Artificialização do solo e Vulnerabilidade Humana em duas zonas sujeitas a
processos de erosão costeira: casos de estudo da Costa da Caparica e Espinho
(Portugal)
1. Introdução
A Avaliação para o Milénio dos Ecossistemas concluiu que 2/3 dos ecossistemas
mundiais, desde as áreas húmidas às regiões costeiras, florestas e solos, estão
ou degradados ou foram geridos de forma insustentável (MEA, 2006).
As áreas costeiras ao proporcionarem proximidade a esses recursos foram
atraindo populações e actividades económicas transformando-se em áreas
densamente povoadas e infra-estruturadas e onde se localizam grandes áreas
metropolitanas. O aumento e diversidade das actividades que aí se localizam, ou
pretendem localizar-se, podem provocar conflitos de uso quando várias
actividades lutam pelo uso e apropriação do espaço nem sempre com possibilidade
de co-habitar, como no caso da indústria e do turismo. Estas situações de
potencial conflito pelo uso e apropriação de um espaço muito valorizado
aumentam quando processos de erosão costeira ameaçam as populações e
actividades económicas.
Processos de erosão costeira mais ou menos graves são observados em toda a
linha de costa na Europa (Pinto, 2004; EEA, 2006; EUROSION, 2006; EEA, 2010).
Reconhecendo a complexidade do problema e o deficit de informação sobre estes
processos, as suas causas e potenciais consequências, que afectarão em toda a
Europa milhares de pessoas, actividades económicas e grandes infra-estruturas
situadas em zonas costeiras, a União Europeia assumiu-o como um desafio para o
qual pretende encontrar respostas. Contudo, Não existe uma solução legislativa
simples para estes problemas complexos. Dada a diversidade das condições
físicas, económicas, culturais e institucionais presentes, a resposta deverá
ser uma estratégia flexível centrada na resolução dos problemas concretos que
existem no terreno. Assim, é necessária uma abordagem territorial integrada e
participativa para assegurar a sustentabilidade ambiental e económica da gestão
das zonas costeiras europeias, que deverá também ser justa e coesa em termos
sociais. (CCE, 2000).Mas a complexidade da situação convoca também uma
colaboração mais estreita entre cientistas de diversas origens académicas,
tornando-se conveniente a discussão sobre a utilidade de conceitos comuns e a
definição dos problemas em análise, nomeadamente entre a ecologia humana que
analisa as interdependências entre os sistemas sociais e naturais, a sociologia
do ambiente que situa muito mais as questões de análise no interior dos
sistemas sociais, privilegiando o modo como os fenómenos sociais acarretam
consequências ambientais e os factos ambientais se traduzem em factos sociais,
e as ciências naturais (Miller et al., 2008; Yearly, 2004; Pires, Gibert &
Hens, 2010)
Uma abordagem integrada e interdisciplinar também é necessária pois os
processos de erosão costeira resultam de um complexo leque de factores,
naturais e antrópicos, porque serão desiguais as vulnerabilidades sociais e
territoriais, na exposição aos factores ambientais impactantes e porque são
potencialmente geradores de conflitos na provável dissensão entre o interesse
geral e os interesses privados.
No entanto, tem-se dado maior relevância à explicação dos factores físicos
forçadores e aos impactos e muito menos à vulnerabilidade das populações e à
sua capacidade adaptativa à mudança.
Não basta prevenir e executar as medidas ambientais que se julgarem adequadas.
É preciso compreender a lógica dos actores em presença e as dinâmicas de
mudança social para saber prevenir e melhor estruturar as medidas que,
necessárias, não configurem novos focos de conflito e de recurso a tribunais,
sendo urgente mitigar as diferenças entre um direito do ambiente e um direito
ao ambiente.
Neste artigo será realizada uma primeira aproximação à análise das
vulnerabilidades territoriais e sociais em dois casos de estudos de áreas
sujeitas a processos de erosão costeira, a Costa de Caparica e Espinho, numa
extensão de 14km e 10km sucessivamente, ao longo da orla costeira, que fazem
parte de uma investigação mais ampla que envolve um terceiro caso de estudo, a
Ilha de Faro, que não será aqui considerado por ainda não terem sido realizadas
entrevistas.
2. Factores de pressão antrópica nas Zonas Costeiras em Portugal
Os processos de erosão costeira resultam de um complexo leque de factores,
tanto naturais como humanos, combinados, que têm variado de escala, intensidade
e de importância ao longo do tempo. A intensa ocupação das zonas costeiras, a
diminuição do carreamento de sedimentos pelos rios em consequência da
construção de barragens, a artificialização da linha de costa ou a subida do
nível médio das águas do mar, são comummente apontados como estando na origem
dos processos de mudança que estão a ocorrer (Andrade et al., 2009). Deste
conjunto de factores interessa-nos destacar os de origem antrópica, em
particular os decorrentes da artificialização das zonas costeiras, densificação
de construções e alterações que foram sendo introduzidas nos usos do solo.
Num relatório (EEA, 2006) que avalia alterações observadas nas áreas de costa
no período de uma década na Europa (1990 a 2000), Portugal é mencionado como
tendo sido um dos países Europeus onde o crescimento das áreas urbanas foi mais
acelerado (34%), juntamente com a Irlanda e com a Espanha e onde se observou um
maior crescimento da população a residir junto da linha de costa, depois da
Irlanda. As alterações de ocupação de solo também são destacadas e Portugal foi
o país onde mais área agrícola ao longo da costa e dunas foram perdidas para
outros usos, nomeadamente para construção urbana ou de infra-estruturas de
turismo. Na Europa, largas extensões da linha de costa estão a perder a sua
resiliência e a tornar-se mais vulneráveis pelo aumento da artificialização e
pela preferência que tem sido dada às defesas pesadas em especial em áreas de
costa densamente povoadas, por exemplo na Holanda, na Bélgica, na Dinamarca e
na costa atlântica da França e de Portugal (EEA, 2006:70).
A zona costeira de Portugal Continental estende-se por 950 km, mas cerca de 1/
3 do litoral encontra-se ocupado por edificados urbanos e estruturas
industriais e portuárias, apresenta uma enorme diversidade morfológica e
concentra a maior parte da população e das actividades económicas (Andrade et
al., 2006; Freire et al., 2009). Em resultado da interacção do meio terrestre e
marítimo, integra múltiplos recursos naturais e de elevado valor ambiental e
apresenta potencialidades específicas exploradas pelas actividades económicas,
mas representa também, pela elevada pressão a que está sujeita, uma área de
elevada sensibilidade e fragilidade (DGA, 1989: 61).
