa e a "mulata" parece funcionar como uma categoria
explicativa para uma mestiçagem que é vivenciada no nível das relações pessoais
do cotidiano.
Quando a cantora negra norte-americana Josephine Baker veio ao Brasil em 1929,
para se apresentar no Teatro Cassino, no Rio de Janeiro, Araci Cortes foi
convidada para recepcioná-la com uma apresentação, na qualidade de "intérprete
da música popular brasileira". A artista, discriminada em seu país, imigrara
para Paris, onde, acompanhada por bandas de jazz, se consagraria por toda a
década de 20 como a "Vênus de Ébano", a "Cleópatra do Jazz", dançando "quase
nua, envolta numa fantástica tanga, onde pencas de bananas de fantasia
compunham um conjunto exótico que fascinava as ululantes multidões da capital
francesa" (Ruiz, 1984:207; Sevcenko, 1998a:279).17 A sensualidade e a arte da
sauvage Baker também fascinaram o público brasileiro, sendo que ela voltaria ao
Brasil em mais duas outras oportunidades. Alguns anos mais tarde, em 1933, as
duas cantoras se encontrariam em Paris, onde Araci Cortes, "la célèbre
folkloriste brésilienne", se apresentaria na boate Chez Les Nudistes. Naquela
ocasião, Araci integrava o elenco da primeira companhia teatral brasileira a ir
à Europa, numa bem-sucedida temporada em Lisboa e Porto (Ruiz, 1984:172-74).
Com a concorrência do cinema falado e do rádio, o teatro de revistas perderia
paulatinamente importância. Também o maxixe, seu ritmo característico,
declinaria nesse período Entre alguns jovens compositores cariocas do bairro do
Estácio de Sá, um novo ritmo de samba florescia, o qual, paulatinamente, se
tornaria hegemônico. Esses compositores formaram o bloco carnavalesco Deixa
Falar em 1928, localizado no bairro carioca do Estácio de Sá, que reuniu
sambistas que inovaram na percussão, introduzindo o surdo e a cuíca. Alguns
compositores que se tornariam depois famosos freqüentaram as rodas do Estácio,
como Ismael Silva e Bidê.18
Porém, apesar da indefinição do termo, o samba, mais precisamente o samba
carioca, surgido no caldeirão de ritmos presentes naquele começo de século, vai
se firmando enquanto tal ao longo da década de 20 e, nas duas décadas
posteriores, se tornará o mais legítimo representante da música popular
brasileira para fora e para dentro do país.
Os 8 Batutas: música nacional com ou sem aspas?
Os 8 Batutas, conjunto musical formado por alguns que viriam a se tornar
grandes figuras da música popular brasileira, se uniram, no ano de 1919, para
tocar no elegante cinema Palais na capital federal. Compunham o conjunto:
Pixinguinha, na flauta; Donga, no violão; China, no violão e canto; Nelson
Alves, no cavaquinho; Raul Palmieri, no violão; Jacó Palmieri na bandola e
reco-reco; José Alves de Lima (o Zezé), no bandolim e ganzá, e ainda Luis de
Oliveira. O programa anunciava: "Última novidade no mundo artístico carioca, no
seu admirável repertório de música vocal e instrumental brasileira. Maxixes,
lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques, cateretês etc" (Cabral,
1997: 45).
Ainda que seu repertório, como se pode perceber, conte com ritmos variados, os
8 Batutas contribuirão para a divulgação do samba nos anos 20, tanto para
dentro como para fora do país. Apesar do virtuosismo de seus componentes, a
temporada dos 8 Batutas no cinema Palais causou protestos. Evidencia-se aqui a
oscilação entre a aceitação e a rejeição da música popular. Um grupo que
contava com quatro negros, cantava sambas, emboladas e outros ritmos populares
e vestia-se à moda sertaneja, apresentando-se num elegante cinema da capital
federal, podia vir a provocar um certo incômodo.
O maestro e crítico musical Júlio Reis, em sua coluna do jornal A Rua,
considerou um "escândalo" a presença dos 8 Batutas naquele local. No entanto, o
jornalista Xavier Pinheiro, da Revista da Semana, saiu em defesa dos "rapazes
morenos", cujas composições, como as modinhas, as chulas, os sambas, os tangos
e outras, todas de "cunho nacional [...] têm sido apreciadas pela nossa
finíssima sociedade, não têm escandalizado, têm obtido ruidoso sucesso" (apud
Cabral, 1997:46).
