A democracia, face política da globalização?
Introdução
O mundo pós-Guerra Fria, ou melhor, o mundo após a extinção do bloco soviético
(1989-1991), ultrapassada a velha rivalidade bipolar e a lógica política,
económica e social que lhe estava subjacente, celebrou uma nova era baseada nos
princípios do desenvolvimento e cooperação, enquanto fundamento de uma nova
ordem mundial. Parecia estar aberto o caminho para a difusão dos valores e
ideais democráticos, acelerada pelos progressos tecnológicos da informação,
tanto mais facilitada quando, afundado o socialismo de Estado, parecia não
existir qualquer outro modelo alternativo para a humanidade. Contudo, não
tardou que este optimismo, inspirado na recuperação do idealismo característico
das épocas pós-conflituosas, desse lugar a um conjunto de realidades bem mais
duras, marcadas por tensões, violações de regras e direitos fundamentais, pelo
eclodir de conflitos violentos, vincadamente étnico-nacionalistas, em grande
parte de natureza supra-estatal, e ainda, pelo recrudescimento dos movimentos e
acções terroristas, desvanecendo-se, assim, o sonho de uma nova ordem pautada
pelos princípios da democracia, da paz e da cooperação.
Os desafios à construção democrática após o final da Guerra Fria e num período
de crescente globalização são inúmeros. Atravessando fronteiras, cruzando
ideologias e ultrapassando particularismos, a democratização contém amplas
potencialidades, mesmo defrontando-se com inúmeras limitações. Diz respeito a
uma multiplicidade de aspectos, incluindo, verticalmente, os vários níveis de
organização social e política, desde as autoridades nacionais, locais e
regionais até à sociedade civil, e horizontalmente abrangendo aspectos
político-ideológicos, económicos, sociais e culturais. É da interligação destas
duas dimensões, e da forma como estes factores se conjugam na formação da vida
em comunidade, que podemos entender a complexidade dos desafios da
democratização no mundo pós-Guerra Fria.
Partindo da análise do conceito de "democracia", tantas vezes suscitando
interpretações distorcidas e aplicações inadequadas, e do conceito de
"globalização", cuja definição está longe de suscitar consensos, propomo-nos a
analisar os desafios da democratização no mundo pós-Guerra Fria, num contexto
de crescente globalização, olhando as profundas alterações no cenário mundial
resultantes do fim do sistema bipolar e da afirmação de um mundo cada vez mais
permeável às mutações no sistema internacional, questionando processos e
sugerindo alternativas.
Uma leitura histórica do conceito de democracia
Ao longo da história, os desafios da democratização têm caminhado par a par com
as diferentes interpretações e valorações conferidas ao próprio entendimento de
democracia. Literalmente significando "o governo (kracia) do povo (demos)",
assumiu, em diferentes momentos e contextos, significados tão díspares que, em
circunstâncias próprias, parece mesmo ilustrar realidades contrárias à sua
simples formulação original.
Surgiu nas cidades-Estado da Grécia antiga, como um modelo de governação, onde
todas as decisões fundamentais à vida em comunidade eram tomadas em assembleia
popular, reunindo todos os cidadãos, que participavam, deste modo, na vida
política da polis. Contudo, apenas uma percentagem diminuta da população tinha
o estatuto de cidadão, uma vez que os escravos, que constituíam a maioria da
população, as mulheres e os estrangeiros não gozavam de direitos políticos. Uma
forma directa mas restritiva de participação popular, que, logo na sua génese,
apesar de todas as virtudes, surgiu quase como antítese do ideal democrático.
Será, no entanto, já nos séculos XVII e XVIII, que o modelo democrático veio a
conhecer desenvolvimentos determinantes. Partindo de uma reacção aos abusos de
poder num contexto político caracterizado por governos autoritários, assentou
nos princípios individualistas centrais ao liberalismo europeu, defendendo a
existência de direitos naturais indissociáveis da própria existência humana, e
que se sobrepõem aos desígnios de qualquer autoridade ou poder instituído. Com
raiz nas ideias progressistas desenvolvidas por John Locke, Jean Jacques
Rousseau e Montesquieu, entre muitos outros, a mudança consubstanciou-se nas
Revoluções Inglesa (1688-1689), Americana (1776) e Francesa (1789). Como
reacção ao período conturbado e de transformação profunda então vivido, na
viragem do século XVIII para o século XIX, Alexis de Tocqueville irá definir a
democracia como a conjugação de liberdade e igualdade, exigindo limites à
actuação do Estado e maior participação dos cidadãos no exercício do poder
político.
Aliado aos avanços tecnológicos da Revolução Industrial iniciada na Inglaterra,
em finais de Setecentos, os ideais políticos ligados aos princípios
democráticos entraram numa fase de clara afirmação. Devido às dificuldades
sociais emergentes na Europa industrializada do século XIX, as ideias
socialistas vão ganhar forma e voz. Partindo do princípio da igualdade social,
irão impulsionar um novo entendimento de democracia, imbuída, não apenas pelos
princípios liberais e burgueses, como até então, mas plasmada numa versão
marxista e proletária - que estará na base do desenvolvimento das democracias
populares na Europa após a Segunda Guerra Mundial, à luz do modelo soviético
implantado sobre a velha Rússia czarista, em 1917.
Neste contexto, registe-se a célebre máxima do presidente norte-americano,
Abraham Lincoln, em Gettysburg, em 1864, num cenário de guerra civil,
defendendo o "governo do povo, pelo povo e para o povo", a partir da qual as
propostas de conceptualização de democracia assumiram tantas formas que, por
vezes, o conceito parece perder significado.
