Alterações Climáticas, Perceções e Racionalidades
1. Introdução
Num mundo em plena transição demográfica, que se perspetiva que em 2050 venha a
ter cerca de 9 mil milhões de seres humanos (UN, 2013), as questões da
sustentabilidade, do uso, da escassez e da partilha de recursos entretecem-se
pelas arenas mundiais, regionais e locais.
Este trabalho desenvolve-se à luz das teorias compreensivas (Weber, 2014), no
sentido em que não procuramos explicar a causalidade da ação social dos
agentes, nem buscar leis da regularidade do funcionamento social. Procuramos a
compreensão dos sentidos da ação social (Guerra, 2006). Os procedimentos
metodológicos baseiam-se na pesquisa documental e a todo o trabalho subjazem a
noção reflexiva e a omnipresente complexidade hodierna. O ânimo desta abordagem
de charneira é o interesse pelo conhecimento, a curiosidade pelas diferentes
dimensões dos saberes e de como estes se (re)produzem, se articulam e se
refletem nas relações do Humano, consigo próprio, com o Outro, com os Outros
Seres e com o Ambiente.
No presente artigo, começamos, na primeira parte, por uma breve referência a
implicações éticas, antecedida de uma aproximação às principais dinâmicas e
processos considerados responsáveis pela variabilidade e pelas alterações
climáticas.
Na segunda parte, abordaremos algumas das questões da sustentabilidade, fazendo
uma breve introdução aos percursos e às estratégias de mitigação das alterações
climáticas e de adaptação a essas mesmas alterações que têm vindo a ser
traçados e que se perspetivam, interligando o global ao local, os governos aos
mercados e à sociedade civil.
Finalmente, e com foco nas racionalidades leigas (e.g., Alves, 2011),
buscaremos uma breve aproximação a questões da reflexividade, do capital social
(e.g.,Fukuyama, 1999) e dos saberes-poderes (Foucault, 1992), tendo em mente
que o estudo de uma realidade social, intrinsecamente complexa, é um exercício,
sempre (des)construído, de dialética entre generalização e especialização.
2. Da Variabilidade Climática
2.1. Das Dinâmicas Naturais
O conhecimento científico atual permite saber, embora com as incertezas
inerentes à Ciência, como é que a Terra se formou e como evoluiu ao longo de
alguns milhares de milhões de anos, até adquirir as características que hoje a
tipificam. Há, principalmente duas características que, tanto quanto sabemos,
tornam a Terra única no contexto do sistema solar e, porventura, do galáxico
ou, mesmo, do cósmico: água abundante no estado líquido e vida diversificada.
Acredita-se que o desenvolvimento da vida só foi possível devido à existência
de água no estado líquido, pelo que se pode concluir que o principal elemento
diferenciador do planeta Terra é a água. Aproximadamente 71% da superfície
terrestre está coberta de água, o que, vista do espaço, lhe confere uma
tonalidade geral azulada, razão por que, com frequência, é apelidada de
Planeta Azul.
É muito provável que existisse uma quantidade apreciável de água no material
que formou a Terra (e.g.,Morbidelli et al., 2000; Drake, 2005), há pouco mais
de 4,5 mil milhões de anos (Ma) (e.g.,Nisbet & Sleep, 2001). Possivelmente,
a água líquida ocorria já à superfície uns 50 Ma após as fases principais de
acreção construtiva da Terra (Pinti, 2005), sendo provável que a intensa
condensação do vapor de água atmosférico tenha produzido fortíssimas
precipitações, da ordem de 7 000 mm/ano, o que conduziu à formação muito rápida
(talvez menos de um milhar de anos) dos oceanos (Abe, 1993). Todavia, até há
cerca de 4 mil Ma, impactos meteoríticos ocasionais provocavam aquecimento dos
oceanos então existentes, esterilizando-os (Nisbet & Sleep, 2001). As mais
antigas rochas sedimentares marinhas encontradas até agora (e que, portanto,
conseguiram sobreviver aos intensos episódios tectónicos e metamórficos por que
passaram) são as de Akilia, na Groenlândia Ocidental, datada de há uns 3,86 mil
Ma (Nutman et al., 1996), e de Isua, no Sudoeste da Groenlândia, com 3,7 mil Ma
(Rosing et al., 1996).
Embora se considere que a vida na Terra existe desde antes de 3,8 mil Ma (e.g.,
Nisbet & Sleep, 2001; Schidlowski, 1988), a escassa biosfera então
existente seria constituída por extremófilos, possivelmente hipertermófilos
(e.g.,Schidlowski, 1988; Rothschild & Mancinelli, 2001), que talvez
vivessem junto a exsudações hidrotermais oceânicas e que, por vezes, seriam
destruídos devido a impactos meteoríticos. Os primeiros indícios seguros
existentes indicam que, há 3,5 mil milhões de anos, a vida era já relativamente
comum no planeta Terra (e.g., Nisbet & Sleep, 2001; Schopf, 2006; Schopf et
al., 2007; Lyons et al., 2014), ou seja, pode considerar-se essa a idade da
biosfera terrestre (ainda que, na altura, fosse constituída apenas por
organismos rudimentares).
Os organismos fotossintéticos surgiram há mais de 2,8 mil Ma (e.g.,Des Marais,
2000). Porém, a grande maioria do oxigénio libertado para a atmosfera pela
fotossíntese era consumido pela oxidação de materiais, designadamente o ferro.
Por isso, as formações com camadas vermelhas, devido à presença de ferro
oxidado, são características desta época. Com a passagem do tempo e o aumento
da libertação de oxigénio para a atmosfera pelos organismos fotossintéticos, a
quantidade de oxigénio livre ampliou-se bastante, excedendo, a certa altura, a
capacidade de absorção por materiais em estado reduzido. Há cerca de 2,3 mil Ma
verificou-se um expressivo aumento de oxigénio atmosférico, evento esse que
normalmente é conhecido pela designação de primeiro GOE (Great Oxidation Event
ou Grande Evento de Oxigenação) (e.g.,Falkowski, 2006; Guo et al., 2009; Crowe
et al., 2013), passando a atmosfera a ter características oxidantes.
Possivelmente, nesta produção intensa de oxigénio estiveram já envolvidos
organismos eucariotas complexos (Nisbet & Sleep, 2001). A formação de uma
atmosfera oxigenada foi catastrófica para a maior parte dos organismos então
existentes, anaeróbicos, para os quais o oxigénio era letal. Em compensação,
começaram a surgir os orga-nismos aeróbicos, que acabariam por evoluir para a
vida tal como a conhecemos.
À medida que as moléculas de oxigénio foram atingindo níveis mais elevados da
atmosfera, foi-se progressivamente criando uma fina camada enriquecida em
ozono. Com efeito, na estratosfera, a energia da radiação ultravioleta (UV) do
Sol cinde as moléculas de oxigénio (O2) em átomos individuais (O), que,
combinando-se com outras moléculas de oxigénio, formam moléculas de ozono (O3),
muito eficazes na absorção de UV, constituindo-se, assim, uma fina camada que
funciona como escudo, protegendo o planeta desta radiação, com comprimentos de
onda de 200 a 300 nanómetros (nm) e que é biologicamente letal. A construção
progressiva desta camada protetora de ozono, a partir de há uns 2 mil Ma (e.g.,
Glikson, 2014; Maruyamab et al., 2014) ou mesmo antes, talvez há cerca de 2,6
Ma (Watanabe et al., 2000; Cockell & Raven, 2007), juntamente com o
enriquecimento da atmosfera em oxigénio, permitiu que as formas de vida
migrassem até às camadas superficiais do oceano, viabilizando a proliferação do
fitoplâncton, sendo mesmo possível que, nessa altura, tivessem ocorrido as
primeiras tentativas de colonização de áreas emersas (Cockell & Raven,
2007).