Em Portugal, modelos históricos de desenvolvimento favoreceram o litoral em
detrimento do interior. Os movimentos migratórios internos que atingiram a sua
intensidade máxima entre 1960 e 1973, em direcção às cidades do litoral
reforçaram o crescimento das áreas metropolitanas (Fonseca, 1990; Ferrão, 1996)
e marcaram definitivamente a tendência para a litoralização da população
residente no Continente, concentrada nas duas grandes metrópoles portuguesas
(Lisboa e Porto) e num contínuo de ocupações urbanas e cidades intermédias ao
longo do litoral.
As maiores densidades populacionais encontram-se no litoral algarvio, situação
que se agrava nos períodos de maior procura turística, nas duas áreas
metropolitanas e numa faixa litoral entre Aveiro e Viana do Castelo. Situações
mais críticas em termos de erosão costeira foram identificadas sobretudo no
litoral de costa arenosa, as mais apetecíveis para o turismo de sol e praia e
onde coincidem maiores densidades populacionais (Figura_1).
Não é só a população a apresentar uma tendência de concentração no litoral, o
mesmo aconteceu com o turismo. O turismo emergiu como actividade económica
relevante em Portugal na década de 60, quando operadores turísticos
estrangeiros descobriram o Algarve e o transformaram num destino privilegiado
para a classe média europeia. Os baixos custos (pelo reduzido custo da mão-de-
obra e dos preços face ao resto da Europa) transformaram-no num destino
acessível para turismo de sol e praia para os trabalhadores qualificados do
Reino Unido, da Alemanha e da França, entre outros, o que desencadeou um forte
crescimento da oferta. A abertura do Aeroporto Internacional de Faro, em 1965,
também contribuiu para transformar o Algarve num destino cada vez mais
procurado. A pressão acentuou-se quando os rendimentos das famílias portuguesas
cresceram e o turismo doméstico passou a representar uma fatia importante da
procura. A construção de infra-estruturas de apoio foi acontecendo de forma
desordenada, ao mesmo tempo desqualificando a oferta e alterando
significativamente a paisagem.
O turismo representa uma actividade económica relevante, quer na contribuição
para o PIB, quer como gerador de receitas e de emprego, mas o seu impacto
ambiental e social tem sido frequentemente esquecido (Davenport &
Davenport, 2006; Careto & Lima, 2007; Simpson, 2009; Claro & Pereira,
2009). O turismo massificado pode ter consequências disruptivas (e por vezes
irreversíveis) nos ecossistemas quer pela alteração do usos do solo que
implica, pelo aumento da poluição, do consumo de água, mas também pelo abandono
de actividades tradicionais, pela sua sazonalidade (com implicações nos
salários baixos e elevada precariedade do emprego) e pela, por vezes brutal,
alteração da paisagem com a transformação de pequenas vilas piscatórias em
áreas densamente construídas, onde com frequência no verão se ultrapassa a
capacidade de carga.
Apesar de estar a perder quota no mercado internacional, pelo aumento da
concorrência de destinos mais exóticos a preços acessíveis, o turismo continua
a ser uma actividade relevante na economia portuguesa e tem-se assistido mesmo
à transição de uma oferta baseada na quantidade e preços baixos para outra
baseada na qualidade. A maior parte dos Projectos de Interesse Nacional (PIN)
são na área do turismo e em segmentos de elevada qualidade: Da lista dos
projectos PIN de Outubro de 2008, verifica-se que são predominantes os
projectos de investimento no sector do turismo, com um valor próximo de 9 mil
milhões (64,2% do total destes projectos), localizados essencialmente em quatro
das regiões identificadas pelo Plano Estratégico Nacional de Turismo (PENT)
como prioritárias ' Algarve, Litoral Alentejano, Alqueva e Oeste (96%). (Claro
& Pereira, 2009: 53). Muitos deles vão localizar-se no litoral (como a
cidade lacustre Vilamoura XXI, que vai ocupar 850ha e oferecer 17500 camas) o
que implicará ou o aumento da pressão em áreas já sujeitas a elevada pressão ou
intervenção em ecossistemas e paisagens até agora preservadas.
No futuro próximo a evolução dos factores antrópicos de pressão será mista. No
caso da população, se por um lado se prevê um decréscimo e envelhecimento da
população portuguesa, esta continuará a concentrar-se preferencialmente no
litoral e a manter padrões insustentáveis de consumo. Se, por um lado, tem sido
observada uma melhoria na qualidade das águas balneares e redução dos
poluentes, em 2009 só 81% da população portuguesa tinha sistemas de tratamento
de águas residuais (APA, 2011). Em termos de ordenamento do território presta-
se maior atenção à especificidade das zonas costeiras, tem-se reforçado a
legislação e regulamentação de protecção e as normas impostas às actividades
económicas que se localizam nestas zonas. Mas apesar de artificialização das
zonas costeiras ser já elevada, considerando as classes de ocupação do solo, as
áreas artificiais cresceram 46% entre 1986 e 2006, prosseguindo a
impermeabilização do solo, tendo sido o tecido urbano descontínuo a componente
que mais contribuiu para esta evolução (Freire et al., 2009).
3. Metodologia
3.1. Delimitação e caracterização da área de estudo
Para a concretização do estudo, são tidos em conta alguns indicadores que
possibilitam a realização da caracterização da população, do edificado e do uso
e ocupação do solo.
Numa primeira fase, a análise abrange toda a linha de costa de Portugal
Continental, focando principalmente a densidade populacional (habitante por
km2) nos municípios com linha de costa bem como as zonas de erosão costeira, a
tipologia de costa, arriba, costa baixa ou costa arenosa, bem como o
posicionamento de situações críticas, cruzando informação censitária do ano
2001 do Instituto Nacional de Estatística (INE), com a informação do Programa
Finisterra, um programa de intervenção na orla costeira continental criado em
2003 com o objectivo de requalificar e reordenar a zona costeira. Partindo do
mapa de referência das situações problemáticas na orla costeira continental,
elaborado pelo Programa Finisterra, foi acrescentada informação actualizada
sobre a densidade populacional nos concelhos com linha de costa (ver Fig._1 no
ponto 2).
