Comunicação e sobrecarga cognitiva em duas situações de atendimento médico
Introdução
Este artigo trata de alguns aspectos cognitivos e comunicativos de um tipo de
solução de problema organizacional que, embora trivial, é persistente: o modo
pelo qual a marcação de consultas médicas e odontológicas reflete as limitações
e a necessária interdependência das práticas cognitivas e culturais relativas
ao atendimento médico. Por exemplo:
a) O uso de textos expositivos (ou discurso mais formal) e narrativos (ou
discurso mais espontâneo e casual, gestos, prosódia).
b) Os diferentes tipos de textos ativam diferentes sistemas de memória (memória
explícita ou consciente e implícita ou subconsciente).
c) Os dentistas exercem considerável poder discricionário sobre o modo pelo
qual as consultas são agendadas.
Empregamos o termo "cognição" para fazer referência aos mecanismos cognitivos
individuais e distribuídos, inerentes às atividades em colaboração que envolvem
percepção, atenção, memória e raciocínio, atividades cujas origens são
culturais (Tomasello e Call, 1997; Tomasello, 1999). O termo "discurso" refere-
se a atos de fala e eventos localmente concretizados e gerenciados, que são
sempre influenciados e constrangidos pelo uso do conhecimento socialmente
distribuído (Schütz, 1964) e da cognição (Hutchins, 1991, 1995). Tais atos de
fala e eventos surgem em meios físicos e culturais socialmente organizados e em
artefatos usados na realização conjunta de uma tarefa prática. Uma noção mais
abstrata de cognição dentro de uma comunidade pode ou não incluir a interação
social face a face, mas é sempre parte de um sistema informacional mais amplo
que evoluiu da cultura oral e que permanece inerentemente contingente em
relação a esta (Roberts, 1964).
As representações sociais só são acessíveis ao observador se este compartilhar
elementos delas com os agentes e, portanto, puder identificar a relevância
tacitamente percebida de fatores organizacionais, tais como a habilidade e a
experiência associadas a uma tarefa que vise à solução de problemas. A pesquisa
etnográfica pressupõe que a observação, as entrevistas semi-estruturadas
subseqüentes e, ocasionalmente, a participação permitam ao pesquisador
identificar os elementos organizacionais relevantes associados a uma
determinada tarefa de solucionar problemas.
A rotinização das tarefas por parte dos profissionais e funcionários no local
de trabalho é uma prática comum e motivada (muitas vezes implicitamente) pelo
anseio de reduzir ou controlar o impacto de um meio caracterizado por múltiplas
tarefas sobre o estresse ou o que chamamos de "sobrecarga cognitiva". Uma fonte
de sobrecarga cognitiva no atendimento médico é o descompasso entre a
experiência, a habilidade, o temperamento, os detalhes da tarefa em questão e
as exigências do pessoal da supervisão. Este artigo abordará o modo pelo qual
os elementos do discurso organizacional e os artefatos locais, constrangidos
pelos mecanismos cognitivos, ajudam a moldar a criação e o uso das
representações individuais e coletivas. Tais representações são um lugar comum
no ambiente de trabalho, já que os participantes, conforme executam sua
atividade, elucidam e explicam as soluções práticas dadas às tarefas.
Assim, abordaremos um aspecto pouco estudado do atendimento médico, qual seja,
o papel do pessoal não-médico em garantir as atividades necessárias à
realização dos serviços profissionais (Cicourel, 2002). Essas atividades
incluem o fornecimento ao paciente de informação sobre as condições médicas ou
dentárias, essencial para a realização subseqüente dos procedimentos médicos ou
odontológicos pelos profissionais da área.
Aspectos do mundo burocrático local
No local de trabalho, podem-se identificar meios que sugerem demandas mínimas e
múltiplas do foco de atenção dos profissionais, conforme realizam suas tarefas
e experimentam interrupções. O objetivo é identificar classes de atividades e
técnicas ou mecanismos empregados pelo pessoal da saúde para lidar e minimizar
as rupturas e os erros, e manter o controle sobre o meio que envolve a tarefa:
a) As interrupções em situações de atendimento médico são onipresentes e, por
vezes, mesmo o pessoal experiente só consegue recuperar em parte a atividade
que estava fazendo, além de precisar reconstruir o progresso feito antes da
interrupção. Para um novato, uma interrupção similar pode dificultar o
conhecimento do que fazer em seguida. Pode ser necessário, por exemplo, que o
profissional se empenhe em um planejamento construtivo após a interrupção, pois
talvez não tenha percebido que a tarefa ou subtarefa estava virtualmente
completada. As avaliações são socialmente representadas por anotações informais
(muitas vezes implícitas) indiretas e diretas e por estimativas oficiais
escritas.
b) Quando uma pessoa trabalha sozinha em uma determinada tarefa (ou duas
pessoas trabalham em paralelo, interagindo ocasionalmente), ela pode ter
dificuldade quando interrompida, a menos que estenda sua memória por meio de
marcadores ou anotações elaborados conforme a tarefa evolui. Enfocaremos, nesse
caso, as condições existentes no local de trabalho no momento das interrupções.
