A pulsão romântica e as ciências humanas no ocidente
I
Como tantas outras categorias fundamentais de nossa cultura, o termo
"romantismo" padeceu de uma enorme extensão e banalização desde seu surgimento,
entre os séculos XVIII e XIX. Muito já se escreveu sobre os meandros dessa
história, cheia de revelações sobre nossa estrutura ideológica. Há uma obra
canônica de Isaiah Berlin, que perscruta de modo bem cuidadoso e empirista essa
polissemia desafiadora (cf. Berlin, 2001).
Minha posição aqui será ' pelo contrário ' bem dedutiva. Proponho de início um
conceito claramente definido do que considero ser o "romantismo". Apresentarei
um quadro geral das derivações ideológicas desse fenômeno ao longo do século
XIX e apontarei muito sumariamente como a emergência e a evolução das ciências
humanas ocidentais nele se inserem ' sublinhando os pontos de continuidade e
divergência.
A posição sobre a qual se sustenta a presente proposta é a de um antropólogo,
ou seja, de alguém que procura compreender a experiência humana do ponto de
vista do seu sentido ou significado através das "culturas", de maneira
comparada. Isso implica, em primeiro lugar, atribuir uma qualidade estruturante
' e não apenas residual ' à idéia de que a antropologia foi concebida e é
cultivada dentro de uma cultura específica a que se pode chamar de ocidental
moderna, já que esse epíteto envolve duas qualidades costumeiramente prezadas
pelos seus nativos como parte da própria visão de mundo.
Para um antropólogo ' cultivador portanto das ciências humanas desta cultura
ocidental moderna ', o que mais importa é reconhecer a posição estratégica
dessa categoria analítica instrumental, ao tentar explicar a dinâmica da
cosmologia em que nos movemos ' que é justamente a nossa, e não a de qualquer
outra e distante sociedade. Por mais controvertidos que possam ser os usos da
noção de "uma cultura" e ' mais ainda ' de "nossa cultura", esse pressuposto '
o de que falo dentro de um horizonte de sentido comum a todos os atores
ideológicos aqui doravante citados e certamente comum a todos os meus leitores
' é um andaime conceitual essencial para minha demonstração.
II
A hipótese de uma cultura ocidental moderna não se sustenta porém apenas sobre
o pressuposto antropológico de um sentimento coletivo ou de uma representação
de comunhão cultural. Sustenta-se também sobre o pressuposto de que seu
horizonte de sentido é discreto e estruturado ' e que se pode descrevê-lo por
meio da invocação de alguns princípios ideológicos recorrentes e críticos.
Louis Dumont (1972), em seu clássico trabalho de comparação entre a cultura
indiana e a cultura ocidental, sugeriu que uma "ideologia do individualismo"
fosse o principal desses princípios ideológicos estruturantes. Confirmava ou
combinava nessa definição ' entre muitas outras pistas esparsas no pensamento
social ocidental ' elementos de análises de K. Marx (a propósito da ideologia
liberal-burguesa), de E. Durkheim (a respeito do individualismo ou da
solidariedade orgânica), de F. Tönnies (a respeito da Gesellschaft), de Maine
(sobre as sociedades do contrato), ou mesmo de Max Weber (no tocante sobretudo
à racionalidade moderna).
Essa ideologia constitui-se e afirma-se no mundo ocidental por mecanismos e
processos muito complexos de que não cabe aqui dar conta (cf. L. Dumont, 1965;
Duarte e Giumbelli, 1994). Sua hegemonia pública só completar-se-ia no limite
das grandes transformações do século XVIII, com a criação das repúblicas norte-
americana e francesa. A ideologia do individualismo em seu sentido estrito é
sobretudo uma ideologia política, relativa ao valor do indivíduo livre e igual,
cidadão autônomo dos novos Estados-nação em gestação. Ela teve como corolários
outros princípios ideológicos concomitantes, de implicações mais gerais,
epistemológicas ou cosmológicas. Podemos resumi-los em uma grande rubrica: a da
ideologia do universalismo.
Alexandre Koyré publicou uma obra muito importante sobre as transformações da
cosmologia ocidental no século XVII, intitulada Do mundo fechado ao universo
infinito (Koyré, 1979). Vê-se nesse título a ênfase na emergência de uma nova
concepção de mundo a que se chamará de "universo". É o que sustenta o
universalismo. Trata-se sobretudo da representação, nova por excelência, de um
mundo sem limites, nem temporais nem espaciais. Um infinito ' em todas as
direções e sentidos. Esse mundo se oferece à experiência humana de modo também
ilimitado, graças à crença na capacidade da razão em dialogar permanentemente
com a empiria por intermédio da experiência sensorial e sentimental humana e
assim fazer avançar o controle cognitivo e técnico do mundo disponível para
nossa espécie. Podemos chamar a essas características de racionalismo e
cientificismo, como partes ativas do horizonte universalista. Essa nova
orientação cosmológica se completa ao sublinharmos seu caráter fortemente
materialista. Como se trata de um conceito complexo, com grande latitude
semântica, talvez soe melhor, aos ouvidos contemporâneos, falarmos porém de seu
caráter fisicalista. Com efeito, prevalecia a representação de que esse novo
cosmos, o universo, só se compunha de elementos físicos, materiais ou
"naturais" (excluídos os sobrenaturais e os preternaturais).
Esses são os principais elementos ideológicos da "grande transformação"
descrita por Karl Polanyi (Polanyi, 1980), que inaugura a dimensão moderna de
nossa cultura. É claro que essa transformação se processou por meio de
mecanismos econômicos e políticos complexos, envolvendo a hegemonia do
capitalismo, da grande indústria, da ordem colonial, da democracia liberal e
até mesmo o surgimento dos ideais socialistas. Todos eles só vieram, porém, a
se constituir em elementos cruciais da nova ordem na medida em que expressaram,
responderam ou não colidiram com o conjunto de princípios aqui resumidos no
individualismo e no universalismo.