Enquanto que na forma tradicional de democracia liberal, que nos é mais
familiar, se valoriza o "governo do povo", pela procura do equilíbrio entre o
princípio de limitação governativa e do consentimento popular, procurando, com
base na condução de processos eleitorais competitivos e regulares, e num
princípio de igualdade política, garantir liberdade e protecção aos cidadãos
contra um poder opressivo, na forma mais radical de democracia totalitária, a
valorização centra-se no princípio do "governo para o povo". Este último tipo
de democracia assenta no entendimento de que só um líder carismático e ditador
absoluto pode consubstanciar e articular os verdadeiros interesses do povo.
Deste modo, apesar das democracias totalitárias, na sua génese, constituírem um
desvio claro à noção convencional de governo democrático, a sua existência
demonstra a tensão entre "governo do povo" ou "governo pelo povo", que promove
a participação popular, seja de forma directa ou indirecta, e de "governo para
o povo", que se diz sempre no interesse da população, e que sustentou os
regimes fascistas e comunistas do século XX.
A amplitude do conceito é também revelada nas diferentes visões que suscita,
enquadrando-se no debate contemporâneo quanto à forma mais desejável de
democracia. Este envolve questões relativas aos benefícios reais da democracia,
ao facto de ela assegurar efectivamente uma dispersão genuína e saudável do
poder político, e às interrogações relativas à possibilidade de coexistência
efectiva entre igualdade política e desigualdade económica. Questões que
sugerem diferentes perspectivas na procura de respostas e explicações para os
desafios da democratização.
A uma perspectiva pluralista assente numa multiplicidade de interesses e grupos
na sociedade capazes de articularem as suas visões de forma livre, com vista a
garantir resposta popular e responsabilidade pública no sistema democrático
liberal, opõe-se a visão elitista que acentua a tendência para o poder se
concentrar nas mãos de uma minoria privilegiada - a elite - capaz de controlar
e manipular as massas. Uma reacção à sociedade sem classes, com igualdade
política, defendida pelos marxistas, preocupados com a tensão existente entre
democracia e capitalismo, revelada na contradição do princípio de igualdade
política proclamado pela democracia liberal, e na desigualdade económica
resultante do capitalismo. A complementar estas perspectivas, o corporativismo
enfatiza o papel dos organismos não governamentais na intermediação entre o
público e o Estado, considerando o facto de existirem interesses organizados na
sociedade, com acesso privilegiado à formulação de políticas sectoriais.
A acentuação de determinados aspectos nestas diferentes perspectivas demonstra
as dificuldades em encontrar uma definição consensual, ao mesmo tempo que
revela as fragilidades associadas à própria operacionalização do conceito,
assumido, por exemplo, na possível estagnação política, em resultado do
eventual aumento de poder de grupos de interesse e económicos decorrentes da
concepção pluralista, ou do facto do público poder revelar desinteresse num
sistema democrático elitista, onde a efectiva participação popular se pode
resumir à escolha eleitoral.
Ao presente, a democracia, para além dos clássicos valores da igualdade e
liberdade, está ligada também às questões da segurança e direitos humanos,
enquanto princípios e bases fundamentais das sociedades contemporâneas.
Contudo, os diferentes modelos de democratização, como por exemplo o modelo
ocidental em contraposição ao islâmico, têm revelado as diferentes vias
existentes, tal como a formulação ambígua de certas expressões - "democracia
controlada" ou "democracia incompleta" - a traduzir as dificuldades de
operacionalização do conceito e a revelar a complexidade da realização e
consolidação democráticas, e mais ainda, da sua avaliação.
Não existe, pois, um conceito unificado e completo de democracia, do mesmo modo
que o modelo democrático não deve ser entendido como um modelo perfeito e
acabado. As diferentes conceptualizações do termo e as disparidades encontradas
na sua materialização prática são resultado dos desenvolvimentos político-
sociais e económicos decorrentes da história e das conjunturas nacional e
global, uma vez que o próprio curso do tempo moldou os regimes democráticos
existentes, na procura de novas soluções e alternativas para os inúmeros
desafios e constantes mutações do sistema internacional.
A forma como a democracia funciona na prática é, então, diversa, resultando num
conceito abraçado por diferentes regimes políticos, sujeito a interpretações
distintas e com alcance variável. Contudo, o modelo mais próximo da génese do
conceito refere-se ao "governo do povo". Assim, entendemos "democracia como uma
forma de Governo assente no consentimento popular, permitindo aos cidadãos
participar nas decisões políticas ou eleger representantes nos órgãos
governamentais". Num regime democrático, o poder encontra-se limitado, a
alternância governativa está eleitoralmente assegurada, os governados mantêm
todos os seus direitos cívicos perante os governantes, a liberdade é respeitada
e a competitividade política está sempre presente. Será a partir deste
entendimento do conceito - designado correntemente como democracia liberal -
que analisaremos os principais desafios da democratização no mundo pós-Guerra
Fria.
Uma análise crítica do conceito de globalização
O conceito de globalização, de origem anglo-saxónica, forjado nas escolas de
gestão americanas e sinónimo, em França, de mundialização, serviu para traduzir
o extraordinário desenvolvimento das relações económicas em nível mundial, a
partir dos anos 80 - inicialmente, a palavra teve apenas uma feição económica,
designando, na expressão de Levitt, "a convergência de mercados do mundo
inteiro", "um movimento complexo de abertura de fronteiras económicas e de
desregulamentação, que permitiu às actividades económicas capitalistas estender
o seu campo de acção ao conjunto do planeta".
O desmoronamento do bloco soviético e o aparente triunfo planetário do modelo
liberal no início dos anos 90, acompanhados do desenvolvimento das novas
tecnologias de comunicação e informação, deram a esta noção uma validade
histórica. A globalização constituiu, assim, uma nova etapa na evolução do
capitalismo industrial, sucedendo à internacionalização das firmas e capitais.
