Estudo de Argamassas de Base Cimentícia por Microscopia Electrónica de
Varrimento
1. Introdução
O domínio da microestrutura de materiais de base cimentícia (MBC), essencial
para a manipulação e controlo das propriedades e comportamentos que estes
materiais apresentam à escala macroscópica, é fundamental para o
desenvolvimento de materiais e técnicas construtivas sustentáveis que: (i)
incluam maior consideração pelos impactos ambientais; (ii) reflictam a
crescente preocupação da gestão de recursos materiais e financeiros e (iii)
ponderem as consequências de longo prazo das intervenções construtivas. No
entanto, o actual conhecimento da microestrutura e sua relação com o desempenho
dos MBC é insuficiente [1, 2].
A microestrutura dos MBC é determinada essencialmente pelas reacções químicas
do cimento com a água, sendo influenciada por diversos factores tais como: (i)
o tipo de cimento (em termos de composição química, mineralogia e grau de
finura); (ii) a razão água/cimento; (iii) o processo de mistura; (iv) as
condições de cura e (v) a natureza, quantidade e dimensão de inertes ou outros
aditivos. As reacções de hidratação conferem aos MBC uma microestrutura
complexa que apresenta variações locais ao nível da composição química,
dimensão, morfologia e distribuição espacial das fases. Acresce que a estrutura
interna sofre alterações ao longo do tempo em resultado de processos químicos e
físicos que ocorrem nestes materiais em função das condições ambientais.
Neste artigo descreve se a microestrutura dos materiais de base cimentícia bem
como a sua caracterização por microscopia electrónica de varrimento (MEV). Em
seguida, apresentam-se microestruturas típicas de argamassas de cimento
Portland.
2. Microestrutura dos Materiais de Base Cimentícia
O cimento é normalmente comercializado na forma de partículas com dimensões
entre 1 e 90 μm, sendo essencialmente constituídos por: (i) silicato tricálcico
(C3S - 30 a 70%); (ii) silicato bicálcico (C2S - 10 a 55%); (iii) aluminato
tricálcico (C3A - 0 a 15%); (iv) aluminoferrato tetracálcico (C4AF - 5 a 15%) e
(v) sulfato de cálcio i.e, gesso (C S - 3 a 8%). O cimento com estas
características designa-se Portland.
A mistura das partículas de cimento com água desencadeia uma série de reacções
químicas, que ocorrem a velocidades diferentes e que se influenciam mutuamente
conduzindo a alterações químicas, físicas e mecânicas do sistema. Os produtos
destas reacções ' compostos hidratados estáveis ' aderem uns aos outros
conferindo ao cimento propriedades adesivas e coesivas.
O mecanismo de hidratação do cimento é complexo e não está totalmente
esclarecido [3-5]. Na Figura 1 apresenta-se um esquema simplificado das etapas
de hidratação:
Fig. 1 - Etapas de hidratação de uma partícula de cimento poliminerálica [8]:
C3S - silicato tricálcico; C2S - silicato bicálcico; C3A - aluminato
tricálcico; C4AF - aluminoferrato tetracálcico; C-S-H - silicato de cálcio
hidratado; AFt ' tri-sulfoaluminato de cálcio hidratado; AFm ' mono-
sulfoaluminato de cálcio hidratado. Dimensões: partícula de cimento - 1 a 90
µm; C3S - 25 a 65 µm; C2S - 20 a 40 µm; C3A - 1 a 60 µm.
Etapa 1 - Nos primeiros minutos ocorre essencialmente a reacção da água com:
(i) o aluminato tricálcico (C3A) e o gesso (C S) formando-se cristais curtos de
tri-sulfoaluminato de cálcio hidratado (AFt); e (ii) o silicato tricálcico
(C3S) formando-se um gel amorfo de silicato de cálcio hidratado (C-S-H) - que
se deposita na superfície da partícula - e hidróxido de cálcio (CH) - que
precipita nos espaço entre as partículas de cimento com um hábito hexagonal;
Etapa 2 - Prossegue a reacção da água com os silicatos de cálcio (C3S e
C2S), formando-se uma camada adicional de C-S-H em torno da partícula a uma
distância de cerca 1 µm, que se designa correntemente por C-S-H exterior [6,
7];
Etapa 3 - Ocorre uma reacção de hidratação secundária dos aluminatos de
cálcio (C3A e C4AF) formando-se compostos aciculares longos de tri-
sulfoaluminato de cálcio hidratado (AFt). O C-S-H que se começa a formar nesta
etapa designa-se por interior uma vez que, devido à mobilidade
progressivamente mais reduzida dos produtos das reacções, se deposita dentro da
camada de hidratação formada nas etapas anteriores;
Etapa 4 - A hidratação prossegue a uma velocidade lenta, correspondente a
reacções em estado sólido. Continua a formar-se C-S-H interior, com
diminuição progressiva do espaço livre entre a camada de hidratação e a
partícula não hidratada, e aparece uma nova fase de aluminato, mono-
sulfoaluminato de cálcio hidratado (AFm);
Etapa 5 - As reacções de hidratação decorrem ao longo de anos, continuando
essencialmente a formar se C-S-H interior adicional.