No entanto, essa projeção dos 8 Batutas lhes rendeu bons contatos. Convites
para festas e espetáculos começaram a surgir e a Odeon gravou seis músicas do
grupo naquele mesmo ano. Além disso, o magnata Arnaldo Guinle, que os ouvira
tocar, encantou-se com sua música, o que teria grande importância na carreira
do conjunto, pois financiaria suas viagens pelo Brasil e ao exterior. Os 8
Batutas foram chamados a participar dos saraus que organizava em sua residência
e, numa certa ocasião, o "dr. Arnaldo", como se refere a ele Donga, em
depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS), ofereceu aos 8 Batutas a
oportunidade de excursionar pelos estados de São Paulo, Minas, Bahia e
Pernambuco com o propósito de divulgar seu trabalho.
Especificamente em relação à música popular se, para dentro, os ritmos oriundos
das classes populares, em particular o samba, iam se firmando como a música
brasileira por excelência, para fora também iam ganhando a fama, cada vez mais,
de representantes da brasilidade. Assim, a valorização da cultura popular por
certos segmentos intelectuais e artísticos não se dá apenas por um movimento
para dentro do país. Há também um outro movimento de fora para dentro que
aprecia as manifestações populares do Brasil, em especial aquelas de raízes
negras. Isso ocorre, quer por meio da vinda para o Brasil de artistas
estrangeiros, ávidos por conhecê-las, quer através de brasileiros (incluindo-se
aí os artistas) que parecem ter, em suas viagens ao exterior, uma revelação
sobre um Brasil que lhes era praticamente desconhecido.19
Como vimos, também a artista negra norte-americana Josephine Baker, em sua
visita ao Brasil, manifestou seu desejo de conhecer o samba e maravilhou-se com
a grande cantora brasileira de teatro de revistas Araci Cortes. Mas seriam
sobretudo alguns artistas ligados à arte moderna e residentes em Paris que
estabeleceriam uma relação mais estreita com a música popular brasileira. As
exposições etnológicas de princípios do século em alguns museus europeus haviam
possibilitado aos artistas travar contato com a arte negra e indígena. A
tendência cubista na pintura, inaugurada por Picasso e Braque, e na poesia,
encabeçada por Blaise Cendrars e Apolinnaire, seria tributária dessa arte não-
ocidental.
O exímio músico francês Darius Milhaud, afinado com a vanguarda artística
parisiense, residiu no Rio de Janeiro entre 1917 e 1919 a serviço da embaixada
da França. Interessado pelos temas e ritmos populares, travou relações com o
meio musical carioca. Inspirado no maxixe O Boi no Telhado, de Zé Boiadero
(José Monteiro), lançado no carnaval de 1918, compõe a suíte Le Boeuf sur le
Toit e a divulga em Paris no ano seguinte. Lá, funda, junto com Jean Cocteau, o
jazz-cabaré O Boi no Telhado, cujo nome fora retirado de um balé de autoria dos
dois artistas, inspirado no maxixe acima mencionado (Sevcenko, 1998a:201).
Blaise Cendrars também esteve no Brasil (por mais de uma vez), subvencionado
pelo milionário e mecenas paulista Paulo Prado. Em sua estadia de 1924, quando
permaneceu por nove meses, travou contato com artistas modernistas em São Paulo
e com músicos populares no Rio de Janeiro, assistiu ao carnaval do Rio de
Janeiro (aí conheceu Donga e, inusitadamente, subiu sozinho o Morro da Favela),
passando a semana santa nas cidades históricas de Minas Gerais. Essa viagem
contou também com a presença de importantes artistas brasileiros, como Mário de
Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, dentre outros, sendo por todos
batizada como a "redescoberta-do-Brasil".
Contudo, se a crítica aos 8 Batutas era bastante unânime em apontar-lhes como
legítimos representantes da nacionalidade brasileira quando excursionavam pelo
Brasil afora, este consenso desaparece quando, em 1922, a trupe, financiada
pelo mesmo Arnaldo Guinle, vai a Paris para uma temporada no elegante cabaré
Sheherazade. Essa casa era dirigida pelo brasileiro Duque, que se notabilizara
no exterior com seus passos de maxixe.
