Musicofobia, musicofilia e filosofia: Kant e Nietzsche sobre a música
O homem que não sabe reflectir não encontra satisfação numa música consonante.
Kant
quanto mais músico, mais filósofo
Nietzsche
1
O fraco interesse de Kant pela música é tão conhecido como a importância que
Nietzsche concedeu a esta arte ao longo da sua vida e obra. De acordo com os
seus biógrafos, Kant nunca mostrou especial gosto pela música, não tocava
nenhum instrumento e parecia preferir fanfarras militares e canções populares à
música erudita.1 Em contrapartida, como foi bem documentado, por exemplo, por
Curt Paul Janz,2 a educação musical de Nietzsche permitiu-lhe apreciar, tocar e
até compor música. Ao contrário de Kant, Nietzsche foi um conhecedor dos
compositores mais importantes da história da música ocidental, frequentava
concertos com regularidade e conhecia a partitura das peças que amava. A
relação dos dois pensadores com a música parece, então, ter sido radicalmente
oposta, dando lugar a duas perspectivas filosóficas antagónicas: para Kant, a
música é a arte com menor valor artístico, enquanto Nietzsche escreve em "Ecce
Homo" que sente a causa da música como a sua própria causa.3 Assim, se, no §51
da terceira "Crítica", Kant defende que a música é um mero "jogo de
sensações",4 para Nietzsche, pelo contrário, "sem música a vida seria um
erro";5 e enquanto Kant defende que a música é apenas "transitória" e não deixa
"sobrar algo para a reflexão",6 para Nietzsche a música "liberta o espírito",
promovendo aquilo a que chamou o "pathos filosófico".7
Ora, apesar de estas indicações sugerirem um forte contraste entre as posições
dos dois filósofos a respeito da música, no presente estudo propomo-nos
desenvolver a hipótese de que tal contraste é, em larga medida, apenas
aparente. Para tanto, analisaremos alguns aspectos da perspectiva de Kant
acerca da música para tentar mostrar de que modo eles indicam uma relação desta
com a linguagem e com o pensamento que não colide necessariamente com os
argumentos apresentados por Nietzsche em sua defesa. Mais concretamente,
partindo de uma comparação da perspectiva de Kant com dois parágrafos de
"Humano, demasiado humano" e com algumas passagens de "O caso Wagner",8
procurar-se-á mostrar que, tanto para Kant, como para Nietzsche, a experiência
de ouvir música se relaciona de modo profundo com a experiência de pensar. A
verificar-se esta hipótese, esperamos que ela contribua para a rejeição das
leituras que associam uma excessiva racionalidade à alegada indiferença de Kant
pela música e um elemento de irracionalidade pseudo-dionisíaca à bem conhecida
musicofilia de Nietzsche. Só essa rejeição permite, de resto, compreender o
facto de, apesar da ignorância musical de Kant e da profunda relação de
Nietzsche com a música, a reduzida atenção que os textos kantianos dedicaram a
esta arte tenha exercido uma influência muito maior na história do pensamento
musical do que todas as páginas que Nietzsche lhe dedicou.9
2
A desvalorização kantiana da música parece ter na sua origem um certo grau de
amusia. As afirmações de Kant sobre a música sugerem indiferença do filósofo
aos encantos desta última, quando não uma surdez ou incapacidade para apreciar
aquela a que chama "a arte dos sons". O fenómeno da amusia foi analisado pelo
neurocientista Oliver Sacks na obra "Musicofilia. Histórias sobre a música e o
cérebro",10 onde são relatados diversos casos de maior ou menor indiferença à
música e referidos os famosos casos de surdez musical de Nabokov, Henry James,
Tolstoi ou Darwin. De acordo com o neurocientista, dá-se o caso de muitos seres
humanos carecerem das capacidades perceptivas e cognitivas que permitem
apreciar a música, conseguindo, porém, sentir com ela um prazer intenso, sendo
que outros, muito "musicais" e possuindo "bom ouvido", não dão muita
importância ou valor à música.11 Na verdade, o próprio Kant estava ciente deste
estranho fenómeno e, no §22 da sua "Antropologia", escreveu que a ausência de
ouvido musical é "uma doença difícil de explicar", na qual o sujeito é sensível
aos sons, mas não às notas musicais.