Os problemas rotineiros e as interrupções podem afetar o pessoal de forma
diferente, ainda que estejam todos empenhados em tarefas similares ou
relacionadas, pois a capacidade e o temperamento são diversos. Esses elementos
podem ser inferidos examinando-se fragmentos de discurso, mas analisá-los
exige, muitas vezes, a observação direta no local de trabalho, para extrair
informação sobre a interação, os artefatos, o status e o relacionamento
interpessoal.
A ênfase no uso da linguagem apresenta problemas semânticos adicionais, pois as
expressões verbais e o vocabulário empregados pelo pessoal inevitavelmente
truncam e condensam o que o analista pensa que está vendo e ouvindo quando
tenta reproduzir as representações individuais e coletivas.
Para identificar as variações e o que há de comum no interior e entre situações
naturais, nosso plano de pesquisa previu observações sistemáticas em diferentes
dias e horários, incluindo o registro de atividades reais de trabalho e a
extração de informação direcionada e aberta das pessoas durante o trabalho.1 As
entrevistas realizadas no momento em que os profissionais trabalhavam obtiveram
informação sobre suas ações ou de outras pessoas; ações que haviam acabado de
ocorrer ou que tinham sido previamente observadas. O meio prático foi usado
para ajudar a identificar as condições em que o pessoal lidava com demandas
múltiplas e a extensão em que recursos para recuperar a tarefa eram evidentes
após uma interrupção. Os desafios teóricos e metodológicos envolvem a
identificação de padrões que emergem em diferentes constrangimentos
organizacionais locais e não-evidentes.
Nos Estados Unidos, as trocas diárias entre a secretária e o público dentro e
fora da clínica podem ser vistas como atividades ordinárias, mas todas têm o
mesmo ar familiar e podem ser observadas em quase todas as situações de
atendimento médico. Em muitas ocasiões, tentamos elucidar as atividades de uma
secretária posicionando-nos ao lado dela e fazendo-lhe questões enquanto ela
realizava seu trabalho. As entrevistas semi-estruturadas apresentadas a seguir
sondaram a rotina de trabalho na tentativa de obter detalhes sobre a atividade
de agendar consultas relativas a diferentes procedimentos.
A permissão para realizar o estudo e efetuar observações sistemáticas e
registros das atividades de trabalho implicou em dar satisfações ao pessoal de
alto e baixo escalão no sentido de enfrentar não só as suspeitas normais em
relação às pessoas que, de certa forma, "invadem" a privacidade do local de
trabalho, mas também as alianças e os conflitos organizacionais existentes.
Textos expositivos e narrativos
A literatura relativa à análise do discurso identificou diferenças entre os
chamados "textos de exposição" e os "textos narrativos" como um meio de
assinalar os distintos fins comunicativos. A idéia de um "texto narrativo" é um
metatermo ou uma expressão concisa do observador que faz referência à produção
de uma família de termos freqüentemente associados com ambientes particulares.
O discurso narrativo é considerado mais pessoal e espontâneo e pode incluir
vários tipos de informação dotada de significado para os participantes do
discurso, como, por exemplo, expressões faciais, prosódia, gestos, movimentos
corporais e, sobretudo, o uso de marcadores verbais pragmáticos como "oh",
"assim", "bem", "mas", "e", "ou", "por que", "então", "você sabe", "eu quero
dizer" e "ora" (Schiffren, 1993). Os encontros em contextos médicos
burocraticamente organizados muitas vezes incluem atos de fala expositivos,
formais (por exemplo, o uso de formas polidas de fala e de gestos, apesar da
presença de possíveis "ilhas" de atos de fala casuais) em eventos discursivos
técnicos e/ou formais.
Os textos narrativos e expositivos estão muitas vezes entrelaçados,
característica que é função das condições de locais de trabalho, das relações
(por exemplo, redes sociais ou de trabalho) que se desenvolvem entre os
funcionários e do modo pelo qual o status formal e as expectativas e os
constrangimentos associados aos papéis são percebidos e desempenhados. Por
exemplo, as trocas entre médico e enfermeiro podem incluir os dois tipos de
texto e, no interior do gênero narrativo, dependendo da extensão de sua
associação e de suas relações interpessoais, o discurso pode variar, conforme a
estrutura social local e a presença de outros funcionários.
As condições locais de trabalho e as redes sociais fortes e fracas
(Granovetter, 1973) que orientam o uso de textos expositivos e narrativos
ativam duas formas de organização da memória de longo prazo (memória explícita
ou declarativa e memória implícita ou não-declarativa), que envolvem a memória
para fatos e a memória para habilidades (Squire e Kandel, 1999, pp. 15-17). Os
sistemas de memória constituem o cerne de qualquer interação social e do
discurso no local de trabalho. Tanto os pesquisadores como os funcionários e os
profissionais analisados dependem de diferentes recursos de memória para
atribuir interpretações semânticas e pragmáticas a suas observações ou a seus
recursos de informação. Embora os sistemas de memória implícita nasçam da
experiência, segundo Squire e Kandel tal memória se "exprime como uma mudança
no comportamento e não como uma recordação", além de ser inconsciente (Idem, p.