Nesta fase de maior abrangência geográfica, a delimitação das duas áreas de
estudo começa a ganhar contornos mais definidos, uma vez que nestas áreas
localizam-se um elevado número de situações críticas, convergindo com as mesmas
áreas geográficas onde se regista um maior valor de densidade populacional por
município.
Os três casos de estudo foram seleccionados com base em características
socioeconómicas e ambientais distintas, a partir de uma análise declustersna
qual foram consideradas variáveis de carácter "não-social" (medição
de zonas de segurança a partir de linhas de água, orografia ou zonas de menor
elevação por classes de altitude, e orla costeira por Nomenclaturas de Unidades
Territoriais - para fins Estatísticos III (NUTIII)), variáveis sociais
relacionadas com a população (volume e densidade populacionais, graus de
concentração urbana, alojamentos familiares, por ex.), e variáveis económicas e
ambientais (pessoal ao serviço de empresas, índice de poder de compra, infra-
estruturas de ambiente, recursos de saúde e de protecção civil, dinâmicas de
construção urbana, entre outras). As zonas costeiras continentais portuguesas
podem, assim, ser discriminadas em função de homogeneidades e diferenças
estruturais com base num conjunto de variáveis socioeconómicas e ambientais,
salientando-se a especificidade da região algarvia e a dinâmica das áreas
metropolitanas de Lisboa e Porto (Craveiro et al., 2009).
Deste modo, as 3 áreas seleccionadas recortam situações diferentes tanto do
ponto de vista ambiental como socioeconómico, sendo naturalmente a costa Norte,
por razões de dinâmica marítima e exposição aos ventos como por razões
geomorfológicas, mais exposta ao risco natural de erosão costeira. Um caso de
estudo recai sobre um troço no Norte de Portugal Continental, abrangendo
essencialmente o Município de Espinho, o Município de Almada, na sua frente
marítima e adjacente, constitui um segundo caso de estudo (Costa da Caparica) e
a Ilha de Faro, no Sul, o terceiro caso de estudo.
Neste artigo iremos abordar apenas dois deles, a Costa da Caparica e Espinho.
Desta forma, a área de estudo de Costa de Caparica é limitada a norte pelo
aglomerado populacional da Cova do Vapor, e a sul pelo limite da praia da Fonte
da Telha, enquanto a área de estudo de Espinho é limitada a norte por Aguda
(limite no Clube de Golfe de Miramar), e a sul por Paramos (até ao limite a sul
do Aero Clube da Costa Verde). Em comum às duas áreas de estudo, o limite
longitudinal corresponde a 500m na análise da Base Geográfica de Referenciação
da Informação (BGRI), coincidente com o domínio do Plano de Ordenamento da Orla
Costeira (POOC), e a 1km, na análise da Carta de Ocupação do Solo (COS), pelo
facto da distância anterior não representar uma significância relevante,
adoptando uma metodologia verificada noutros estudos semelhantes (Freire et
al., 2009).
O trecho costeiro de Espinho (localizado em costa arenosa), a sul do rio Douro,
é uma zona extremamente intervencionada e por isso a sua fisiografia resulta da
presença de diversas estruturas de protecção: desde o quebra-mar a norte, na
Aguda, passando pelos dois esporões na frente marítima da cidade de Espinho,
até ao campo esporões a sul, com início em Paramos que se concilia com defesa
longitudinal aderente. Já o trecho costeiro da Costa de Caparica (entre a Cova
do Vapor e a Fonte da Telha), é caracterizado por litoral baixo e arenoso, em
que a largura da planície costeira, entalada entre a arriba fóssil da Costa da
Caparica e o mar, se reduz progressivamente de norte para sul. Trata-se de uma
planície essencialmente constituída por areias de praia (Cancela et al., 2000),
compreendendo dunas litorais pouco expressivas nas zonas naturais. Inclui
também dunas frontais fixadas e estruturas de defesa costeira. Este trecho foi,
nos últimos 8 anos, alvo de numerosas intervenções, com vista à redução do
risco de erosão e melhoria das condições balneares: reabilitação do cordão
dunar, reparação e reforço da defesa frontal, reconstrução de esporões,
enchimento artificial (cerca de 2,5x106 m3 entre 2007 e 2009). Estas situações
mais críticas são também comuns para a zona da Costa da Caparica, em troços
mais vulneráveis (Praia de S. João e Fonte da Telha), como para a zona de
Espinho mais sujeita a uma taxa de erosão de maior expressão, taxa que pode
atingir um valor superior a três metros por ano (Careto & Lima, 2007: 132).
Assim, tanto Espinho como a Costa da Caparica experimentam uma larga tradição
de protecção costeira com a edificação de obras de defesa da orla costeira que
têm privilegiado intervenções tidas como duras ou intrusivas. Mais
recentemente, tem-se ensaiado outro tipo de intervenção, conjugando infra-
estruturas anteriores com a alimentação artificial das praias ou uma melhor
protecção dos respectivos sistemas dunares.
3.2. Ocupação do Solo
Na escala de análise de 1km ao longo da zona costeira, a partir da linha de
preia-mar, é considerado pertinente a análise de um outro indicador, conduzindo
à análise da COS. Esta informação, concebida pelo Instituto Geográfico
Português, refere-se à ocupação do solo, com uma unidade mínima de 1ha, sendo
produzida com base na interpretação visual de ortofotomapas, que dá origem a
uma nomenclatura com vários níveis de informação, que serão detalhados
posteriormente. A análise desta informação aborda dois anos, 1990 e 2007 (anos
para os quais existe informação disponível), mas coloca o problema de existirem
diferenças nas classes entre a COS de 2007 e a de 1990 (Caetano et al., 2009).
Foi assim criada uma tabela de compatibilidade (Tabela_1), fazendo uma
equiparação entre as classes de ambos os anos, assumindo-se as classes da
COS2007 como as guias e adaptando e agregando as classes da COS1990 às do
último ano em análise.
A COS2007 caracteriza a ocupação do solo em Portugal Continental com uma
nomenclatura hierárquica com 5 níveis, a priori e com 192 classes no seu nível
mais detalhado (Caetano, et al., 2008), sendo composta por 5 classes primárias
(primeiro nível da nomenclatura da COS): 1-Territórios artificializados, 2-
Áreas agrícolas e agro-florestais, 3-Florestas e meios naturais e seminaturais,
4-Zonas Húmidas, e 5-Corpos de água. Na tabela_1 são apresentadas as classes do
segundo nível da COS2007, tendo sido com base nessa nomenclatura que se
procedeu à cartografia da alteração da ocupação do solo nos dois casos de
estudo.