III
Um novo horizonte de sentido orientava assim nossos ancestrais ao longo do
século XVIII. Sua disposição era francamente otimista e seus mais ardentes
defensores foram chamados justamente de iluministas, por acreditarem na derrota
e no extermínio da sombra que teria obscurecido até então a "marcha da
humanidade".
Em alguns segmentos da intelligentsia européia do século XVIII percebia-se,
contudo, ao lado dessa generosa e ardente disposição de mudança, inquietações
sobre o novo rumo do pensamento e da ação coletivos. As denúncias dos "males da
civilização" começaram a ser veiculadas quase ao mesmo tempo em que se
compunham os hinos à sua vitória (cf. Duarte, 1986). Esse tom de denúncia não
podia deixar de se nutrir imaginariamente da representação de um passado
perdido, dada a ênfase muito radical no futuro que caracterizava a nova ordem.
O progresso, o avanço de todas as formas e comportamentos era ameaçador, uma
vez que implicava o desaparecimento dos antigos mores, a perda de qualidades
sensíveis a que muitos se sentiam profundamente apegados. Esse tom já se
encontra presente em movimentos artísticos como a novela sentimental inglesa e
o Sturm und Drang alemão do século XVIII, assim como em uma boa parte da obra
de J.-J. Rousseau ' um notório iluminista, no entanto. É inseparável dessa
reação o movimento de revalorização da natureza e do mundo rural ' num momento
em que o artifício industrial e o modo de vida urbano envolviam cada vez mais
rapidamente as populações européias (cf. Thomas, 1988).
Ao lado desse processo de reação sentimental, digamos assim, surgem logo os
sinais de uma reação intelectual, com implicações políticas. Em muitos casos,
ela virá a ser conhecida justamente como uma reação, ou seja, como resistência
ativa às mudanças trazidas pela Revolução Francesa e seus corolários às
sociedades européias. É no mundo da cultura germânica que se articula mais
claramente esse movimento. As filosofias de Herder, Hegel ou Fichte testemunham
de diferentes maneiras dessa atenção crítica ao horizonte do iluminismo e da
disposição em oferecer alternativas ao modo excessivamente linear ou
materialista de conceber a história dos filósofos anglo-franceses (ou do
Aufklårung kantiano).
Há diversos linhas de interpretação histórica possíveis para a concentração
desse movimento no cenário cultural germânico. Não há como revê-los todos aqui.
Remeto para a rica bibliografia a esse respeito (L. Dumont, 1991b; Gusdorf,
1976, 1982, 1984; Benz, 1987, entre outros). No entanto, é necessário discutir
a importância do horizonte religioso, reformado, dessa reação germânica.
Lembremos que esse universo já tinha vivenciado o Renascimento ' contrariamente
ao mundo latino ' via a Reforma; que tinha encontrado na Bíblia de Lutero a
confirmação de sua legitimidade lingüística, e que tinha seus intelectuais
fortemente ligados aos estudos universitários de Teologia ' em nenhum momento
suspeitos de ilegitimidade, como no caso francês.
O sentimento de uma certa especificidade da cultura alemã no quadro europeu já
era externado pelos próprios contemporâneos, e o De l'Allemagne de Mme. de
Staël o afirmava e descrevia com grande senso de oportunidade. Essa
especificidade repousava em boa parte, como resume Norbert Elias (1975) ao
tratar das vicissitudes da noção de "civilização" em língua alemã, na
desastrosa estagnação política e econômica decorrente da Guerra dos 30 Anos, na
acentuada fragmentação de suas unidades políticas constitutivas e na distância
que as "cortes" dirigentes (e os estamentos aristocráticos que as compunham)
mantinham em relação à cultura local e aos intelectuais universitários
(distância inclusive da língua alemã, como no caso notório da corte prussiana
em Potsdam).
De um modo geral, o ponto mais evidente de todas essas resistências e reações é
o seu caráter reflexo, dependente da dinâmica de afirmação do universalismo.
Herder (1997) é bastante claro a esse respeito ao nomear seu grande tratado
sobre a história da Humanidade como uma "outra história", em referência e
oposição direta à de Voltaire. A Doutrina das cores, de Goethe (1993), foi
concebida termo a termo como uma refutação da ótica de Newton. A revalorização
da obra de Shakespeare empreendida pelos jovens dramaturgos alemães visava a
esconjurar a racionalização e a convenção do classicismo francês. Do mesmo
modo, a redescoberta do estilo gótico permitia ironizar a contínua manipulação
das fontes clássicas empreendida desde o Renascimento como recurso de
racionalização das formas e dos volumes plásticos.
IV
A inspiração reativa das primeiras manifestações do romantismo logo adquirirá
um tom afirmativo mais pleno, com o adensamento das vozes e dos argumentos e a
percepção dos contornos de um movimento coletivo abrangente. É, no entanto,
fundamental ter em mente que a reação foi justamente a primeira grande
característica do romantismo, como eu aqui o defino: resistência a e denúncia
do universalismo e de seus corolários racionalista e fisicalista. Ou seja, não
há como compreender esse movimento sem considerá-lo tecnicamente englobado pelo
universalismo. Justamente por se opor a ele termo a termo e sistematicamente,
dele depende ontologicamente a cada passo. Mesmo em suas mais grandiosas,
expressivas ou sistemáticas manifestações, lá encontraremos a referência en
creux à ideologia da razão linear ilimitada e a seus derivados.
Como a força da crítica romântica jamais abateu a pujança do ideal
universalista dentro de nosso horizonte ideológico, embora tenha contribuído
para tornar seus efeitos infinitamente mais complexos, é preciso reconhecer que
as duas forças passaram desde o início a operar em tensão permanente. Mas não
de modo recíproco ou igualitário: o romantismo sempre será o contraponto, o
momento segundo, de uma dinâmica que o ultrapassa e determina. Ele encarna, nos
termos do modelo de Louis Dumont, a dimensão hierárquica, holista, do
pensamento humano, oposta à ideologia do individualismo. Eis por que se poderia
e deveria reconhecer como "romântica" toda contra-força fundamental em nossa
dinâmica cultural desde o final do século XVIII.