Ora, nada indica que Kant identificasse em si próprio esta "doença", uma vez
que compreendia o prazer que a música suscita, ainda que não a valorizasse
grandemente. Tendo em conta algumas considerações expostas na "Crítica da
faculdade do juízo" sobre a música, o caso de Kant apresentaria, porventura,
mais sintomas de musicofobia do que de amusia, fenómenos que, ainda segundo
Oliver Sacks, devem ser distinguidos, consistindo a primeira não numa
indiferença, mas no medo ou aversão pela música. O neurocientista esclarece que
a musicofobia pode estar relacionada tanto com o impacto emocional e com o
poder que a música exerce sobre nós, como com uma variedade de "ataques
musicogénicos" que chegam a incluir a perda total de consciência.12 Tal não foi
certamente o caso de Kant, mas as suas considerações acerca da música parecem
visar um análogo do impacto emocional referido por Sacks, ou seja, o elemento
contrário à razão de que a música é também composta. Este último terá, aliás,
suscitado igualmente a resistência de Freud aos prazeres da música,
considerando-se o psicanalista um ser ganz unmusikalisch.13 Numa tentativa de
auto-análise, Freud admite que a "disposição racionalista, ou talvez analítica"
do seu espírito o fazia revoltar-se perante a ideia de ser comovido por alguma
coisa sem conseguir explicar por que estava a ser afectado.14 Ou seja, Freud
reconhecia e era sensível ao poder de comoção da música, mas temia esse mesmo
poder, que considerava racionalmente inexplicável e do qual sentia ter de
proteger o seu intelecto, furtando-se, em particular, à força sedutora que as
melodias exercem sobre o espírito humano.
Também Kant associava a melodia ao aspecto da música mais contrário à razão,
defendendo que ela é composta por meras sensações que nos afectam
subjectivamente e não por formas objectivas e universalmente apreciáveis. Não
obstante, para Kant a música não está absolutamente privada do elemento formal
que é o objecto próprio dos juízos de gosto puros, encontrando-se este último,
não na melodia, mas na harmonia.15 A harmonia seria, como o fora para Rameau, o
elemento matemático e científico da música e aquele que poderia legitimar algum
interesse da razão por esta arte. Apesar disto, porém, Kant não parece
conseguir decidir-se a valorizar a música em relação às restantes artes,
mostrando-se hesitante quanto ao lugar ocupado pela arte dos sons na hierarquia
das belas-artes. Tal hierarquia é estabelecida no §51 da terceira "Crítica",
atribuindo à poesia o lugar cimeiro e à música o grau mais baixo. A música é,
portanto, considerada por Kant como a arte com menor valor artístico e a razão
disto é o facto de ser composta por sons sobre os quais não podemos dizer com
certeza se são simplesmente impressões sensíveis que causam sensações
agradáveis ou se consistem já num jogo belo de sensações cuja forma suscita
comprazimento. Quer dizer, Kant hesita em classificar a música como uma bela-
arte ou como uma mera "arte agradável" porque nela a forma não se distingue
claramente da simples sensação. A música parece, então, oscilar entre o
carácter privado da sensação e a exterioridade objectiva da sua forma. Assim,
se por um lado Kant elogia a música como sendo uma arte formal ' consistindo
ela, portanto, num jogo formal ou belo ', por outro condena-a como um simples
jogo de sensações que pertence apenas ao domínio do que é agradável.