15). Esses autores indicam, ainda, que pode haver aspectos de recordação no
saber não-declarativo: se considerarmos, por exemplo, uma habilidade motora
sobre a qual algo pode ser recordado, ainda que a efetuemos sem pensar
conscientemente no modo pelo qual ela deve ser realizada.
No consultório médico, o pessoal da saúde e da administração baseia-se em
diferentes sistemas de memória para elaborar textos expositivos e narrativos
conforme interagem com outras pessoas ou com um computador. Por exemplo, quando
elaboram uma história médica, o médico e o paciente baseiam-se nas memórias
explícita e implícita para vincular a frase de abertura "o que o trouxe à
clínica esta manhã" à resposta "minhas mãos sempre estão enrijecidas quando
acordo". Para realizar uma endoscopia, o médico precisa fazer amplo uso da
memória implícita, inconsciente, enquanto usa habilidades motoras e interpreta
as imagens do duodeno e do estômago do paciente em um monitor de TV. Assim,
diferentes tipos de memória são ativados para formular questões, compreender as
respostas do paciente e explicar a este o que ocorrerá durante determinado
procedimento.
A seguir veremos como a secretária encarregada de marcar a consulta também
emprega essa memória e habilidades comunicativas ao informar os pacientes sobre
os procedimentos que devem adotar antes de chegar à clínica ou ao hospital. A
contínua "conversa miúda" durante as instruções dadas pela secretária que marca
a consulta (e durante um exame físico rotineiro) é útil para manter a relação
social com o paciente e fornecer informação tranqüilizadora sobre o que
ocorrerá.
O meio de tarefa localmente organizado exige que o pessoal (tal como o pessoal
da clínica médica e odontológica nos exemplos descritos adiante) esteja
capacitado a criar relatos verbais e não-verbais convincentes aos colegas e
pacientes com os quais interagem. Dito de outra forma, isso significa basear a
situação presente em atos de fala, gestos e outras ações dotadas de
significado. Para identificar tais práticas é necessário criar um contexto
apropriado no sentido de observar a cooperação e o conflito, pois o
comportamento relevante surgirá e evoluirá mais prontamente quando a outra
pessoa for capaz de se referir ou pressupor um quadro similar para a atividade
conjunta em questão. É preciso adquirir conhecimento e competência para
compreender e produzir, por exemplo, inserções semelhantes a textos expositivos
e narrativos no computador ou em formas burocráticas e apontamentos escritos ou
ditados que são enviados a outros estabelecimentos burocráticos (uma outra
clínica ou uma companhia de seguro) ou inseridos no histórico do paciente.
Abordaremos a avaliação e a descrição das relações interpessoais e o conteúdo e
a implementação de tais habilidades burocráticas.
Uma clínica médica especializada
Este artigo é parte de um estudo mais amplo sobre três situações de atendimento
médico. Em publicação recente (Cicourel, 2002), apresentamos os dados iniciais
sobre a marcação de consultas em uma clínica médica especializada
(gastroenterológica, pulmonar, radiológica, cardiológica etc.). A clínica está
localizada em um hospital universitário moderno e relativamente novo.
Nesta clínica, há vários detalhes pré-procedimentais que devem ser satisfeitos:
os pacientes são distribuídos em determinados horários e instruídos sobre
procedimentos especiais (dieta de líquidos um dia antes, não consumir
medicamentos com aspirina e outros semelhantes).
A secretária deve extrair informação do computador, fazer chamadas telefônicas
para se certificar de que uma determinada especialidade clínica ou seção de
radiologia pode receber o paciente, além de responder chamadas telefônicas da
Central de Atendimento e de pacientes que tentam marcar nova consulta ou
alterar uma já marcada. A "sobrecarga" on-line que muitas vezes ocorre é
atenuada, em parte, solicitando-se ao paciente ou ao pessoal de outro serviço
do hospital que aguarde e não ocupe o telefone. Mas a secretária atenderá
imediatamente uma chamada da Central caso tenha deixado uma mensagem para que a
chamem. Conforme fala, ela faz breves anotações em pequenas folhas de papel e
pode sinalizar que reconheceu um médico, enfermeiro ou paciente próximo a ela
por meio de contato visual, um breve comentário ou um sorriso, enquanto
prossegue executando sua tarefa (uma entrada no computador ou atender ao
telefone).
A renovação constante das atividades organizacionais locais segue
constrangimentos burocráticos e interacionais notados antes, mas depende também
do senso da secretária (muitas vezes observável nas ações não-verbais e
paralingüísticas) a respeito do que ela considerou necessário para satisfazer
as metas e as sanções do meio organizacional local e mais amplo. É preciso, por
exemplo, contornar mal-entendidos, resolver consultas atrasadas ou lembrar os
pacientes sobre consultas marcadas. Quando fala com a Central de Atendimento
sobre uma consulta, a secretária deve, simultaneamente, tomar uma ou mais
folhas de papel das mãos de um médico quando este se aproxima, introduzir nelas
informação escrita e devolvê-las sem nada dizer. As anotações feitas durante as
chamadas telefônicas ou as entradas no computador ou no documento da clínica
refletem a observação tácita feita pela secretária a respeito do que foi dito
ou observado.