Há cerca de mil Ma ocorreu outro GOE, normalmente conhecido por Evento
Neoproterozoico de Oxigenação (e.g.,Ward et al., 2006; Shields-Zhou & Och,
2010), que, progressivamente, criou condições para que, mais tarde, com início
há cerca de 600 Ma, se verificasse o aparecimento de forma complexas de vida,
cuja explosão se verificou no Câmbrico, há cerca de 541 (e.g., Marshall,
2006; Butterfield, 2007; Baudouin-Cornu & Thomas, 2007). Depois dessa
altura, o oxigénio atmosférico continuou a ser um fator determinante na
progressiva adaptação da vida, nomeadamente dos artrópodes e vertebrados, aos
ambientes terrestres (e.g.,Ward et al., 2006; Baudouin-Cornu & Thomas,
2007).
Após o Câmbrico, a composição da atmosfera nunca mais sofreu variações
extremas, embora as quantidades relativas dos seus componentes tenham conhecido
variações notáveis em função de um conjunto complexo de fatores, entre os
quais, as glaciações, a geometria dos continentes, as erupções vulcânicas, as
áreas cobertas por vegetação e os impactos meteoríticos. Por exemplo, o
oxigénio variou, desde há 300 Ma até à actualidade, entre cerca de 30% e de
11%, sendo actualmente de 21%, e o anidrido carbónico (CO2) entre umas 300 ppm
(partes por milhão) e cerca de 4000 ppm, sendo atualmente 397 ppm (e.g.,Dudley,
1998; Ghosha et al., 2001; Came et al., 2006). Possivelmente, estas varia-ções
no conteúdo atmosférico em oxigénio foram determinantes nas vicissitudes por
que a vida passou na longa história da Terra. Por exemplo, a ocupação relevante
de ambientes terrestres parece ter ocorrido apenas quando a percentagem de O2
na atmosfera se começou a aproximar dos 20% (percentagem um pouco inferior à
actual), há uns 440 Ma; a diversificação das formas de vida esteve,
aparentemente, relacionada com os níveis elevados de O2 (chegando talvez a
atingir mais de 25%) que ocorreram entre 435 e 400 Ma; a subsequente diminuição
dos níveis de oxigénio que se verificou entre 400 e 380 Ma, quando desceu a um
mínimo inferior a 14%, e se prolongou, com valores baixos, até há 345 Ma,
esteve relacionada com a extinção, no Devónico superior, de muitas espécies
terrestres (nomeadamente de artrópodes) e marinhas, pois o próprio oceano
parece ter sofrido períodos de anoxia; o posterior acréscimo da percentagem de
O2, que ultrapassou o nível actual de 21% há uns 335 Ma e viria a atingir o
máximo de 30% ou mais há uns 300 Ma, reflectiu-se, entre outras, na
diversificação dos artrópodes terrestres e dos vertebrados, no aparecimento de
novos taxa e na grande expansão das espécies vegetais subaéreas (Ward et al.,
2006).
Se a composição da atmosfera é crucial para a evolução climática, essa evolução
é, em muito, definida por causas astronómicas, nomeadamente pelos forçamentos
orbitais, ou seja, pelos diferentes movimentos da Terra, principalmente a
excentricidade da órbita, a obliquidade do eixo de rotação e a precessão dos
equinócios, cuja ciclicidade é, em geral, conhecida pela designação de
parâmetros de Milankovitch. A conjugação destes diferentes movimentos faz com
que a Terra tenha maior ou menor insolação, o que, como é evidente, é um
forçador climático básico. Por exemplo, os períodos glaciários e
interglaciários são, em muito, definidos por estes parâmetros de Milankovitch.
Todavia, o sistema climático terrestre é muito complexo e ainda bastante mal
conhecido. O sistema atmosfera'oceano desempenha, também, um papel fundamental
na evolução climática da Terra, em geral amortecendo os efeitos das variações
rápidas (e.g.,Bijma et al., 2013) mas, também, por vezes, suscitando
modificações aceleradas, como aconteceu no Dryas Recente. Após um longo período
glacial, a Terra estava já num estádio avançado de aquecimento, transicional
para um período interglaciário, quando, há 12 800 anos AP (antes do Presente),
essa tendência se inverteu abruptamente, regressando a condições glaciais
durante uns mil e trezentos anos. Segundo parece, o aquecimento climático
provocou a progressiva fusão dos mantos de gelo da América do Norte; a
introdução rápida desta água doce na parte setentrional do Atlântico fez com
que esta, menos densa, se distribuísse à superfície (e.g., Johnson &
McClure, 1976; Broecker, 2006). Como o ponto de congelação da água doce (0ºC) é
significativamente mais elevado do que o da água salgada (-4ºC), a superfície
oceânica, a latitudes elevadas, teria congelado mais facilmente, interrompendo
ou, pelo menos, reduzindo substancialmente a produção de Água Norte-Atlântica
de Fundo (NADW) (e.g., Johnson & McClure, 1976; Ganopolski & Rahmstorf,
2001; Broecker, 2006). Refira-se que, com a atual configuração dos continentes,
a produção de NADW é uma das peças essenciais do funcionamento climático da
Terra. A circulação termo-halina faz com que haja, a níveis intermédios e
subsuperficiais do Atlântico Norte, um movimento advectivo de água quente e
salina das baixas para as altas latitudes. A estas latitudes, como junto à
Islândia, esta água aflora à superfície e arrefece, ou seja, liberta calor,
razão por que as regiões nordeste atlânticas não são tão frias como seriam se
este processo não existisse. Isto significa que a água se torna mais densa e
mergulha em direção ao fundo, gerando a NADW (e.g., Broecker, 1991; Kuhlbrodt
et al., 2007), a qual vai influenciar o clima em todo o resto da Terra. Tendo,
há 12 800 anos AP, o Atlântico congelado a estas latitudes, a produção de NADW
reduziu-se substancialmente, o que significa que o transporte de calor das
baixas para as altas latitudes foi bastante amortecido; com a forte diminuição
da circulação de água profunda, a deterioração climática acabou por se fazer
sentir em toda a Terra. Acresce que, estando o mar gelado, o albedo se ampliou,
fazendo com que, nessas regiões, a absorção da radiação solar diminuísse
substancialmente, deteriorando ainda mais as condições climáticas. Processos de
retroalimentação (feedback) como este, em que o arrefecimento provocou mais
arrefecimento, ocorrem com relativa frequência no funcionamento do sistema
climático. O curto período glaciar assim induzido acabaria por terminar há 11
400 AP, evoluindo então o clima, definitivamente, para condições interglaciais
persistentes.