A esta hesitação acresce ainda um aspecto nada abonatório para a música,
decorrente daquilo que Kant chama a sua transitoriedade. Como escreve no §53 da
terceira "Crítica", da música não sobra nada para a reflexão porque as suas
impressões são "transitórias". Ao contrário das "artes da imagem e da forma",
que têm um veículo de transmissão "duradouro", as impressões musicais são
passageiras, dispersam-se imediatamente. Associado à agradabilidade dos sons
musicais, este inconveniente reforça os motivos pelos quais a música ocupa o
último lugar entre as belas-artes, cujo valor se mede pela cultura com que
estas enriquecem o ânimo e o espírito. De acordo com o mesmo §53, enquanto nas
artes figurativas o jogo livre da imaginação com o entendimento "oferece um
produto que serve aos conceitos do entendimento como um veículo duradouro", a
música apenas joga com sensações que só deixam uma impressão transitória. Ou
seja, como escreve Kant, a música não deixa "sobrar algo para a reflexão"
porque não oferece produtos estáveis que perdurem no tempo, contribuindo para a
cultura e para o enriquecimento do ânimo. Por conseguinte, se
se apreciar o valor das belas-artes segundo a cultura que elas
alcançam para o ânimo e tomarmos como padrão de medida o alargamento
das faculdades que na faculdade de julgar têm de concorrer para o
conhecimento, então a música possui entre as belas-artes o último
lugar [...] porque ela joga apenas com sensações.16
Do ponto de vista da produção de objectos culturais que contribuem para o
conhecimento, "as artes figurativas precedem-na de longe" uma vez que delas
resulta "um produto que serve os conceitos do entendimento como um veículo
durável para a sua unificação com a sensibilidade".17
Tudo isto parece justificar a desvalorização kantiana da música em relação às
outras artes. E no entanto, se considerarmos as hesitações dos §§ 51 e 53 da
"Crítica da faculdade do juízo" à luz do aspecto que Kant considera ser o mais
decisivo acerca da música, elas parecem, de acordo com a nossa hipótese
inicial, perder força. Esse aspecto é o seguinte: se da música, como afirma
Kant, não sobra nada para a reflexão, isso não quer, contudo, dizer que ela não
suscita pensamentos. Trata-se, então, de perceber como é isso possível num
quadro em que o ingrediente sensível da música parece levar a melhor sobre o
elemento de racionalidade que a sua composição possa conter.
Para compreender em que medida pode a música suscitar pensamentos e não apenas
sensações, importa, porém, começar por considerar o que Kant afirma acerca da
poesia.18 No §53 é dito que a poesia é a arte mais elevada porque "alarga o
ânimo" e oferece à imaginação uma forma que suscita "uma profusão de
pensamentos [einer Gedankenfülle] à qual nenhuma expressão linguística é
inteiramente adequada". No entanto, acrescenta-se ainda, "se o que importa é o
movimento do ânimo" ' e, na verdade, parece que é isso que importa a Kant ', a
Tonkunst vem imediatamente a seguir à poesia porque ela permite um
Gedankenspiel, um jogo de pensamentos, que "move o ânimo do modo mais variado".
Não comunicando conceitos, a música está livre para exprimir aquilo a que Kant
chama "uma inominável profusão de pensamentos" [einer unnenbaren
Gedankenfülle]. Este aspecto parece, portanto, autorizar a hipótese de que,
apesar de todas as suas hesitações, Kant atribui à música algum valor e uma
relação com a razão que não era evidente à partida. E tanto assim é que Kant
chega ao ponto de, sempre no mesmo §53, considerar de modo muito surpreendente
que a música é uma "linguagem". Mais concretamente ainda, Kant chama-lhe uma
"linguagem universal de sensações compreensível a todos os homens" e ainda uma
"linguagem dos afectos". A questão consiste, então, em saber como é que a
música pode ser uma linguagem se ela não é conceptual, quer dizer, na medida em
que ela é privada de conceitos. Ou seja, neste contexto é legítimo perguntar
que tipo de linguagem tem Kant em mente, quando se refere a uma linguagem não
conceptual, não discursiva, mas uma linguagem dos afectos, que ainda por cima é
dita ser universal. Uma outra questão que se levanta tem a ver com o que pode a
linguagem musical comunicar. Quer dizer, se a música é uma linguagem, importa
esclarecer que tipo de comunicação permite ela, tratando-se, como se trata, de
uma linguagem de afectos e sensações. A resposta a esta questão irá, por sua
vez, ajudar a esclarecer como relaciona Kant a música com o pensamento.
Ora, no §18 da "Antropologia", Kant escreve igualmente que
a música, enquanto jogo regulado das sensações do ouvido, não impõe
apenas à sensibilidade vital um movimento incrivelmente vivo e
variado, mas uma nova força; ela forma, portanto, como que uma
linguagem de puras impressões (privada de conceitos).