As atividades da secretária exigem um delicado balanço para adaptar seu status
organizacional relativamente baixo em relação aos profissionais com os quais
ela se comunica, além de ser sensível às demandas dos pacientes por informações
médicas para as quais ela não foi treinada a fornecer. A secretária deve também
estar atenta aos interesses da administração do hospital e dos médicos ao
instruir os pacientes sobre certos procedimentos (jejum, dieta, uso de enema).
Suas atividades rotineiras devem gerar textos médicos e burocráticos narrativos
e expositivos que possam ser compreendidos por outros agentes profissionais e
burocráticos. É preciso, por exemplo, transformar uma chamada telefônica em uma
entrada no computador ou em parte do registro médico do paciente ou de uma
consulta agendada.
A secretária faz essas transformações por meio de textos narrativos e
expositivos apropriados, que transmitem tipos específicos ou gerais de
informação descritiva e comunicativa, de forma a assegurar que ela e outras
pessoas possam acessar o conteúdo semântico particular. O uso de lembretes, que
podem ser fixados em superfícies (como apontamos adiante), é uma forma de
aprimorar sua memória e a agenda de solução de problemas, sincronizando tais
anotações com outras atividades on-line. A seguir, ilustramos algumas das
observações realizadas pelo pesquisador:
1. Logo que chegava pela manhã e após a parada para o almoço, a secretária
tomava notas enquanto ouvia a secretária eletrônica. As notas, escritas à mão,
eram colocadas à esquerda de seu computador.
2. As tarefas da clínica especializada exigiam o mapeamento de uma chamada
telefônica ou das observações verbais de um médico ou de um paciente em um
domínio espacial que envolvia informação escrita eletronicamente ou à mão, o
que posteriormente permitia que ela visualizasse a informação mais facilmente,
olhando para um papel, em vez de ser obrigada a lembrar de uma mensagem de voz.
3. Assim, a transferência de um meio (voz) para outro (escrita à mão ou
eletrônica) e vice-versa gerava anotações e permitia, simultaneamente, que a
secretária repassasse, inadvertidamente, os aspectos processuais do espaço de
solução de problemas.
4. As anotações eram fixadas em torno do monitor do computador ou nas
prateleiras acima de sua cabeça e não pareciam estar organizadas em uma ordem
de prioridade.
5. As anotações, porém, permitiam que ela representasse o estado do sistema a
partir do último momento conhecido. Tais lembretes também permitiam que ela
retomasse o diálogo com um paciente, um médico ou a Central de Atendimento do
ponto em que o havia deixado, dispensando, assim, uma pesquisa elaborada a cada
vez.
6. A secretária teve de adquirir e negociar aspectos de expressões lingüísticas
ou vernáculas, tais como termos concisos de diagnóstico ("endoscopia", "anti-
séptico bucal", "raspagem da garganta", "reflexo do vômito") ou frases do tipo:
"Ok, em seguida você...", "Agora você percebe qual é o problema?" etc.. O
conteúdo das expressões precisa ser compartilhado, para que os participantes do
sistema possam se referir a ele mais tarde e, assim, poupar tempo e alcançar
algum nível de precisão comunicativa.
A Central de Atendimento (C) não sabe quais pacientes estão se comunicando
diretamente com a clínica especializada. Um médico só pode se comunicar sobre
tais questões com a clínica, a qual, por sua vez, pode marcar consulta para os
pacientes, mas depois deve verificar se estes podem cumprir com o horário
marcado. A clínica e a Central de Atendimento podem também sugerir um dia ou
dois de determinada semana e um ou mais horários. O paciente deve, então,
planejar o dia e o horário de sua consulta. Alguns médicos não permitem que a
Central agende consultas para eles, caso em que a clínica tem autoridade para
marcar as consultas diretamente.
O diálogo a seguir é um exemplo de discurso narrativo na clínica estudada. A
Central pergunta o que acontece quando um paciente não pode comparecer a uma
consulta, e parece antecipar a resposta ao pressupor que a clínica espera que o
paciente faça o ajuste apropriado (linha 2):
Exemplo 1:
Central' Mas como você sabe que o paciente pode cumprir com este horário? [1]
Clínica' Bem, na maioria dos casos sim. [2]
Central' Sim, você corre o risco. [3]
O diálogo "faz sentido" porque descrevemos, anteriormente, aspectos das
atividades do sistema de saúde que permitem interpretar os comentários
elípticos como parte de uma conversa sobre a possibilidade de agendar consultas
antes de perguntar ao paciente se ele pode aceitar. Normalmente, o paciente tem
acesso direto a alguém que marca uma consulta não especializada. Mas consultas
especializadas, como dermatologia e oftalmologia, têm procedimentos próprios
para agendar a consulta.