Em síntese, a microestrutura dos MBC hidratados é constituída por: fases
sólidas (essencialmente, C-S-H, CH, AFt, AFm, partículas de cimento ainda por
hidratar e inertes); poros (com diferentes formas, dimensões e conectividades);
e, fases líquidas e gasosas (no interior dos poros). Os compostos hidratados de
C-S-H constituem a fase ligante mais importante dos MBC uma vez que estabelecem
entre si ligações de van der Waals que asseguram a aglomeração das fases
sólidas e determinam a sua coesão e adesão.
3. Microscopia Electrónica de Varrimento
A microscopia electrónica de varrimento permite caracterizar a complexa
microestrutura dos MBC a várias escalas, devido à sua elevada resolução
espacial (~1 nm [9]) e à extensa gama de ampliações (~20x até 100 000x)
disponíveis [9]. Adicionalmente, uma vez que a maioria dos instrumentos estão
equipados com espectroscopia de dispersão de energia de raios X (EDX), é também
possível efectuar microanálises químicas locais em áreas da imagem com menos de
1 μm de diâmetro.
Na MEV as imagens são formadas por um feixe de electrões. Este feixe, gerado na
parte superior do microscópio, descreve uma trajectória helicoidal através de
campos de lentes electromagnéticas, onde é focado, até incidir na superfície da
amostra, varrendo-a. A interacção deste feixe com o material conduz à ejecção
de electrões e à emissão de radiação electromagnética que constituem os vários
tipos de sinais detectáveis. Os sinais utilizados na análise de MBC são os
electrões secundários, os electrões retrodifundidos e os raios-
X característicos (secções 3.1-3.3). Em função do modo operacional seleccionado
no microscópio são usados detectores específicos para cada tipo de sinal, que é
subsequentemente amplificado e enviado para um ecrã CCD (charge-coupled device)
onde é formada uma imagem rasterizada. Na Figura 2 ilustra-se a configuração de
detecção e um detalhe da emissão dos três tipos de sinal a partir do volume de
interacção.
Fig. 2- Representações esquemáticas da: (a) configuração de detecção e (b)
interacção entre o feixe electrónico gerado pelo MEV e a amostra de MBC (ES -
electrões secundários; ERD - electrões retrodifundidos; RX - raios X).
3.1. MEV em modo de visualização com sinal de electrões secundários (MEV-ES)
Os electrões secundários (ES) são emitidos pela amostra em resultado de
colisões inelásticas dos electrões incidentes com os átomos da amostra. Os
electrões secundários, embora abundantes, têm baixa energia cinética (inferior
a 50 eV) pelo que são emitidos apenas os produzidos junto à superfície da
amostra (Figura 2(b)) [9]. Por esta razão, as imagens a alta resolução formadas
com ES revelam detalhes topográficos.
A MEV-ES, no estudo de MBC, é usada na análise de superfícies de fractura para
avaliar a escala e a morfologia das fases, especialmente das que se encontram
livres à superfície de poros e fendas, servindo portanto para caracterizar e
identificar produtos de cristalização. No entanto, uma vez que se baseia em
contraste topográfico, este tipo de imagens é pouco explícito no que diz
respeito à interrelação das fases na arquitectura interna do sistema.
Este modo de visualização é particularmente útil na análise de MBC que se
encontrem em etapas iniciais de hidratação. Nos MBC "maduros" i.e,
com elevado grau de hidratação, o preenchimento dos poros impossibilita a
observação de cristais livres, dando origem a microestruturas topograficamente
invariáveis.