Acontece que o fortalecimento do ânimo é, como se referiu acima, precisamente
aquilo que caracteriza na terceira "Crítica" a arte que ocupa a posição mais
alta na hierarquia das artes, ou seja, a poesia. E o problema consiste, assim,
em saber como pode Kant atribuir a mesma característica à arte discursiva por
excelência e à arte não discursiva e privada de palavras e conceitos. A
resposta tem de estar relacionada com a consideração de que, sendo embora uma
linguagem dos afectos, a música é também uma "linguagem universal", quer dizer,
uma linguagem que não se restringe verdadeiramente ao reino privado, não
universal, da agradabilidade. A universalidade em causa na música está
certamente ligada a um aspecto que ela partilha com a linguagem discursiva e
para o qual Kant chama a atenção no §53 da "Crítica da faculdade do juízo", a
saber, a sonoridade. O que está em causa é a ideia de que, como Kant escreve
nessa mesma passagem, "cada expressão da linguagem possui no conjunto um som
que é adequado ao seu sentido". Este som, continua Kant, "denota mais ou menos
um afecto daquele que fala e reciprocamente também o produz no ouvinte,
incitando também neste último a ideia que é expressa na linguagem com tal som".
Ou seja, a ideia que é expressa na verbalização dos pensamentos comunica-se,
não apenas pela sua significação propriamente linguística, quer dizer,
conceptual ou semântica, mas pelo afecto patente no som das palavras proferidas
por aquele que fala. Ao sentido é adequado, portanto, não apenas um conceito,
mas um som que "denota um afecto" e à sonoridade do discurso verbal Kant chama
"modulação" ou "linguagem universal das sensações compreensível a todos os
homens". O que isto implica, em última análise, é que a modulação dos sons
comunica ideias porque, diz Kant, "produz no ouvinte" o "afecto daquele que
fala" e "incita [no ouvinte] a ideia que é expressa na linguagem por tal som".
A universalidade desta linguagem não propriamente verbal ou infra-verbal não
decorre, então, da sua natureza conceptual, mas da sonorização de afectos ou
daquilo a que poderíamos chamar a sua modulação musical ou a sua musicalidade.
A analogia entre linguagem e música é, assim, estabelecida por meio da ideia da
sonorização dos afectos ou modulação e Kant conclui que
assim como a modulação é a linguagem universal das sensações [...], a
música exerce esta linguagem na sua inteira ênfase, a saber como
linguagem dos afectos, e comunica universalmente [...] a ideia
estética de um todo interconectado de uma inominável profusão de
pensamentos.
Estamos agora em condições de perceber como é que a ideia central da primeira
parte da terceira "Crítica" se apresenta aqui em estreita relação com a arte
dos sons, quer dizer, a ideia de que existem formas de universalidade que não
dependem de conceitos determinados. Se a poesia, que é a forma mais elevada de
arte, "alarga ' de acordo com as palavras de Kant ' o ânimo libertando a
imaginação" e apresenta, diz Kant ainda, "uma profusão de pensamentos à qual
nenhuma expressão linguística é inteiramente adequada", quer dizer, se a poesia
comunica "universalmente" sem "conceitos determinados", Kant parece, contudo,
sugerir que existe uma outra forma de comunicação universal sem conceitos
determinados que está na base da poesia: a "linguagem dos afectos" ou a
modulação do som na qual a música consiste. Assim, no §53 é explicitamente
declarado que a arte dos sons "comunica ideias estéticas" e que estas "não são
conceitos, nem pensamentos determinados". E é ainda neste contexto e neste
sentido que Kant refere a relação entre a música e a vivificação do ânimo que
acabara de atribuir à poesia: a música, diz ele, exprime "a ideia estética de
um todo interconectado de uma inominável profusão de pensamentos". Quer dizer,
a música "move o ânimo" criando afectos que são comunicados a outros e, por
conseguinte, são sentidos por outros, suscitando nestes últimos ideias. O ânimo
daquele que escuta entra, portanto, num Gedankenspiel, num "jogo de
pensamentos", que se funda em sensações e afecções que a linguagem universal
dos afectos lhe comunica.