Vamos ver, em seguida, como é complexa, porém, essa "reação", e como a
combinação dos muitos itens em que ela se processa recorrentemente pode levar a
soluções muito díspares e, freqüentemente, contraditórias.
A mais abrangente de suas dimensões constitutivas é possivelmente a que se
refere à totalidade. A ideologia do individualismo, como mencionei,
caracteriza-se justamente por sua ênfase na "parte", nos indivíduos articulados
em associações políticas graças à ação de certas "paixões" e "interesses"
naturais (cf. Hirschman, 1979). A ideologia universalista não opera de modo
diverso. Sua fórmula típica originária, a da cosmologia de Newton, pressupunha
também "elementos" isolados (os corpos celestes), articulados em sistemas
graças à ação de certas forças naturais. A denúncia da perda implicada por essa
fragmentação do mundo, por essa ênfase na segmentação dos elementos
constitutivos de todos os entes, é a fórmula básica do romantismo. Perda
sobretudo do sentido específico que a co-presença dos elementos na totalidade
acarretaria. A totalidade perdida (e a ser recuperada) podia ' e pode ' ser
encontrada em muitos níveis. Um dos primeiros, historicamente, cheio de
implicações para o que se veio a constituir mais tarde como uma antropologia, é
o da totalidade cultural. Herder conferiu-lhe uma forma canônica ao lidar com a
cultura germânica como um ente específico, menor que a Humanidade, mas
certamente maior e mais expressivo que os entes individuais que compunham as
populações de fala alemã. Aí estava um dos focos mais ativos da ideologia da
nação moderna, assim como da noção contemporânea, antropológica, de "culturas"
específicas. Já em sua época, a oposição explícita se fazia contra o ideal da
justaposição indistinta ' indiferenciada ou igualitária ' dos cidadãos, membros
de uma Humanidade abstrata.
O valor da totalidade, do holismo, assume freqüentemente no romantismo a
conotação de unidade, sobretudo no que se refere aos estados originários dos
entes ou dos fenômenos. Uma unidade primordial a partir da qual pode se ter
dado a diferenciação histórica, com implicações positivas ou negativas. A
desinência Ur-, em alemão ("originário"), foi freqüentemente agregada às mais
variadas categorias para expressar essa ênfase ideológica recorrente. Seria
interessante explorar os deslizamentos entre a conotação de primordialidade
intrínseca à idéia da unidade/totalidade e o valor de permanência expresso na
idéia de "eterno" (como na famosa locução goetheana do das ewig Weibliches ' o
eterno feminino). Com efeito, a sempre referida representação de um "amor
romântico" é inseparável da valoração de uma unidade perdida que só o "amor"
permite recuperar (ou, melhor dizendo, aspirar a recuperar).
Outra manifestação importante da ênfase na totalidade foi a progressiva
afirmação da categoria "vida" na conceptualização e na compreensão dos
fenômenos naturais. Por oposição ao modo mecanicista prevalecente na então
chamada fisiologia ' herdeiro direto do modelo newtoniano, tendo por base as
invenções da circulação sanguínea e do sistema nervoso (cf. Figlio, 1975;
Lawrence, 1979) ', a ênfase na especificidade dos seres vivos como totalidades
em si veio a ser a sustentação de toda a biomedicina do século XIX, a partir do
conceito de organismo.
Encontramos essa mesma ênfase na origem da ideologia da arte e do artista
modernos. Por oposição a interpretações analíticas ou pragmáticas dos fenômenos
da poiesis humana, um autor como K.-Ph. Moritz postulou a integridade
indecomponível do objeto artístico, aquele que "se dobra sobre si mesmo", se
justifica em si mesmo, pelo modo mesmo como se agenciam entre si suas partes, e
não por suas funções ou características isoladas (cf. L. Dumont, 1991a).
Há uma dimensão muito negligenciada da tensão ideológica relativa à totalidade
que se pode resumir na referência à categoria de singularidade. Com efeito, uso
este termo, seguindo uma proposta de Louis Dumont, com um sentido ao que
raramente se está atento, ainda que seja essencial à expressão de algumas de
nossas melhores idéias-força. Trata-se de exprimir a idéia de que todo ente
discreto pode ser considerado ao mesmo tempo individualidade, ou seja, um entre
muitos outros seus semelhantes, e "singularidade", ou seja, uma unidade de
totalidade em si. A contradição no caso é fundamental e instauradora: as
ênfases no caráter de parte e de todo imbricam-se, subvertem-se, produzindo
essa fórmula paradoxal do "todo na parte". Tudo o que disse há pouco sobre as
totalidades românticas pode deslizar para a idéia de singularidades: nações,
culturas, organismos e obras de arte só são compreensíveis como totalidades na
medida em que se apresentam como singularidades nas seqüências dos seres de seu
mesmo nível ontológico. O conceito leibniziano de mônada traduz muito bem
alguns aspectos da singularidade romântica e foi por isso freqüentemente
lembrado como uma das fontes ideológicas distantes do próprio movimento.
A dimensão da totalidade tem sua explicação completada pela referência ao
conceito de espírito. A categoria alemã de Geist encarnou de maneira
paradigmática essa idéia, talvez por permitir aos intelectuais cisrenanos
evitar as ressonâncias "espirituais" tão incômodas para o horizonte dos valores
universalistas (sobretudo na versão latinizante de genius). Com efeito, uma
forma de expressão privilegiada para a idéia de que a totalidade era algo maior
do que a soma ou a justaposição das partes (como no modelo mecanicista) era a
da referência ao "espírito" que assim a caracterizava. A vida que garantia a
totalidade aos organismos, por oposição aos agregados de vida mineral, era
assim uma forma mais elementar de "espírito", ela própria; assim como se pode
dizer que o Geist era a Vida superior, mais refinada, mais sublime,
característica da experiência humana, individual ou coletiva.