3.2. MEV em modo de visualização com sinal de electrões retrodifundidos (MEV-
ERD)
Os electrões retrodifundidos (ERD) são electrões do feixe incidente que emergem
da superfície da amostra com elevados ângulos de difusão em resultado de
múltiplas colisões elásticas. Estes electrões possuem elevada energia cinética
(superior a 50 eV) pelo que conseguem emergir do volume de interacção a partir
de maiores profundidades da amostra (Figura 2_(b)), dando por isso origem a
imagens de menor resolução espacial do que as obtidas com ES [9]. O contraste
nas imagens obtidas com ERD é gerado sobretudo por diferenças na composição
química das fases: os elementos químicos com maior densidade electrónica
possuem coeficientes de retrodifusão superiores originando maior brilho.
A MEV‑ERD, no estudo de MBC, é usada na análise de superfícies planas polidas
revelando o modo como as fases se relacionam na arquitectura interna dos
materiais.
3.3. Espectroscopia de dispersão de energia de raios-X (MEV-EDX)
A interacção dos electrões incidentes com a amostra dá também origem a uma
série de fotões de raios-X cuja energia é característica do elemento químico
que o emite. Estes raios-X são gerados num volume de interacção que nos
materiais cimentícios apresenta diâmetros típicos na casa dos 1'2 μm (Figura 2_
(b)). Quando esta dimensão é superior às das fases presentes, o sinal tem
origem em mais do que uma fase requerendo por isso a interpretação cuidadosa
dos resultados. A detecção dos raios-X emitidos permite obter informação sobre
a composição química local. Adicionalmente, é possível obter mapas de
distribuição dos elementos químicos respectivos.
4. Observação de superfícies de fractura
Nas Figuras 3 e 4 apresentam se exemplos de imagens obtidas por MEV-ES a partir
de superfícies de fractura de argamassas de cimento Portland endurecidas. Uma
vez que estas superfícies apresentam contraste reduzido e pouco específico, as
observações são efectuadas na superfície interna de poros e cavidades expostas
pela fractura do material, onde os produtos de hidratação puderam cristalizar
livremente. A superfície interna do poro exibido na Figura 3(a) ' onde a
matéria solta corresponde a debris de fractura ' encontra-se extensivamente
revestida por cristais de hidróxido de cálcio (CH) (Figura 3(b)). Uma
observação a maior ampliação permite resolver uma fina distribuição de cristais
aciculares de aluminatos de cálcio hidratados (AFt) dispersos numa matriz
fibrosa de silicatos de cálcio hidratados (C-S-H), em fendas superficiais e
depressões topográficas.
Fig. 3- Imagens de argamassa de cimento (2 dias de hidratação) obtidas em modo
de visualização com sinal de electrões secundários (JEOL JSM-7001-F): (a) poro
numa superfície de fractura, (b) cristais facetados exibindo planos de hábito
típicos de hidróxido de cálcio (CH) e (c) cristais aciculares de aluminatos de
cálcio hidratados (AFt) dispersos numa matriz fibrosa de silicatos de cálcio
hidratados (C-S-H).
Fig. 4- Imagens de argamassa de cimento (28 dias de hidratação) obtidas em modo
de visualização com sinal de electrões secundários (JEOL JSM-7001-F) mostrando
morfologias típicas de cristalização do hidróxido de cálcio (CH) na superfície
interna de poros após fractura: (a) dendrítica (b) em placas. Em ambos os casos
se observam cristais aciculares de aluminatos cálcio hidratados (AFt e AFm).
A morfologia de cristalização do CH apresenta alguma diversidade, podendo esta
fase surgir sob a forma de estruturas dendríticas facetadas (Figura 4(a)) ou
placas hexagonais (Figura 4(b)). Verifica-se ainda, como seria de esperar, que
os compostos aciculares têm maior dimensão e são mais numerosos para tempos de
hidratação maiores (comparar com a Figura3(c)).
A análise de superfície de fracturas fornece informação acerca do grau de
hidratação e possibilita uma avaliação qualitativa da porosidade
particularmente nas etapas iniciais de hidratação. Adicionalmente, a observação
directa de C‑S-H nos poros permite compreender características de coesão e de
adesão do sistema. No entanto, só é possível observar a microestrutura interna
se as fases forem clivadas durante o processo de fractura, o que sucede
raramente. Desta forma, a inspecção centra-se tendencialmente nas fases que
cristalizaram livremente à superfície de poros e fendas, o que polariza a
amostragem e pode resultar em dados que não são representativos dos materiais.