No Exemplo 2, a clínica sugere que uma das metas de seu pessoal é fazer que os
pacientes reconheçam como é difícil agendar uma consulta em setores como
endoscopia ou colonoscopia. A clínica prefere dar a idéia de que está
sobrecarregada por muitos pedidos de consulta a dizer que não dispõe de
profissionais em número suficiente para satisfazer as necessidades dos
pacientes, seja em alguns dias, seja em duas ou três semanas. De fato, os
pacientes quase não têm voz em tais questões e cabe aos funcionários lidar, de
forma cautelosa, com a irritação deles. Não raro as clínicas solicitam que os
gastroenterologistas revejam os pedidos de endoscopia e colonoscopia para
determinar se esses exames podem ser adiados ou, mais provavelmente,
rejeitados. Os pacientes, obviamente, não são diretamente informados (linhas 7-
9) de que "se conseguirem os exames antes de três ou quatro meses terão muita
sorte [risos]". Em termos mais gerais, os breves fragmentos de dados (linhas 1-
9) sugerem como os constrangimentos burocráticos afetam a capacidade de os
pacientes acessarem os procedimentos médicos.
Exemplo 2
Clínica' Para endoscopias, tentamos saber se os pacientes em geral estão: [4]
bem conscientes de que é difícil conseguir [Central' Entendo] consulta para uma
[5]
colonoscopia [Central' Entendo] ou uma endoscopia, eles sabem disto, você [6]
também sabe, há uma longa espera. Na maioria dos casos eles sabem que se [7]
conseguirmos marcar uma consulta antes de três ou quatro meses estarão com
sorte [8]
[risos] [9]
As linhas 4-9 sugerem que a clínica espera que os pacientes se sintam com
"sorte" se conseguirem a consulta antes de três ou quatro meses, mas eles não
são informados sobre as razões que tornam tão difícil marcar uma consulta. O
tratamento dado ao paciente está vinculado a um sistema mais amplo de atividade
que envolve custos não explicitados e constrangimentos burocráticos relativos
às consultas especializadas. Os aspectos performativos da noção de agendar uma
consulta implicam uma série de obrigações e instruções que envolvem várias
partes: paciente, médico, pessoal administrativo e outros; todos devem ser
conscientizados de que se espera um certo tipo de comportamento colaborador. A
marcação de uma consulta exige negociação.
No Exemplo 3, a clínica especializada emprega alguns termos técnicos
("endoscopia", "colonoscopia"), mas a linguagem se mantém informal e, às vezes,
usa um estilo até mesmo incoerente, como na passagem em que se explica à
Central que os pacientes não compreendem as limitações do sistema de consultas.
Exemplo 3
Clínica' Ok, eles reclamam, mas são os poucos que [10]
não compreendem e se não é suficiente para as necessidades deles [11]
eles vão reclamar, você sabe, um pouco de queixa e [você?] [12]
sabe, vão pedir para antecipar e nós tentamos [13]
ajustar o melhor que pudermos [Central' Ahã, ahã] ou se [14]
não conseguirmos, gostaríamos que [15]
constasse nos livros [Central ' Certo]. Gostaríamos que constasse no computador
[16]
[Central ' Ahã]. E em alguns casos, se não for satisfatório [17]
do ponto de vista dos pacientes, eles podem ligar para a Central e agendar[18]
sozinhos. [19]
Os pacientes podem ficar insatisfeitos com a marcação da consulta. A existência
de uma consulta na qual o paciente não pode comparecer permanece no computador
até que outra seja marcada, para que fique registrado que o pessoal do sistema
de saúde tentou agendar e também para confirmar que o paciente se empenhou, de
boa fé, em obter a consulta.
Num diálogo não transcrito aqui, a clínica aponta que alguns médicos não têm
uma agenda aberta, não trabalham com a Central e, portanto, ninguém poderia
ligar e tentar remarcar. Esses médicos não permitem que a Central marque
consultas para eles diretamente. Assim, foi delegado à secretária mediar a
marcação da consulta. Isso significa que, no que diz respeito a esses médicos,
os pacientes não conseguirão obter consultas por meio da Central, a menos que
esta se comunique com a secretária ou o paciente saiba sobre os procedimentos
particulares do médico para aceitar consultas. A clínica afirma que se trata de
um problema difícil para o pessoal do atendimento, apontando que, quando um
paciente liga para a Central e cancela a consulta, esta deve entrar em contato
com a secretária, única pessoa que tem acesso à agenda dos médicos. Quando um
dos médicos se ausenta da cidade por um período, cabe à secretária ligar e
remarcar as consultas.
No interior do sistema de saúde, podem existir condições organizacionais
especiais que dão ao médico (e, muitas vezes, à secretária) considerável
liberdade de ação em relação à obrigação de ver os pacientes. A capacidade de o
médico controlar quais pacientes serão recebidos é uma significativa fonte de
poder.
Durante os períodos mais intensos de trabalho, a secretária é bastante
solicitada, mas após preencher vários dias da agenda do médico, ela pode ser
informada de que este não estará na cidade no período em questão. Por outro
lado, observou-se que solicitações adicionais ocorriam quando os médicos se
aproximavam de sua mesa com um paciente que necessitava de informações, como,
por exemplo, a marcação de nova consulta, dados sobre a forma adequada de um
exame radiológico ou de outros testes laboratoriais, instruções a respeito do
que fazer antes de passar por determinado procedimento ou do que ocorrerá
durante o exame (cf. Cicourel, 2002).
