Gestão Costeira: resultado de uma relação dúbia entre o Homem e a Natureza
ARTIGO INTRODUTÓRIO / INTRODUCTORY ARTICLE
Gestão Costeira: resultado de uma relação dúbia entre o Homem e a Natureza
1. Introdução
O objectivo central da Gestão Costeira é o Homem. Sem o Homem as zonas
costeiras não careceriam de qualquer tipo de gestão. É o Homem que impõe a
necessidade dessa gestão como forma de, presumivelmente, melhorar o nível de
exploração dos recursos naturais. Claro que, nesta óptica, se pressupõe como
verdadeira a dicotomia Homem Natureza, isto é, que são entidades distintas, o
que, em rigor, não corresponde à verdade.
Sem a presença do Homem, a Natureza gere-se a si própria segundo leis
universais, imparciais e incorruptíveis. Porém, a gestão natural apresenta
características antagónicas aos valores estabelecidos pelo Homem (entre os
quais a justiça, a igualdade, a compaixão, a solidariedade, a condescendência e
a segurança). Na realidade, se nos centrarmos em qualquer espécie (animal ou
vegetal), a Natureza é tipificada pela crueldade, pela injustiça e pelo
desprezo pelos valores essenciais a essa espécie.
Todavia, a Natureza gere-se a si própria com extrema eficácia, garantindo
verdadeira sustentabilidade para o futuro a curto, médio, longo e muito longo
prazos. Ao longo dos cerca de 3,5 biliões de anos de vida na Terra os
ecossistemas foram-se sucedendo, tornando-se progressivamente mais complexos.
Num planeta dinâmico como é o nosso, diversas componentes abióticas dos
ecossistemas foram mudando de características, levando a que as componentes
bióticas se adaptassem e evoluíssem.
Neste jogo abiótico biótico também as acções das componentes vivas provocaram
modificações, por vezes fundamentais, nas componentes abióticas. Geraramse
mesmo, com frequência, mecanismos de retroalimentação (feed-back) que
conduziram a grandes modificações ecossistémicas. A vida baseada no oxigénio
resultou precisamente dessas modificações. Refira-se que nos primeiros
ecossistemas terrestres, constituídos por organismos unicelulares, os níveis de
oxigénio na atmosfera eram ínfimos, provavelmente inferiores a 1% (e.g., Yang
et al, 2002). Para os organismos então dominantes o oxigénio era letal. O
aumento de oxigénio na atmosfera terrestre constituiu modificação profunda, a
qual ultrapassou os níveis de resiliência de muitos ecossistemas, forçando a
componente biótica a adaptar-se e a evoluir. Desenvolveram-se, assim, métodos
bioquímicos para reter o oxigénio, sendo um dos principais a respiração
aeróbica.
Foi muito provavelmente o acréscimo de oxigénio atmosférico, em conjunto com
outras alterações dos factores abióticos (e.g., glaciações), que proporcionaram
a explosão cambriana, há cerca de 530 milhões de anos, quando rapidamente
(aprximadamente 70 milhões de anos) surgiram os phyla mais importantes,
aumentando extraordinariamente a biodiversidade. Muitos outros casos de quebra
de resiliência ecossistémica, capacidade de adaptação e de impulso
evolucionista se poderiam referir, como o que culminou no aparecimento das
plantas vasculares, no Silúrico, há uns 443 milhões de anos.
É de relevar que foi precisamente a rápida modificação dos factores abióticos,
no final do Mesozóico, há 65 milhões de anos, que ultrapassou os níveis de
resiliência de muitos dos ecossistemas então existentes, provocando uma
extinção em massa de espécies animais e vegetais, incluindo os dinossáurios.
Foi a janela de oportunidade para os mamíferos, que tinham surgido muito tempo
antes, no início do Mesozóico, há 250 milhões de anos, mas que se tinham
mantido com dimensões diminutas (do tamanho de ratos) e com pequena importância
ecológica. Foi o evento que, mais tarde, há uns 200 mil anos, viria a propiciar
o Homo sapiens, ou seja, do Homem.
E foi o Homem que, primeiro timidamente, depois com relevância crescente,
começou a tentar melhorar alguns processos naturais, a alterar de forma
progressiva o funcionamento dos sistemas terrestres, a colocar cada vez mais a
Natureza ao seu dispor. Instituiu-se como a espécie dominante e soberana do
planeta que o produziu. Actualmente transformou-se no principal agente
modelador das zonas costeiras.
Corrompendo a lógica das leis naturais, onde a adaptabilidade às modificações
ambientais constitui factor de suma importância para a sobrevivência da
espécie, o Homo sapiens sapiens adaptou-se como pode às alterações do meio em
que vivia (e com isso evoluiu), mas com o poder tecnológico que desenvolveu,
tenta adaptar a Natureza aos seus próprios interesses.