2.3. Indicadores de vulnerabilidade
Existem uma enorme diversidade de abordagens ao conceito vulnerabilidade
humana, mas mais do que conflituosas elas são consideradas complementares e
essenciais para o estudar na sua complexidade (Eakin & Luers, 2006; Miller,
et al., 2010).
Seguimos a perspectiva que entende a vulnerabilidade com uma construção social
e é assim função das condições sociais e das circunstâncias históricas que
colocam uma população em risco por exemplo, face a processos de erosão costeira
(Dolan & Walker, 2003). A vulnerabilidade é função de dois atributos, a
exposição e a capacidade para lidar com os processos de mudança; esta, por sua
vez, depende da resistência, ou capacidade para sofrer impactos e da
resiliência, ou seja, da capacidade para recuperar de perdas (cope capacity)
depois de um impacto (Turner et al., 2003; Eakin & Walser (2008).
Entende-se que as vulnerabilidades, na exposição a riscos ambientais, dizem
respeito a factores de ordem social (grupos mais vulneráveis ou mais expostos
pelas suas características, por factores de idade, menor mobilidade ou outra),
económica (actividades mais dependentes de um recurso ou localizações de
unidades produtivas em áreas de risco) e geofísica (O'Riordan, 2000: 165).
Grupos mais vulneráveis serão aqueles que pela sua posição social e geográfica
irão sofrer de forma desproporcionada os impactos negativos (Clark et al.,
1998).
Numa revisão de literatura de 128 artigos sobre riscos costeiros e
vulnerabilidade humana em países asiáticos os factores relacionados com a
demografia estavam entre os mais citados (Zou & Thomalla, 2008).
Geralmente, mais do que um factor contribui para uma situação de
vulnerabilidade, podendo factores de fragilidade institucional ou uma menor
percepção ou sensibilidade face ao risco, por parte das populações e de
decisores políticos, agravar as condições em que as comunidades humanas se
encontram expostas a eventos prejudiciais de origem natural ou mista.
Indicadores como a idade, género, raça, rendimento e recursos materiais,
ocupação, condições da habitação, características da família e redes sociais,
entre outros, podem ser utilizados para avaliar a vulnerabilidade social
(Clark, et al., 1998; Ferreira, 2006; McLaughlin et al., 2002; Nicolodi, 2010;
Wu et al., 2002; Dolan & Wallker, 2003; Cutter & Finch, 2007, Zou &
Thomalla, 2008). Duma forma mais geral, "a vulnerabilidade coloca em jogo
aspectos físicos, ambientais, técnicos, dados económicos, psicológicos,
sociais, políticos", não podendo ser totalmente "reduzida a índices
científicos ou técnicos" (Veyret, 2007: 40).
Os indicadores utilizados tiveram em conta os estudos referidos e a sua
disponibilidade nas estatísticas nacionais, tendo sido recolhidos na sua
maioria dos recenseamentos da população. A informação analisada na BGRI
corresponde ao censitário de 2001, uma vez que a do ano censitário de 2011,
ainda não estava disponibilizada, à data da realização do estudo, com o mesmo
nível de detalhe, contendo apenas valores agregados. Por conseguinte é
analisada informação ao nível da subsecção estatística (quarteirão), por várias
classes etárias dos indivíduos, famílias, alojamentos de acordo com a sua
tipologia e edifícios em consonância com a sua época de construção. Entre
vários indicadores calculados e analisados, destacam-se na elaboração deste
artigo a tipologia de alojamento, sazonal ou permanente, a idade de construção
do edificado, destacando a fase anterior e posterior a 1970, ano do primeiro
Relatório do Ordenamento do Território, que privilegia o desenvolvimento
económico e social sem ainda evidenciar, no entanto, preocupações relativamente
às questões ambientais (DGOTDU, 2007:2). Este limite temporal foi escolhido
tendo também em consideração que em 1974 as condições políticas, sociais e
económicas se alteraram em Portugal, esperando-se com o aumento do rendimento
das famílias maior acesso à habitação, para residência principal e secundária e
portanto uma maior pressão urbanística, nomeadamente nas zonas costeiras. O ano
de 1970 seria assim, em termos estatísticos, aquele que poderia definir o
momento antes e depois da Revolução de 1974 permitindo perceber se aumentou, ou
não, a pressão urbanística. Em termos demográficos considerámos uma das classes
que apresenta uma maior vulnerabilidade, a terceira idade, levando à análise da
percentagem da população com idade igual ou superior a 65 anos, tendo em conta
o total da população residente na mesma subsecção estatística.
A elaboração do indicador de vulnerabilidade realizou-se conjugando informação
socioeconómica, atribuindo ponderações a cada variável, com base na revisão de
literatura e no processo de análise hierárquica (Saaty, 2008) numa tentativa de
fazer uma aproximação a um índice de vulnerabilidade social robusto. Para a
construção do índice são tidos em conta indicadores que traduzam os grupos
sociais mais vulneráveis, de forma a que o índice represente geograficamente
estas vulnerabilidades.
Elegeram-se sete variáveis socioeconómicas calculadas a partir da BGRI,
atribuindo uma percentagem a cada uma de maneira a executar a sobreposição
ponderada, levada a cabo a partir do recurso aos Sistemas de Informação
Geográfica (SIG). As variáveis e respectivas ponderações foram: índice de
envelhecimento (5%), taxa de desemprego da população (25%), taxa de população
activa (15%), taxa de população com 65 ou mais anos (5%), percentagem de
alojamentos sem pelo menos uma infra-estrutura básica (10%), índice de
dependência total (30%), e número de edifícios construídos até 1970 (10%).
4. Resultados e Discussão
4.1. Alterações no uso do solo
Numa primeira imagem de conjunto agregando a informação dos dois casos de
estudo depreende-se que os territórios artificializados são os que mais crescem
neste período, não tanto por causa do tecido urbano em si, mas mais pelo
crescimento da área ocupada por espaços verdes, equipamentos desportivos e de
lazer, indústria e comércio e infra-estruturas de mobilidade. E isso acontece à
custa da redução de área ocupada por culturas temporárias, de agricultura mista
e da área florestal (Figura_2).