O maxixe atingiu seu auge entre o começo do século e meados da década de 20.
Tratado pela imprensa como "dança nacional", foi bastante difundido, inclusive
para além dos "assustados" (bailes) dos bairros negros, penetrando também entre
as camadas mais abastadas.
Entretanto, o maxixe provocou protestos moralistas por parte de autoridades
civis e eclesiásticas devido a sua volúpia e lascívia, pois os casais
requebravam-se, dançando colados um ao outro todo o tempo. Porém, a reação vem
através da galhofa. Muitas canções tratavam irreverentemente as censuras à
dança, como em Maxixe Aristocrático (1904, José Nunes): O maxixe tem ciência/
ou pelo menos tem arte/ Para haver proficiência/ basta mexer certa parte/ Pois
o próprio Padre Santo/ sabendo o gosto que tem/ virá de Roma ao Brasil/ dançar
maxixe também (Efegê, 1974:80-81).
O papa não veio ao Brasil, mas o maxixeiro Duque foi à Europa. Desistindo da
profissão de dentista, chegou em Paris em 1912, acompanhado por sua primeira
partenaire, a atriz de revistas Maria Lina. Numa de suas vindas ao Brasil,
Duque dançou com outras de suas partenaires, a francesa Gaby, ao som dos 8
Batutas, no chique Assírio (situado no subsolo do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro). Acompanhado de seu amigo, o mesmo Arnaldo Guinle, convenceu-o a
bancar a viagem do grupo "para divulgar o samba e outros ritmos brasileiros,
como [ele] já o fizera com relação ao maxixe" (Vasconcelos, 1985: 76).
Devido a uma súbita mudança na composição do grupo, os Batutas viajaram para
Paris como Les Batutas ou L'Orchestre des Batutas. A crítica se dividiu quanto
à representatividade dos músicos enquanto porta-vozes da "música nacional" e
também no que se refere à imagem que os músicos, muitos do quais negros,
passariam dos brasileiros. Um articulista deplorava o fato de que fosse
mostrado nos boulevards de Paris "um Brasil pernóstico, negróide e ridículo"
(Diário de Pernambuco, 1.2.1922 apud Efegê, 1985:183), enquanto outro,
endossando esta opinião, acrescentava: "são oito, aliás, nove pardavascos que
tocam viola, pandeiro e outros instrumentos rudimentares [...] E depois ainda
nos queixamos quando chega por aqui um maroto estrangeiro que, de volta, se dá
à divertida tarefa de contar das serpentes e da pretalhada que viu no Brasil"
(Jornal do Comércio, Recife, 1.2.1922 apud Cabral, 1997:73-4).
Também condenava-se que essa "pretalhada" com seus "instrumentos rudimentares"
estivesse mostrando a música brasileira. Um cronista, estarrecido com isso,
estabeleceu uma diferença entre a "nossa música", "que só mesmo entre aspas
poderia ser adaptada àquela da corporação [os Batutas]", e a "música nacional
(sem aspas)". Ele considera que, quando se trata de mostrar no exterior "nossa
cultura nacional", "os maxixes tocados pelos 8 Batutas não podem dar a mínima
idéia do nosso adiantamento em um terreno em que, incontestavelmente, temos
alcançado um desenvolvimento notabilíssimo".
Quais eram então os exemplos de música nacional? Para o autor do artigo, os
parisienses deveriam estar ouvindo, por exemplo, a Sertaneja (uma peça de 1869,
composta para piano solo sobre o tema Balaio meu bem balaio), do pianista
Itiberê da Cunha considerado um dos precursores da introdução de tema
folclóricos na música brasileira , ou a Habanera, de Arthur Napoleão, ambos
músicos de formação erudita. Certamente, emendava ele desqualificando os
Batutas, seriam vistos ironicamente pelos franceses como um grupo exótico: "
[...] É como se aparecesse na Avenida Rio Branco, à hora de grande movimento,
um grupo de africanos a chamar a atenção com uns chocalhos e outros apetrechos
com que costumam sambar em seu país" (Gazeta de Notícias, RJ, apud Cabral,
1997:78-9).