Examinarei em seguida a dimensão da diferença. Compreendo como tal a ênfase no
caráter não igualitário, hierárquico, propriamente distinto ou específico, dos
entes entre si. Algo como uma espessura diferencial do mundo, ou uma
distribuição diferencial do valor ' evidentemente em oposição frontal ao
postulado da igualdade, essencial ao ideário individualista. O exemplo do
elogio de Herder à especificidade cultural alemã retorna à baila. Ele balizava
a ênfase não só na totalidade desse ente, mas também em sua diferença
específica, sua propriedade (Eigenschaft) específica, distintiva, em relação às
demais manifestações do espírito humano. Isso coloria tanto as oposições
sincrônicas como as diacrônicas: a historicidade tão característica do
romantismo se deve essencialmente ao sentimento de um "espírito do tempo"
(Zeitgeist), nunca idêntico em suas manifestações. É inseparável dessa
percepção estruturante da diferença a idéia de intensidade, quase sempre
associável à de singularidade. Cada momento de um ente ou da dimensão de um
fenômeno tem sua própria intensidade, qualidade de si para si, incomparável com
as que se expressam em outros tempos e espaços. Trata-se de um dos legados
românticos mais importantes para as ciências humanas modernas, sempre reativado
sob novas denominações.
A ênfase na diferença pôde se manifestar desde muito cedo em relação a questões
mais imediatas da vida social, em flagrante oposição ao postulado democrático.
Suponho que um dos mais precoces seja o da fisiognomonia retrabalhada por
Lavater em finais do século XVIII. Propunha-se aí, numa teoria citada e
aprovada por Goethe, que o desenho do perfil dos rostos humanos expressasse a
qualidade mais ou menos sutil ou civilizada de seus portadores. Martine Dumont,
num lúcido artigo de análise desse episódio pouco conhecido das idéias "físico-
morais" do Ocidente, sugere que se estivesse assim procurando reintroduzir pela
mão de uma teoria científica, naturalizante, as recém desacreditadas teorias
tradicionais da diferença dos entes políticos (cf. M. Dumont, 1984). Sem
dúvida, disso se tratava, mas ' na verdade ' de muito mais do que isso. Não
apenas a recusa ao igualitarismo político característico da Revolução Francesa
e do primeiro Napoleão, mas a recusa de todo o universalismo, inclusive no seu
aspecto fisicalista, já que se tratava exatamente de reintroduzir uma medida
"físico-moral", uma nova mediação positiva e localizada entre a matéria e o
espírito.
Uma terceira dimensão a examinar é a do fluxo. Quero aí sublinhar a ênfase na
qualidade permanentemente dinâmica e móvel de todos os fenômenos e entes, por
oposição à consideração estabilizada do mundo, intrínseca ao modelo
universalista. É evidente que a física newtoniana pressupunha e visava
essencialmente o movimento, mas um movimento que se expressava sobretudo como
uma temporalidade reversível, típica do pensamento físico-matemático. A
temporalidade romântica é agudamente irreversível; na melhor das hipóteses pode
conter a idéia de ciclos ou de retornos (como o eterno, de Nietzsche), nunca a
de uma indiferença ou indistinção. A distinção feita por um romântico tardio
importante como Henri Bergson entre temps e durée esclarece possivelmente o que
quero ressaltar. A durée é irreversível e espessa, diferencial. Não se mede com
o mecanismo comum do relógio, mas com a sensibilidade interior.
O fluxo é uma propriedade da condição íntima dos entes, não uma medida externa,
objetiva. É um apanágio de cada totalidade/singularidade e se manifesta,
portanto, de modo essencialmente diferenciado entre os entes. Mas é também
diferenciado em sua própria seqüência interna: os tempos de um mesmo ente não
são idênticos entre si. Freqüentemente pôde se expressar essa diferencialidade
sob a imagem de um tempo vital, de um ciclo de nascimento, juventude,
maturidade e morte. Um único fluxo, de tempos diferentes; eventualmente
renovável em outro patamar ou dimensão.
O ponto fundamental de toda essa dimensão é o horror à imobilidade ' ou à
permanência como imobilização. Isso poderia se aplicar à matéria inanimada por
oposição ao valor superior da Vida, por exemplo. Mas servia sobretudo para
qualificar a verdadeira ou legítima vida humana. Essa deveria se caracterizar
por uma ênfase contínua no movimento ascendente, no fluxo progressivo. A
categoria alemã do Streben, da disposição de luta no sentido de atingir algum
ideal ou proposta sempre à frente do sujeito, é muito típica da teoria
romântica da Pessoa. Ela anima a dimensão mais interna do processo de formação
pessoal, a famosa Bildung; ela própria necessariamente um fluxo vital
específico, singular, insubstituível. O romance de formação (Bildungsroman)
teatraliza a metáfora do fluxo vital de modo paradigmático a partir do primeiro
Wilhelm Meister de Goethe.
A fórmula mais acabada e precisa da preeminência do fluxo no pensamento
romântico já se deu nas fronteiras das ciências humanas com o conceito de
"cultura subjetiva", formulado por Georg Simmel em contraposição ao de "cultura
objetiva" (cf. Simmel, 1971). Tal conceito resume ou exemplifica todos os
pontos que estou desenvolvendo, mas ilumina particularmente o do fluxo, uma vez
que as qualidades positivas da cultura subjetiva são justamente as que se
instituem na temporalidade, no fluxo da mudança, na intensidade da criação
interior. A passagem ao "objetivo" é a queda na estase: o pensamento vivo vira
a página do livro, a intenção transforma-se em instituição, as forças da vida
definham-se em formas petrificadas.
Muito se poderia dizer sobre a dimensão do fluxo no tocante aos fenômenos
humanos coletivos. A historicidade romântica está na origem da maior parte das
ciências humanas (da arqueologia à lingüística, da história à psicanálise) e
sua característica principal é justamente essa da atenção obsessiva às
implicações da passagem do tempo, e da passagem diferencial do tempo sobretudo.
Mas voltarei ao assunto mais adiante.
Selecionei como quarta dimensão do romantismo a que envolve a ênfase na pulsão.
