Cuidados de Saúde Preventivos
DOCUMENTOS
Cuidados de Saúde Preventivos
Preventive health care
Gisle Roksund*
*Presidente do Colégio Norueguês de Clínica Geral (documento compilado em
colaboração com as Unidades de Investigação em Clínica Geral de Trondheim e
Oslo). Oslo, 14 de Junho de 2011.
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Os cuidados de saúde preventivos abarcam decisões e medidas em todos os
sectores da sociedade e envolvem diversos grupos profissionais. Os Clínicos
Gerais/Médicos de Família (CG/MF) desempenham um papel fulcral neste esforço,
tanto na conceptualização como na sua passagem à prática.
Visamos prevenir a morte prematura e reduzir as inequidades em saúde. Este
documento apresenta uma visão de como os CG/MF melhor podem e devem contribuir
para atingir estes objectivos. O documento também providencia recomendações
para as autoridades nacionais, regionais e locais. O relatório "Fair
Society, Healthy Lives" (Sociedade Justa, Vidas Saudáveis), da autoria de
Michael Marmot e colegas,1 foi uma das fontes de inspiração para as ideias
fundamentais expressas neste documento.
Pretendemos dar ênfase à importância dos dilemas éticos e científicos
relacionados com os cuidados de saúde preventivos.
Consideramos assim que:
• Iniciativas e estratégias sociais orientadas para a população devem ser
consideradas de prioridade superior face a estratégias preventivas primárias
dirigidas ao indivíduo e específicas de determinada doença.
• Os CG/MF devem assumir um papel activo nos cuidados de saúde preventivos
assim como no desenvolvimento profissional nesta área, devendo responsabilizar-
se também pela transmissão do conhecimento aos seus interlocutores e
colaboradores relevantes.
• A prática do Médico de Família deve ser concebida e organizada de uma forma
que inspire os médicos a discutir medidas preventivas relevantes com os seus
pacientes.
• Os CG/MF têm que ser capazes de proporcionar conselhos baseados no
conhecimento do que promove a saúde e previne a doença.
• Na aferição do risco de doença em geral, é importante considerar todos os
factores que influenciam o indivíduo: constituição biológica, história de vida
pessoal, história familiar e estilos de vida. Muitas doenças complexas e
prevalentes têm raízes comuns e tendem a manifestar-se em grupo num mesmo
paciente (co- e multi-morbilidades). Tal agrupamento de doenças pode melhor ser
prevenido influenciando factores causais subjacentes – por exemplo privação
social ou relações destrutivas.
• Influenciar as escolhas de vida com vista à prevenção constitui um desafio
pedagógico e ético e requer precaução. A avaliação do que é mais importante
para a saúde de cada ser humano tem de ser feita tendo em conta o respeito pela
situação e pelos valores da vida única de cada indivíduo. Os CG/MF devem
desenvolver uma consciencialização apurada da ocorrência de momentos especiais
("golden moments") em que as condições para um aconselhamento
preventivo são particularmente adequadas.
Base de conhecimento
As condições de vida desfavoráveis e a falta de suporte social são os factores
que, no total, têm maior impacto negativo na saúde das pessoas ao longo da sua
vida. Quanto mais elevada é a posição de um grupo na pirâmide social, melhores
são os indicadores estatísticos da sua saúde. Este é um dos maiores desafios
que o nosso estado social enfrenta, representando também um repto aos cuidados
preventivos em Medicina Geral e Familiar (MGF).
A investigação dos anos mais recentes no campo da Medicina e disciplinas
associadas contribuiu para uma compreensão muito mais profunda das ligações
fundamentais entre as condições de vida quotidiana e a saúde.2 Os novos
conhecimentos confirmam quão importante é considerar a saúde do indivíduo
perspectivando toda a sua vida e ter em devida conta os aspectos
socioculturais, relacionais e pessoais. Os CG/MF estão particularmente bem
posicionados por forma a contribuir para esforços preventivos orientados para
objectivos relacionados com os indivíduos. Isto implica que a Medicina Geral e
Familiar baseada no conhecimento tenha que abranger uma vasta área: por um
lado, a base de conhecimentos profissional tem que conter informação médica
geral relevante para a generalidade das pessoas. Tal inclui a "medicina
baseada na evidência" (MBE), sustentada por estudos experimentais e
análises epidemiológicas. Por outro lado, deve também ser reconhecida a
importância do conhecimento individual da pessoa ao longo do tempo, em relação
com as suas condições de vida, a sua situação na vida e a sua mundividência
subjectiva.