Entretanto, alguns jornalistas saíam em defesa do grupo. Argumentava-se que
eram "uma das expressões mais legítimas do que é nosso" (A Pátria, 28.1.1922
apud Cabral, 1997:72). Benjamim Costalat lembra que, quando os exímios Batutas
despontaram, despertaram a inveja de muitos e "começaram os despeitados a
alegar a cor dos 8 Batutas, na maioria pretos. Tranqüilizando os que temiam
pela boa imagem do país, menciona a singeleza e a "pureza" do grupo,
assegurando que "[...] os 8 Batutas não desmoralizarão o Brasil [...] Levarão a
verdadeira música brasileira, essa que ainda não foi contaminada por
influências alheias e que sofre e que geme por si [...]" (Gazeta de Notícias
apud Cabral, 1997:72-3).
Em Paris, Les Batutas, anunciados como "les rois du rythme et de le samba",
mostraram o repertório já conhecido do público brasileiro, com exceção de um
samba especialmente composto para aquela ocasião e que agradou muito, o Les
Batutas, com letra em francês de Duque e música de Pixinguinha: Nous sommes
Batutas/ Batutas, Batutas/ Venus du Brésil/ Ici tout droit/ Nous sommes
Batutas/ Nous faisons tout le monde/ Danser le samba/ Le samba se danse/
Toujours en cadence/ Petit pas par ci/ Il faut de l'éssence/ Beaucoup
d'élégance/ Le corps se balance/ Dansant le samba/ La musique est simple/ Mais
très rythmique/ Nous sommes certains/ Que ça vous plaira/ Nous sommes Batutas/
Batutas uniques/ Pour faire tout le monde/ Danser le samba (Cabral, 1997:77-8).
Bem-sucedidos e bastante requisitados, os Batutas permaneceriam em Paris por
mais seis meses, regressando em agosto de 1922. Certamente, a fácil e calorosa
acolhida dos Batutas na França explica-se, além do talento da banda, por já
haver um interesse pela cultura negro-africana, suscitado por alguns jovens
artistas europeus. Aliás, essa receptividade à música negra estendia-se também
aos ritmos negros norte-americanos (em especial o jazz) e caribenhos, sendo
que, principalmente após a Primeira Guerra Mundial, vários músicos desses
lugares emigrariam para a França.
Considerações finais
Se o samba foi, ao longo das três primeiras décadas do século XX, conquistando
paulatinamente o gosto musical de uma significativa parcela da população
brasileira, verifica-se uma cisão na sensibilidade estética das elites do
período no que se refere à aceitação desse ritmo popular, que provoca uma
oscilação entre o elogio e o repúdio ao mesmo. Para uns, só podia ser
considerada "música entre aspas" o que os 8 Batutas apresentavam em seus shows.
Para outros, o que faziam não era "arte negra" mas "arte brasileira" da melhor
qualidade.
No entanto, se o ritmo fruído por todos era o mesmo, seus significados e usos
eram diversos. Para as classes populares, o samba poderia servir para
ridicularizar as autoridades e subverter a hierarquia social, fazendo do papa,
um dançarino de maxixe: pois o próprio Padre Santo/ sabendo o gosto que tem/
virá de Roma ao Brasil/ dançar maxixe também (Maxixe aristocrático, José Nunes,
1904); do padre, um macumbeiro: ai meu bem/ tu não me tens amor/ vou na macumba
do padre/ vou lá pedir por favor (Macumba do padre, Armando Vampa, 1925); ou do
delegado de polícia, que proibira os instrumentos musicais, um sambista e a
encarnação de um deles através da alcunha de "seu Tamborim": minha Nossa
Senhora/ Sinhô do Bonfim!/ ainda hei de sambá/ com "seu" Tamborim (anônimo,
1907). Poderia ainda ser usado para louvar os heróis populares, como o samba de
Sinhô intitulado Sete Coroas (1922), que homenageava o famoso malandro que dá
nome à composição e que era amigo do autor.