Trata-se da idéia de que os fenômenos e os entes, singulares como são ' totais
e diferenciados ' e dotados da capacidade de se distender no fluxo vital,
temporal, não o fazem sem uma qualidade especial, interna, toda própria, que
imprime ao seu Streben as qualidades, os ritmos, as orientações que lhe são
específicas ' e não outras. Chamou-se a isso, em alemão, ' pelo menos desde
Fichte ' Trieb, hoje convencionalmente traduzido como pulsão. Essa disposição
interior característica dos entes vitais lembra algumas propriedades da
enteléquia aristotélica e do conatus de Spinoza e caracteriza o elemento mais
essencial da vida organizada: o seu horizonte de destino realizável. Embora o
conceito esteja hoje em dia associado sobretudo à psicanálise, devido ao uso
específico e sistemático que dele fez Freud, sua presença foi muito mais ampla
no pensamento romântico e permanece ' mesmo que não explicitamente ' "pulsante"
entre nós (cf. Duarte e Venâncio, 1995). Uma de suas mais conspícuas
manifestações é a que, na arte, enfatizará o caráter expressivo que tem a
criação autêntica em relação ao mundo interior do artista (cf. Taylor, 1989). A
pulsão criativa deve encontrar seus canais desobstruídos, de maneira que possa
florescer em sua plenitude a forma estética. E ela só deve ser cultivada ali
onde for sentida realmente como pulsão insopitável, literalmente vital (as
Cartas a um jovem poeta, de R. M. Rilke, são um exemplo magistral deste ponto).
A quinta dimensão é a do privilégio ou ênfase na experiência. Esse conceito é
um dos pilares das polêmicas relativas ao racionalismo desde o século XVII,
dado o pressuposto de uma relação complexa entre razão e experiência na
produção do espírito ou do entendimento humano. Os empiristas e sensualistas
assim foram chamados por alocarem preeminência à experiência advinda da relação
dos sentidos humanos com o mundo, e o cientificismo transformou a idéia de
produzir conhecimento por meio de experiências artificiais e controladas na
imagem estruturante da própria atividade científica. Essas imagens eram bem
conhecidas dos românticos e não podem ser assim completamente dissociadas da
acepção com que o termo passou a ser empregado entre eles. Embora o conceito de
Erfahrung contenha a dimensão de experiência sensorial, ele aponta mais
decididamente, porém, para a experiência sentimental ou afetiva, íntima,
pessoal, passional ' subjetiva, enfim.
A ênfase na experiência é a base da epistemologia romântica. Ela implica a
recusa de uma objetividade externa absoluta do processo de conhecimento ou da
prática científica, em nome de uma consideração constante dos processos
subjetivos em jogo na relação com o mundo exterior. Já Goethe enunciava essa
proposta na sua Farbenlehre: contra uma ótica que considerasse a luz e a
formação das cores como processos objetivos, universais, independentes da
percepção humana, dispunha-se ele a oferecer uma consideração sistemática dos
modos como a experiência humana da luz e das cores se estruturava. O grande
desenvolvimento da fisiologia e da psicologia dos sentidos e das sensações na
academia alemã do século XIX (de que Wundt e Freud foram epígonos) testemunha
da crucialidade dessa conexão entre o objetivo e o subjetivo.
A última dimensão a esclarecer está intimamente ligada à da experiência.
Chamaram os românticos de "compreensão" (Verståndnis, em alemão; verbo
verstehen) ao método de conhecimento que levasse em conta o entranhamento de
todos os atos na dimensão vivencial, subjetiva. Opunha-se à explicação linear,
considerada típica do processo universalista, objetivista ' insuficiente e
contraproducente aos olhos românticos. O conceito teve enorme importância para
as ciências humanas, perpassando a obra de diversos autores influentes na
história e na sociologia; sobretudo Max Weber, que descreveu as características
do método do Verstehen em sua forma mais difundida até hoje (cf. Weber, 1978).
V
Apresentado assim esse arcabouço do que me parece qualificar essencialmente o
pensamento romântico, evoco alguns aspectos do desenvolvimento do conjunto ao
longo do século XIX sem os quais seria impossível compreender a complexidade da
floração das ciências humanas, ao se abeberarem desse rico projeto imaginário.
Desde suas primeiras manifestações expressou o romantismo as marcas do dilema
imposto pelo fato de ser englobado pelo universalismo: tratava-se de denunciar
os excessos do materialismo, as ilusões de um objetivismo ingênuo, mas não se
tratava de restabelecer os privilégios incontestados da religião ou de retornar
mecanicamente a um perdido passado místico. O valor da constituição de uma
ciência, de um saber leigo sistemático, foi freqüentemente mantido, e toda uma
tradição de diálogo com os pesquisadores, as técnicas e as problemáticas
universalistas se constituiu e manteve, serpenteando pelas especialidades,
universidades, laboratórios, técnicas e ênfases doutrinárias. Além do mais,
essa "ciência romântica" (a Naturphilosophie alemã) influenciou, por sua vez,
as orientações mais universalistas de modo extremamente vívido, de tal sorte
que a evolução de todas as ciências ' e não apenas das humanas ' ao longo do
século XIX foi um resultado complexo dessa interação (cf. Gusdorf, 1985).
Também desde o começo, porém, houve outros pensadores que procuraram
estabelecer uma distância mais acentuada em relação às Luzes, sublinhando
inclusive a insanidade daqueles que transigiam no diálogo com os servos da
Razão. Novalis encarna bem essa tendência, crítica de Goethe, por exemplo,
visto como excessivamente olímpico e integrado. Chamo a esses dois caminhos de
Romantismo da Luz e Romantismo da Sombra, um mais próximo da reflexividade da
sua ideologia de origem, o outro, mais distanciado, substituindo radicalmente a
reflexão racional pela intuição, essa Anschauungtantas vezes invocada e citada.
Pode-se lembrar a esse respeito a contraposição entre as famosas e supostas
últimas palavras de Goethe no leito de morte: "Mais luz !", e o título da obra
mais famosa de Novalis: "Hinos à noite". Parecem bem exemplificar essa oposição
a que me refiro e que marcará profundamente o destino do pensamento romântico e
da cultura ocidental moderna.