Actualmente, os CG/MF são objecto de elevadas expectativas, provenientes de
várias fontes, que clamam pela identificação de riscos e pela intervenção
precoce visando prevenir possíveis futuras doenças. Devem ser estabelecidos
critérios rigorosos no que respeita à sustentação científica e à relevância de
tais actividades preventivas proactivas. Os seus potenciais efeitos secundários
devem ser sempre antecipados e monitorizados. A discussão pública constitui um
pré-requisito para o desenvolvimento profissional óptimo neste campo. É preciso
também que o leque de medidas dirigidas a pessoas subjectivamente saudáveis
seja objecto de priorização e adaptado a outras obrigações e tarefas.
Estratégias recomendadas
A nível nacional, os cuidados de saúde preventivos são levados a cabo através
de iniciativas políticas, requisitos das autoridades, estratégias nacionais,
planos de acção e campanhas.
Está bem documentado que as boas relações são cruciais para a saúde de um
indivíduo. Políticas sólidas no que diz respeito a escolas, jardins infantis,
famílias e integração são assim de importância fundamental. Uma das mais
importantes medidas preventivas é assegurar que cada criança cresce num
ambiente seguro com a presença de um adulto responsável.
As estratégias nacionais para reduzir o consumo de tabaco, álcool e outras
substâncias intoxicantes são importantes. O mesmo se aplica a iniciativas que
tornam mais fácil ser-se fisicamente activo, bem como a outras medidas
preventivas gerais com o objectivo de reduzir a obesidade prejudicial. Tais
estratégias devem ser fundadas no reconhecimento de que a base para a adopção
de hábitos adversos à saúde é com frequência estabelecida precocemente na vida
e sob influência de condições exteriores ao indivíduo.
A importância do programa nacional de vacinação infantil é enfatizada, com a
reserva de que ainda permanecem em discussão os benefícios da vacina do Vírus
do Papiloma Humano (VPH).
Programas de rastreio para o cancro são actualmente alvo de debate
internacional. A sustentação científica de cada programa deve ser regularmente
aferida. A informação ao público tem que ser franca e equilibrada no que
respeita aos benefícios e aos potenciais danos. Os efeitos primários e
secundários devem ser apresentados em números absolutos e utilizando o mesmo
denominador de modo a permitir uma fácil comparação entre dano e benefício.
A nível regional e local, os cuidados preventivos devem ser postos no terreno
sob a forma de iniciativas de saúde pública interdisciplinares. Os municípios e
as autoridades regionais são responsáveis pela criação de um ambiente local de
promoção de saúde, tornando mais fácil a escolha de opções saudáveis,
facilitando medidas relevantes de promoção da saúde e prevenção da doença
dirigidas a grupos determinados, e tornando disponível a informação acerca de
tais iniciativas.
Os CG/MF são responsáveis por se familiarizarem com as actividades locais e
regionais de promoção da saúde, por forma a poderem oferecer conselhos
relevantes, práticos e individualizados. As associações de CG/MF e os elementos
de ligação entre estes e as autoridades locais e municipais podem constituir
fórum de grande utilidade para a troca de pontos de vista e de conhecimentos
sobre esta área.
Os CG/MF devem ser encorajados a participar activamente nas actividades locais
que concernem à saúde pública.
A nível individual, a informação, aconselhamento e orientação devem adaptar-se
às preocupações individuais e apoiar-se firmemente nos recursos e na vitalidade
de cada pessoa. Qualquer iniciativa no âmbito da prevenção tem que ser
considerada tendo em conta que as boas relações com familiares, amigos e
colegas, a par de um exercício profissional meritório e de uma apropriada
integração social são essenciais para a saúde do indivíduo.
Uma tarefa importante para os médicos de família consiste em apoiar os
indivíduos que procuram tomar bem conta de si e dos que lhes são próximos
limitando os seus consumos de tabaco, álcool ou outras substâncias
intoxicantes, e em encorajá-los a serem fisicamente activos e alimentarem-se de
forma saudável.