Era também através dele que muitos sambistas podiam reafirmar a sua fé, apesar
da intensa perseguição policial aos cultos afro-brasileiros: aos maus-olhados/
isto não ligamos/ pois com arruda/ facilmente lhe tiramos/ e para a inveja/
temos uma figa/ feita na África/ com o bom guiné de riga (Resposta à Inveja,
Sinhô, 1917). O samba permitia-lhes ainda expressar suas querelas afetivas
vividas nas relações íntimas, como bem o revelam os títulos de alguns sambas:
Tu qué Tomá meu Home (1929, Ary Barroso e Olegário Mariano), Esse Mulato vai
ser Meu (1930, Ary Barroso e J. Carlos), O que tu Qué, não Dô (1930, revista É
do outro Mundo), Essa Nega Qué me Dá (1921, Caninha e Lezute), Vamos Deixar de
Intimidade (1929, Ary Barroso), Sim, mas Desencosta (1930, Cândido das Neves).
Mas era ainda esse mesmo samba que encantava alguns artistas franceses, os
quais, inspirados nos princípios cubistas e enfadados com a arte parisiense,
viam no maxixe O Boi no Telhado uma oportunidade de contato com uma sonoridade
exótica e sedutora. Por sua vez, o poeta modernista Mário de Andrade,
"redescobrindo o Brasil", deixaria registrada numa poesia sua admiração pela
cadência do samba nas ruas do Rio de Janeiro,"tão sublime, tão África".
Esse samba polissêmico seria amplificado pelos recursos audiovisuais que a
nascente cultura de massas ia aos poucos implementando. Contudo, como procurei
mostrar, o processo de nacionalização do samba é ambíguo e conflituoso e
envolveu vários atores sociais. Com refinada habilidade política, alguns
músicos populares conseguiram, de alguma forma, ocupar as brechas que a
modernidade lhes abria. Como vimos, o "Rio da Regeneração" e o "Rio das
malocas" não eram excludentes, o que não quer dizer que de suas relações
estivessem ausentes os conflitos sociais. Na privacidade das casas das tias
baianas ' como a da tia Ciata ', no recato da mansão dos Guinle ou mesmo nos
jardins do palácio presidencial do Catete tinha lugar uma interseção desses
dois mundos, o erudito e o popular, que certamente dinamizou e formou o samba
que explodiria nas décadas seguintes.
Mas isso restringe-se à esfera privada, pois no espaço público essa convivência
não é revelada, uma vez que significaria reconhecer o negro como ator político
e, como vimos, naquele momento histórico, diante do suposto perigo de
descontrole social provocado pelas hordas de negros "bárbaros", recém-egressos
da escravidão, a República vacilou em incorporar o negro como integrante do
corpo político da nação.
Com efeito, este olhar ambivalente sobre o samba, relacionava-se diretamente ao
lugar ambíguo que o negro ocupava no contexto intelectual da época. Dessa
forma, se o legado cultural do negro fazia dele um ator social na Primeira
República, o paradigma evolucionista impedia a sua incorporação ao novo pacto
como ator político. A mestiçagem eugênica dos anos 10 e 20, que insere-se em um
debate mais político do que científico, não nos permite estabelecer uma
continuidade entre a mesma e o novo enfoque cultural que a miscibilidade
ganhará nos anos 30 e 40. Esta só se consolidará com a substituição do
paradigma evolucionista social ' vigente até finais da década de 20 ' pelo
culturalismo, quando então a miscigenação deixará de ser um espectro e se
tornará um fator crucial para a sinalização da singularidade nacional.
A Primeira República brasileira, ao deixar de lado a gramática política
anterior, terá que forjar as regras de um novo pacto social. As autoridades
republicanas se recusam a reconhecer a produção cultural presente na Festa da
Penha, nas casas das tias baianas, nas sedes dos ranchos e cordões
carnavalescos, no teatro de revistas. Não será, portanto, nesse Rio de Janeiro
negro que se buscará a originalidade da cultura brasileira.
No interior de toda essa produção cultural são gestados determinados ícones que
evocam uma certa brasilidade mas identificada com as classes populares, tais
como: a "mulata feiticeira", a "favela mulata" ou o maxixe "que tem sua arte".
Porém esses ícones permaneceram no campo da experiência vivida da cultura e não
foram incorporados ao campo da política, cujo acesso estava vedado às classes
populares. Dessa forma, não será com esse tecido social que se construirá a
República no Brasil, uma vez que o projeto pedagógico republicano, naquele
momento, era o de educar, higienizar e civilizar as massas.
