Análise dos Produtos de Corrosão de uma Moeda Medieval Procedente do Monte da
Senhora do Castelo
1. INTRODUÇÃO
Das intervenções arqueológicas realizadas no monte da Sª do Castelo, freguesia
de Urros, concelho de Torre de Moncorvo, exumou-se uma moeda medieval.
A época medieval encontra-se bem documentada bibliograficamente [1], sabendo-se
que Urros teve um papel preponderante no plano reordenador da Monarquia, e
arqueologicamente torna-se relevante pela necrópole [2,3] e uma estrutura
interpretada como igreja, datadas de meados do séc. XII.
Na continuidade ocupacional desde a época romana, o povoado medieval estaria
localizado no sopé do monte, onde se encontra a capela a Stº Apolinário,
reservando-se o topo do monte para a edificação de uma igreja, em cujo reboco
interior a detecção de ouro sugere a presença de pinturas ou frescos, face à
composição típica das argamassas dessa época [4]. A esta igreja, possivelmente
de arquitectura românica, encontra-se associada uma necrópole (Fig. 1) onde
foram encontrados dezoito enterramentos, onze dos quais foram estudados, tendo-
se exumado doze indivíduos (adultos do sexo masculino e crianças/adolescentes).
Este espaço sagrado, sofreu os efeitos da época instável da reconquista, já que
encontrando-se numa área fronteiriça e de controlo do Douro, e com uma posição
estratégica, serviu de refúgio da população em tempos de conflitos bélicos
resultantes de confrontos políticos [5].
Fig.1 ' Necrópole da Sra. do Castelo.
Neste contexto, inserem-se as várias cartas de foral concedidas por D. Afonso
Henriques (1112-1185) com intuito de povoamento e de defesa das zonas
fronteiriças. Urros recebe carta de foral em 1182, tendo como senhor da vila um
bisneto de Egas Moniz ' Fernão Veilaz. Com a subida ao trono, D. Sancho I
(1185-1211) envolve-se em diversas guerras contra o reino de Leão, nomeadamente
entre 1196-1197 e 1199-1200 [6], obrigando a que D. Afonso IX de Leão invada
quase toda a província de Trás-Os-Montes. Neste propósito, os infantes Pedro
Sanches e Pedro Fernandes de Castro atravessando a fronteira ocupam Melgaço,
Freixo, Urros, Mós, entre outras localidades.
Os confrontos com o reino de Leão, e o clima de insegurança política em inícios
do séc. XIII, terão levado à necessidade de amuralhar o recinto da Sª do
Castelo. De facto, a 1ª linha de muralhas muito bem estruturada, com cerca de
2,5 m de largura, é constituída por pedras de tamanho médio e grande, dispostas
de leito e numa posição horizontal e vertical, para um melhor suporte da mesma,
exibindo argamassa entre as diferentes fiadas não muito regulares, tendo sido
detectada uma das portas virada a Sudoeste (Fig. 2).
Fig. 2 ' Pormenor da primeira linha de muralhas medieval (porta).
Justifica-se assim o aparecimento no cimo da Senhora do Castelo de um dinheiro
de D. Afonso IX de Leão e uma ponta de virote em ferro.
O objectivo deste trabalho consiste em caracterizar os produtos de corrosão
desenvolvidos durante séculos sobre a moeda, interpretando o mecanismo
responsável pela degradação, e deste modo contribuir para um melhor
conhecimento na área da conservação de artefactos arqueológicos de natureza
metálica.
2. CORROSÃO
A interacção da superfície dos artefactos arqueológicos com o meio circundante
reveste-se de enorme importância quer na área de preservação, quer na de
corrosão. Efectivamente, face aos séculos ou milénios de soterramento, os dados
recolhidos destes sistemas traduzem com grande fidelidade autênticos regimes
permanentes de funcionamento. A maioria dos estudos realizados para diferentes
condições ambientais (solos [7,8], atmosfera [9,10] e água [11,12] procurou
estabelecer uma correlação entre o meio, a composição química do artefacto e a
respectiva estrutura das patinas. Esses trabalhos também servem de referência
para a interpretação do efeito da presença de compostos estáveis na superfície
de metais, e consequentemente do seu modo de preservação.