5. Observação de secções planas
A obtenção de secções planas nas amostras de MBC, necessárias para as análises
em MEV‑ERD, requer a impregnação, sob vácuo, da amostra com uma resina de
viscosidade reduzida que encha os poros estabilizando a microestrutura antes de
efectuar ao polimento.
Na Figura 5 apresenta‑se uma imagem obtida por MEV‑ERD a partir de uma secção
plana polida de uma argamassa de cimento Portland endurecida, e espectros de
raios‑X correspondentes a análises pontuais.
Fig._5-
Imagem de argamassa de cimento (2 dias de hidratação) obtida por microscopia
electrónica de varrimento em modo de visualização com sinal de electrões
retrodifundidos (Hitachi F2400) de uma superfície secção plana polida e
correspondentes espectros de raios-X.
Os compostos hidratados têm um número atómico médio menor que os não hidratados
e consequentemente um coeficiente de retrodifusão inferior. Tal como se referiu
anteriormente, a zona mais interna das partículas de cimento permanece
desidratada por um período de tempo mais longo revelando um contraste superior
nas imagens obtidas por MEV‑ERD. Este facto encontra‑se evidenciado na Figura 5
(a), onde é possível distinguir camadas de hidratação de menor contraste em
redor de compostos de silicato de cálcio. A região C apresenta maior contraste
do que a A devido a diferenças de composição química nomeadamente, ao maior
teor relativo de cálcio (espectros A e C na Figura 5(b)). A fase D, que inclui
na sua composição elementos de maior densidade electrónica como o ferro e o
titânio (espectro D na Figura 5(b)), tem ainda um coeficiente de retrodifusão
superior e, portanto, exibe maior contraste.
Na Figura 6 apresenta‑se outra imagem típica da microestrutura de uma argamassa
obtida por MEV‑ERD a partir de uma secção plana, e que tal como na Figura 5
revela o estado de hidratação do cimento que permeia os inertes. As
Figuras 7 e 8 apresentam ampliações dos detalhes emoldurados na Figura 6.
Fig. 6- Imagem de argamassa de cimento (2 dias de hidratação) obtida por
microscopia electrónica de varrimento em modo de visualização com sinal de
electrões retrodifundidos (JEOL JSM-7001-F).
Fig. 7-Ampliação de um detalhe da Figura 6 e respectivos mapas de raios-X que
permitem determinar a distribuição dos elementos nas fases presentes.
Fig. 8- Ampliação de um detalhe da Figura 6 revelando a microestrutura
dendrítica de um inerte e espectros de raios-X obtidos por análise pontual. A
microestrutura corresponde a dendrites ricas em ferro (região A de (b) e
espectro A de (c)), com segregação de silício e alumínio para as regiões
interdendríticas (região B de (b) e espectro B de (c)). A região interfacial
mostra que os compostos aderem à superfície irregular deste tipo de inertes
(d).
Os mapas de raios‑X incluídos na Figura 7, apesar de possuírem uma menor
resolução espacial do que as imagens anteriores, revelam a distribuição dos
elementos, constatando‑se que as fases que possuem alumínio e ferro, e que
apresentam maior contraste na imagem obtida por MEV‑ERD, são também mais ricas
em cálcio. As outras regiões possuem um maior teor relativo de silício.
O detalhe apresentado na Figura 8 mostra um inerte constituído por dendrites
ricas em ferro, evidenciando segregação de silício e alumínio para as regiões
interdendríticas. O contraste elevado deste inerte deve-se ao seu peso atómico
médio superior. A imagem (d) desta figura revela que os compostos hidratados
aderem à superfície do inerte, havendo uma interpenetração conducente a maior
resistência mecânica da interface.
A análise de secções planas permite determinar o grau de hidratação global do
cimento, estudar o mecanismo de hidratação e, ainda, caracterizar
detalhadamente partículas individuais e a forma como as fases se
interrelacionam. Esta informação pode ser tratada quantitativamente por análise
de imagem e correlacionada com as propriedades macrocópicas determinadas por
ensaios mecânicos e físicos.
6. Considerações finais
A MEV permite estudar a microestrutura complexa e dinâmica dos MBC de forma
detalhada e contextualizada, diferenciando compostos anidros de hidratados e
determinando a sua composição química. Estes estudos são fundamentais para a
compreensão dos mecanismos de hidratação ao longo da vida dos MBC em função do
tipo de cimento, das condições de preparação e cura, e do ambiente em serviço.
O conhecimento destes mecanismos complementado com resultados de ensaios
físicos e mecânicos possibilita o controlo do desempenho destes materiais.