Carvalho (1990:141) certamente tem razão quando afirma que a República
brasileira, diferentemente da francesa, era desprovida de densidade popular
suficiente que tornasse possível refazer o imaginário social, o que a teria
conduzido ao fracasso em seu intento de formulação de uma simbologia nacional.
Contudo, para além dessa motivação política, creio que podemos ensaiar também
uma explicação cultural para a compreensão desse. A razão da impopularidade da
República talvez resida menos na falta de habilidade política dos republicanos
para empolgar as massas, ou na incapacidade destas para compreendê-los, e mais
na "eficácia simbólica" (Lévi-Strauss, 1996) da realeza no país. Assim, o fato
de os únicos ícones republicanos bem-sucedidos (o hino e a bandeira) estarem
diretamente vinculados ao imaginário monárquico anterior, talvez deva-se à
"força da tradição" (Mayer, 1990) dos símbolos imperiais, ancorados, ao que
parece, numa forte comunidade de imaginação.
Lilia Schwarcz analisou a construção simbólica da imagem pública do imperador
D. Pedro II, investigando a elaboração do imaginário coletivo da monarquia
brasileira no século passado. A autora destaca que, para legitimar-se, essa
monarquia tropical, cercada de repúblicas por todos os lados, investiria a
fundo nos cerimoniais de afirmação da realeza e na promoção da figura pública
do Imperador (Schwarcz, 1998:35-43). Segundo a autora, a realeza brasileira
soube dialogar não só com a tradição monárquica que lhe era anterior, mas
também com o seu próprio contexto e suas realidades multifacetadas, o que lhe
garantiu êxito na produção de símbolos de cultura política e também alavancou a
popularidade do "monarca tropical" D. Pedro II. Assim, na construção desse
imaginário imperial, estabeleceu-se uma via de mão dupla: "se o imaginário
popular se nutriu da realeza, e de certa maneira se 'europeizou', é possível
supor o oposto: a monarquia brasileira se impregnou de elementos da cultura
local" (ibidem:520).
Com relação à Primeira República, é na cultura erudita e não na cultura popular
que os governantes vão buscar inspiração para a criação de uma simbologia.
Diferentemente do regime anterior, aqui não há possibilidade de comunicação
entre a voz oficial e os "uivos de africanos em samba". Essa ausência de
diálogo implicará na falta de suporte popular para os símbolos republicanos,
uma vez que não se apoiarão numa comunidade de sentido.
Dessa forma, se a Monarquia foi capaz de ouvir e ser ouvida pela população do
país, a Primeira República foi incapaz de fazê-lo. Entretanto, a nova ruptura
política dos anos 30 e 40 tornou premente a renegociação do pacto social
anterior. Nesse momento, será criada uma nova simbologia e difundem-se
rapidamente, para dentro e para fora do país, as imagens idílicas da "aquarela
brasileira", povoada por mulatas sensuais e por malandros musicais que convivem
em harmonia racial nessa "terra de samba e pandeiro".20
O populismo procurará se legitimar apropriando-se de alguns dos elementos da
cultura popular ' dentre eles o samba ', que já estavam culturalmente
disponíveis na sociedade brasileira da Primeira República e tinham grande
ressonância junto à população, alçando-os com êxito à categoria de símbolos
nacionais.
Para se compreender o sucesso da implantação dessa nova simbologia, vale
observar que sua matéria-prima são, principalmente, as tradições culturais
negras. E aqui importa observar, como faz Montes (1996-97) ao comentar o ethos
barroco presente na cultura brasileira, que estamos diante de fragmentos de uma
história de longa duração, "inseparável das condições de subordinação e
resistência do negro nas Américas" (p.23). Retraduzida e ressignificada pela
marca da presença negra no país, a festa barroca colonial é a matriz de uma
cultura brasileira da festa a qual, por sua vez, está impregnada de uma
estética negra, construída sob as formas sensíveis da música, da dança, do
canto. Somos então levados a pensar em uma circularidade da cultura erudita e
popular no país. Dessa forma, "os ventos da modernidade que sopram ao longo do
processo de independência e de constituição dos Estados nacionais no continente
latino-americano desarticularão como forma hegemônica global esta barroca
cultura da festa que não separa o sagrado e o profano. Assim, à exceção do
Carnaval e de algumas poucas celebrações religiosas, aos poucos ignorada ou
desprezada pelas elites, ela irá permanecer como memória ou forma viva apenas
entre os segmentos populares [...]" (1998: 157).