Sob o ponto de vista económico, a noção de globalização integra três fenómenos
diferentes: o primeiro é o do desenvolvimento rápido dos mercados financeiros
mundiais a partir dos finais dos anos 70, estimulados pela desregulamentação
dos mercados financeiros e pelo aparecimento de novas tecnologias de
informação; o segundo fenómeno é o da mundialização das actividades das
empresas, tanto do sector manufactureiro como dos serviços; e o terceiro, de
natureza ecológica, traduzindo uma inquietude geral que se desenvolveu a partir
dos finais dos anos 80. Estes três fenómenos estão na origem do sentimento de
que os poderes públicos não podem controlar o funcionamento da economia e dos
mercados, num mundo onde reina a incerteza, a instabilidade real ou latente.
Falar de globalização é evocar a dominação do sistema capitalista sobre o
espaço mundial, fenómeno que se inscreve numa tendência de submissão
progressiva de todos os espaços físicos e sociais à lei do capital, à lei da
acumulação contínua que é a finalidade suprema do sistema capitalista.
Segundo a OCDE, a globalização desenvolveu-se em várias fases, a última das
quais, a da globalização, corresponde à instalação de verdadeiras redes
planetárias, graças aos progressos da tecnologia e dos serviços. Os Estados
tornaram-se cada vez mais interdependentes, prisioneiros do "sistema-mundo".
Com efeito, depressa, o vocábulo "globalização" passou a ser entendido como uma
realidade mais ampla e complexa, que vai muito para além da dimensão económica,
passando a abranger também a ciência e tecnologia, e as relações sociais,
políticas e culturais. A globalização assume, deste modo, um significado muito
mais amplo, a traduzir as transformações económicas, sociais, culturais e
políticas do mundo presente, "a multiplicidade de ligações e interconexões
entre os Estados e as sociedades que caracterizam o sistema mundial ao
presente" (Anthony McGraw e Paul Lewis). Assim se compreende que as
características da globalização incluam "a internacionalização da produção, a
nova divisão internacional do trabalho, nos movimentos migratórios de sul para
norte, um novo ambiente competitivo que acelera estes processos e a
internacionalização do Estado, transformados em agências do mundo globalizado"
(Robert Cox).
Entendida nos países em vias de desenvolvimento, e nos muçulmanos em
particular, como uma espécie de neocolonialismo - "globalização é o que nós no
Terceiro Mundo, durante séculos, chamamos colonização" (Martin Khor) - , como o
domínio do Ocidente sobre o resto do mundo (Anthony Giddens), a globalização
não é sinónimo de americanização, nem de homogeneização, quer sob o ponto de
vista social, quer sob o ponto económico ou cultural. Torna-se evidente que os
Estados Unidos da América são determinantes na globalização económica - o maior
mercado de capitais -, militar - é a única potência capaz de intervir em
qualquer parte do mundo -, social - é o centro da "cultura popular" - e
ambiental - são o país mais poluente do mundo e sem a sua concordância, as
decisões em política ambiental obterão sempre resultados limitados. Sendo um
dos principais impulsionadores e beneficiários da globalização contemporânea,
os Estados Unidos não são capazes, porém, e sê-lo-ão cada vez menos, de a
controlar. O Grande Satã dos fundamentalistas islâmicos nem é Satã e menos
ainda é grande - a intervenção da Reserva Federal de Nova Iorque, em 1997, para
evitar o colapso de um fundo de investimento; as destruições levadas a cabo em
2001 nas cidades de Nova Iorque e Washington; a proliferação da droga e a
lavagem de dinheiro no seu território; e recentemente o furacão Katrina, que
devastou boa parte do território americano com uma violência, que teve tanto
uma inaudita quanto inoperacional resposta da administração americana, revela
que os Estados Unidos não estão imunes às crises financeiras mundiais, ao
terrorismo internacional, ao narcotráfico e ao aquecimento global do planeta,
para o qual contribuem determinantemente, nem estão preparados para dar uma
resposta adequada e unilateral a tais fenómenos.
A globalização é americanocêntrica, uma vez que grande parte da revolução da
informação e boa parte do conteúdo das redes de informação global são
provenientes dos Estados Unidos, aumentando o seu soft power, o poder suave
(Nye).
Mas nenhum Estado, incluindo os Estados Unidos, está imune aos efeitos da
globalização, a qual, a longo prazo, irá reduzir a intensidade do domínio
americano. Em suma, nada no mundo pode ser feito sem os Estados Unidos, mas há
muito pouco que os Estados Unidos possam fazer sozinhos (Dominique Moisi). A
interdependência constitui, efectivamente, uma variável determinante e
crescente do mundo globalizado.
A globalização ajudou a reforçar o fundamentalismo, a fortalecer as redes
terroristas e, sobretudo, tem contribuído para agravar as desigualdades entre
os países ricos e os países pobres e dentro dos próprios países, embora o
movimento não seja linear nem geral - a desigualdade dentro dos países, por
exemplo, é mais consequência da sua governação e da corrupção que da
globalização. Será que a globalização também contribuiu para o alargamento da
democracia?
Democracia e globalização
A democratização, enquanto tarefa complexa - envolvendo aspectos como o
respeito pelo Estado de direito e pelas questões dos direitos humanos, eleições
livres reconhecidas internacionalmente, maior descentralização administrativa,
acesso à educação e o multipartidarismo -, é empreendida por uma variedade de
actores, estaduais e não estaduais, ultrapassando fronteiras nacionais. No
contexto da globalização, os processos de construção democrática são afectados
por um conjunto variado de factores. Entendida como um processo multifacetado,
que envolve forças globais, nacionais, regionais e locais que interagem e se
influenciam reciprocamente numa multiplicidade de aspectos - princípios
internacionais do direito, know-how das organizações internacionais,
interdependência económica global -, a globalização tem consequências visíveis
nos processos de construção e consolidação democrática, ora constituindo um
factor da sua promoção, ora um elemento de fragmentação.