Os indivíduos que já estão doentes, e as pessoas que apresentam – ou que é
esperado que venham a apresentar – um risco significativamente aumentado de
doença no futuro devem ver garantida a boa acessibilidade ao seu médico de
família. Os CG/MF deverão mostrar-se particularmente atentos às pessoas que
foram ou estão a ser sujeitas a episódios vivenciais adversos, incluindo
trauma, negligência, violência e abuso. Pessoas que estejam em situações
exigentes, tais como cuidadores, indivíduos com problemas ligados ao álcool ou
drogas (e os que lhes são próximos), bem como aqueles com doença mental grave
ou sob tensão têm também um risco aumentado de contrair outras doenças. O mesmo
se aplica a indivíduos que estejam desempregados ou que por outras razões
perderam ou estão no processo de perder controlo sobre a sua situação de vida
ou emprego. É importante estar atento às crianças com pais ou irmãos muito
doentes ou pouco funcionantes. As crianças (desde a altura da sua concepção) e
as mulheres grávidas são grupos particularmente vulneráveis.
As linhas de orientação clínica para a prevenção de doenças específicas podem
constituir ajudas preciosas. É importante que os CG/MF estejam familiarizados
com elas, embora reconhecendo as suas forças e fragilidades metodológicas. As
linhas de orientação de índole oficial são geralmente baseadas em estimativas
médias com validade limitada face a um dado indivíduo. Os limiares recomendados
para a intervenção sobre um determinado risco não expressam factos médicos,
antes derivam de consensos fundados em dados resultantes da investigação e em
escolhas subjectivas dos valores. O processo de consenso é frequentemente
influenciado por círculos profissionais com líderes de opinião fortes e
empenhados. Ademais, os interesses comerciais estabeleceram há muito tempo as
premissas quer para as doenças que os médicos são encorajados a prevenir quer
para os métodos e instrumentos que devem usar.
Tanto a indústria farmacêutica como os meios ligados a certas especialidades se
focam intensamente em parâmetros biológicos e no uso de medicação.
A detecção de risco e respectiva intervenção nem sempre são benéficas para a
saúde. Se uma determinada medida não é vista como relevante e realista, pode
fazer com que o indivíduo se sinta preocupado e incapaz de reagir. Uma
focalização forte e selectiva em riscos mensuráveis pode contribuir para
distrair a atenção (quer do médico quer do paciente) de assuntos mais básicos
que são, no entanto, de maior importância para a vida e saúde da pessoa em
questão.
A soma total das intervenções recomendadas cria dilemas éticos e problemas
práticos consideráveis. Uma das razões que faz proliferar tais recomendações é
o aumento do número de doenças abrangidas por linhas de orientação de índole
oficial em simultâneo com a diminuição dos limiares de intervenção e de uso de
métodos de diagnóstico. Se todas as iniciativas recomendadas fossem postas em
prática, uma grande parte da população mudaria o seu estado de saudável para
"em risco". Sabemos que a auto-percepção de boa saúde é, em si
mesma, um factor de prognóstico significativo. O diagnóstico generalizado de
condições de risco e indisposições quotidianas como doença não deve ser
recomendado.
Devem merecer a oposição dos CG/MF as ajudas educacionais ou de comunicação das
quais se possa esperar que ofendam ou estigmatizem pacientes vulneráveis.
Situações em que o medo é combinado com impotência ou vergonha podem elas
mesmas prejudicar a saúde do indivíduo.
É preciso especial atenção no tratamento de pessoas saudáveis com medicamentos
que visam prevenir a doença. Os requisitos para a documentação dos efeitos a
longo prazo e dos efeitos secundários de medicamentos que vão ser usados por
pessoas saudáveis devem ser ainda mais exigentes do que para medicamentos
curativos usados em pessoas doentes. Os meios profissionais devem prestar mais
atenção aos riscos ligados a regimes preventivos com múltiplos medicamentos –
particularmente em idosos.
Os CG/MF devem estar atentos aos critérios definidos pela Organização Mundial
de Saúde para aplicação aos rastreios e devem entender que os "check-
ups" médicos abrangentes em pessoas saudáveis raramente representam um
uso racional e aceitável de recursos.