É com esta ideia em mente que a nossa hipótese inicial segundo a qual, para
Kant, existe uma relação importante entre música e pensamento parece ganhar
pertinência, pois a conclusão a que chega no §53 é a de que a música é uma arte
que dá que pensar. Voltemo-nos agora para Nietzsche, de modo a tentar mostrar
que o mesmo tipo de relação entre música e pensamento se encontra na sua
filosofia.
3
Para o nosso propósito, iremos concentrar-nos em particular em duas passagens
de "Humano, demasiado humano I". Como é sabido, a redação desta obra acontece
no período subsequente à ruptura de Nietzsche com Wagner. Alguns aforismos
sobre a música ali publicados parecem sugerir que tal ruptura implicou também
um afastamento da metafísica da música defendida por Schopenhauer,19
legitimando a tese de que, nesse período, Nietzsche aderira às teses do
formalismo musical advogado por Eduard Hanslick, autor da obra "Do belo
musical" e um importante opositor de Richard Wagner.20 Defendendo que a beleza
ou unidade de uma obra musical é idêntica à sua forma sonora e portanto
imanente à própria obra, Hanslick acusava Wagner de ter procurado a beleza e a
unidade das suas peças em planos extra-musicais como o drama (ou seja, a
narrativa, as palavras e o seu significado) e o plano das emoções e sentimentos
que a música suscita nos ouvintes.21
Este tipo de considerações contra os planos extra-musicais na música é
recorrente em "Humano, demasiado humano". Dois exemplos disso são os §§ 215 e
217 de "Humano, demasiado humano I", onde Nietzsche fala de "música dramática"
e "música absoluta".22 De acordo com estas passagens, a "música dramática",
quer dizer, a música que é acompanhada por um texto, subestima a estrutura
formal, estritamente sonora, da peça musical a favor do drama e, nessa medida,
ela não representou o início de algo novo na história da música, mas o consumar
de um processo de decadência da sensibilidade musical em geral. Quer dizer,
Nietzsche considera que a música dramática (e o drama wagneriano em particular)
não foi uma inovação musical sem precedentes, conforme defendiam os seus
partidários, porque, em rigor, ela socorria-se, por assim dizer, do elemento
menos musical da música, ou seja, exercia o seu efeito a partir do elemento
extra-musical no qual consiste propriamente o drama. Assim, esta música
convocava menos o ouvido do que o entendimento, ou seja, dirigia-se menos à
sensibilidade do que à capacidade de seguir a narrativa proposta pela obra em
questão.
Ora, se tal acontece com a música dramática, onde os sons musicais se associam
a palavras e a um texto, Nietzsche considera que, por seu lado, a "música
absoluta" ou música que, ao contrário da música dramática, é puramente
instrumental e portanto privada de conteúdos conceptuais e simbólicos,
desvaloriza igualmente a percepção sensível dos sons a favor de uma forma
"pura" ou puramente intelectual. No §215 Nietzsche escreve: "[...] a música
absoluta é ou uma forma em si mesma [...] ou o simbolismo das formas falando ao
entendimento sem poesia depois de ambas as artes terem estado unidas por muito
tempo e a forma musical estar toda entretecida com fios conceptuais e
sentimentais". A alternativa proposta é a seguinte: se a música absoluta ou
puramente instrumental é "uma forma em si mesma", supõe-se que aquilo que os
ouvintes escutam corresponde, nos termos de Hanslick, a "formas sonoras em
movimento"23 ' ou ainda, nas palavras de Kant, à pura sonoridade, à pura
"modulação" de sons; mas se, pelo contrário, a música absoluta for composta por
um simbolismo das formas, ou seja, pela significação que se atribui a conjuntos
de notas, então o seu conteúdo é extra-musical, ou seja, e em última análise, é
um conteúdo que se acrescenta à simples composição musical. Neste segundo caso,
como Nietzsche mostra no mesmo §215, é o intelecto quem introduz significação
nos sons que, assim, deixam de se dirigir aos ouvidos.