Os efeitos da globalização têm sido, pois, díspares, ora promovendo valores
democrático-liberais, estabilidade e crescente interdependência, ora sugerindo
fragmentação, traduzida na recusa de alinhamento com o modelo ocidental de
democracia liberal e na preservação de práticas políticas, económicas ou
sociais genericamente descritas como não-democráticas. Neste contexto, a
relação entre forças globais e nacionais assume particular relevância,
demonstrando o modo como os Estados, enquanto entidades singulares no processo
global, podem constituir um entrave à difusão e consolidação da democratização.
No entanto, apesar de eventualmente poderem optar por uma posição fechada face
a estes processos, dificilmente as forças nacionais conseguem alienar-se do
processo geral de globalização e do seu impacto e consequências, demonstrando
que uma contextualização territorializada de democracia não consegue permanecer
imune aos fluxos transnacionais promovidos pela globalização. As sanções da
comunidade internacional, no plano económico e político, aos regimes
ditatoriais, continuam a ser um importante instrumento de fragilização, erosão
e desligitimação dos regimes ditatoriais.
Para que a globalização seja efectivamente um mecanismo de promoção da
democratização, o conceito tradicional de "democracia do povo" tem de ser
alargado para além das fronteiras territoriais, no sentido em que, face às
forças globais, esta relação não se possa restringir à dualidade população-
Estado incluída no entendimento tradicional do termo. Nesta perspectiva, a
globalização já teve como efeito a elaboração de políticas supra-estatais, que
ultrapassam em larga medida as jurisdições nacionais, demonstrando esta
necessidade de abertura a uma compreensão mais ampla.
Para além do Estado nacional, onde é possível a legitimidade democrática no
seio da comunidade política, por meio da expressão da vontade popular, a
definição de uma comunidade supranacional democrática tem sido complexa. Neste
contexto de desnacionalização, as organizações internacionais permitem
reflectir decisões políticas restritas no contexto de decisão global,
procurando reforçar as comunidades políticas no contexto global. Podem por isso
constituir veículos de promoção da democratização, pelo seu papel regulador e
de governação a nível supranacional, enquanto respeitando e reflectindo
princípios democráticos e de promoção social e económica.
As organizações internacionais têm sido instrumentos fundamentais de
estabilidade, por meio de actividades de monitorização, assistência aos
processos reformistas e apoio jurídico-legal à democratização. O carácter
multidimensional das suas abordagens, incluindo aspectos políticos, jurídicos,
económicos, sociais e culturais da vida de um Estado, tem fornecido um
enquadramento seguro para o desenvolvimento e para a democratização, por
exemplo, na implementação de programas de reforma do sistema judicial ou na
adopção de nova legislação de cariz liberal. A sua actuação ao nível, quer da
sociedade civil, quer das entidades governativas responsáveis, tem permitido
uma abordagem integrada e uma resposta mais eficaz aos desafios da
democratização. Além do mais, pelo facto de implicarem a partilha de regras e
objectivos comuns, sugerem um nível aprofundado de interacção entre os seus
membros, promovendo princípios de cooperação e complementaridade.
Contudo, o sucesso dos processos de democratização num contexto global depende
em grande medida do compromisso das autoridades nacionais, bem como do próprio
funcionamento das instituições que promovem aqueles. A implementação efectiva
de princípios e práticas democráticas não pode ser desvinculada da actividade
legislativa e governativa, enquanto definidora das linhas de orientação de
qualquer processo de reforma. A não cooperação por parte das entidades
nacionais, quer ao nível decisório, quer ao nível da população civil, poderá
simplesmente anular o fracasso de qualquer tentativa de enraizamento dos
processos democráticos. Por outro lado, o compromisso aparente para com a
democratização, na realidade não constituindo objectivo a implementar, poderá
servir de cobertura a práticas menos democráticas, de forma a evitar o
criticismo da sociedade internacional.
Além do mais, a própria representatividade e funcionamento das instituições
globais nem sempre revela os traços da democracia constituindo a União Europeia
uma das raras instituições internacionais onde existe uma assembleia eleita
popularmente. E o que é democracia no seio destes organismos? A igualdade plena
dos Estados? Que dizer, da intervenção directa norte-americana no Iraque, com
apoio de alguns Estados, sem uma resolução do Conselho de Segurança da
Organização das Nações Unidas que a legitimasse? Não será a "exigência"
democrática por si só, uma "imposição" pouco democrática? Além do mais, muitas
decisões tomadas no contexto das organizações internacionais têm efeitos
globais, como, por exemplo, as adoptadas nas reuniões do G8 ou mesmo da
Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (Opep), apesar de
apenas um reduzido número de Estados aí ter representação. Não se verifica, por
vezes, uma sub-representação ou secundarização de numerosos Estados nas
Organizações Internacionais, nomeadamente nas instituições financeiras como o
FMI controlado pelos Estados Unidos? E por outro lado, será que países como a
Índia, o Japão, a Alemanha e mesmo o Brasil, podem continuar excluídos do
Conselho de Segurança das Nações Unidas?
O processo de globalização tem conduzido a uma grande interdependência nas
relações internacionais, sendo muitas vezes responsabilizado pela difusão dos
princípios liberais e da economia de mercado, a par com os princípios
democráticos, donde tem resultado uma adesão crescente às práticas democráticas
liberais. Mas se por um lado o processo parece reflectir uma tendência para
adesão a princípios de governação mais democráticos e, por isso, mais justos,
transparentes, e participativos, por outro lado, tem sido entendido pelos
críticos como um processo de hegemonia neo-imperialista liderado pelos Estados
Unidos. Estes, atrás de uma cortina democrata-liberal, visariam impor as suas
visões e práticas político-económicas, procurando aumentar a sua influência
sobre os processos políticos mundiais - o debate entre os defensores das
políticas intervencionistas norte-americanas e os críticos da sua hegemonia
permanece tão polémico como as discussões sobre as vantagens e desvantagens da
globalização.