A patina de cobre, de acordo com as habituais condições ambientais, é
constituída por duas camadas distintas. Um estrato contínuo interno de 5-15 µm
de cuprite (Cu2O), e um estrato externo poroso de 5-40 µm de sulfato básico de
cobre, brocantite (Cu4SO4(OH)6), ou cloreto básico de cobre, atacamita (Cu2Cl
(OH)3), formados de acordo com as seguintes reacções:
O diagrama de Pourbaix, na Figura 3, baseado em diversos trabalhos de
caracterização de produtos de corrosão em artefactos arqueológicos [13,14],
sintetiza as diferentes situações termodinâmicas em função do pH para os
sistemas Cu-H2O-S e Cu-H2O-Cl. Da sua análise ressalta que a broncatite,
tenorite (CuO) e atacamita são apenas compatíveis em condições oxidantes,
enquanto que a cuprite (Cu2O), calcosite (Cu2S) e nantoquite (CuCl) o são em
condições redutoras típicas de soterramentos, a menos de situações redox
impostas por alterações de matéria orgânica e/ou inorgânica do meio.
Fig.3 ' Diagramas de E-pH para os sistemas Cu-S-H2O e Cu-Cl-H2O a 25ºC.
O conhecimento das características do solo onde os artefactos arqueológicos são
encontrados teria enorme importância para a compreensão do mecanismo dos
fenómenos responsáveis pela formação da patina. Contudo, esses solos foram
modificados ao longo do tempo por acções humanas e climatéricas. Em situações
de inserção no terreno recentes, os aspectos de geologia, composição química,
granulometria, resistividade, nível freático e pH dos solos são elementos
fundamentais para se definirem as condições equivalentes para testes de
simulação de comportamento.
3. METODOLOGIA
3.1. Caracterização morfológica
A moeda exumada (SB1 00, nº reg. 29), no âmbito estratigráfico de revolvimento,
é um dinheiro (bolhão) de D. Afonso IX de Leão (Fig. 4). Cronologicamente está
datada de 1155-1188 [15], e as suas características encontram-se na Tabela 1.
Sendo um bolhão, trata-se de uma liga de cobre e prata.
Fig. 4 ' Moeda medieval: a) Anverso ' uma cruz equilateral, cantonada por
flores, com a legenda, + A(L)DEF(O)NS·REX; b) Reverso ' árvore encimada por
cruz e decorada por florões, ladeada por dois leões.
Tabela 1 -Características morfológicas do numisma.
3.2. Métodos de análise: MEV-EDX, DRX, FRXED e microscopia óptica
A morfologia, microestrutura, e a composição química dos produtos de corrosão
desenvolvidos no bolhão foram estudadas através de uma combinação de várias
técnicas analíticas não destrutivas.
Um microscópio óptico Nikon modelo Eclipse L150, equipado com uma câmara
fotográfica, permitiu a obtenção de imagens com diversas ampliações. As
análises de microscopia electrónica de varrimento (MEV) e espectroscopia de
energia dispersiva de raios-X (EDX) realizaram-se no equipamento FEI Quanta
400FEG, munido de uma sonda de microanálise EDAX Genesis X4M. As condições de
observação variaram ligeiramente de amostra para amostra conforme os aspectos
de interesse a realçar. Em todas as situações a pressão no interior da câmara
foi cerca de 6x10-2 Pa. A distância entre a amostra e a lente objectiva variou
entre 6 mm e 10 mm, e usaram-se diferentes energias de aceleração (10 keV, 15
keV e 25 keV) para avaliar o efeito de penetração na composição dos produtos de
corrosão.
O espectro de difracção de raios-X (DRX) foi obtido no equipamento Panalytical
XPER PRO de aberturas fixas (fenda de divergência 1º e Soller 0,04º). A
velocidade de varrimento do feixe do anti-cátodo de Cu foi de 0,0006º s-1 e com
uma amplitude de -10º a 90º(2θ). Na identificação das espécies utilizou-se o
software High Score Plus da Panalytical com a base de dados do ICDD.