Como vimos, a secretária de uma clínica especializada desfruta de um poder de
decisão limitado, mas explícito (poder administrativo), já que toma decisões
locais relativas à sua tarefa. Quando a secretária conversa com colegas de
clínicas especializadas do mesmo hospital universitário ou de outro, os atos de
fala consistem em discurso narrativo, e as trocas verbais refletem as mesmas
frustrações experimentadas durante o contato com profissionais da saúde de
status mais elevado.
Uma clínica odontológica
O quadro de profissionais e funcionários da clínica odontológica analisada
durante a pesquisa consistia de duas recepcionistas, um supervisor, dois
especialistas, dois assistentes, dois dentistas e um assistente dentário pós-
operatório. O fluxo de atividade na clínica dependia do número de dentistas
presentes. Eles realizavam suas tarefas independentemente da cirurgia dentária.
As duas recepcionistas foram observadas e entrevistadas enquanto trabalhavam. O
registro das observações foi feito em diferentes períodos e dias da semana.
Cada recepcionista tinha funções determinadas, mas precisava conhecer e, por
vezes, realizar a tarefa da outra.
Interrupções rotineiras e sobrecarga na clínica odontológica
Nesta clínica privada, os dois dentistas dispunham de considerável poder de
decisão para distribuir seu tempo entre os pacientes. As emergências eram
enfrentadas caso a caso, e todos estavam preparados para estender, se
necessário, as horas de trabalho. A seguir, há um resumo de dois fragmentos de
transcrição ' um relativo à visita inicial e outro às visitas subseqüentes
realizadas na clínica. Enfatizaram-se as atividades que envolviam diretamente
as recepcionistas (pacientes que chegavam para a cirurgia ou que marcaram
consulta de higiene dentária) e os artefatos que serviam para lembrar coisas a
serem realizadas, como confirmar por telefone aos pacientes a consulta que
teriam no dia seguinte e notificá-los de exigências médicas pré-cirúrgicas. Os
fragmentos de texto narrativo do primeiro dia de observação ilustram as
solicitações feitas às duas recepcionistas (D e L). Conforme os telefonemas
eram feitos, porém, podia surgir uma chamada em uma linha livre, e uma das
recepcionistas pedia à pessoa que se mantivesse na linha enquanto ela concluía
o telefonema anterior, completando as informações ao paciente que viria no dia
seguinte.
O foco de atenção das recepcionistas mudava continuamente, passando por várias
tarefas rotineiras: informar os pacientes sobre os planos de pagamento, falar
com os que chegavam na clínica, escrever anotações para si mesmas ou solicitar
a ajuda da outra recepcionista. Elas também tinham de dar atenção ao dentista
que aparecia solicitando uma consulta para o paciente que estava ao seu lado.
Enquanto falava com o dentista, ocorria de ter que atender uma chamada
telefônica, ou simultaneamente verificava na tela do computador os dias e
horários de consulta disponíveis, negociando, em seguida, com o paciente uma
data de agendamento possível.
A maneira como o trabalho era organizado gerava múltiplas demandas de memória
explícita (sobrecarga cognitiva), o que interrompia as tarefas e não favorecia
o controle sobre a estrutura local.
Ocorriam vários tipos de atividade. O telefone tocava; D ou L deviam atendê-lo;
pacientes chegavam, assinavam um papel e se sentavam. Periodicamente, o
assistente ou o encarregado da higiene perguntava sobre um paciente ou trazia
um que acabava de passar por uma limpeza dentária e precisava marcar outra
consulta ou fazer o pagamento. Um assistente chamava um paciente que passaria
por uma intervenção cirúrgica ou acabara de concluí-la. O assistente podia,
ainda, trazer um paciente que sofrera exame preliminar, solicitando às
recepcionistas verificar o custo do tratamento.
Durante a visita inicial, D narrou ao observador a rotina do consultório.
Descreveu os diversos funcionários e seus deveres (aquele que fazia
acompanhamento pós-cirúrgico, examinando os pacientes uma ou duas semanas após
a cirurgia; um assistente de cirurgia e dois dentistas). D afirmou que a
cirurgia podia durar de uma a três horas, dependendo do que precisava ser feito
e do tempo do cirurgião, e apontou outras atividades que ocorriam após a
cirurgia.