Finalmente, talvez possamos dizer que a incorporação da herança negra à esfera
pública correspondeu a uma opção política feita pelo governo Vargas, agora em
um novo contexto histórico no qual o velho fantasma da "ressurreição da
barbaria" já não rondava mais a elegante Avenida Central.
Notas
1. Sobre o assunto, consultar Soares (1998).
2. A respeito desse assunto, ver Cunha (2001).
3. Sidney Chalhoub afirma que "[...] o contexto histórico em que se deu a
adoção do conceito de 'classes perigosas' no Brasil fez com que, desde o
início, os negros se tornassem os suspeitos preferenciais" (1996:20-23).
4. Ao que parece, a música sertaneja ou caipira de São Paulo, por exemplo,
diferentemente do samba do Rio de Janeiro, não foi vista como unidade nacional
nem nas primeiras décadas do século XX, nem pela parca produção bibliográfica
dedicada ao assunto. Nesse sentido, ela ficou relegada à categoria de "música
regional paulista". Este embotamento da memória da presença da música caipira
paulista no cenário musical nacional ' e também do samba de São Paulo e de
outras regiões do país ', certamente deve ser creditada, ao menos em boa parte,
à grande relevância do samba carioca no imaginário social brasileiro.
5. Procurando investigar de que maneira e por quais motivos se cristalizou e
difundiu a imagem do sabá diabólico na Europa da Idade Moderna, o historiador
Carlo Ginzburg (1991), cuja análise está situada entre a história e a
antropologia, sugere que o estereótipo do sabá constituiu-se numa "'formação
cultural de compromisso', resultado híbrido de um conflito entre cultura
folclórica e cultura erudita" (p. 22).
6. A "pequena África" do Rio de Janeiro, no alvorecer do século XX, abrangia os
bairros da Cidade Nova, Gamboa, Saúde e adjacências. Durante o Império, a
região restringia-se aos arredores do Paço e possuía um alto grau de
concentração de africanos, crioulos e mestiços. Em 1849, por exemplo, de cada
três habitantes, um era africano (Schwarcz, 1998).
7. Tiago Gomes (2001) publicou uma resenha sobre o livro O Mistério do Samba,
onde faz algumas críticas bastante pertinentes. Ele destaca: "[a] ausência de
pesquisa em fontes originais, [o] pouco interesse pelas especificidades do
objeto estudado (como a massificação cultural, no caso do samba) [e a]
contextualização histórica insuficiente" (p. 455).
8. No tocante à atuação dos capoeiras durante a segunda metade do século XIX,
assistimos a um enlace entre os domínios da ordem e da desordem. Isso fica
patente não só quando nos deparamos com a presença massiva de capoeiras nas
fileiras da Guarda Nacional, do Exército e da própria polícia no transcorrer do
Segundo Reinado, mas, principalmente, ao atentarmos para a arregimentação das
maltas de capoeira por políticos do Império ' em especial aqueles ligados ao
Partido Conservador ' e para sua composição étnica e social, uma vez que não
apenas negros mas também imigrantes portugueses e filhos da fina flor da elite
delas faziam parte (Soares, 1998 Reis, 2000).
9. Ivone Maggie (1992), ao estudar os processos criminais movidos contra os
praticantes de religiões afro-brasileiras nas primeiras décadas do século XX no
Rio de Janeiro, atesta uma certa cumplicidade entre acusadores e réus, uma vez
que ambos participam das mesmas "premissas culturais". Os peritos, por exemplo,
em parte devido a sua própria origem social ' a mesma, aliás, da maioria dos
acusados ', eram certamente freqüentadores de terreiros e, portanto,
conhecedores dos rituais dos cultos. Dessa forma, esses policiais atuariam como
mediadores entre os juízes, promotores e advogados, de um lado, e os crentes,
de outro, todos compartilhando do mesmo sistema de crenças (pp. 160; 166).
10. Ainda que seja de minha inteira responsabilidade, devo essa observação aos
colegas do curso de pós-graduação "Do afro ao brasileiro: religião e cultura
nacional", ministrado pelo Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva na Universidade
de São Paulo, 1o semestre de 2003.