Essa bifurcação encontrará um leito de expressão fundamental na separação entre
a arte e a política, de um lado, e a ciência, de outro. A filosofia, mais
abrangente e complexa, mediará a Sombra e a Luz, ensejando o surgimento de
fórmulas particularmente singulares, como a de Nietzsche.
A Sombra romântica vicejou praticamente inconteste no domínio da expressão
estética. A arte ocidental do final do século XVIII até hoje é essencialmente
uma manifestação do romantismo. Todas as dimensões constitutivas antes
apresentadas contribuíram para o estabelecimento de seus parâmetros e condições
de legitimidade, particularmente a totalidade (sob a forma da autonomia do
estético), a diferença (sob a forma da intensidade como critério da
autenticidade), o fluxo e a pulsão (sob a forma do expressivismo criador). A
única característica desse domínio de nossa cultura que se pode associar mais
linearmente ao universalismo, embora também seja modulada pelas inflexões
propriamente românticas, é provavelmente a idéia de uma vanguarda temporal
permanente.
O outro domínio em que vicejou a Sombra romântica foi o da política. Arrolo aí,
pois, todas as propostas explicitamente restauradoras de algum tipo de
diferença política legítima ou sistemática. O pensamento conservador e
reacionário do século XIX apresentou numerosos exemplos, mais ou menos
"sombrios", desse tipo de manifestação, de Chateaubriand e De Maistre a Charles
Maurras. Mas penso sobretudo no nazi-fascismo. Embora certos aspectos
particularmente sinistros do nazismo sejam mais bem compreendidos como uma
ideologia médica do que como uma ideologia política, muitos de seus traços
ideológicos envolvem as dimensões imaginárias românticas, particularmente a
preeminência da totalidade/unidade e da intensidade diferencialista.
Seria particularmente difícil resumir a complexa trajetória da ideologia alemã
em seu fulcro filosófico. O que é certo é que o romantismo representa a pedra
de toque de todo o percurso pós-kantiano, dito "idealista", de Hegel a
Heidegger, concentrando sobretudo sua força expressiva e sua capacidade de
influência ampliada em Schopenhauer, Dilthey e Nietzsche. Este último
apresentou uma síntese tardia tão particularmente dramática dos fios
ideológicos do romantismo, que tornou sua obra a fonte regular de renovação da
inspiração romântica ao longo do século XX, muito mais do que qualquer outro de
seus predecessores e contemporâneos. Talvez esse ainda seja seu papel, embora
alguns de seus herdeiros e comentadores, como Michel Foucault ou Gilles
Deleuze, tenham se tornado, por sua vez, porta-vozes diretos.
Considero como um exemplo particularmente poderoso da articulação romântica
entre Luz e Sombra o Nascimento da tragédia, por ser uma obra em que ainda se
combinam o espírito romântico e uma argumentação retórica universalista
(diferentemente das obras aforísticas posteriores, em que a forma expressiva
acompanha de maneira solidária o conteúdo). Nesse trabalho Nietzsche propõe uma
reconstrução do principal mito de origem da cultura ocidental: o de suas raízes
gregas. Nela avulta a denúncia da razão, do logos associado à dúvida socrática,
destronado da positividade instauradora da narrativa universalista. No lugar
positivo alternativo encontram-se essas forças de expressão coletiva
supostamente primitivas, anteriores à emergência da dúvida e do ressentimento;
totalidades plenas de intensidade de que a tragédia clássica e as referências
históricas ao dionisismo já mal nos deixam entrever o perfil. Nietzsche
consegue manter a preeminência genérica do mito do "milagre grego", com os
sinais internos invertidos: há uma lição sim a ser herdada desses ancestrais,
mas não é a da razão ' e sim a da desrazão originária e possível, garantia da
autenticidade do todo, da unidade, do fluxo, da diferença, da intensidade e da
pulsão. É nessa combinação exasperada de pessimismo e otimismo que ele se
caracteriza como exemplo privilegiado da mediação filosófica entre a Luz e a
Sombra.
O outro grande luminar tardio da filosofia romântica a influenciar por diversas
gerações o pensamento ocidental é Dilthey. É uma influência mais severa e
discreta, nem sempre evidente, presente sobretudo pela reverberação de seu uso
e defesa sistemática da oposição metodológica entre as ciências da natureza
(Naturwissenschaften) e as ciências humanas (Geisteswissenschaften). Dilthey
fora tão influenciado pelo empirismo inglês quanto Nietzsche, mas essa
influência pôde se manifestar mais nítida pela quase total prevalência da Luz.
VI
É preciso reconhecer que a distinção entre as Naturwissenschaften e as
Geisteswissenschaften, que começou a se afirmar em meados do século XIX, já
representava uma modulação interna do romantismo, permitindo a bifurcação
epistemológica das ambições monistas iniciais da Naturphilosophie. Com efeito,
a influência das ciências experimentais de corte universalista se espraia
rapidamente por essa época, e a academia alemã acolhe o desenvolvimento de
pesquisa científica subordinada mas não dependente do horizonte romântico e das
ambições da Naturphilosophie. É em parte em resposta a esses desenvolvimentos,
de grande legitimidade ideológica, que se desenha a oposição entre uma pesquisa
mais mediada, voltada para a natureza física externa, objetiva, e uma outra,
imediata na consciência e na subjetividade, voltada para os fenômenos
específicos do humano.