O Homem, que pode ser considerado como única espécie moral. Como defendia
Kant (1784 [2004]), não é somente a obrigação moral o factor mediador das
relações entre os homens; elas acabarão por ocorrer a partir de uma sociedade
moral; todavia, ao mesmo tempo em que o Homem traz em sua natureza uma
disposição para associar-se, tende à preguiça, à cobiça, à dominação. O Homem,
espécie única, com qualidades ímpares, com imperfeições evidentes, com
contradições surpreendentes.
Assim, ao tentar assumir-se como entidade reguladora dos processos dos quais
depende, mas que conhece ainda mal e que, efectivamente, não controla, o Homem
entrou em conflito consigo mesmo. E esses conflitos são evidentes na exploração
dos recursos marinhos, e nunca é demais relembrar que o litoral é o principal
recurso marinho explorado na actualidade (Dias et al., 2009). Com efeito, nas
zonas costeiras, o turismo conflitua com as actividades portuárias, as pescas
com os efluentes industriais, as explorações minerais com o urbanismo, e os
exemplos poderiam continuar quase ad infinitum.
Porém, a conflitualidade reveste-se de amplitudes bastante maiores quando se
tem em atenção que as zonas costeiras são (positiva ou negativamente) afectadas
por:
* tudo o que acontece nas bacias hidrográficas (e.g., desflorestações,
barragens, impermeabilização de grandes áreas, esgotos urbanos e
industriais);
* pelas alterações provocadas pela sociedade no clima atmosférico (local,
regional e global);
* pelas mudanças na agitação marítima (devidas a dragagens, aterros ou
construção de estruturas marinhas;
* pelas transformações que induz no comportamento litosférico (como subsidência
devida à carga induzida por grandes metrópoles ou à extracção de grandes
volumes de fluidos água, petróleo, gás).
É precisamente devido a todos estes níveis de conflitualidade que as zonas
costeiras carecem de uma gestão cuidada, tendo como base o conhecimento
científico do funcionamento dos sistemas naturais, mas baseada em princípios
morais específicos da espécie humana, tais como a coesão e a equidade
sociais, a participação pública e a prática plena da cidadania, a co-
responsabilização social (estruturas governamentais, populações, agentes
económicos, associações representativas), e a dignificação do conhecimento
científico como matriz de base da construção de uma nova sociedade preocupada
com o desenvolvimento sustentável inter-geracional.
Para resolver os problemas que afectam o litoral é fundamental compreender a
génese desses problemas, o que é abordado para a costa do Alentejo, Portugal,
por Bastos et al. (este volume), analisar as diferentes influências que a
ocupação turística e as obras portuárias tiveram na evolução recente do
litoral, como é abordado por Freitas & Dias (este volume) para a Praia da
Rocha, Portugal, compreender como é que os litorais foram progressivamente
construídos, como Durão (este volume) estudou para o de Lisboa, Portugal, e
como as actividades humanas influenciam as outras espécies, o que pode ser
exemplificado pelos poluentes orgânicos persistentes em aves, como foi feito
por Ferreira (este volume) no Rio de Janeiro, Brasil.
A gestão costeira é actividade difícil, que exige profundos conhecimentos
interdisciplinares, e a correcta determinação das relações de causa e efeito.
Por exemplo, as dragagens portuárias podem induzir consequências negativas ou
positivas no litoral adjacente, como aconteceu na barra de Aveiro, Portugal, o
que foi estudado por Rosa et al. (este volume).
Para adoptar medidas correctivas ou mitigadoreas é essencial conhecer a
realidade actual, o que inclui as alterações provocadas na paisagem, como
Gianuca & Tagliani (este volume) fizeram num município de Rio Grande do
Sul, Brasil, bem como analisar o nível de artificialização já atingido nos
diferentes sectores costeiros, como Piartto & Polette (este volume) fazem
para Balneário Camboriú, Brasil.
Todo o conhecimento científico que se vai adquirindo sobre as zonas costeiras
tem que ser devidamente utilizado pelos responsáveis pela gestão do território,
e as estratégias e medidas adoptadas devem ser periodicamente avaliadas, o que
é efectivado por Oliveira & Nicolodi (este volume) no que se refere ao
Projecto Orla, o grande projecto nacional brasileiro tendente a melhorar o
ordenamento costeiro.
Este número da Revista de Gestão Costeira Integrada / Journal of Integrated
Costal Zone Management não resolve, como é óbvio, os amplos e complexos
problemas da gestão costeira. Integra, porém, um conjunto de artigos que
constituem contribuições de grande valia para a adopção de medidas gestionárias
mais eficazes, constituindo, simultaneamente, fontes de inspiração para o
desenvolvimento de programas e de projectos futuros que possam, de uma ou de
outra forma, ampliar os níveis de sustentatibilidade social e ambiental das
zonas costeiras, de que todos nós dependenmos profundamente.