A faixa costeira de Espinho é mais intensamente urbanizada do que a da Costa da
Caparica e ainda assim continua a densificar-se. Na verdade, o Plano Regional
de Ordenamento do Território do Norte (PROT-Norte) refere que os territórios
artificializados cresceram nesta região, ente 1985 e 2000, 48%, ou seja acima
da média do país, de 42% e sobretudo em resultado de um padrão de urbanização
difuso mas que resultou também numa densa ocupação humana nas zonas costeiras.
Um outro estudo que utilizou a informação da Corine Land Cover (CLC) mostrou
que a artificialização do solo no primeiro quilómetro a partir da linha de
costa era, em 2000, mais elevado na Região Norte (41%), apesar de ter tido o
maior crescimento no Algarve desde 1990 (Freire, et al., 2009). A proximidade à
linha de costa sujeita as populações e as actividades económicas a maior
vulnerabilidade tendo em conta a situação de recuo dessa linha (Partidário, et
al., 2009:42) pelo que se propõe Contribuir para a desconcentração urbana nas
zonas costeiras, em articulação com o POOC de Caminha-Espinho, nomeadamente
através do estabelecimento de alternativas estratégicas à pressão urbanística
nestas zonas. Desenvolver, em articulação com o POOC Caminha-Espinho, um
sistema de qualificação das praias consideradas estratégicas por motivos
ambientais ou turísticos, definindo critérios de ocupação sustentável nas suas
envolventes (Partidário et al., 2009:180).
A progressão das áreas artificializadas é visível em ambos os casos entre 1990
e 2007, (figuras 3 e 4) e isso acontece em resultado de 3 processos:
preenchimento de interstícios ainda não ocupados em áreas já bastante
artificializadas; abertura de novos processos de urbanização em áreas ainda
não artificializadas; e prolongamento, ao longo da linha de costa, para norte e
para sul, de áreas já urbanizadas.
A primeira situação é mais evidente em Espinho, o que confere a esta mancha
urbana ainda maior densidade pela expansão à custa do desaparecimento de
pequenas áreas de cultura temporária, incapazes de competir com a pressão
imobiliária decorrente da procura de residências secundárias.
Na costa da Caparica essa área de culturas temporárias (Terras da Costa), que
se situa entre a mancha urbana e a arriba fóssil, apesar de pressionada pela
expansão urbana, parece estar a resistir melhor ao avanço da construção.
Parte da situação de caos urbanístico e de degradação dos recursos ambientais
da Costa da Caparica também decorre das excelentes condições de oferta balnear
e da sua proximidade e a boa acessibilidade à Área Metropolitana de Lisboa
(AML) que a transformaram numa área privilegiada de lazer tanto para a
população da margem norte, em especial após a construção da Ponte 25 de Abril,
em 1966, como para a da margem sul. O período de maior crescimento populacional
ocorreu na década de 70 e correspondeu também ao período de maior aumento da
construção de fogos (legal e clandestina), e de parques de campismo para
residência fixa e secundária (Plano Estratégico do Polis da Costa da Caparica,
2001). Nessa década a urbanização ocorreu entre o núcleo antigo (edifícios
predominantemente construídos até à década de 70) e a linha de costa que passa
a ser densamente urbanizada. Em 2007, a sul da Costa da Caparica é evidente o
crescimento do tecido urbano na Fonte da Telha e, a norte, a abertura de uma
nova frente urbana com a urbanização de São João.
Pela sua excelência em termos de oferta balnear e pela necessidade de preservar
o ambiente natural a Costa da Caparica mereceu um programa de requalificação
urbana e ambiental, nomeadamente para valorização das praias e da frente urbana
litoral, no contexto do Programa Polis, do Ministério das Cidades, Ordenamento
do Território e Ambiente. Embora não totalmente concluído (2001- 2009) as
intervenções realizadas no âmbito deste programa contribuíram para valorizar a
Costa da Caparica e oferecer mais qualidade de vida aos residentes e de fruição
aos turistas. Com responsabilidade do Instituto da Água (INAG) foram também
aprovadas 3 fases de alimentação artificial das praias urbanas da costa da
Caparica e de São João. O projecto teve início em 2007 e desde essa altura já
foram colocados vários milhões de metros cúbicos de areia nestas praias mas a
intervenção de 2011 não chegou acontecer.
Estas variações de uso do solo, no sentido da artificialização (para habitação
e lazer, para zonas de serviços e novos espaços industriais ou para infra-
estruturas de apoio à mobilidade) que ocorrem num curto intervalo de tempo e a
poucos metros da orla costeira, mais reforçam as questões da resiliência e da
aprendizagem no âmbito de se encontrarem soluções sustentáveis, e respostas
políticas adequadas, face ao risco de erosão costeira. A existência de
múltiplas entidades com responsabilidades, nem sempre excludentes, sobre a
gestão das zonas costeiras, desde o nível local às autoridades nacionais, o
excessivo academismo na formatação de políticas com a subsequente subestimação
das potencialidades da participação pública, e perda de inter-perspectivas
derivadas das percepções científicas e das percepções comuns sobre os riscos
ambientais traduzem-se em menor capacidade adaptativa, menor reanimação dos
processos de decisão e menor eficácia na reorganização das respostas
institucionais às ameaças ambientais, o que se traduz, em poucas palavras, na
reprodução de um sistema sócio ecológico pouco resiliente (Miller et al.,
2008).