Como a investigação científica opera nas fronteiras entre o conhecido e o
desconhecido, raramente há certezas absolutas e, por via de regra, o progresso
faz-se através de muitas dúvidas, de elaborações conjecturais e da formulação
de hipóteses múltiplas. Tal é ainda mais relevante quando os assuntos estudados
se caracterizam por elevada complexidade, como é o caso do sistema climático
terrestre. Em contraposição à hipótese sucintamente apresentada acima, em que o
Dryas Recente teria sido induzido pela fusão dos gelos e pelo amortecimento da
produção de NADW, alguns inves-tigadores defendem que o acontecimento que
esteve na origem desse curto período glaciário foi uma explosão meteorítica na
baixa atmosfera, pois que há indícios de que tal se verificou há 12 900 anos
(e.g.,Firestone et al.,2007; Melott et al., 2010). As duas hipóteses não são
incompatíveis e é bem possível que ambas se tenham potenciado para induzir a
grande rapidez com que o Dryas Recente se instalou.
A dinâmica climática é pois afetada por uma miríade de variáveis, cujo
comportamento químico e físico, inter-dependências mutuamente influentes,
consequências e previsões, na sua globalidade, estão ainda por conhecer na
totalidade.
2.2. Da Ação Antrópica e Alterações Climáticas
A United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC) considera como
Alterações Climáticas apenas as mudanças resultantes direta ou indiretamente da
atividade antrópica: "Alteração climática" significa uma mudança de
clima que é atribuída direta ou indiretamente à atividade humana que altera a
composição da atmosfera mundial e que se soma à variabilidade climática natural
observada ao longo de períodos comparáveis(UNFCCC, 1998).
Neste trabalho, fundamentando com a interinfluência e a dinâmica dos
componentes e processos naturais do sistema climático, seguimos a posição de Le
Treut et al. (2007): As alterações climáticas referem-se a uma mudança no
estado do clima, que pode ser identificada (e.g., por meio de testes
estatísticos) por mudanças na média e/ou na variação das suas propriedades e
que persiste durante um longo período de tempo, tipicamente de décadas ou mais.
A mudança climática pode ser devida a processos internos naturais ou a
forçamentos externos, ou a mudanças antropogénicas persistentes na composição
da atmosfera ou no uso da terra (Le Treut et al., 2007).
Nesta pesquisa evidencia-se que as AC derivam não apenas dos impactes
resultantes direta ou indiretamente da ação antrópica continuada, mas também, e
em dinâmicas interinfluentes, das mudanças que resultam dos processos internos
naturais do sistema climático ou do seu forçamento externo.
A capacidade de regeneração da natureza encontra-se comprometida na atualidade,
nomeadamente alguns fenómenos que seriam passíveis de reabsorção e/ou
regeneração/ autorregeneração natural (e.g., decomposição ou queima da
biomassa, variabilidade vulcânica, etc.). A situação atual reflete pois, para
além dos processos geológicos, os processos históricos, longos e demorados, que
ao longo dos séculos têm vindo a gerar impactos, em particular a partir do Séc.
XVIII, com a Revolução Industrial, mas sobretudo a partir da 2ª Guerra Mundial
e em crescendo até aos nossos dias.
Embora quase não tenha sido considerada até à década de 60 do Séc. XX, a
explosão demográfica, em conjunto com as alterações do uso do solo e do modo de
vida, particularmente o dos países afluentes, para além de contribuir
largamente para a determinação dos atuais elevados índices de devastação
ambiental e para uma ininterrupta fragmentação de ecossistemas (fragmentação de
habitats), é ainda amplamente responsável, em resultado da própria ação
antrópica, pelo forte aumento continuado dos gases de efeito de estufa (GEE) e
dos aerossóis na atmosfera.
O IPCC defende: Mudanças na quantidade atmosférica de GEE e aerossóis, na
radiação solar e nas propriedades da superfície terrestre alteram o equilíbrio
energético do sistema climático. Estas mudanças são expressas em termos de
forçamento radiativo, que é usado para comparar como uma série de influências
humanas e fatores naturais levam ao aquecimento ou ao arrefecimento do clima
global(IPCC, 2007).
Fenómenos como o da acidificação dos oceanos (Fabry et al., 2008) ou o da
acidificação dos solos (Jones et al., 2012), exponenciados pela ação antrópica,
estão estreitamente ligados com as Alterações Climáticas. Outro fenómeno
agravado pela poluição, também com graves consequências aos níveis do
equilíbrio dos ecossistemas, da economia e da saúde para os próprios humanos, é
o fenómeno das chuvas ácidas (Monteith et al., 2007). De origem natural ou
antropogénica, os efeitos secundários dos aerossóis, no entanto, podem levar a
um forçamento radiativo do sistema climático (Ramanathan et al., 2001).
Conquanto não possa ainda ser provada a relação causa-efeito entre a emissão de
GEE das atividades antrópicas poluentes e o aumento da temperatura, alguns
modelos climáticos, em finais da década de 90, considerando as interações do
ciclo do carbono com o ciclo da água, já apontavam para alterações no ciclo
hidrológico com efeitos, na sua globalidade, não totalmente previsíveis na
evolução do clima na Terra (Sellers et al., 1997).
Segundo Houghton et al. (1996): As concentrações atmosféricas de gases com
efeito de estufa, inter alia, dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxidos
de azoto (NOx) tiveram um aumento significativo. [ ] Muitos permanecem na
atmosfera por um longo tempo (caso do CO2 e N2O, por muitas décadas e séculos),
daí afetarem o forçamento radiativo em escalas de longo prazo (Houghton et
al., 1996).
As mudanças climáticas resultam, assim, de efeitos de dominó pelo encadeamento
de processos, alguns dos quais irreversíveis, e com dinâmicas de longo tempo de
resposta ou por inércia, no seu conjunto.
A miríade de tensões e de interações retroativas, naturais e antropogénicas
contidas nos fenómenos das Alterações Climáticas, consubstanciada no aumento da
temperatura, relaciona-se com a alteração da precipitação, com o aumento do
nível do mar e com os cada vez mais presentes Eventos Extremos (IPCC, 2007).
No entanto, não é sem polémica entre a comunidade científica que se vai
desenvolvendo a investigação sobre as AC, suas dinâmicas e evoluções. Um bom
exemplo disso terá sido a carta aberta enviada em finais de 2012 ao Secretário-
geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, (Open letter to UN Secretary-General 1)
em que 125 cientistas que defendem não haver evidência científica de que a
produção de CO2 tenha sido ou venha a ser responsável pelo aquecimento global
observado.
2.2.1. Sobre Ecossistemas, Serviços de Ecossistema, Biodiversidade e Bem-estar
Nesta análise, e interligando com as questões ambientais e das AC, importa
manter presente os efeitos que advêm da pressão exercida pelos ritmos e escala
impostos, particularmente nos últimos 50 anos, pela atividade antrópica sobre a
biodiversidade e, natural-mente, sobre a totalidade de ecossistemas que a
compõem e de que o ser humano é parte integrante.
Sendo o ser humano parte dos ecossistemas, o seu bem-estar, subjetiva e
contextualmente percecionado e experienciado, é reflexo da interligação da
conjuntura ecológica sociocultural local. O Millennium Ecosystem Assessment, em
"Ecosystems and Human well-being A Framework for Assessment" (MA,
2003), entende o bem-estar humano como o oposto em um continuum de pobreza '
ambos conceitos plurais complexos, cuja análise e implicações não cabem no
âmbito do presente artigo.
De acordo com o Relatório Ecosystems and Human well-being Synthesis (MA,
2005), um ecossistema refere-se a uma complexa e dinâmica unidade funcional,
independentemente do tamanho, entre plantas, animais e microrganismos, em um
determinado meio abiótico, cujos serviços são fundamentais para o bem-estar
humano.