O final da Guerra Fria e o desmoronamento do bloco do leste são parte deste
processo global. Para além das dificuldades e insuficiências inerentes ao
próprio funcionamento do regime de Moscovo, a expressão cada vez mais clara de
movimentos supranacionais em defesa dos direitos e liberdades fundamentais, por
exemplo, constituiu um vector fundamental para a queda do regime soviético e
para o início dos processos de transição em muitas das repúblicas da antiga
União Soviética, bem como nos Estados da Europa central e do leste, até então
na área da sua influência. A Conferência para a Segurança e Cooperação na
Europa (CSCE), como instrumento político que ao longo dos anos de Guerra Fria,
procurou apaziguar tensões através da promoção de diálogo e acabou por dar voz
e corpo às aspirações de maiores liberdades e garantias, fazendo também ela
parte do processo de transformação que veio a revelar-se unidireccional e
culminou com a queda da União Soviética.
Cedo os novos países independentes puseram em marcha processos de transição,
voltando-se para o Ocidente como modelo de desenvolvimento a seguir. A
realização de eleições livres multipartidárias constituiu um primeiro sinal do
esforço de democratização, em alguns casos com numerosos partidos a concurso
nos processos de escrutínio. O respeito pelos direitos humanos e liberdades
fundamentais tornou-se também sinal da mudança, juntamente com o fortalecimento
da sociedade civil e dos princípios do Estado de direito. Contudo, não sem
grandes dificuldades. As mudanças de fundo implícitas nestes processos têm-se
revelado difíceis, morosas e exigentes a vários níveis, com expressão no
descontentamento generalizado de muitas destas populações, face aos sacrifícios
exigidos e ao parco retorno material. E, nalguns países, as redes mafiosas
parecem mais fortes que o respeito pelo direito e pelos compromissos
democráticos, a revelar a fraqueza do Estado e da sociedade civil.
O regresso de governos comunistas ao poder em vários países do leste demonstrou
as dificuldades existentes e o descontentamento das populações, não
significando, no entanto, um retrocesso na adesão aos princípios democráticos,
que permanecem, de modo geral, como um objectivo a prosseguir. Mas os desafios
são muitos, bem como os elementos de oposição e resistência ao avanço dos
processos de democratização - o desejo de retenção de privilégios e a ameaça de
perda de poder têm-se revelado um forte impedimento à progressão da
democratização em alguns países, de que o caso da Bielorrússia constitui um
exemplo flagrante.
Por outro lado, o recurso a princípios mais autoritários, sob desígnios
democráticos, é prática corrente na Federação Russa, onde o presidente Vladimir
Putin tem adoptado medidas bastante restritivas justificadas pela necessidade
de garantir a ordem necessária à coroação dos princípios democráticos. Há
exemplos reveladores do modo como estruturas centralizadas de um poder
autoritário violam os princípios democráticos, sob o pretexto do
desenvolvimento económico e da questão da segurança nacional para a manutenção
do poder. Interpretações distorcidas de um conceito demasiado amplo.
As dificuldades na tradução dos princípios em acções concretas
A Teoria da Paz Democrática defende que as democracias consolidadas que
partilham regras de actuação e organização não se envolvem em conflito entre
si. Com raízes na tradição kantiana, actualizada na versão universal de
Fukuyama, os postulados centrais da teoria referem-se à partilha de normas num
contexto de competição política e resolução pacífica de diferendos, que se
estende para além das fronteiras estaduais. Contudo, estas normas não têm
evitado o envolvimento de Estados democráticos em guerras de feição neo-
colonialista ou em conflitos de duvidosa legalidade contra regimes
autoritários, para além do seu envolvimento em actividades menos claras entre
si, recorrendo por vezes ao uso da acção coerciva de carácter militar ou das
sanções económicas. E, muito menos, têm impedido que o processo de
democratização nos regimes em mutação ou transição, limite, por si só, os
riscos da guerra.
Defendendo a contribuição das organizações internacionais na construção da paz
democrática, esta teoria entende a democratização como um instrumento
necessário para o alargamento da área de paz e estabilidade a nível global. Uma
vez que os governos democráticos são directamente responsáveis perante uma
comunidade civil, e as populações, de um modo geral, são adversos ao uso de
violência na resolução de conflitos, as democracias são promotoras da paz.
Contudo, como Samuel Huntington afirma, "the democratic peace argument is valid
as far as it goes, but may not go all that far". Os exemplos da história
questionam esta abordagem, com intervenções de carácter colonial e neo-
imperialista, apoio a regimes não-democráticos e uso de técnicas não-
democráticas na promoção de interesses nacionais, em particular de carácter
económico. Um mundo mais democrático poderá, então, não significar um mundo
mais pacífico?
Aqui, a relação entre o Ocidente e o Islão, ou a forma como os países
democráticos ocidentais se têm envolvido nos processos de transformação
política na África ou na América Latina são relevantes. Diferentes pesos e
medidas para situações similares têm gerado reacções de descontentamento e
mesmo actos violentos da parte de alguns grupos. Os atentados de 11 de Setembro
em Nova Iorque e Washington e a crescente onda de tensão expressa na sucessão
de ataques terroristas em várias partes do mundo, demonstra o desprezo contra a
imposição do modelo ocidental democrático-liberal, enquanto reflexo de práticas
neo-imperialistas de controlo e influência. Podemos então questionar se estas
diferentes dimensões do processo de democratização no contexto de globalização
demonstram uma tendência para consolidação dos processos ou, ao invés, para uma
crescente fragmentação do sistema internacional. A resposta não é simples, uma
vez que se pode demonstrar a existência paralela das duas tendências, com as
implicações que daí advêm.