As análises químicas por fluorescência de raios-X de energia dispersiva
(FRXED), processaram-se no equipamento Spectro X-Test, com um campo de acção de
diâmetro variável de 3 mm a 10 µm e até 3 µm de profundidade.
A fim de preservar a amostra, os ensaios para determinação da sua composição
química foram efectuados na borda após raspagem.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A observação óptica e as análises efectuadas por FRXED (Fig. 5) mostram o
seguinte: na face ' alterações estruturais na superfície e ao longo da própria
espessura, com uma tonalidade base castanho-escuro avermelhada, sobre a qual
aparecem produtos de cor verde, amarelo-esverdeado e pontualmente áreas com
brilho metálico; as áreas escuras avermelhadas estão associadas à prata, e as
castanhas com a interacção do metal com o solo; na borda ' as áreas raspadas
avermelhada e de brilho metálico intenso contextualizam, respectivamente, o
cobre e a prata, sobre o qual se desenvolve a camada degradada; os produtos de
tonalidade vermelho-acastanhada na interface metálica sugerem a presença de
cuprite (Cu2O), os amarelados de hematite (Fe2O3), os amarelo-esverdeados
atacamita (Cu2(OH)3Cl), os castanho-pretos óxido de prata (Ag2O) ou sulfureto
de prata (Ag2S), e os esverdeados malaquite (Cu2(OH)2CO3).
Fig._5' Observações por FRXED dos produtos de corrosão em diversas zonas do
numisma.
As áreas da bordadura da amostra nas zonas alvo de raspagem, Figuras 5 c) e d),
mostram que o cobre é o elemento principal da moeda arqueológica. A composição
deste artefacto enquadra-se na classe das ligas de Cu-Ag, um bolhão de baixo
teor em prata, com pequenas percentagens de outros elementos químicos (Pb 1%;
Zn 0,3% e Sn 0,2%). De acordo com o sistema monetário baseado no ouro-bolhão
que vigorou em Castela desde 1085 [16], as primeiras cunhagens do bolhão teriam
cerca de 30% Ag [17]. A quantidade de prata no dinheiro Leonês passou de 0,27 g
para 0,18 g entre as primeiras e as últimas emissões no tempo de Afonso IX
[18]. As análises efectuadas apontam pois para um bolhão com 30-33% de prata.
A presença de áreas na moeda com maior quantidade de prata traduz um
comportamento usual nas ligas de Cu-Ag devido à baixa solubilidade da prata no
cobre, e vice-versa, à temperatura ambiente [19]. Efectivamente, a solubilidade
do Cu em Ag é da ordem de 8% a 780 ºC (temperatura eutéctica), e praticamente
nula à temperatura ambiente. Durante o processo de arrefecimento do sistema,
cada componente separa-se no estado puro com a mesma estrutura reticular que a
da respectiva solução sólida supersaturada. Deste modo, formam-se zonas
enriquecidas de prata dispersas na matriz de cobre, cuja dimensão ficará
dependente da velocidade de arrefecimento [20-22]. Contudo, é também de notar
que operações de martelagem associadas a eventuais ciclos de aquecimento (200-
300ºC) no fabrico das moedas podem também promover segregações macroscópicas ou
microscópicas.
A ocorrência de chumbo, zinco e estanho no material raspado, relaciona-se com a
extracção da prata de minérios argentíferos contendo alguma galena, blenda e
cassiterite, e os restantes elementos detectados, Si, Ca, Mg, P, Al, K e Fe,
provêm de contaminações do meio circundante, Tabela 2.
Tabela_2 - Identificação dos elementos químicos na superfície do numisma por
EDX.