Exemplo 4 ' Observação inicial na clínica odontológica
D ' Bom dia [quase inaudível] [1]
Consultório do Dr. X, sou D [2]
Ok, B, temos um horário disponível [3]
na quinta-feira, dia 9, às 2:30, pode ser? [4]
Sim, ótimo. Estamos acertados. Obrigado, até mais. [5]
[Falando a L] ' Você não pode localizar? [6]
[Conversa pouco clara entre D e L sobre a ficha do paciente e [7]
[raios-x] [8]
No Exemplo 4, o telefone tocou e D atendeu. Trata-se de uma chamada típica de
um paciente. A recepcionista identifica o consultório e a si mesma e ouve do
paciente a solicitação de uma consulta. A conversa indica a disponibilidade
para consulta, incluindo dia e horário. Vale sublinhar o modo metafórico e
informal pelo qual D conclui a conversa: "Ótimo. Estamos acertados...". A
informalidade dos atos de fala sugere que a chamada tenha sido feita por um
falante nativo. Na linha 6, vemos a resposta a um comentário prévio de L sobre
a ficha ausente e a pergunta se ela poderia localizá-la. O telefonema do
paciente não apagou da memória o problema de D a respeito da ficha ausente,
apesar da interrupção. Talvez o fato de L estar ao seu lado tenha ajudado D a
se lembrar da questão que tinha ficado em aberto.
Em seguida, D relata ao observador que, naquela manhã, elas deveriam verificar
a agenda dos dentistas, mas que as freqüentes interrupções consomem a maior
parte do dia de trabalho. No final da conversa, elas concluem que aquela ficha
não estava no lugar certo e que, portanto, D deveria procurá-la. D, então,
escreveu "Ficha" em um pedaço de papel e colocou-o atrás do teclado do
computador. A elaboração do lembrete, a despeito das freqüentes interrupções
(atender o telefone, conversar com o dentista etc. etc.), ilustra um modo
empiricamente relevante de abordar uma questão central para a teoria que
procura integrar mecanismos cognitivos e práticas culturais, isto é, a
interação entre atenção, sobreposição, memória e conhecimento e, por fim,
criação e uso de artefatos.
A recepcionista D também relatou que o sistema de computador usado era antigo e
fonte de contínuos problemas: muitas vezes as chamadas solicitando novas
consultas ou a mudança das existentes não podiam ser checadas, obrigando as
recepcionistas e o supervisor a fazer anotações para serem checadas
posteriormente, o que mudava o método de trabalho. Ambas as recepcionistas
compartilhavam arquivos e, assim, podiam acessar a mesma informação do
computador, mas somente uma pessoa de cada vez podia acessar a informação, de
modo que uma recepcionista elaborava anotações até que a outra encerrasse sua
atividade no computador. Os dois teclados alimentavam o mesmo servidor, mas
somente um podia ser usado em determinada ocasião.
Uma tarefa-chave começava assim que as recepcionistas chegavam no trabalho.
Tratava-se de ligar para cada paciente e confirmar sua consulta do dia
seguinte, assegurando-se de que ele estava ciente do horário e, em caso de
cirurgia, repassando (pela segunda vez) as instruções que deveriam ser
seguidas. Embora a importância desse tipo de tarefa fosse ressaltada pelas
recepcionistas, uma regra fundamental era criar um artefato que motivasse a
tarefa ' "[...] a primeira coisa que fazemos, assim que ela ou alguém abre [o
consultório], é imprimir a agenda do dia seguinte" ', para que o pessoal
técnico e profissional ficasse plenamente consciente do que se esperava deles
naquele dia.
Esses exemplos mostram a maneira pela qual o pessoal da clínica busca promover
a cooperação no grupo e manter a comunicação sobre temas comuns durante a
realização das diferentes tarefas. Refletem também o que se espera do trabalho
das recepcionistas, ou melhor, o uso que elas devem fazer da linguagem, do
raciocínio e das atividades motoras. É difícil que essas solicitações sejam
inteiramente rotinizadas, já que, como vimos, sempre surgem várias
contingências (pacientes que ligam para cancelar a consulta, pacientes que não
aparecem e precisam ser contatados, procedimentos de emergência ou dentistas
regulares que enviam pacientes com problemas dentários etc.). No entanto, a
recepcionista D alertou para aquilo que denominamos "sobrecarga cognitiva" em
um sistema cognitivo distributivo, no qual constrangimentos organizacionais,
expectativas e "surpresas" são conseqüências inevitáveis dos deveres associados
a esse tipo de função.
As atividades exigidas de D e L dependiam da experiência particular de cada uma
para resolver problemas específicos e assegurar a aprovação do supervisor. Suas
posições exigiam a elaboração e a organização de artefatos capazes de lembrá-
las de tarefas particulares e, ao mesmo tempo, a manutenção de uma interação
"polida" com pacientes a respeito da marcação de consultas e de questões
financeiras e nos intercâmbios com o pessoal profissional e técnico. Segundo o
supervisor, D era especialmente capacitada para organizar seu espaço de
trabalho, bem como nas relações interpessoais; L, porém, parecia incapaz de
gerenciar a sobrecarga cognitiva que experimentava. Na avaliação do supervisor,
ela não conseguia desenvolver as habilidades necessárias para assegurar o bom
funcionamento do trabalho. Alguns meses depois, foi demitida.
Discussão
As atividades da secretária da clínica especializada exigiam a internalização e
a externalização de estados de coisas percebidos. A secretária armazenava
informação na memória enquanto tentava estender seus recursos de raciocínio e
de atenção para acessar a memória explícita e implícita no momento de inserir
dados no computador. Ela usava a informação já armazenada no computador para
lembrar das circunstâncias clínicas dos pacientes e, quando se tratava de
marcar uma consulta, recorria a suas experiências explícitas e intuitivas.