4.2. Vulnerabilidade social da população residente em áreas sujeitas a
processos de erosão costeira
Uma primeira aproximação à análise das vulnerabilidades sociais e territoriais
foi ensaiada, tendo em conta a escala dos casos de estudo, por área de costa e
um zonamento de cerca de 500 metros para o interior, tal como referido na
explicação metodológica. Mas deve desenvolver-se para além dos indicadores de
caracterização dos territórios de risco passando a envolver também as
racionalidades socioeconómicas que os preenchem, a própria percepção do risco
de uma série de actores sociais e os mecanismos políticos de protecção civil e
de accionamento das políticas ambientais. Como introdução à questão das
vulnerabilidades, nas 2 áreas de estudo, optou-se por georreferenciar algumas
variáveis censitárias que dizem respeito a dimensões fulcrais da exposição
humana aos riscos ambientais: características da população, do espaço
humanizado e dos seus usos. Com base na unidade habitação, neste nível de
análise, relaciona-se uma população mais idosa (com 65 ou mais anos de idade)
com residências de construção mais antiga e usos do edificado (para fins
habituais ou sazonais de residência), tendo-se também recorrido a outras
variáveis disponíveis para a escala do quarteirão. A título de exemplo, os
dados mostram a discriminação da população idosa e as zonas onde é mais
abundante, residindo em zonas extremamente sensíveis ao risco de erosão e nos
edifícios mais antigos, construídos maioritariamente antes de 1970, o que é bem
notório tanto em Espinho como na Costa da Caparica. Em ambos os núcleos urbanos
a população é bastante envelhecida, em alguns quarteirões a população com 65 ou
mais anos representa entre 40% a 60%, chegando em alguns quarteirões a
representar mais de 80%.
A sobreposição ponderada das 7 variáveis socioeconómicas de caracterização da
população residente permitiu obter uma primeira imagem do grau de
vulnerabilidade social da população residente na Costa da Caparica e em Espinho
que deverá, posteriormente, ser complementado com indicadores de
vulnerabilidade física e avaliação de risco desenvolvidos por outros estudos
(Ferreira, 2006) (Figura_5 e Figura_6).
As vulnerabilidades atrás referidas interagem com a noção de risco e esta está
relacionada com uma percepção elementar do perigo que se encontra associado a
algo que se desconhece. Vários autores assinalam uma diminuição do risco
percebido como resultado da exposição continuada a situações de perigo que não
têm trazido, por casualidade, consequências visíveis, de modo repetitivo
(Halpern-Felsher et al., 2001; Silva & Lima, 1997). Em Portugal, os estudos
sobre as questões ambientais publicados nos últimos anos indicam que também há
uma aparente diminuição da percepção do risco como resultado de uma
insensibilização com origem na exposição continuada a situações de risco (Lima,
2004).
A vulnerabilidade está igualmente relacionada com a capacidade dos actores
sociais para lidar com processos de mudança, para se organizarem e encontrar
soluções, preferencialmente colectivas, gerirem potenciais conflitos, ou seja,
para criar as condições para uma gestão sustentável dos riscos ambientais. Por
gestão sustentável dos riscos ambientais entende-se uma forma de governação dos
territórios de modo a encontrar um equilíbrio de longo prazo entre os factores
de desenvolvimento socioeconómico das populações e a mitigação das ameaças da
escassez ambiental ou dos eventos extremos, devendo-se atender ao potencial
intrínseco do conflito (Craveiro, 2007: 124). A questão do conflito recoloca,
aliás, a questão da eficácia do Estado numa nova ordem política conjugada com a
governação ou a participação activa dos cidadãos e dos seus grupos de interesse
(Bredariol e Vieira, 2006: 33), devendo assim a participação pública integrar
os processos de gestão sustentável dos riscos.
O entendimento que os residentes têm dos processos de erosão costeira será
aferida com recurso a uma classificação de conteúdos resultantes da
participação do público em instrumentos de ordenamento do território para a
protecção e valorização das zonas costeiras. Os relatórios de participação
pública na discussão dos POOC discriminam os agentes que participaram, a título
individual ou institucional, sendo interessante confrontar os tipos de
argumentação desenvolvida pelos diversos agentes. Mas fundamentalmente a
consulta dos POOC sustentou a selecção de interlocutores privilegiados e
forneceu uma primeira aproximação ao sistema de actores, dando a perceber a
valorização das questões geradoras de conflito ou consenso e o número e
natureza das instituições envolvidas, como do tipo de questões que os
particulares apresentaram de forma nominal. O projecto RENCOASTAL privilegia a
realização de entrevistas exploratórias e outras técnicas de auscultação
directa das populações ou grupos vulneráveis (sessões com grupos focais) e a
inquirição por frentes marítimas urbanas, em zonas de risco.
Foram, assim, realizadas entrevistas a um sistema de actores, residentes,
representantes de interesses específicos, gestores e decisores sobre os
diferentes tipos de intervenção (intrusivas ou colaborativas) para a defesa das
zonas costeiras e das actividades humanas nelas situadas. Entre Julho e
Setembro do ano de 2011 realizaram-se 25 entrevistas exploratórias, envolvendo
essencialmente a Costa da Caparica e 2 em Espinho, ao Presidente da Câmara
Municipal e ao Presidente da Junta de Freguesia de Paramos. A maior incidência
na Costa da Caparica prende-se com o facto de se constituir como palco
privilegiado de conflitos (a propósito dos Parques de Campismo e das recentes
intervenções de valorização urbana e de protecção costeira, prevendo-se a
deslocalização dos referidos Parques e tendo-se consolidado uma ocupação do
sector da hotelaria e restauração, assim como a inibição de aspectos
tradicionais associados à arte xávega de tracção motora, em plena praia, de
redes de pesca). Auscultaram-se 23 entidades na Costa da Caparica (destacando-
se associações ligadas a actividades empresariais da restauração, com 6
entrevistas, e entidades de representação política ou autoridades locais,
igualmente com 6 entrevistas, mais 4 entrevistas a dirigentes de associações de
surf e campismo, 3 a associações de moradores, 1 a sindicato de pescadores e 2
a associações de interesses culturais sobre a defesa das tradições locais,
sobretudo com a protecção da arte xávega e do tipo de construção de apoio à
actividade da pesca). As restantes entrevistas serviram como pontos de aferição
para os outros casos de estudo, prevendo-se para breve contactos mais
intensivos em Faro e Espinho, no sentido de explorar a realização de reuniões
com pescadores (grupos focais), como na Costa da Caparica.
As entrevistas exploratórias incidem sobre temas gerais, sobre as causas e
consequências da erosão costeira, e algumas questões específicas sobre a
identificação das zonas de risco na Costa da Caparica e a equidade na
distribuição dos custos e medidas adaptativas. Os resultados auxiliam, neste
momento, a estruturação de um inquérito a lançar em frentes marítimas
urbanizadas nos casos de estudo, e extraem-se questões críticas para a reunião
com os grupos focais. O guião da entrevista discrimina-se em perguntas sobre a
evolução da linha da costa (percepção da erosão costeira ao longo dos anos e
eventos danosos), causas e consequências, assim como uma avaliação social sobre
medidas de protecção, papel das entidades envolvidas e os valores ou interesses
a proteger.