O MA (2005) enquadra os serviços dos ecossistemas, percebidos como benefícios,
em quatro áreas:
a) Produção ' e.g. água potável, alimentos, recursos genéticos ;
b) Regulação ' e.g. clima, qualidade do ar, água, doenças humanas ;
c) Culturais ' e.g. espirituais, religiosos, reflexão, lazer ;
d) Suporte ' e.g. produção primária, oxigénio, formação do solo ;
Interligando as Alterações Climáticas, com a destruição, fragmentação e/ou
alteração de habitats, com a invasão de espécies exóticas e com os efeitos
antropogénicos, o sobreuso dos serviços dos ecossistemas, embora estes fatores
tenham contribuído para aparentes (mas controversos e discutíveis) ganhos no
desenvolvimento económico das gerações humanas atuais, levantam sérias
preocupações relativamente à sustentabilidade da biodiversidade e, conse-
quentemente, à sustentabilidade das gerações futuras, humanas e não-humanas
(MA, 2005).
A complexidade, multiplicidade e quantidade de interações das dimensões
climáticas, humanas e do ambiente, em processos mutuamente influentes e
retroativos, têm consequências reconhecidamente devastadoras (Stocker et al.,
2013), mas ainda de difícil quantificação.
Assim, e levando em consideração a incerteza, a caducidade do conhecimento e o
desconhecimento cabal sobre as interações e a globalidade das intra e das
interdependências dos sistemas da Terra e dos sistemas humanos, verifica-se,
entre outros, um aparente aumento de fenómenos a que se convencionou chamar de
eventos extremos.
2.3. Das Alterações Climáticas e das Implicações Éticas
A amplitude das questões relacionadas com as Alterações Climáticas extravasa em
muito, conforme referido, o campo meramente científico, pois relaciona-se
profundamente com estratégias de poder e crescimento económico descontrolado,
bem como com a perceção, a atitude e os comportamentos de risco antrópicos.
No entanto, uma consciencialização crescente da necessidade de proteção do
ambiente foi ganhando peso e levou, entre outros, à adoção do Princípio da
Precaução', o 15º Princípio, na Declaração da RIO 92: A fim de proteger o
ambiente, o Princípio da Precaução deve ser amplamente observado pelos Estados,
de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou
irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser utilizada como
razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a
degradação ambiental (UNDESA, 1992).
Como a literatura confirma, a Ética é um conceito complexo e de recorte pouco
definido, cujo âmbito se situa no domínio do normativo e do dever ser, i.e., no
domínio dos valores (Lourenço, 2002). Lato sensu, a Ética liga-se à reflexão
teórica e filosófica sobre o bem e o mal e sobre os grandes princípios ' como
os da justiça, do bem comum, da benevolência, do eudaimonismo (Aristóteles,
2009), da responsabilidade (Jonas, [1979] 1984), entre outros ' os quais
regulam e orientam atitudes, racionalidades e comportamentos nas nossas
relações morais connosco e com os outros, seja de indivíduos ou de grupos
humanos: comunidades, organizações, Estados, etc.
Com este enquadramento, poder-se-á definir a Ética Ambiental como a disciplina
filosófica que reflete sobre as relações morais dos seres humanos, estendendo
as questões da moralidade às relações dos humanos com a Natureza, com os
ecossistemas e com os outros seres vivos não humanos.
Assim considerada, a Ética Ambiental entende-se como o esteio, de referências e
valores, orientador e normalizador da conduta e ação humanas não apenas
relativamente aos humanos, mas também ao Ambiente, à sua preservação e
conservação.
De acordo com Shue (2005), a maior parte da reflexão filosófica sobre os
efeitos das Alterações Climáticas nas interações humanas com a Natureza
considera que os problemas fundamentais estão ligados à (crescente) (in)justiça
distributiva espaciotemporal. No entanto, o autor chama a atenção para o facto
de a perda da biodiversidade por extinção antropogénica também ser um problema
ético (Shue, 2005: 459).
Na linha do que Pickett & Ostefeld (1995) já haviam referido ' o problema
hodierno é o descontrolo anormal da taxa atual de extinção, com um fluxo
excessivamente rápido e com grande extensão espacial, Shue (2005) argumenta que
o aumento de concentração dos GEE, resultado das atividades antrópicas, conduz
a alterações rápidas do clima e à deterioração e/ou perda de habitats e,
consequentemente, à extinção de espécies animais e vegetais por não terem tempo
para se adaptar.
Perante tão complexa situação são muitas as questões que se impõem: Até que
ponto é moralmente aceitável a interferência antropogénica no Ambiente? Até que
ponto é moralmente aceitável a manipulação genética? Até que ponto é moralmente
aceitável a manipulação climática? As respostas disponíveis são inúmeras e não
convergentes, pois dependem dos valores, da perceção, da posicionalidade e da
perspetiva mais antropocêntrica, mais biocêntrica ou mais ecocêntrica do seu
autor.
No gizar das políticas das alterações climáticas e/ou das políticas ambientais,
mesmo considerando a inexistência de um modelo científico que abarque todas as
variáveis e todas as incertezas inerentes, bem como a impotência preditiva da
ecologia e/ou as limitações das teorias científicas (Shrader-Frechette, 2005),
dever-se-á, a nosso ver, ponderar, de uma perspetiva holística, a dimensão
espaciotemporal da ação antrópica em relação ao Ambiente, aos mais débeis, aos
seres não-humanos e seus habitats, bem como às gerações vindouras, tendo em
conta as implicações éticas.
A respeito, e no âmbito do dever ser, Callicott (2005) defende: Uma coisa está
correta quando tende para perturbar a comunidade biótica apenas em escalas
espaciais e temporais normais. Está errada quando tende para outra coisa
(2005: 225).
De uma outra perspetiva Jonas ([1979] 1984) reformula o imperativo categórico
Kantiano e defende o Princípio da Responsabilidade: Age de tal modo que os
efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida
autenticamente humana na terra.
Næss (1986), por seu lado, vem propor o conceito de Autorrealização, conceito
em que se escora a Ecosofia T 2
. A Autorrealização será o resultado de um processo individual de
amadurecimento do Eu que, a partir do ego se vai alargando e integrando tudo
aquilo com que se identifica. Assim, pode falar-se da transição do Ego' para o
Eu social' e deste para o Eu ecológico', interiorizando-se simultaneamente o
facto de a própria existência estar indelevelmente entrelaçada com o Todo, de
que é parte (Mathews, 2005).
Este processo de amadurecimento traduz-se, defende Næss (1986), em um egoísmo
ecológico e, consequentemente, leva a um comportamento de cuidado com a
Natureza, visto ser o mais verdadeiro, profundo e próprio interesse do
indivíduo. Afinal é da sua própria sustentabilidade que se trata.
Sabe-se hoje, conforme já referido, que o estilo de vida desenvolvido,
particularmente a partir da Revolução Industrial, encetada pelos países
afluentes (Cameron, 2004), tem efeitos antropogénicos transespaciais e
transtemporais muito superiores à capacidade de regeneração natural do planeta,
enquanto, simultaneamente, a grande maioria dos humanos não tem acesso aos
recursos básicos para satisfazer as suas necessidades vitais.