Esse desenvolvimento não obedecia, contudo, apenas a um estímulo externo. Ele
também expressava um foco imaginário interno extremamente importante, que já
propus chamar de "evolucionismo romântico". Trata-se da representação de que o
fluxo das totalidades em busca da afirmação (Streben) de seu impulso originário
(Trieb) passa necessariamente de patamares mais simples, singelos,
indiferenciados ou brutos para patamares mais complexos, sutis, diferenciados
ou elaborados. Esse processo expressava-se na já citada representação da
emergência da Vida (Leben) como patamar superior da matéria bruta, e na
emergência do Espírito (Geist) como coroamento supremo da existência/
experiência. Compreende-se, assim, que fosse possível atribuir qualidades
específicas às ciências voltadas para cada um desses patamares, de sutileza
intrinsecamente diferencial. Essa idéia encontrou expressão paradigmática na
categoria hegeliana do Aufhebung, passagem de um determinado estado dos entes
para outro superior, mais "espiritual" e abrangente ' sem perda da continuidade
ontológica. Sua tradução como sublimação expressa apenas parcialmente uma
mancha semântica complexa e intensa. Não podemos deixar de mencionar a
generalizada e duradoura influência desse vetor ideológico ' no vitalismo
médico ou no espiritualismo kardecista, por exemplo.
Essa representação é fundamental para compreender a organização de um dos
principais filões das ciências humanas influenciados pelo romantismo: a
psicologia de Wilhelm Wundt.
O trabalho intelectual de Wundt e de sua equipe no Laboratório de Leipzig é
comumente comemorado como a inauguração de uma psicologia científica, por
oposição à especulação filosófica que teria caracterizado desde o século XVI a
exploração acadêmica do funcionamento da "alma" ou da mente humana. Como já
demonstrei em outro trabalho (Duarte e Venâncio, 1995), a pesquisa de Wundt
aspirava realmente a uma cientificidade estruturante. Tratava-se, no entanto,
de uma cientificidade muito diferente daquela que seus discípulos anglo-saxões
vieram a divulgar e consagrar. O ponto principal a ressaltar é o da separação
entre a psicofisiologia da experiência, a que se dedicava prioritariamente, e a
"psicologia dos povos" (Völkerpsychologie), que começou a se desenvolver com
grande empenho a partir de seu diálogo com Dilthey e da demarcação entre as
dimensões mediadas e imediatas do objeto psicológico. O modelo das
representações coletivas implicava justamente o reconhecimento das propriedades
específicas da vida psicológica coletiva, mais abstrata e complexa. Exigia-se,
assim, a constituição de um método de pesquisa especial, a que se dedicou com
afinco, apresentando soluções originais que influenciaram diretamente seus
discípulos E. Durkheim e B. Malinowski, mas também outros contemporâneos
prestigiosos, como William James e Franz Boas.
A peculiar combinação de ciências da natureza e ciências humanas que
caracterizou a psicologia wundtiana expressou-se paradigmaticamente no
princípio denominado "paralelismo psicofísico", em referência ao postulado de
Leibniz, segundo o qual os fenômenos da vida espiritual se desenvolvem em
paralelo aos fenômenos da vida natural, objetiva, mas sem conexões lineares
parciais. São duas linhas paralelas, articuladas em seu impulso, mas não em
seus elementos. Essa visão integrada, que enfatiza a totalidade e a
singularidade da vida psíquica, é comumente considerada a expressão de uma
tradição romântica ou holista na história da psicologia, por oposição à
tradição iluminista/empirista do associacionismo anglo-saxão.
Essa sua ênfase no caráter total, uno, integrado, dos estados de consciência
expressou-se em outros princípios e métodos fundamentais, como o da realidade
imediata (Aktualitåt), o da síntese criativa e o da análise relativa. Também a
preeminência da categoria Trieb em sua análise dos fenômenos psicológicos
revela a força da influência romântica, sobretudo no modo muito peculiar como
ele a associou à tematização da vontade humana.
A sociologia durkheimiana, comumente associada ao universalismo, em função do
peso do positivismo na definição do fato social e das tarefas da pesquisa
sociológica nascente, é no entanto filha direta de muitos dos postulados
básicos do romantismo. Mencionamos a exposição direta de Durkheim ao pensamento
de Wundt, por ele buscada em Leipzig. Outras influências reconhecidas foram
igualmente importantes, sobretudo a que lhe aportou Claude Bernard em sua
invenção do organismo como "meio interno", tão fundamental para as ciências
biológicas como para as humanas.
Encontra-se em Durkheim, do mesmo modo que em Wundt, a crítica geral ao modo
utilitarista ou pragmático de produzir uma compreensão universalista dos
fenômenos humanos. Durkheim retém a disposição universalista, cientificista
mesmo, mas propõe que se compreenda o caráter sui generis da vida social, com
propriedades emergentes que a distinguem tanto da natureza geral, como da
natureza psicológica individual humana. Totalidade de novo estatuto, a vida
social deve ser compreendida como tendo regras especiais de funcionamento, que
articulam a morfologia social com sua fisiologia, representações e valores
compartilhados. A crítica aos modelos utilitaristas recobre na verdade a
crítica à redução individualista, ou seja, à suposição de que a vida coletiva
seja apenas o resultado da justaposição dos indivíduos livres, iguais e
autônomos da ideologia liberal instituinte. Durkheim foi provavelmente o
primeiro pensador ocidental a desenvolver uma argumentação explícita sobre o
individualismo ao mesmo tempo como ideologia e como valor: instauradora,
intransponível, e, no entanto, impeditiva do acesso à percepção sociológica.
Seu contemporâneo Georg Simmel é outro expoente da sociologia nascente, cujo
trabalho se caracteriza, de um lado, por uma elevada expectativa de
formalização da compreensão das formas societárias, no mesmo sentido da
morfologia durkheimiana, e, de outro, por uma notável capacidade de explicitar
os valores estruturantes da ideologia individualista e sua condição reveladora
das principais dimensões da vida cultural ocidental moderna. Avulta a
importância de sua distinção entre um individualismo quantitativo e um
individualismo qualitativo. Ele resumia com grande pertinência na primeira
categoria a dimensão original do individualismo universalista de pretender
constituir e compreender o universo social pela combinação dos indivíduos
livre-contratantes, iguais entre si, do pacto político. E, na segunda, a
contribuição específica da teoria da pessoa romântica, com sua ênfase
característica na interioridade, na autonomia, no caráter singular e autêntico
de cada mônada. Suas magistrais interpretações de fenômenos como o amor, a
cidade, o dinheiro e a modernidade testemunham da potência analítica de sua
distinção entre a cultura objetiva e a cultura subjetiva. Como mencionei
anteriormente, essa dicotomia ao mesmo tempo expressa e instrumentaliza uma
representação fundamental do ideário romântico: a oposição entre forma e vida,
entendida esta última como dimensão intrínseca da vida humana legítima,
distendida em um fluxo significativo de disposições e determinações originárias
(Streben/Trieb).