O contacto entre metais de diferente natureza química induzirá pares galvânicos
na presença de um electrólito, podendo os respectivos fenómenos de corrosão
originar também heterogeneidades estruturais. Atendendo aos potenciais de
eléctrodo padrão da prata, cobre e chumbo vs. ENH, respectivamente, 0,800 V,
0,337 V e -0,126 V, a tendência termodinâmica relativa à corrosão destes metais
seria a seguinte: Pb > Cu > Ag. A extensão e profundidade dos fenómenos
dependerá de diversas variáveis, como sejam, características físico-químicas do
solo, natureza do electrólito e microestrutura da liga. A análise quantitativa
por EDX aponta para uma dissolução preferencial do chumbo, com uma posterior
redeposição na superfície. Na verdade, a percentagem relativa entre os três
metais na superfície é a seguinte: rCu = 81,2 > rPb = 12,2 > rAg = 7,0.
Estes valores mostram claramente um aumento do teor de chumbo na superfície da
ordem de doze vezes face à sua percentagem relativa na composição química do
artefacto, rPb = 1,0. Contudo, a ordem de grandeza de rCu = 81,2 na superfície,
até aumenta face à da composição estimada para a liga, rCu ~ 70,0, justifica
plenamente que aí apareçam particularmente produtos de corrosão à base de
cobre. O difractograma de raios-X, Figura 6, identificou os compostos
cristalinos cuprite (Cu2O), atacamita (Cu2Cl(OH)3) , calcosite (Cu2S),
sulfureto de prata (Ag2S), óxido de prata (Ag2O) e prata nativa (Ag). O facto
do enxofre não aparecer expresso na análise por EDX advém da sobreposição das
linhas espectrais do S e do Pb.
Fig. 6 ' Difractograma de raios-X da moeda medieval.
A evolução da corrosão pode ser vista com a formação inicial da cuprite na
interface da liga com o meio, e a sua posterior conversão em outros compostos
químicos de acordo com o meio circundante, enquanto a prata permanece catódica.
A atacamita indicia a presença de cloretos no subsolo, enquanto que a calcosite
provavelmente a de um ambiente anaeróbico redutor.
Contudo, a prata, apesar do comportamento catódico nos acoplamentos galvânicos
com o cobre, pode também sofrer uma corrosão devida a células de acção local de
acordo com as seguintes reacções (Eqs. 4, 5 e 6):
Os cloretos normalmente induzem uma corrosão autocatalítica do cobre, de acordo
com as seguintes reacções (Eqs 7 e 8):
As imagens de MEV (Fig. 7) evidenciam a existência de fracturas e fissuras que
se prolongam ao longo da espessura da moeda. O comportamento quebradiço de
moedas ou outros artefactos de ligas de Cu-Ag não é raro. Essa fragilidade pode
advir da respectiva composição química e microestrutura, como também de
alterações metalúrgicas decorrentes de processos de tratamento térmico e/ou
mecânicos no decurso do seu fabrico.
Fig. 7 ' Imagens de MEV: a) superfície; b) borda.
Algumas fissuras observadas na patina podem resultar da variação de volume
resultante da corrosão, as quais favorecem a transferência de elementos do solo
para as zonas mais internas do artefacto promovendo uma corrosão intergranular.
5. CONCLUSÕES
A moeda exumada insere-se num âmbito cronológico da época medieval e foi
identificada como um dinheiro de D. Afonso IX de Leão (1155-1185). A sua
composição mostra tratar-se de uma liga de Cu-Ag (30-33%) contendo como
impurezas o Pb, Zn e Sn.
As heterogeneidades estruturais e químicas observadas foram justificadas com
base no diagrama das ligas binárias de Cu-Ag, no processo de fabrico das moedas
e em fenómenos de corrosão selectiva a partir da constituição de pares
galvânicos electroquímicos.
As microanálises efectuadas na superfície do artefacto apontam para uma
corrosão preferencial do chumbo, o qual posteriormente torna-se a depositar na
superfície. Os produtos cristalinos detectados por difracção de raios-X foram a
cuprite, calcosite, atacamita, sulfureto de prata, óxido de prata e prata
nativa.
A interacção do meio com o material metálico foi evidenciada pelos espectros de
EDX, através da presença dos elementos Cl, Mg, Ca, K, Si, Fe e Al.