Além disso, a comunidade humana, no geral, está longe de pensar seres humanos,
não-humanos e na Natureza como partes integrantes e interdependentes de um Todo
e de considerar que o Todo ' e cada uma das partes ' tem estatuto moral
próprio, pelo que, em consonância, a realização ou manutenção do seu bem-estar
tem valor intrínseco. E a proteção do Todo requer ações concretas, justiça,
respeito e responsabilidade aos níveis individual, social e ambiental. Em
última instância, requer uma evolução no sentido de democracias-mais-que-
humanas (Hettinger, 2005).
A nosso ver, é necessário que a Ética Ambiental se (re)produza culturalmente.
Urge que os valores ambientais se impregnem no tecido cultural das sociedades
humanas e se traduzam no terreno. Desta forma, não apenas a aplicação das
políticas climáticas e ambientais seria percecionada como um processo natural,
como ainda seriam ultrapassados, em muito, os seus objetivos.
3. Adaptação e Mitigação ' Das Políticas, Mercados e Sustentabilidade
3.1. Em Portugal: Do PNAC à ENAAC
Data de 2001 o primeiro Programa Nacional de Alterações Climáticas (PNAC),
revisto e atualizado, de acordo com a Diretiva n.º 2003/87/CE, do Parlamento
Europeu e do Conselho, de 13 de outubro, pela Resolução do Conselho de
Ministros (RCM) n.º 119/2004.
Com a sua origem nas necessidades sentidas pela Comissão para as Alterações
Climáticas (CAC) (1998-2012), ao verificar as insuficiências do PNAC (2004) e o
consequente afastamento de Portugal do cumprimento das metas do Protocolo de
Quioto (PQ), o PNAC (2006), veio atualizar o anterior, traduzindo uma política
com consciência da situação ambiental.
Conforme a RCM n.º 10423, de agosto de 2006, refere no seu preâmbulo: No
contexto comunitário devem ter-se em conta as conclusões do Conselho de
Ministros do Ambiente de Março de 2006, reafirmando a estratégia definida em
Março de 2005 pelos Chefes de Estado e de Governo da União Europeia
relativamente à necessidade de considerar, com todas as Partes à Convenção,
acções futuras tendo em vista o objectivo último da Convenção ' a estabilização
da concentração de GEE na atmosfera a um nível que evite uma interferência
antropogénica perigosa com o sistema climático (Resolução do Conselho de
Ministros n.º 104/2006).
Considerando a situação local, o PNAC 2006 transportava para a legislação
nacional as orientações, em conformidade com os então compromissos e princípios
das políticas para as AC da UE.
Assim, foram estabelecidos para Portugal os instrumentos e mecanismos legais:
i) o Plano Nacional de Atribuição de Licenças de Emissão, o PNALE II, que impõe
tetos às emissões de CO2 a um conjunto de instalações industriais, viabilizando
a participação de Portugal no mecanismo de licenças de emissão europeias, o
Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE); e, ii) o Fundo Português de
Carbono, que promove a aquisição de unidades de cumprimento no âmbito dos
Mecanismos de Flexibilidade do PQ, bem como a redução adicional de emissões de
gases com efeito de estufa através de projetos domésticos.
Além destes mecanismos, necessários à implementação e cumprimento do PQ, o PNAC
2006 estabelecia os meios e os instrumentos de avaliação e monitorização do
processo para o cumprimento das metas assumidas, prevendo mesmo um plano de
contingência, para que fossem respeitados os limites de emissões de GEE a que
Portugal estava sujeito ' para o cumprimento do PQ para o período 2008-2012, o
Estado português não podia ultrapassar em mais de 27% as emissões
antropogénicas de GEE registadas em 1990. Este valor está conforme o princípio
do PQ e da Política Ambiental europeia: Responsabilidades comuns mas
diferenciadas.
Verifica-se atualmente, de acordo com o Indicador de Cumprimento de Quioto, que
Portugal foi um dos países que cumpriu as metas estabelecidas para o período
2008-2012. A este feito, no entanto e para além do referido, não terá sido
alheia a profunda crise económica atravessada pelo país.
Em dezembro de 2008, o Parlamento Europeu aprova o Pacote Clima-Energia:
"três vintes" até 2020, acordado com o Conselho da Europa sobre:
i) comércio de licenças de emissão; ii) contribuição de cada Estado-Membro
para a redução das emissões, captura e armazenagem de carbono; iii) energia
proveniente de fontes renováveis; iv) propostas relativas às emissões de CO2
dos automóveis e às especificações para os carburantes.
Em abril de 2010 foi submetida e adotada como RCM n.º 24/2010, a Estratégia
Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas (ENAAC) considerada o primeiro
passo na preparação de Portugal para os desafios da adaptação às alterações
climáticas (CECAC-APA, 2011:7).
A ENAAC está enformada por quatro objetivos primordiais:
* Informar e Conhecer ' buscando desenvolver uma base científica e técnica
sólida;
* Reduzir a Vulnerabilidade e Aumentar a Capacidade de Resposta '
identificando, definindo prioridades e aplicando as principais medidas de
adaptação em particular de fenómenos meteorológicos extremos (Resolução do
Conselho de Ministros n.º 24/2010);
* Participar, Sensibilizar e Divulgar ' junto de todos os agentes sociais,
buscando a sua participação;
* Cooperação internacional.
Na sequência da Conferência de Copenhaga (COP 15), em dezembro de 2009, por
força do Despacho n.º 15296/2010, de 11 de outubro, são estabelecidas para
Portugal as normas de aplicação da Iniciativa Portuguesa de Implementação
Imediata (FastStart) no que concerne às AC, sendo também determinada a
constituição de um grupo de trabalho (GT-FastStart) com a responsabilidade pela
sua execução. O GT-FastStart é composto por representantes do Instituto
Português de Apoio ao Desenvolvimento, I.P. (IPAD) e da Agência Portuguesa do
Ambiente, I.P (APA). A partir de setembro de 2011, a política climática em
Portugal passa a estar concentrada na APA.
Com o objetivo de colocar a economia nacional no sentido da sustentabilidade,
da eficiência e da competitividade, para o período pós-2012, a RCM n.º 93/
2010, vem estabelecer a criação de novos instrumentos de apoio para as
políticas de Alteração Climática: i) o Roteiro Nacional de Baixo Carbono 2020
(RNBC 2020), ii) a elaboração de planos sectoriais de baixo carbono para cada
ministério, e iii) o Programa Nacional para as Alterações Climáticas para o
período 2013-2020 (PNAC 2020).
Os impulsos políticos ao nível do Estado central, no âmbito da estratégia
relativa às AC ' que se desdobram numa multiplicidade de programas, planos,
decisões, procedimentos, etc., nem sempre consonantes, aos vários níveis
institucionais ' conforme se pode verificar por uma leitura atenta, são
recheados de urdiduras semânticas, não integram saberes locais, privilegiam
espaços de informação a espaços de diálogo polifónico com os atores envolvidos
no terreno e, atualmente, vão no sentido de concentrar esforços e recursos na
intervenção pós-desastre, se comparado com os esforços na sua prevenção (e.g.:
VideObjetivos primordiais da ENAAC).
3.2. Da Sustentabilidade, Políticas e Mercados
Como referido, na UE, são as políticas europeias que orientam, impulsionam e
condicionam as políticas dos Estados Membros. Estes, obrigatoriamente, devem
transpor para as legislações nacionais as diretrizes europeias (o que também
não é um processo isento de dificuldades e tensões).