Factores de consolidação e fragmentação combinam-se no processo de
democratização pós-Guerra Fria, processo este enquadrado na globalização, como
força também impulsionadora e simultaneamente limitadora. O desejo de
participação nos processos económicos internacionais como factor de progresso e
desenvolvimento das economias tem-se revelado como elemento motor de ambos os
processos de democratização e globalização. Mas a submissão de valores sociais
e culturais a estes mesmos processos tem-se afirmado, por seu turno, difícil,
em virtude de uma certa homogeneização e absorção de identidades nacionais ou
regionais, inaceitáveis para muitos grupos sociais. Os movimentos anti-
globalização têm aqui um papel relevante, chamando a atenção para os perigos de
uma globalização sem regras. Centrando-se na dimensão da igualdade inerente ao
conceito de democracia, apelam a uma globalização mais altruísta e solidária,
onde os países ricos disponham dos meios necessários à concretização de
projectos de desenvolvimento dos países menos favorecidos, de modo a diminuir o
fosso entre ricos e pobres. A igualdade social e política constituem os
princípios chave subjacentes a estes movimentos, com base nos quais defendem a
democratização das relações globais.
As reacções ao processo global podem ter reflexo directo na democratização,
através da afirmação de poderes autoritários limitadores dos princípios de
participação e escolha, característicos da democracia, afirmando-se como
regimes contra um processo oculto de imposição de uma forma mundial de
governação assente nos princípios democrático-liberais. É o caso, entre outros,
dos regimes islâmicos que combatem a ordem mundial promovida pelo Ocidente e
liderada pelos Estados Unidos.
A tradição islâmica funde num único sistema, o político, o legal e o
espiritual, traduzindo uma visão da vida em comunidade claramente distinta da
visão secular dos Estados ocidentais. Nesta amálgama de princípios que
estruturam a vida política nos regimes islâmicos, a centralização do poder é
uma característica fundamental para a manutenção da lei e ordem. À luz dos
princípios democráticos liberais proclamados no Ocidente, podemos caracterizar
estes regimes como pouco democráticos. As liberdades políticas e cívicas são
muito limitadas e a participação popular extremamente restrita. Num
entendimento amplo de democracia, questões de direitos humanos e de respeito
pelas liberdades fundamentais são, também, frágeis. E o papel das mulheres
nestas sociedades, elemento incontornável para a compreensão da sua
mundividência, revela-se inaceitável.
As vivências políticas, sociais, culturais e económicas dos mundos árabe e
ocidental demonstram o seguimento de caminhos distintos, revelados de forma
pragmática na estruturação da vida em sociedade em cada um destes mundos.
Pontos de partida distintos, com pontos de chegada tão diferentes quanto os
regimes por eles abraçados.
A intervenção armada norte-americana no Iraque, em 2003, sem a aprovação prévia
de uma resolução nesse sentido, no seio do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, logo, sem a legitimação internacional, visava o desmantelamento da
produção industrial de armamento nuclear no país, vista como ameaça à segurança
e estabilidade internacionais. Além do mais, visava o derrube do regime
despótico de Saddam Hussein, regime esse que desenvolvia um terrorismo de
Estado, e a reposição em seu lugar de um novo governo de orientação
democrática, similar, tanto quanto possível, aos governos ocidentais.
Os líderes árabes eleitos têm reportado a ausência de democracia nos seus
países ao enraizamento sociocultural e histórico que envolve as sociedades
islâmicas, à interferência estrangeira como motivando ainda mais a afirmação de
um poder autoritário, ou à complexidade do Islão plural, nostálgico, por razões
que agora não importa analisar, da charia. Mas talvez a verdadeira razão seja
mais simples e se encontre na recusa e receio dos líderes locais face a uma
eventual perda de poder.
A democracia não é certamente o modelo último e final, traduzindo o ideal
supremo de organização política e social. Mas muitos dos princípios ditos
democráticos correspondem ao respeito por valores, liberdades e direitos
fundamentais da existência humana. A questão do Ocidente versus mundo islâmico
ultrapassa, no entanto, em grande medida, estes aspectos. Desígnios económicos
e interesses geoestratégicos de controlo da produção e rotas de distribuição do
petróleo, e que pautaram, em parte, a acção de Washington, levantam
interrogações sobre intervenção e imposição, bem como de saber-se até onde
poderá ou deverá ir o esforço de democratização. Até que ponto este ultrapassa
princípios de legitimidade internacional, traduzindo ele mesmo práticas pouco
democráticas? Será que o Estado islâmico constitui no mundo político de hoje,
"a única alternativa sistémica" à democracia, como pretende Larry Diamond?
Questões que permanecem em aberto, revelando o debate tradicional entre uma
visão mais institucionalista das relações internacionais, que promove a
integração de esforços no âmbito de instituições plurais, e uma perspectiva
mais realista, onde os interesses nacionais se sobrepõem ao interesse
colectivo, como a intervenção americana no Iraque parece evidenciar.
Perante estas ameaças e desafios, democratização e globalização assumem-se no
contexto actual como processos fundamentais na formulação de uma nova ordem
internacional. A questão que neste contexto se impõe é a seguinte: como
democratizar a globalização?
Democratizar a globalização?
Globalização e democratização podem ser entendidos, assim, como processos
complementares, revelando cooperação e competição, promovendo avanços em
conjunto e retrocessos pelas contradições inerentes à própria conceptualização
e interpretação dos termos. Deste modo, os processos democráticos, quer a nível
local, nacional ou global, necessitam de acompanhamento constante, pois
práticas não-democráticas são recorrentes. Será, assim, possível democratizar a
globalização?