Uma das questões gerais sobre a percepção das causas ("em seu entender
quais são as principais causas da erosão costeira?") indicia um fraco
conhecimento sobre as mesmas, atribuindo-se a responsabilidade ao mar, e ao seu
cíclico comportamento ("Sempre existiram maresias e temporais, o mar
entrava pela terra porque não havia nada para o suster, por essa razão foi
feita a muralha", conforme avança um representante de pescadores na Costa
da Caparica ou, de acordo com as palavras de um dirigente de uma associação em
defesa da arte xávega e dos chamados palheiros dos pescadores, "Somos
casas de praia, não de campo nem de cidade. Quando falamos em recuar queremos
dizer recuar a distância necessária para estarmos salvaguardados do avanço do
mar. Que para nós nunca foi preocupação [o avanço do mar] porque já estamos
habituados").
Relativamente a causas antrópicas, é abundantemente referido no local, pelos
pescadores e associações de interesses culturais, a extracção de areias entre a
Trafaria e o Bugio, o que segundo a opinião recolhida veio agravar a
vulnerabilidade da Costa da Caparica à agitação marítima, embora o mar continue
sempre a ser o principal agente responsável ("tínhamos uma grande ilha de
areia, mas com as obras da Expo e com as obras feitas em Oeiras [ ]",
representante dos pescadores). Outra causa antrópica referida é a construção em
altura e a ocupação urbana sobre a orla costeira, o que se entende pela
oposição entre um estilo de vida mais tradicional e comunitário e o destino das
zonas costeiras, objecto de férias massivas e lugar adensado por novas
construções urbanas ("Nós como pescadores acreditamos que a construção
pesada dá origem à erosão, porque a Sul da costa da Caparica, temos as dunas e
as praias praticamente intactas, e aí não houve construção pesada", mesmo
dirigente de pescadores).
Relativamente às consequências é quase sempre referido o recuo das áreas de
praia, mas não a inundação de zonas habitacionais consolidadas, uma vez que tem
competido às entidades estatais a protecção de pessoas e bens,custe o que
custar, defendendo-se a solução extrema do amuralhamento, onde for necessário,
como em frente à zona mais densamente urbanizada. Contudo, os pescadores
criticam a edificação sobre a "muralha", com "bunkers",
numa alusão clara aos novos restaurantes da linha da Costa da Caparica, e
acentuam mais uma vez a relação, apesar de espúria, entre a construção urbana e
a erosão costeira (a retenção de sedimentos, por obras hidráulicas ao longo do
leito dos rios, tem contribuído muito mais para a erosão costeira, enquanto
causa provocada pela acção humana;a construção humana representa, mais, um
sinal de vulnerabilidade e de exposição ao risco que um factor de causa).
Por seu turno, proprietários da restauração argumentam em favor da valorização
urbana da Costa, como tem acontecido, salvo no que diz respeito à questão do
areal que devia merecer uma maior alimentação artificial, para se evitarem
"comentários negativos" de quem visita a Caparica (como referido
por um proprietário de um dos novos restaurantes). Regista-se, aqui, a potência
conflitual entre interesses, e entre formas de ocupação do território (entre
casas antigas de pescadores, sobretudo na Fonte da Telha, mais a ocupação a
Norte para campismo e as novas construções para restauração, sobre a muralha, e
as novas unidades hoteleiras). Está também em causa um sentido de equidade
ambiental na distribuição dos danos e custos derivados da erosão costeira e das
medidas de protecção. Neste sentido, a actividade de campismo parece claramente
prejudicada ("O paredão está mesmo a ceder, não vai aguentar muito mais
tempo [ ], estamos preocupados porque, mesmo em frente ao Parque, a água chega
lá de certeza nas marés vivas; Em Novembro passado [2010] a água entrou, um
pouco no parque pela primeira vez": dirigente de Parque de Campismo).
Também a actividade da pesca, por escassez de praia (as redes costumavam ser
arrastadas para terra com tractores na praia ou tracção animal) e proibições
sucessivas sobre essas práticas se sente afectada.
Contudo, quanto à urgência de protecção não se detectam dissensões locais,
antes a percepção unânime (por parte dos representantes de interesses
económicos ou culturais) que compete ao Estado tomar medidas, embora o sentido
dessas medidas deva estar conformado à defesa das ocupações e actividades
existentes. A visão de responsáveis políticos mais próximos das populações
(representantes de Juntas de Freguesia) não difere destas apreciações gerais.
Segundo um dos autarcas locais, "Existe um recuo de costa efectivo, e
existe outra coisa que é a subida de nível dos Oceanos, e estas duas coisas em
conjunto são explosivas. Ou se entra por uma defesa costeira pura e dura, ou
então estamos sujeitos a que a resistência que será oferecida à violência do
mar seja de curta duração".
Apenas dirigentes de organismos do poder central desenvolvem uma apreciação
menos comprometida com as expectativas locais, e uma valorização ambiental que,
em último recurso, apela directamente à contribuição das populações locais, não
se inibindo de se defender uma taxa de litoralização ou a proibição de novas
construções. Por seu lado,os representantes de interesses locais ou de
associações culturais rejeitam custear soluções adaptativas, cabendo essa
tarefa às entidades centrais.
No entanto, o número total das entrevistas realizadas não é suficiente para
estruturar oposições mais vincadas, constituindo-se como uma primeira
aproximação aos actores no terreno e ferramenta de extracção de questões
críticas para as fases de inquirição que estão em preparação. Estas questões
críticas reportam-se aos modelos de desenvolvimento urbano e ao balanço entre
os factores ambientais e os interesses locais. Estes interesses locais
argumentam pela defesa intransigente de medidas adaptativas que impliquem a não
cessação de actividades e a permanência da ocupação urbana. A valorização
destes factores sociais contraria soluções adaptativas que envolvam a
relocalização de actividades e o recuo de formas de ocupação, como no caso das
ocupações amovíveis e construções com materiais menos resistentes (Parques de
Campismo e palheiros), denotando-se já aqui a presença de uma conflitualidade
aberta com recurso à judicialização dos direitos de uso e ocupação adquiridos.