A política ambiental, e em particular a política climática aqui em análise, na
busca de soluções para os efeitos das Alterações Climáticas e a sua prevenção,
é enquadrada pelo princípio da sustentabilidade, posto na ordem do dia mundial
em 1987 pela mão do relatório Our Common Future (Brundtland, 1987), depois
assumido pela União Europeia e, mais tarde, consagrado no texto constitucional
em Portugal (Canotilho, 2010), definindo-se, assim, como um princípio
estruturante da organização do(s) Estado(s) e, consequentemente, das
sociedades.
Embora o relatório das Nações Unidas Back to Our Common Future (UNDESA, 2012),
sobre os resultados da Conferência RIO+20, confirme não terem sido atingidas as
metas da RIO92, afirma serem vários os caminhos ainda possíveis para atingir o
Desenvolvimento Sustentável (DS). Paradoxalmente, tem-se vindo a assistir, no
entanto, à pressão continuada de posturas hegemónicas, pouco disponíveis para
atender a outros conhecimentos, necessidades ou interesses, a que se aliam,
entre outros, as dificuldades no diálogo entre os atores (Santos, 2005). O que
releva e basta uma leitura atenta aos press release que foram sendo
disponibilizados durante a Cimeira para o verificar são os problemas
(eficácia/resultado) no delineamento e na praxis das políticas para a
sustentabilidade e as dificuldades para, em conjugação de interesses, trilhar
esse(s) caminho(s).
A atual crise global, que põe em causa o DS, é a evidência de que, para que as
políticas sejam eficazes (sustentáveis) na prática, é necessário equacionar-se
a sustentabilidade das políticas. Por isso a importância de delinear políticas
' respostas inovadoras ' que, tendo em consideração os contextos ambientais,
integrem não apenas as racionalidades, as crenças e os valores locais, mas
também procedimentos e tecnologias acessíveis às populações-alvo dessas
políticas, sob pena de as isolar.
A este respeito, Egiziabher (2004) observa que os camponeses (entendam-se os
submetidos ao poder de outrem) não são impermeáveis a novos conhecimentos e
maneiras de pensar, desde que minimamente acessíveis, apresentando-se sob
formas que lhes sejam relativamente compreensíveis ' tal como acontece a toda a
gente. [...] Os camponeses não são conservadores que ficam de fora apenas para
ficar de fora; eles representam a maioria, a nível global, que tem sido
marginalizada pela agressiva minoria globalizadora. Por esta razão, os
camponeses pretendem continuar a controlar o processo que se destina a tirá-los
da pobreza ' tal como qualquer de nós (2004: 405).
A sustentabilidade das políticas para a sustentabilidade está, assim,
interligada com uma praxis que invista nas populações locais (e as respeite),
considerando, por um lado, as variáveis climáticas, ambientais, tecnológicas e
económicas globais, e, por outro lado, integrando as variáveis ambientais,
tecnológicas, económicas e socioculturais locais na esteira do é referido
referido pelo Worldwatch Institute em Toward a Transatlantic Green New Deal:
Tackling the Climate and Economic Crises (Frentch et al., 2009).
Foi apenas em fevereiro de 2010 que a Comissão Europeia criou a Direção-Geral
para a Ação Climática, com o propósito de conduzir as negociações
internacionais sobre o clima, ajudar a UE a lidar com as consequências das
Alterações Climáticas e a cumprir as metas para 2020, bem como desenvolver e
implementar o Sistema de Comércio de Emissões da UE.
Para além de definir estratégias e coordenar a política ambiental e a política
climática que ainda despontam, a UE é mandatada para negociar e ratificar, em
nome dos Estados Membros, com países terceiros. Tal foi o caso da Decisão 2002/
358/CE do Conselho, de 25 de Abril de 2002 (CE, 2002) relativa à aprovação, em
nome da Comunidade Europeia, do Protocolo de Quioto (PQ) (UNFCCC, 1998),
resultante da III Conferência das Partes (COP3); da Convenção-Quadro das Nações
Unidas sobre as Alterações Climáticas (CQNUAC), em 1997; e ao cumprimento
conjunto dos respetivos compromissos, sob o princípio responsabilidades comuns
mas diferenciadas, já acima referido.
A partir do PQ, um dos instrumentos jurídicos internacionais mais importantes
na luta contra as Alterações Climáticas, os países industrializados, para além
de reconhecerem a sua responsabilidade pelos altos níveis de produção de GEE
atuais, assumem que as suas emissões totais devem ser reduzidas em, pelo menos,
5% em relação aos níveis de 1990, durante o período 2008-2012.
Com o objetivo de estabilizar as emissões de determinados GEE são, então e pela
primeira vez, definidos mecanismos de mercado para permitir a viabilização e o
financiamento deste processo: i) Emissions trading ' conhecido por Mercado do
Carbono; ii) Clean Development Mechanism; iii) Joint Implementation. Estes
mecanismos, no entanto, não colhem aprovação unânime, sendo mesmo fonte de
grande polémica, pois entre os movimentos ambientalistas, como o Carbon Trade
Watch, há os que os entendem como um embuste e um perpetuar e aumentar das
desigualdades sociais e agressões ambientais. Aliás, neste sentido é
interessante o vídeo The Story of Cap & Trade, disponível on-line em
https://www.youtube.com/watch?v=ZYi78LaY8u4.
No âmbito das políticas europeias de combate às Alterações Climáticas e com o
horizonte de 2020, Portugal viu recentemente aprovada uma ambiciosa Estratégia
Nacional para a energia com a aprovação do Plano Nacional de Ação para as
Energias Renováveis (s/d), ao abrigo da Diretiva 2009/28/CE.
É neste contexto, e considerando os diferentes níveis de intervenção ' Global;
Regional e Local ' que a capacitação competente (Empowerment) de indivíduos e
populações para as tomadas de decisão locais e para a assunção do controlo dos
processos em que estão envolvidos é considerada um fator crítico para a redução
do risco de desastres (Field et al., 2012). Daí, também, o apelo crescente a
uma cidadania participativa ambientalmente responsável.
Aliás, deste convocar geral, no seguimento da Carta da Terra (Earth Charter,
2000) e da Conferência Rio 92, já faziam eco a Agenda 21 e a Convenção de
Aarhus (1998).
Assim, importa sublinhar Alves et al.(2012): é necessário construir para o
século XXI uma cidadania simultaneamente social e política, uma cidadania
ambiental que encoraje a participação e valorize o diálogo e articulação entre
distintos saberes-poderes. (2012:53).
4. Da Sociedade de Risco ' Reflexividade, Estratégias e Saberes
4.1. Risco e Reflexividade
Giddens (1991) entende que a sociedade moderna reflexiva se constitui e se
produz pelo conhecimento reflexivo aplicado, e na qual as ciências sociais,
mais do que as naturais, estão profundamente implicadas. Para o autor, mais do
que uma característica definidora de toda a ação humana, a reflexividade, na
modernidade, integra a própria base da reprodução do sistema, de forma que o
pensamento e a ação estão constantemente refratados entre si [sendo] as
práticas sociais constantemente examinadas e reformadas à luz de informação
renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu
caráter (Giddens,1991:39).
Para Beck et al. (1995) "Modernização reflexiva" significa a
possibilidade de uma (auto)destruição criativa para toda uma era: aquela da
sociedade industrial. O "sujeito" dessa destruição criativa não é a
revolução, não é a crise, mas a vitória da modernização ocidental (Beck et
al., 1995:13).