Opondo o prazer formal à compreensão simbólica, Nietzsche parece, então, propor
um formalismo semelhante ao de Kant e Hanslick. Contudo, a concepção de
Nietzsche é fundamentalmente diferente, quando não oposta, à de Kant. Enquanto
para este último, como se viu acima, a forma é o que concede, por assim dizer,
racionalidade à música, justificando o interesse do intelecto por esta e a sua
relação com a reflexão estética, para Nietzsche, ao invés, a forma é o que
impede a música de contribuir para a tendência decadente daquilo a que chama,
no §217 de "Humano, demasiado humano I", o processo de intelectualização dos
ouvidos. Nesse texto Nietzsche defende que a história da música é a história da
sua "des-sensibilização" (Entsinnlichung), ou seja, que ao longo da história da
música os nossos ouvidos se tornaram cada vez mais "intelectuais". Isto
significa que, paulatinamente, deixámos de nos satisfazer em saber o que é que
uma peça de música "é" e fomos tendendo cada vez mais a "perguntar pela razão,
pelo significado", ou seja, a perguntar o que é que ela significa, que
sentimento ou ideia está a ser expresso por meio daqueles sons. Em consequência
disso, o prazer formal, quer dizer, estritamente musical, foi-se perdendo, bem
como a capacidade de ouvir, escreve Nietzsche na mesma passagem, "a distinção
subtil entre dó sustenido e ré bemol". Os nossos ouvidos, acrescenta ainda,
"tornaram-se grosseiros", isto é, incapazes de reconhecer o que não é
conceptual, simbólico ou sentimental, ou melhor, incapazes, no fundo, de ouvir
música. Nesta medida, a história da música afigura-se como a história da
promoção do contrário da musicofilia, constituindo-se como o desenvolvimento de
uma patologia: a "doença difícil de explicar" que, como se disse antes, Kant
descreve no §22 da sua "Antropologia" como uma sensibilidade aos sons que é
insensível às notas musicais. A hipótese de Nietzsche corresponde, portanto, à
ideia de que a música moderna suscita a incapacidade de ouvir música. E dizer
isto é o mesmo que dizer que se trata de uma música que provoca a já descrita
amusia ' a qual traz, segundo Nietzsche, sérias consequências para o exercício
da filosofia. Vejamos como.
A crítica à intelectualização dos ouvidos não decorre da adesão de Nietzsche ao
formalismo musical, mas da ideia de que as nossas sensações devem ser tidas em
consideração quando fazemos juízos acerca da música. Tal ideia insere-se, de
resto, na tese mais geral segundo a qual as sensações são inseparáveis da
actividade discursiva ou cognitiva do intelecto. Nietzsche condena, portanto, a
subordinação da sensibilidade ao intelecto discursivo, subordinação essa que
considera equivaler a uma perda de refinamento dos sentidos, e, muito em
particular, dos ouvidos, que assim se tornam cada vez mais "grosseiros". Em
consequência do processo de intelectualização dos sentidos que Nietzsche
considera próprio da arte moderna, a sensibilidade e o intelecto deixam, então,
de se complementar, quer dizer, de colaborar em igual medida na criação do
prazer estético. Em termos kantianos, poder-se-ia formular esta situação
dizendo que o jogo livre que alarga o ânimo se torna impossível. Claro que, ao
contrário de Kant, Nietzsche nunca pensa no intelecto e na sensibilidade como
duas faculdades distintas. Em rigor, as suas críticas à intelectualização dos
sentidos são simplesmente coerentes com a tese do primeiro capítulo de "Humano,
demasiado humano I", segundo a qual a sensação, o sentimento e o conceito estão
sempre entrelaçados. A análise desenvolvida desde o primeiro parágrafo desta
obra corresponde precisamente a uma demonstração de que as nossas sensações não
se opõem aos conceitos. A verdade é antes que, de acordo com o §15, as nossas
sensações e sentimentos aparecem quando "grupos complexos de pensamentos também
aparecem". É por esta razão, prossegue Nietzsche, que chamamos aos nossos
pensamentos "profundos" apenas na medida em que consideramos profundos os
sentimentos que os acompanham. De modo ainda mais preciso, as sensações e os
pensamentos, o sensível e o inteligível, pertencem ao mesmo plano, ao plano
contínuo que é o único a que temos acesso. Esta é também a razão pela qual
Nietzsche conclui, no §14, que as nossas sensações e disposições (Empfindungen
und Stimmungen) não são, na realidade, "unidades simples", mas "complexos" de
sentimentos e pensamentos. Dito de outro modo, para Nietzsche não existem nem
sensações "puras", nem pensamentos "puros"; as sensações e os pensamentos
coexistem na mistura complexa que constitui o ser humano enquanto tal, mistura
essa, além do mais, que muda com o tempo, tem uma história e acontece num
contexto cultural que se transforma continuamente.