Estão em causa, assim, apreciações de ordem social associadas à equidade
ambiental, pois as intervenções levadas a cabo no território acabam por
favorecer unse afectar negativamente outros. Este sentimento de desigualdade em
relação à distribuição dos custos ambientais e alterações programadas de uso e
ocupação dos territórios é, como ilustrado atrás, mais marcante entre ocupações
menos estruturantes e actividades menos pesadas e as outras actividades que se
julgam promovidas pelas políticas urbanas e formas de protecção costeira (novos
locais de restauração sobre estrutura de protecção, maior segurança contra
inundações para zonas urbanas consolidadas).
Estas considerações não são extrapoláveis para os outros casos de estudo
(Espinho e Faro), mas suportam uma análise dos conflitos ambientais baseada no
antagonismo de interesses e na percepção dos impactos sociais das alterações
das condições ambientais assim como das medidas de protecção costeira. Apenas o
aprofundamento dos momentos de inquirição e do contacto directo com grupos
locais pode (melhor) fundamentar que a agudização dos conflitos ambientais
resulta da sobreposição entre vulnerabilidades sociais e desfavorecimentos
ambientais, como consequência quer da agitação marítima e recuo da linha da
costa quer como produto das opções adaptativas que, eventualmente, valorizam
(ou acabam por valorizar numa primeira fase) os aspectos económicos ligados ao
turismo e a segurança das ocupações urbanas mais densas e consolidadas em
detrimento de ocupações amovíveis e actividades do sector primário. Deste modo,
é igualmente importante, para o projecto em curso, aprofundar a metodologia da
construção estatística de índices de vulnerabilidade, jogando com diversos
factores sociais, geomorfológicos e da agitação marítima, incluindo-se
igualmente como factor de ponderação a percepção social do risco. Neste caso, e
como resultado das entrevistas exploratórias, a indisponibilidade dos grupos
locais para o custeamento de soluções adaptativas e de protecção costeira deve
ser entendida como indicador de vulnerabilidade social, entre outros associados
a ocupações territoriais e condições habitacionais.
Conclusões
As comunidades abrangidas pelo projecto são potencialmente vulneráveis às
consequências da erosão costeira não só porque vivem em áreas onde estes
processos de erosão estão activos mas também pelas formas de ocupação humana e
dependência das actividades face a condições de amenidade ambiental. Apela-se,
de forma geral, a uma forte intervenção do Estado no desenvolvimento de medidas
de protecção da orla costeira, solicitando um tipo de intervenção pesado por
parte da engenharia civil, em desfavor de outros investimentos ou opções
adaptativas. No entanto, a crise económica actual pode conduzir à não
disponibilização de verbas e ao adiar de soluções. A erosão costeira
caracteriza-se por ser um risco gradual e progressivo, exigindo que se adoptem
medidas mitigadoras (o recuo das formas de ocupação humana é uma medida
possível) e não apenas adaptativas, de reforço de estruturas pesadas de
protecção ou de reparação dos danos. Aliás, crê-se que os custos reparadores
serão extremamente mais elevados, tendo em conta que a remediação dos danos é
mais onerosa que o desenvolvimento de acções preventivas.
Há, contudo, que conciliar interesses sociais e dependências ambientais,
requerendo-se mecanismos de auscultação social e a identificação de
vulnerabilidades. As políticas de ordenamento do território são mais sensíveis
à gestão dos riscos naturais e induzidos, enquanto certamente se densificam
regulamentações técnicas na senda de alertas sobre as alterações climáticas e
os riscos ambientais, mas o carácter potencial dos conflitos ambientais não
deve ser subestimado
Refira-se que um dos objectivos do projecto é não apenas o estudo dos
conflitos, e das formas de regulação ambiental, mas também contribuir para o
desenvolvimento de uma maior sensibilidade ambiental, através da ponderação de
factores de vulnerabilidade, e reuniões com grupos sociais e responsáveis por
interesses locais. Crê-se que a sustentabilidade e a resiliência das zonas
costeiras não dispensam a percepção do risco pelas populações, mas a questão
essencial parece prender-se com a equidade ambiental e os impactos sociais das
medidas a adoptar Outra questão a explorar nos próximos momentos de inquirição,
como com maior pormenor na ponderação de factores para a construção de índices
de vulnerabilidade, diz respeito ao confronto de soluções mitigadoras e
adaptativas, entre perspectivas de intervenção mais pesada ou menos intrusiva.
O risco de erosão costeira caracteriza-se por uma acção combinada, entre
factores naturais e sociais, de exposição humana gradual e progressiva,
registando-se um importante diferimento entre as causas (múltiplas e dispersas
no espaço e no tempo) e a visibilidade dos danos. Este diferimento dificulta
também, por um lado, uma assunção mais clara da consciência do risco, e do
sentido da responsabilidade humana. Por outro, o acentuar de factores de
incerteza sobre alterações climáticas e soluções futuras parece desfavorecer
investimentos mais urgentes, e debates mais alargados sobre as formas de
prevenção e protecção da orla costeira.
Finalmente, parece ainda ressaltar uma forte correlação entre os interesses
sociais defendidos, na dependência das suas localizações no território, e os
argumentos invocados. Deste modo, embora os conflitos ambientais se expressem
por novos factores de desigualdade e não estruturem, necessariamente, uma
oposição inter-classista (uma vez que a dependência ambiental das actividades é
determinante por sobre as posições socialmente estratificadas), estes conflitos
reproduzem ainda o estafado argumento clássico (o ser determina a consciência)
que associa intimamente a experiência dos actores sociais ao seu tipo de
discurso e acção.
A exploração das dependências ambientais e da percepção do risco devem
igualmente pesar na construção de índices de vulnerabilidade, para além das
variáveis tradicionais ligadas a condições sociais ou demográficas, assim como
a existência de estruturas de protecção costeira. A experiência dos actores
reflecte-se também na percepção do risco e deve condicionar a posição face a
medidas de prevenção e protecção, dimensões que merecem uma melhor exploração
no âmbito do projecto.
Ressalve-se, ainda, que a erosão costeira e, duma forma geral, a
sustentabilidade das formas de humanização dos territórios reforçam elementos
de incerteza perante um futuro que permanece, em si, indeterminado. Acentuam-
se, pois, dimensões de conflito associadas à disputa dos factores de
favorecimento e à visibilidade imediata das formas de protecção face aos riscos
ambientais, com recurso a intervenções pesadas que são as que melhor sufragam o
sentimento de segurança.