O dinamismo da modernidade é explicado por Giddens (op. cit., 1991) pela
interceção de três instituições, nomeadamente i) os mecanismos de desencaixe
ii) os sistemas peritos e iii) a apropriação reflexiva do conhecimento. Nas
sociedades modernas, em contraste com as sociedades tradicionais e pré-
modernas, assiste-se a um distanciamento entre o tempo e o espaço, o que
permite situar as instituições e o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe,
como as fichas simbólicas (e.g. o dinheiro) e os sistemas peritos, que retiram
as relações sociais do contexto tornando-as dependentes de uma atitude de
confiança, ou falta dela, quer nos sistemas abstratos desencaixados, quer nas
pessoas (e.g.conhecimentos técnicos específicos) e, a apropriação reflexiva do
conhecimento.
A relação da modernidade com a reflexividade é caracterizada pelos pressupostos
da reflexividade revisitada e indiscriminada bem como pela reflexão sobre a
natureza da própria reflexão. Estas reivindicações de conhecimento são, de
acordo com Giddens (1991), filtradas por quatro ordens de fatores: a) o poder
diferencial, b) o papel dos valores, c) o impacto das consequências não
pretendidas e, d) a circulação do conhecimento social na hermenêutica dupla.
i.e.: o conhecimento reflexivamente aplicado às condições de reprodução do
sistema altera intrinsecamente as circunstâncias às quais ele originariamente
se referia (op. cit., 1991:52).
Beck et al. (op. cit., 1995), no entanto, chamam a atenção para o facto de que,
embora as teorias da modernização reflexiva de Giddens (1991) e Beck et al.
(1995) relevem e reflitam sobre o declínio das estruturas sociais e culturais,
não têm em devida consideração a crescente imposição quer das estruturas das
tecnologias de informação e comunicação, quer o seu papel nas estruturas
culturais que, defende o autor, implicam a necessidade de uma reflexividade
mais fina.
De uma perspetiva distinta da reflexividade cognitiva ' situada nas estruturas
sociais ' proposta por Giddens (1991), Bourdieu (1980a) e Beck et al. (1995)
propõem os conceitos de habitus e de campo como instrumentos para a observação
da realidade social. Bourdieu (1980a) defende que o ator social é, ele próprio,
parte da produção das estruturas sociais, sendo as estruturas sociais resultado
e meio reflexivo da ação. No entanto, é uma reflexividade situada nas
categorias impensadas, nos esquemas classificatórios ou disposições,
determinantes das práticas autoconscientes e das suas representações,
determinadas, por sua vez, pela realidade social. O habitus só existe quando
contextualizado e atua no sentido da manutenção ou transformação (construção)
das relações e dos recursos, que determinam (e são determinados por) a produção
dos conhecimentos, seja o senso comum, o científico, o religioso ou outro.
De acordo com Lahire (2005), a teoria do habitus de Pierre Bourdieu toma
também como garantida a ideia da transferibilidade ou da transponibilidade e do
carácter generalizável' dos esquemas, ou disposições, socialmente
constituídos (2005: 23). Ponderando o que pode ser considerado como a dinâmica
da unicidade plural interna do indivíduo, Lahire propõe revisitar o habitus
defendendo a existência de uma pluralidade disposicional ' disposições para
crer e disposições para agir ' e contextual ' a multiplicidade dos contextos
das disposições. Para o autor, estudar o social individualizado, ou seja, o
social refractado num corpo individual que tem a particularidade de atravessar
instituições, grupos, campos de forças e de lutas ou cenas diferentes, é
estudar a realidade social na sua forma incorporada, interiorizada (2005:14).
A experiência vivida (Erlebnisse, palavra alemã que significa mais do que a
aglutinação de Erfahrung [experiência] e Leben [vida] significando algo que se
sente profundamente ao ser vivido), segundo Jodelet (2006), é enformada por
representações sociais e categorizações que sustentam o sentido do
desenvolvimento da experiência, atuando, assim, como mediadora na construção do
conhecimento e do senso comum. Para Jodelet (2006:33), a experiência vivida
pode ser o cadinho de enriquecimento, de descoberta e de criação .
Enquadrada pela Teoria da Representação Social, a autora fundamenta, em Place
de l'expérience vécue dans le processus de formation des représentations
sociales, (2006), que a experiência vivida pode ser revestida, aparentando
ser a ponte entre o social e o individual, entre o emocional/sensorial e o
cognitivo, entendido como o sistema global de representações.
Ora, de uma outra perspetiva, o facto de o capital social considerar o modo das
interações individuais e a forma como os atores se ligam e cooperam (ou não) -
quer aos vários níveis do social, quer nos aspetos formais e informais das
relações sociais e das sociedades - tornam-no foco da nossa lupa.
4.2. Do Capital Social e da Confiança
Partindo do pressuposto de que as AC se fazem presentes pelos seus efeitos, nem
sempre diretos e tendencialmente diluídos no tempo, os estudos sobre a perceção
' do significado e do risco ' das AC junto dos atores locais, ao darem
visibilidade a processos sociais e a crenças, para além de uma melhor
compreensão, possibilitarão a criação de respostas mais robustas para lidar com
o fenómeno (Alves et al., 2014).
Nas últimas décadas ' tendo em conta a variedade e a variabilidade de
publicações dedicadas existentes, particularmente no âmbito da gestão ambiental
e da gestão de recursos ' verifica-se que o conceito de capital social se
tornou polo de atração da atenção de políticos e cientistas. Conceito
polissémico e multidimensional pode ser rastreado até Aristóteles (Ishihara
& Pascual, 2008). No entanto, esta atenção pode ser resultado das
motivações ideológicas, sobretudo liberais, que relevam dos estudos do capital
social (Higgins, 2005). Aliás, isto mesmo parece ser confirmado com a edição
pelo World Bank, em 1999, de Social Capital, a Multifaceted Perspective.
Contudo, de acordo com a literatura (Davis, 2001; Paiva, 2008), parece haver
duas perspetivas ideológicas influentes entre os grandes teóricos da construção
do conceito: i) a já referida perspetiva neoliberal, que, como autores
seminais, conta, entre outras importantes contribuições, com Coleman (1988) e
Putman (1995); e ii) a perspetiva neo-marxista, cujo principal representante é
Bourdieu (1980a; 1980b).
Conceito polémico, polissémico e sem um recorte claro, na maior parte dos
casos as várias aceções consideram quase sempre três dimensões constituintes:
componentes (redes, normas e sanções); nível de análise (micro, meso e macro);
e carácter ou função (fechamento, abertura e ligação) (Paiva, 2008:20).
Resultante de uma pesquisa exaustiva sobre o conceito de capital social, Adler
& Know (2000) procuraram fazer uma síntese dos trabalhos teóricos levados a
cabo pelas várias disciplinas das ciências sociais, no sentido de desenvolverem
um enquadramento conceptual comum que incluísse as fontes, os benefícios e os
riscos do conceito.
Nesse artigo, os autores propõem uma definição que procura integrar todas as
principais contribuições: Social capital is a resource for individual and
collective actors created by the configuration and content of the network of
their more or less durable social relations (Adler & Know, 2000:92).
Esteio e fruto do capital social aparenta ser a confiança (Fig._1).
A confiança é, por si só, um conceito multidimensional e polissémico. Giddens
(1991) dá-nos conta da desconstrução da noção de confiança, aos vários níveis
do social e das relações sociais, em inter-relação com as noções de crença, de
perigo e de risco.