Simultaneamente, satisfazia as exigências dos médicos e do pessoal
administrativo e dava aos pacientes instruções sobre procedimentos (jejum,
dieta, uso de enema). Em termos mais gerais,
1. A secretária e as recepcionistas (e outros funcionários que trabalham na
área da saúde) elaboravam e negociavam aspectos de registros lingüísticos ou
vernáculos (por exemplo, textos expositivos ou narrativos) para criar um
sistema de comunicação razoavelmente preciso e funcional que tanto os
profissionais como os pacientes pudessem compreender.
2. Iniciavam freqüentemente uma chamada telefônica no interior do sistema e
interagiam somente com parte deste em um determinado momento. Exerciam certo
poder de decisão, tentando satisfazer as metas organizacionais exigidas pelas
tarefas do meio. A coordenação consumia tempo: elas precisavam lembrar onde
estavam certas coisas, lidar com interrupções e recordar as condições
anteriores após uma pausa para almoço ou ao retornar ao trabalho no dia
seguinte. Cada uma precisava checar um determinado estado de coisas para
averiguar se tudo estava organizado (por exemplo, mensagens telefônicas aos
pacientes ou inserir consultas marcadas no computador). Artefatos
informacionais (Norman, 1987) podiam mostrar o estado de coisas de uma maneira
anotada.
3. Elas tomavam notas enquanto ouviam a secretária eletrônica assim que
chegavam pela manhã ou quando retornavam do almoço. Como apontamos
anteriormente, as anotações envolviam a transformação temporal de um telefonema
ou da voz de um médico ou paciente para o domínio espacial. Por exemplo, o uso
de papéis fixados ao redor do monitor ou nos escaninhos atenuavam aspectos da
sobrecarga cognitiva e facilitavam a recriação do que deveria ser feito.
Sublinhamos o fato de que o estudo dos meios de atendimento médico não pode
ignorar a natureza informacional das organizações (Roberts, 1964), nem os
constrangimentos individuais que recaem sobre a produção e a compreensão dos
eventos de fala. A análise dos materiais discursivos pressupõe, mas nem sempre
pode abordar, o modo pelo qual a percepção da situação local e de seus
artefatos ativam o trabalho e a memória implícita e explícita. A atenção ativa
a memória dos participantes e a capacidade de raciocínio, orientando,
inevitavelmente, as trocas lingüísticas e facilitando a natureza contingente do
que poderíamos descrever como o "contexto" local.
Na clínica médica especializada e no consultório odontológico, as habilidades
interpessoais tanto da secretária como das recepcionistas para lidar com as
demandas exigiram que o pesquisador fizesse observações amostrais, de modo a
poder identificar constrangimentos organizacionais, o desempenho real das
tarefas e as demandas atribuídas aos participantes. Nem sempre dispusemos de
dados adequados ou tempo necessário para realizar a observação e o registro
etnográfico, mas, ainda que os dados não permitissem um tratamento apropriado,
era necessário fazer uma contextualização conceitual em torno do tema proposto.
Evitar questões conceituais e empíricas significaria enfraquecer nossa
compreensão de como o sistema de saúde e outros similares se transformam e se
mantêm.
Observações finais
Nas duas situações clínicas descritas, tanto a secretária da clínica
especializada como as recepcionistas do consultório odontológico tentavam criar
um meio em que prevalecesse a colaboração, usando, para isso, dispositivos
verbais e escritos, negociando uma série de condições emergentes que mudavam
constantemente e que eram atravessadas por freqüentes interrupções. Buscavam,
ainda, minimizar o perigo de "sobrecarga cognitiva".
A complexidade desses mecanismos de trabalho reflete a interação entre as
pessoas em situações organizacionais locais e mais amplas. As situações de
interação e a solução funcional das tarefas, porém, só podem existir, se
reproduzir e se transformar dentro de um contexto de práticas culturais que
possibilite a comunicação e o processamento da informação (por exemplo,
memória, emoção, atenção e raciocínio).
Os fragmentos de discurso apresentados neste artigo revelam como os meios de
trabalho de que se utilizam os funcionários observados são, de fato, extensões
estruturais de memória explícita, que, por sua vez, depende da ativação de uma
memória implícita pressuposta (inconsciente), necessária para manipular objetos
sociais.
O pesquisador deve ser capaz de observar a situação organizacional para inferir
como os mecanismos de trabalho funcionam em cada momento e como eles se mantêm
no cotidiano. Assim, os modelos cognitivos e culturais acessíveis só serão
relevantes se o observador for capaz de elucidá-los, identificando as
construções sociais que surgem ao longo da pesquisa. Quando disponível,
portanto, a observação direta é muito eficaz no sentido de que fornece
informações mais sutis que, muitas vezes, não aparecem na fala e no discurso
daqueles que interagem numa situação de trabalho.
Notas
1 Para mais detalhes de como biólogos empenhados em pesquisa ecológica de
comportamento não-humano obtêm sistematicamente amostras de indivíduos, grupos,
situações e atividades, ver Altmann (1974).