Também a antropologia nascente pode ser considerada herdeira de dimensões
essenciais do romantismo. Privilegio aqui dois de seus pais fundadores, por
quanto são decisivas suas contribuições à constituição do cânon da pesquisa
antropológica: Franz Boas e Bronislaw Malinowski. Com efeito, credita-se ao
primeiro a invenção explícita da idéia da pluralidade de culturas como objeto
da análise comparada antropológica; ao segundo atribui-se a invenção do
trabalho de campo antropológico como pedra de toque da metodologia dessa
disciplina. O conceito boasiano de culturas é claramente herdeiro da noção de
totalidade/unidade cultural prevalecente no romantismo desde Herder, aplicado
ao conjunto ampliado das experiências humanas e não apenas aos fatos de
civilização. A luta de Boas contra os reducionismos fisicalistas e racialistas
que caracterizavam a academia ocidental de finais do século XIX pode ser também
vista como afirmação da qualificação superior do espírito (lembremo-nos do belo
poema de Goethe que ele transcreve em seu prefácio ao Patterns of culture, de
Ruth Benedict), como pedra de toque dos fenômenos culturais.
A posição de Malinowski em relação ao romantismo é particularmente peculiar,
dada a comum associação de sua epistemologia explícita a um empirismo linear e
materialista. Cresce, porém, a consciência da importância do horizonte
romântico em sua formação e no seu legado à antropologia (Strenski, 1982). Em
virtude da amplitude do tema, sublinho aqui o ponto que me parece mais
importante e que já explorei em outro artigo (Duarte, 1995) a propósito da
antropologia como "universalismo romântico". Trata-se da teoria do trabalho de
campo. Com efeito, Malinowski estabeleceu o roteiro básico para a definição do
fato antropológico como derivado de uma experiência subjetiva prolongada com o
mundo social observado, único modo de aceder à efetiva compreensão dos sentidos
vitais nele atualizados. Temos aí uma preciosa combinação dos temas da
totalidade, da experiência e da compreensão ' mesclada claramente pela
preeminência da vida e da pulsão.
Dois grandes desenvolvimentos românticos nas ciências humanas ocidentais serão
deixados de lado nesta apresentação sumária. Um deles ' o da psicanálise
freudiana ' mereceu uma recente demonstração específica de Inês Loureiro,
autora de uma obra magistral sobre a matéria (Loureiro, 2002). O outro é o da
história, merecedor de um estudo próprio, dada a imensidão da importância do
que se chama propriamente de historicismo no contexto geral do romantismo e na
constituição das ciências históricas contemporâneas. Volto a mencionar apenas
Max Weber e sua prestigiosa sociologia histórica como exemplo particularmente
estratégico dessa influência. Embora ele se afaste por muitos motivos do estilo
analítico de seus contemporâneos mais explicitamente românticos (como Simmel ou
Tönnies, por exemplo), é impossível compreender sua estratégia de definição das
unidades socialmente significativas da história da racionalidade (tanto em A
ética protestante e o espírito do capitalismo, como na trilogia sobre as
religiões de civilização) e a definição do seu método do Verstehen
(compreender) sem a referência aos pontos analíticos que aqui arrolei como
característicos do pensamento romântico.
Muito esclarecedor seria demonstrar a marca desse horizonte de valores no
pensamento de Norbert Elias, que pode ser considerado o último dos sociólogos
românticos. Sua compreensão do processo civilisatório é indissociável do
evolucionismo romântico, com toques específicos da versão que dele apresentou
Freud e com um peso particularmente notável da idéia de uma pulsão histórica.
Seu modo de compreensão das totalidades históricas significativas é muito
semelhante ao do "espírito" weberiano (chegando às vezes a lembrar as
reificações herderianas de Oswald Spengler em seu A decadência do Ocidente).
VII
Uma última e superficial referência pode ser feita sobre os desenvolvimentos
contemporâneos. O pensamento romântico propriamente dito distende-se em uma
tradição contínua até o período da Segunda Guerra Mundial, tanto na filosofia,
como nas artes e nas ciências. As traumáticas implicações da dominação nazista
sobre o espaço cultural germânico, o esgotamento das expectativas de uma
cultura de Bildung generalizada no Ocidente e a derrota política das teorias
nacionalistas autoritárias impuseram um novo horizonte para a tensão entre o
universalismo e o romantismo.
A retomada paulatina dos princípios românticos no pensamento ocidental tomou a
forma do que hoje se denomina pós-modernismo, ou seja, de uma crítica do
universalismo em nome da singularidade, da intensidade e da experiência. Apesar
da expressividade semântica da categoria nativa, considero conveniente
caracterizar essas novas manifestações como um neo-romantismo. Enfatizo com
isso a continuada presença dos valores românticos na formulação das
problemáticas filosóficas e sociológicas contemporâneas e ' ao mesmo tempo ' a
sua considerável inconsciência da filiação que a determina ' por força, em boa
parte, da violenta cesura histórica superveniente na metade do século XX.
A própria psicanálise e a antropologia social (ou cultural), que preservam mais
do que quaisquer outras disciplinas as marcas estruturantes da visão de mundo
romântica, perderam quase completamente a consciência de suas raízes
românticas, sendo necessário um trabalho de esclarecimento quase arqueológico
para sua demonstração. Assim, combinam-se hoje continuidades românticas
propriamente ditas com formulações aparentemente novas de crítica ao
universalismo, que parecem votar nossas disciplinas mais do que nunca à tensão
inarredável entre essas duas idéias-força de nossa cultura que as caracteriza
desde sua instauração.