11. Sérgio Buarque de Holanda (1936/1979), em busca do que chama de "traços
definidores do caráter brasileiro", aponta para a indistinção entre o domínio
do público e do privado, cuja maior expressão encontra-se na figura do "homem
cordial". Resultado histórico e social, o "homem cordial", tal como o vê o
autor, representa, sobretudo, uma denúncia ao autoritarismo da sociedade
brasileira, à incompletude e à fragilidade de nossas instituições políticas que
impedem a plena realização e consolidação de um espaço público democrático.
12. Em São Paulo, particularmente nas primeiras duas décadas do século XX, a
música sertaneja gozava de grande prestígio, destacando-se aí o compositor
Fernando Lobo, que ficaria conhecido como Marcelo Tupinambá, o cantor Paraguaçu
(Roque Ricciardi, 1894-1976) e também o excelente violonista e tocador de
cavaquinho Canhoto (Américo Jacomino, 1889-1928) (Cabral, 1996b:15).
13. Fenerick (2002), atendo-se ao período que vai de 1920 a 1945, analisa de
que maneira os modernos meios de comunicação de massa (entre outros fatores)
atuaram no processo de construção do moderno samba brasileiro ao introduzirem
modificações no modo de produção e nos significados sociais desse ritmo.
14. Para uma análise minuciosa e com alguns pontos de convergência com a que
tento aqui, ver o livro Feitiço Decente (2001) de Carlos Sandroni (parte I,
capítulo 5).
15. Para uma discussão sobre a impropriedade do debate acerca do "verdadeiro"
berço do samba, se Rio ou Bahia, consulte-se o artigo de Ari Lima "O samba
nasceu na Bahia? Diga, Sinhá / Ou no Rio de Janeiro? Responda, Sinhô",
publicado no jornal A Tarde, Suplemento Cultura, Salvador, 8.2.1997.
16. Fernando Mencarelli (1999), em seu estudo sobre a peça de teatro de revista
O bilontra (1886), escrita por Arthur Azevedo e Moreira Sampaio, a qual
inaugura um novo gênero teatral no Brasil, a revista de ano, analisa os
diversos sentidos que a peça apresenta para seus espectadores. Dessa forma, por
intermédio do universo teatral carioca das duas últimas décadas do século XIX,
procura adentrar a história social e cultural do Rio de Janeiro da época.
17. É possível que Carmen Miranda também tenha nela se inspirado para compor
seus turbantes de frutas tropicais.
18. Sandroni (2001), em seu estudo de cunho etnomusicológico sobre as
transformações do samba no Rio de Janeiro entre 1917 e 1933, aponta para a
existência de dois modelos rítmicos. O primeiro deles seria o "paradigma de
tresillo", presente na música popular brasileira do século XIX até finais dos
anos 1920 e o segundo seria o "paradigma do Estácio", que inauguraria um novo
estilo de samba que viria a se tornar o samba carioca por excelência.
19. Foi em São Paulo, como mostra Sevcenko (1998a) em sua análise sobre a
emergência do modernismo paulista, que as impressões e os registros acerca da
cultura popular de raiz negra e indígena, reelaborados por um grupo de
intelectuais, determinam a chamada "redescoberta do Brasil" e conformam um
projeto cultural nativista que, em busca da memória colonial do país, procura
resgatar as raízes populares de sua formação cultural. É principalmente no tipo
sertanejo que se almeja encontrar a originalidade brasileira. Os modernistas
paulistas se inspiravam sobremaneira nas novas tendências artísticas francesas,
preconizadas por Picasso, Jean Cocteau, Darius Milhaud, Fernand Léger e Blaise
Cendrars, dentre outros (Sevcenko, 1998a).
20. George Yúdice, em seu artigo "A funkificação do Rio", considera que os
adeptos do funk e do hip-hop ' majoritariamente jovens da periferia ' vêm
questionando de forma radical, na sua produção musical dos anos de 1980 e 1990,
a idéia de harmonia racial e social que supostamente existiria no Brasil. O
autor enfatiza que: "[...] por meio das músicas novas e nada tradicionais como
o funk e o hip-hop, os jovens procuram estabelecer novas formas de identidade
desvinculadas das proclamadas premissas do Brasil como uma nação sem
diversidades conflitantes. Ao contrário, a música é sobre a desarticulação da
identidade nacional e do cidadão local" (1997:27).