Um processo desta ordem teria de abranger um conjunto alargado de aspectos, já
que os processos de construção democrática não estão confinados aos limites
territoriais de um Estado, ultrapassando fronteiras e desenrolando-se num
contexto global, ao qual poderão ir buscar apoio, ou pelo contrário, nele
encontrar obstáculos.
A democratização da globalização regista, em paralelo, um activo e um passivo
que importa abordar.
Não podemos ignorar que a globalização que se fez sentir nas últimas duas
décadas foi acompanhada por um extraordinário crescimento (e reforma) de
estruturas e organizações institucionalizadas, assim como de redes de
mobilização política com o objectivo de vigiar e regular actividades
supranacionais e até de "governação mundial".
Sob este aspecto, podemos dizer até que a globalização não se encontra fora de
regulação e controle. A prevalência dos direitos humanos sobre a soberania, a
demonstrar que esta é cada vez menos garantia da legitimidade dos Estados no
Direito Internacional; a internacionalização das questões da segurança,
nomeadamente no que diz respeito à contenção das armas de destruição maciça
(nucleares, químicas e bacteriológicas); a regulação cada vez mais apertada dos
mercados financeiros globais; os novos movimentos socio-ambientais em defesa da
paz, dos direitos das mulheres, das minorias, etc. , desafiando a autoridade do
Estado, mobilizando grupos de solidariedade e de resistência; eis alguns dos
exemplos que podemos aduzir enquanto factores construtivos de um sentido de
pertença, de interesses e de consciência comum, de "comunidade global", os
quais, longe de anularem a responsabilidade dos Estados em múltiplos aspectos
de cariz local ou regional, são a prova de que estes não estão em condições de
resolver certos problemas - segurança, ambiente, saúde pública e regulação
económica - que necessitam de novos enquadramentos institucionais globais.
Contudo, embora o processo de globalização tenha unificado fisicamente o globo,
a verdade é que não engendrou ainda a comunidade mundial, de que a legitimidade
de uma governação democrática global depende.
A fragmentação do mundo em nações, regiões e culturas constitui um entrave à
afirmação de uma política democrática global. A "via asiática" da democracia,
as "tradições democráticas" indígenas na África, as novas formas de
fundamentalismo, os crescentes nacionalismos, as desigualdades globais da mais
diversa natureza reforçam as divisões culturais e a fragmentação mundial,
favorecendo políticas autoritárias ou ditatoriais, minando as bases de um
entendimento comum de democracia enquanto ética global.
Mas as grandes potências também não têm contribuído para a democratização da
globalização, quando pretendem reformar a governação global, pensando apenas
nos Estados mais poderosos, e não nos mais populosos ou mais representativos de
certas regiões ou civilizações, como se pretende, por exemplo, na reforma das
Nações Unidas. Ou quando se eximem às suas obrigações internacionais,
afastando-se dos esforços de manutenção de paz das Nações Unidas, reduzindo a
ajuda externa aos países não desenvolvidos, retendo as contribuições a que são
obrigados para a ONU e outras agências internacionais ou, pura e simplesmente,
como fizeram os Estados Unidos, não ratificando tratados ou convenções de
alcance global como o Protocolo de Quioto ou o Tribunal Penal Internacional.
A globalização tem-se assumido em muitas circunstâncias como um processo
liderado pelos Estados Unidos e respondendo directamente às suas preocupações,
desejos e interesses, erigindo a democratização política, os direitos humanos e
as reformas económicas como uma exigência à sua assistência. Nesta perspectiva,
a globalização não é entendida como um processo democrático. Para que esta
situação possa de alguma forma ser contornada, uma participação mais activa dos
vários intervenientes neste processo, de forma directa ou indirecta, é
desejável.
A existência de Estados imaturos, incompletos ou marginalizados, a resistência
dos poderes do passado, ainda não ultrapassados, assim como os crescentes
problemas sociais e económicos, decorrentes de uma conjuntura global
desfavorável, não têm contribuído para aprofundar esta via. A globalização abre
novas perspectivas e oportunidades, mas acarreta também problemas e
dificuldades, em particular, desigualdade económica, que têm reforçado os
movimentos de contestação a um processo que dizem injusto e ao serviço dos
países capitalistas industrializados. Parte do processo mais amplo da
globalização, a transição para o modelo democrático e, acima de tudo, a sua
implementação efectiva, têm questionado a própria dimensão democrática da
mundialização.
A democratização da globalização pode ser reforçada através de vários meios,
incluindo consultas directas às populações sobre questões globais que afectam o
seu quotidiano e as suas vivências, procurando desse modo reduzir o deficit
democrático da globalização. Um maior envolvimento dos governos locais nos
processos globais, como forma de intensificar a voz das populações no contexto
da globalização; a exigência de uma maior transparência na governação
supranacional através de uma representação popular acrescida na forma de
assembleias e da sua efectiva participação nos processos de decisão
transnacionais; e a valorização e reconhecimento de uma maior democratização da
sociedade civil como factor de promoção de estabilidade e desenvolvimento - eis
alguns dos instrumentos que poderão reforçar a democratização da globalização.
Da consolidação de um envolvimento mais alargado de actores e estruturas neste
processo global poderão, então, resultar maiores benefícios.
Recentrar e recontextualizar os processos globais em curso, estabelecer novas
formas de vida pública e novas maneiras de debater os problemas mundiais, gerir
os bens comuns da humanidade, enfim, democratizar e civilizar a globalização é
e continuará a ser um desafio extraordinário sob o ponto de vista intelectual,
institucional e normativo para as comunidades políticas.