Ora, sendo a música uma arte, quer dizer, uma criação humana, dela é também
própria esta mistura. Quer dizer, se não existe tal coisa como sensações puras
ou pensamentos puros, também não existe algo como uma música pura. Este é,
aliás, o ponto de vista a partir do qual Nietzsche critica as interpretações
formalistas e a defesa da autonomia da arte, visando, em particular, a tese de
l'art pour l'art e a interpretação do estado estético como um estado de
desinteresse. Não cabe aqui desenvolver as críticas de Nietzsche à concepção
kantiana da beleza desinteressada,24 mas importa assinalar que a fraqueza que
ele vê expressa na exigência kantiana do desinteresse na arte também está
presente na arte moderna sempre que ela tenta transformar criações artísticas
numa espécie de criações auto-referenciais, quer dizer, puras ou puramente
formais no sentido hanslickiano do termo, que rejeita, como se disse acima,
qualquer ingrediente extra-artístico. Para Nietzsche esta concepção da arte
configura uma expressão ou um sintoma de decadência e de niilismo negador da
vida, pois a arte não é nem auto-referencial, nem desinteressada, mas antes "o
grande estimulante da vida".25
A tese do entrelaçamento entre sensação, sentimento e pensamento permite-nos,
então, chegar à hipótese com que começámos, ou seja, à ideia de que a arte em
geral e a música em particular alargam, não apenas o nosso modo de sentir, mas
também o nosso modo de pensar. E para Nietzsche a música é, por excelência, a
forma de arte que ensina, tanto as nossas sensações, como os nossos
pensamentos, como diz o §222 de "Humano, demasiado humano I", "a ir tão longe"
que não podemos senão afirmar a vida. Se isto é verdade, e se, quando ouvimos
música, o nosso prazer deve vir dos sentidos e não de um plano não musical ou
conceptualmente determinado, tal prazer não deve, como se viu já, subordinar as
sensações a conceitos. Mas do mesmo modo que a arte não deve subordinar as
sensações a conceitos, Nietzsche defende que ela não deve fazer o inverso. Quer
dizer, se critica a excessiva intelectualização dos sentidos, Nietzsche também
rejeita qualquer tipo de subordinação do intelecto às sensações.
Em rigor, Nietzsche suspeitava tanto de um enfraquecimento da sensibilidade por
meio do intelecto como do contrário, isto é, do enfraquecimento da força do
intelecto por via de um estímulo excessivo da sensibilidade. A música moderna,
especialmente a música de Wagner, ofereceu-lhe o exemplo mais claro desta
última tendência para a extrema excitação dos sentidos, que impedia o ouvinte
não só de sentir, mas também de pensar. Em Wagner Nietzsche encontrou ambas as
debilidades. Por um lado, trata-se de uma música que promove a
intelectualização dos ouvidos por meio do uso de "grandes símbolos", como é
dito em "O Caso Wagner" (§6). Este uso tem como efeito a des-sensorialização da
componente musical ou sonora da música por um excesso de significação dela
mesma: a música deixa de ser apenas o que é, uma composição sonora dirigida aos
ouvidos, e passa a significar "mais do que apenas música ' infinitamente mais"
(§10). Por outro lado, ao mesmo tempo que intelectualiza os ouvidos a música de
Wagner faz também o contrário disso, ou seja, estimula maximamente a audição.