Para Giddens (1991), a noção de confiança: i) relaciona-se com a ausência, do
sujeito e/ou do objeto, no tempo e no espaço; ii) está vinculada à
contingência; iii) é o elo entre fé e crença. A confiança pode ser definida
como crença na credibilidade de uma pessoa ou sistema, tendo em vista um dado
conjunto de resultados ou eventos, em que essa crença expressa uma fé na
probidade ou amor de um outro, ou na correção de princípios abstratos
(conhecimento técnico) (1991:36).
Retemos, no entanto, que: os diferentes campos (político, científico, etc.)
definem modos específicos de dominação e são, por isso mesmo, campos de forças
(assimétricas) e de lutas para conservá-los ou transformá-los (Silva &
Alves, 2011:1211).
4.3. Saberes e Racionalidades Plurais: Rivais ou Complementares?
A situação hodierna com que nos confrontamos requer o impulso de estratégias
globais tanto quanto a construção de respostas locais que considerem e incluam
as experiências e os saberes espaciotemporalmente localizados dos agentes e das
racionalidades leigas para lidar com o fenómeno das AC e seus efeitos.
Quando Foucault (1992) falou sobre Erudição e saberes submetidos, no âmbito de
um curso no Collège de France, entre fins de 1975 e meados de 1976, designou os
saberes das pessoas ' diferentes do senso comum ' como saberes submetidos. Com
estes saberes submetidos Foucault referia-se, por um lado aos saberes
sepultados ' conteúdos históricos, branqueados ou dissimulados, dentro de
coerências funcionais ou sistematizações formais e, por outro, aos saberes
submetidos ' particulares, locais, singulares, desclassificados. Ambos '
submetidos e sepultados ' embebidos do saber histórico das lutas (1992:21-22).
Foucault (1992), perante a unidirecionalidade hegemónica da ciência, afirma a
igualdade de valor de todos os conhecimentos, espelhados nos discursos,
enquanto conceções plurais do mundo, da vida e dos fenómenos (Alves, 2011;
Silva & Alves, 2011).
Assim perspetivado, o conhecimento leigo, cujas dinâmica e reconstrução se
alicerçam na interação, é válido porque, concordamos com Alves (2011), produz
sentido e explica os fenómenos do mundo e da vida, sustentando a ação e a
interação social.
Contudo, os saberes submetidos têm vindo a tomar denominações várias, que
procuram enaltecer algum aspeto ou propriedade do conhecimento assim designado.
Delicado et al. (2012:438) fazem essa compilação, que aqui sumariamente
revisitamos: conhecimento ecológico tradicional (Houde, 2007); conhecimento
indígena (Bohensky & Maru, 2011; Bohensky et al., 2013); conhecimento
local (Paton & Fairbairn-Dunlop, 2010), conhecimento dos stakeholders
(Edelenbos et al., 2011); e conhecimento leigo (Edelenbos et al., 2011; Brace
& Geoghegan, 2010; Alves et al., 2014).
Numa perspetiva diacrónica do saber científico, constata-se que: na ciência
moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento
do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-moderna o salto
mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento
do senso comum (Santos, 1999:57). No entanto não cabendo aqui qualquer
análise genealógica dos diferentes saberes, perante a rivalidade de poderes e a
dicotomia entre o conhecimento perito e o conhecimento leigo levantam-se,
entre muitas outras, as seguintes questões: De que modo são estes saberes
chamados a participar na produção de conhecimento? Como se relacionam e/ou
interinfluenciam? E, exatamente, que saber/poder é que se (re)produz?
Lidskog (2008), num inspirado artigo intitulado Scientised citizens and
democratised science. Re-assessing the expert-lay divide, apresenta-nos uma
revisão crítica dos desenvolvimentos recentes das posições racionalistas
construtivistas, no referente à relação entre a ciência e o público, no âmbito
da ciência e da gestão do risco, a partir de três propostas ' i) New Production
of Knowledge; ii) Postnormal Science; iii) Scientific Citizenship ' de onde
resulta evidente a preocupação pragmática da ciência, por um lado e, por outro,
a gradativa evolução de um novo modo de produzir ciência, onde cidadãos cada
vez mais informados e reflexivos têm vindo a ser chamados a contribuir, em
ágoras progressivamente alargadas aos cidadãos instruídos, aos representantes
da sociedade civil e aos cidadãos leigos.
No entanto, Lidskog (2008) chama a atenção para a necessidade de desenvolver
entre a ciência e os cidadãos novas relações que não reproduzam a dicotomia
entre especialistas e leigos. Os espaços criados para negociação e deliberação
não deverão ser determinados por factos produzidos cientificamente. Pelo
contrário, a ciência e a gestão de riscos devem ser tornadas mais acessíveis,
mesmo nos casos em que os riscos são alegadamente invisíveis para os cidadãos
(Lidskog, 2008:84).
Com uma perspetiva dialógica polifónica, face à postura dos poderes hegemónicos
e da teoria geral, Santos et al. (2004) propõe a tradução como o instrumento
para a inteligibilidade das experiências e a completude dos saberes, uma zona
de contacto que pode viabilizar a inteligibilidade entre saberes e práticas,
simultaneamente mantendo as identidades e as autonomias.
Santos (2005) considera que, embora precário, o trabalho de tradução entre
saberes, a partir da imaginação epistemológica, conduz à justiça cognitiva e, a
partir da imaginação democrática, a tradução entre práticas e os seus atores
possibilitará abrir caminho para uma justiça social global. O trabalho de
tradução assim concetualizado ' ao exigir um esforço de aprendizagem recíproca,
como refere Santos (2005), para a partilha de experiências e de racionalidades
plurais ' poderá ser o instrumento motor de uma transformação de valores e
instituições na sociedade, no sentido do respeito pelo ambiente, pelos saberes,
pelos géneros e pelas culturas.
Por outro lado, e em contraste com a racionalidade científica ou técnica, o
conceito de racionalidade leiga (Alves, 2011; Silva & Alves, 2011) diz
respeito a uma lógica plural, complexa, multidimensional, prenhe da
subjetividade da cultura interiorizada pelo sujeito e refletida no pensamento e
ação leigos em esquemas (estratégias) orientados para objetivos.
5. Concluindo
Com uma matriz de conceção inclusiva, constituída por uma pluralidade de tipos
e fontes de saberes, particularmente quando as neurociências e as
nanotecnologias se perfilam como um imenso campo de respostas (e de questões),
releva, a nosso ver, o potencial heurístico do conceito das racionalidades
leigas.
Assim, para além de considerarmos a incompletude dos saberes, a assimetria de
poderes e de modos de vida, a incerteza, a espaciotemporalidade, o
desconhecimento, a complexidade e a multidimensionalidade interinfluente muitas
vezes conflituosa ou paradoxal dos sistemas climático, ambiental e
socioculturais, de que o sujeito plural é ator reflexivo ativo, a reflexão
sobre a produção do conhecimento leigo, como uma forma de conhecimento válida,
e sobre as suas práticas nos seus contextos de produção espaciotemporalmente
recortados contribuirá para compreendermos como as pessoas percecionam e vivem
com as mudanças climáticas e como lidam com os seus efeitos.
Em suma, procurar compreender os mecanismos das racionalidades leigas
relacionadas com as Alterações Climáticas nos seus contextos espaciotemporais,
significa compreender como se pensa e vive a Vida.