Conclusão
O processo de construção democrática e a sua extensão a vastas áreas do globo
tem sido pautado por avanços e recuos, não se revelando um caminho linear,
contínuo e rápido. Envolvendo diferentes dimensões, actores e factores, têm
implicações fundamentais a nível estrutural. Por isso, os resultados dos
processos de democratização só poderão ser avaliados a longo prazo. Enquanto
uma intervenção armada para depor um regime político autoritário pode durar um
dia ou ser uma questão de semanas, a consolidação de um regime democrático, em
todas as suas dimensões, pode demorar décadas.
Incluindo uma enorme variedade de aspectos que permitem de algum modo a
avaliação do nível democrático de uma sociedade, a questão do respeito pelos
direitos humanos e liberdades fundamentais, de um modo especial, tem-se
assumido como um elemento evidente da realização democrática. Mas muitos outros
aspectos fazem também parte desta valoração, incluindo a realização de eleições
multipartidárias livres, a existência de uma sociedade civil, ou uma estrutura
organizada e um funcionamento dos meios de comunicação social.
As organizações internacionais, como vimos, têm sido veículos privilegiados de
promoção da expansão democrática, através da partilha de princípios, da
promoção de relações directas entre Estados e sociedades, e do desenvolvimento
e consolidação de instituições democráticas de governo. Princípios que têm
estado subjacentes às actividades de grande número de organizações
internacionais, nomeadamente, quanto aos esforços da União Europeia de
alargamento, com a recente integração de dez novos Estados da Europa do leste,
simbolizando, por um lado, os esforços de construção democrática nestes
Estados, e por outro lado, a contribuição da organização para a consolidação e
desenvolvimento destes mesmos processos de democratização, como realização
essencial dos objectivos de política externa da União.
Nos seus esforços de controlo democrático das Forças Armadas e de
desenvolvimento de cooperação militar, a Organização do Tratado do Atlântico
Norte tem também demonstrado um esforço e contributo para a democratização,
enquanto por exemplo a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa,
através da promoção de direitos humanos, monitorização de processos eleitorais
e adopção e adaptação de legislações nacionais aos princípios internacionais,
tem também revelado a contribuição possível para a expansão democrática.
E não esqueçamos a exigência explícita da União Europeia, quanto às práticas
democráticas e ao respeito pelos direitos humanos, nos novos Estados-membro e
nos aderentes, a qual constitui um importante incentivo para a consolidação do
processo democrático na Europa de leste e da Turquia ao presente.
Mas se os contributos das instituições e organismos internacionais e
transnacionais se têm revelado um factor de integração global, em muitas
instâncias estes não têm sido capazes de evitar distorções, traduzidas quer em
práticas pouco coerentes no âmbito destes próprios organismos, quer nos países
de acolhimento das suas acções. Num contexto de globalização, torna-se então
evidente o confronto entre forças de integração e fragmentação, que ora
impulsionando ora criando entraves ao processo de democratização, têm efeitos
profundos no delinear dos contornos democráticos actuais.
Diferentes visões de democracia remetem para diferentes entendimentos do
conceito. A evolução democrática tem demonstrando que o ideal democrático tem
tido uma tradução prática limitada. A globalização tem certamente aberto novos
caminhos e perspectivas, dos quais, o entendimento alargado de democracia
poderá ser um dos resultados evidentes. A "bola de neve" da democratização, de
que Huntington fala a propósito da década de 1990, continua a rolar. Mas
importa perguntar: em que direcção?
Nesta perspectiva, podemos interrogar-nos até que ponto a intervenção ocidental
no Iraque veio reforçar ou fragilizar a ideia de democracia no mundo árabe? As
retiradas da Síria do Líbano e de Israel da faixa de Gaza, as eleições na
Arábia Saudita, Egipto e no próprio Iraque, o estabelecimento do sistema
multipartidário em Marrocos, os tímidos passos ensaiados na Tunísia, Argélia,
Bahrein e mesmo no Iémen, não constituem sinais prometedores de um novo
espírito? Ou, mais do que uma adesão aos princípios de liberdade e democracia,
estamos perante uma estratégia de sobrevivência por parte de regimes
anacrónicos, caducos e corruptos, face à pressão externa e à agitação interna?
E, por outro lado, como interpretar o caos e a violência em que o Iraque
continua mergulhado? Ou a chegada ao poder, no Irão, de um radical, a dar novo
fôlego aos partidários do fundamentalismo islâmico extremista, quando muitos
analistas estavam convencidos de que as forças moderadas, neste país, estavam a
ganhar força e influência? Por outras palavras, como disseminar a democracia e
os direitos humanos no mundo muçulmano, uma das linhas de rumo da política
externa dos EUA, constante do relatório da Estratégia de Segurança Nacional dos
Estados Unidos, em 2002?
A abertura do mundo árabe à democracia não está garantida. As bandeiras
nacionalistas, anti-americanas e anti-globalização, continuam desfraldadas e
intangíveis. Ninguém nos garante que, em eleições livres, de Marrocos à
Indonésia, o poder não seja assumido por fundamentalistas radicais que, sob a
capa da democracia, irão rejeitar, afinal, os valores e princípios em que a
democracia assenta, assim como a globalização, ambas entendidas como
instrumentos de dominação do Ocidente. A chave para o reforço do processo
democrático do Islão vai passar pelo futuro do Iraque e pela constituição de um
Estado palestiniano?
Seja como for, a globalização da democracia, cujos progressos são evidentes no
mundo pós-Guerra Fria, revela-se, apesar de tudo, mais vigorosa que a
democratização da globalização. Até que ponto a primeira irá acabar por
influenciar e determinar a segunda? Eis uma interrogação que irá permanecer,
durante muito tempo, como uma questão em aberto.