Ao fazê-lo, porém, esta música continua a merecer as críticas de Nietzsche,
pois o que resulta desse estímulo excessivo não é um alargamento, mas um
enfraquecimento da sensibilidade, desta vez por exaustão. Quer isto dizer que,
dirigindo-se não apenas ao intelecto por meio do recurso a símbolos, mas também
aos ouvidos que esses mesmos símbolos intelectualizam, e levando ao limite a
sua capacidade de ouvir, a música de Wagner conduz ao esgotamento das
possibilidades da sensibilidade auditiva, anestesiando os ouvidos de quem a
escuta. Em virtude de uma excessiva estimulação sensorial, os ouvintes tornam-
se, por assim dizer, surdos.
São essencialmente estas as razões que levam Nietzsche a considerar que Wagner
é, por excelência, o artista da decadência, e a sublinhar o carácter doentio
das suas obras e as consequências nefastas delas sobre a saúde dos que escutam.
Trata-se de uma música que debilita tanto a sensibilidade dos ouvintes como o
seu intelecto, porquanto a massiva carga de efeitos que a caracteriza esmaga
quer os sentidos, quer os pensamentos de quem ouve. Dito de outro modo, o que
Nietzsche descobre é que, além de promover a intelectualização dos sentidos,
reduzindo ao mínimo a necessidade de efectivamente escutar, a música de Wagner
suprime também a possibilidade de pensar. Como escreve Nietzsche, esta música
exige do ouvinte apenas uma coisa: "Sobretudo, nenhum pensamento!" (CW 6).
Assim, em vez de convocar a participação do ouvinte, a música de Wagner suprime
ou obstaculiza a capacidade de sentir e de pensar tornando aquele que a ouve um
refém do estímulo contínuo de símbolos grandiosos e melodias infinitas. É, de
resto, por esta razão que, ao contrário da música de Bizet, a de Wagner não
liberta, mas aprisiona o espírito. Por seu lado, sendo o "oposto" da música
wagneriana, a música de Bizet trata, diz Nietzsche no §1 de "O caso Wagner", o
ouvinte como "inteligente" e até como "músico". E, comparando a música dos dois
compositores, Nietzsche escreve que, ao escutar Bizet, inúmeros "pensamentos
completamente diferentes correm pela minha cabeça o tempo todo...", fazendo-nos
lembrar da inominável profusão de pensamentos a que Kant alude na "Crítica da
faculdade do juízo". É neste contexto que Nietzsche formula a célebre pergunta:
Já alguém reparou que a música liberta o espírito? Dá asas ao
pensamento? De que nos tornamos mais filósofos quanto mais nos
tornarmos músicos?
Em jeito de conclusão, importa sublinhar dois aspectos. O primeiro é o de que o
modo como Nietzsche contrasta a música de Bizet com a de Wagner retoma
implicitamente as suas críticas à intelectualização dos sentidos e a sua tese
de que as sensações, os sentimentos e os pensamentos são inseparáveis. O
segundo é o de que Nietzsche vai tão longe na sugestão de que a música de Bizet
está profundamente ligada com a experiência de pensar, que declara que ela faz
de si "um filósofo melhor" ("O caso Wagner", §1). A música, como se disse já,
"liberta o espírito" e "dá asas ao pensamento". Mas o pensamento que está aqui
em jogo não é um pensamento puro ou absoluto, uma abstracção gerada por uma
qualquer razão pura. Tal como Nietzsche escreve de modo explícito, o que a
música suscita é aquela espécie de afecto pensante, se assim lhe podemos
chamar, a que chama "o pathos filosófico". Só este último parece poder alargar
o exercício da filosofia por meio de um jogo livre de pensamentos e afectos
que, como se poderia também dizer, não se subordinam uns aos outros. Para usar
as palavras de Kant no §53 da terceira "Crítica", a música parece, portanto,
indicar o caminho que vai "das sensações às ideias indeterminadas", ideias
essas que irão depois procurar por determinação conceptual. É esta, no fundo, a
ideia de Nietzsche quando escreve numa nota póstuma do ano 1881: "é impossível
dizer a que ponto <muitas coisas> ainda não encontraram nenhuma palavra, nenhum
pensamento ' é isto que a nossa música prova, ' e não que não se pode encontrar
nenhuma palavra nem nenhum pensamento."26