Prevalência e fatores condicionantes do aleitamento materno - Estudo ALMAT
INTRODUÇÃO
O Aleitamento Materno (AM) é o principal meio de nutrição durante o primeiro
ano de vida, nomeadamente no primeiro semestre de vida.1Várias organizações,
nomeadamente a Organização Mundial de Saúde (OMS) em conjunto com o Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Academia Americana de Pediatria e a
Sociedade Canadiana de Pediatria, recomendam AM exclusivo até aos 6 meses e a
sua manutenção, se possível, até aos dois anos.2-4
Todavia, apesar da natural disponibilidade do AM e das suas vantagens, diversos
fatores influenciam a sua implementação e respetivo abandono precoce.3,5
A amamentação proporciona vantagens não apenas em termos de crescimento, mas
também no desenvolvimento neurológico e emocional do ser humano.6O leite
materno diminui o risco de diversas patologias agudas e crónicas para o recém-
nascido, tais como proteção imunológica, com consequente diminuição do risco de
otite, meningite e diarreia, diminuição do risco de desenvolvimento de
alergias, doença celíaca, doença inflamatória intestinal, diabetes tipo 1 e 2,
hipertensão arterial, dislipidemia e, possivelmente, alguns tipos de
cancro.1,3,7 O AM apresenta também diversas vantagens para a mãe, nomeadamente
involução uterina mais rápida e completa, contraceção natural, recuperação de
peso ideal mais rápida, diminuição do risco de neoplasias (mama e ovário) e de
osteoporose.1,3,7,8 O AM materno é ainda importante no estabelecimento de um
forte vínculo emocional entre a mãe e o bebé.1,3,7,8
O AM depende de diversos fatores socioculturais, profissionais, nível
educacional e de ações de promoção da saúde levadas a cabo por profissionais de
saúde empenhados e motivados.5-17
Diversos estudos realizados em Portugal apontam para uma alta taxa de abandono
da amamentação, estimando-se que apenas cerca de um terço das parturientes
(entre 22,4% e 52,8%) continua a amamentar aos seis meses após o parto.10-17O
conhecimento desta prevalência na nossa população, bem como o de possíveis
causas para o abandono do AM, poderá ser um ponto de partida para a
implementação de medidas que visem uma melhor e mais eficaz promoção do
aleitamento materno na nossa população.
Neste contexto, o objetivo deste estudo consistiu em determinar a prevalência
do AM aos 6 meses em cuidados primários, bem como verificar se o seu abandono
precoce é independente da idade, paridade, escolaridade, situação profissional,
tabagismo, alcoolismo e nível de conhecimento das mães sobre os benefícios da
amamentação.
MÉTODOS
Realizou-se um estudo observacional analítico transversal, que decorreu de 1 de
agosto de 2010 a 30 de novembro de 2010 (duração de 4 meses).
A recolha de dados foi realizada por entrevista telefónica em duas Unidades de
Saúde Familiar (USF) do concelho de Ponte de Lima: USF Lethes e USF Mais Saúde.
Estas USF's são simultaneamente os locais de formação dos dois investigadores
que realizaram o estudo.
A população do estudo correspondeu às parturientes de 1 de janeiro de 2009 a 31
de dezembro de 2009 inscritas nas USF's acima referidas. Foram excluídas as
parturientes que por razões médicas (seropositividade para o Vírus da
Imunodeficiência Humana (VIH), seropositividade para o Vírus T-Linfotrópico
Humano (HTLV-1), tuberculose ativa não tratada, quimioterapia, consumo de
fármacos contraindicados durante a amamentação, consumo de drogas ilícitas,
seropositividade para citomegalovírus em mães com recém-nascidos prematuros,
doença metabólica do recém-nascido, como galactosémia e, lesões herpéticas
ativas na mama)5,19 não puderam amamentar.
A amostragem foi efetuada por técnica aleatória estratificada proporcional.
O número total de parturientes foi obtido a partir da listagem dos nascimentos
registados durante o ano de 2009, utilizando o programa SINUS. Verificou-se um
total de 222 nascimentos inscritos nas USF's, dos quais seis eram gémeos e seis
parturientes apresentavam critérios de exclusão. Assim a população foi de 210
parturientes (137 da USF Lethes e 73 da USF Mais Saúde). Considerando um nível
de precisão de 5% e um intervalo de confiança de 95%, com uma prevalência
esperada de AM aos 6 meses de 34%,12,13,16,17 calculou-se uma dimensão da
amostra de 131 indivíduos, utilizando o programa EpiInfo versão 3.5. Prevendo-
se uma taxa de resposta de 80%, a amostra foi alargada para 163 (106 da USF
Lethes e 57 da USF Mais Saúde).
Após o cálculo da amostra, a seleção das parturientes a ser inquiridas foi
efetuada por técnica aleatória simples, recorrendo ao programa informático
disponível no sítio da internet http://www.random.org/integers/
As variáveis estudadas foram o AM aos 6 meses (definida como sim, se aos seis
meses de idade do recém-nascido a mãe mantinha pelo menos uma mamada por dia),
variáveis sociodemográficas (idade, escolaridade, paridade), alcoolismo
(considerado presente se a mãe ingeriu duas ou mais bebidas por dia, durante os
primeiros seis meses após o parto), tabagismo (considerado presente se a mãe
consumiu diariamente tabaco durante a gravidez e/ou nos primeiros seis meses
após o parto), frequência das aulas de preparação para o parto (definido como
sim, caso tenha frequentado pelo menos três aulas de preparação para o parto) e
vigilância na USF (definido como sim, caso tenham sido realizadas pelo menos
seis consultas de saúde materna na USF).
Para a recolha de dados foi aplicado um questionário elaborado pelos
investigadores (Anexo_I).
Para obtermos uma maior taxa de resposta e reduzir o tempo de recolha de dados,
o questionário foi aplicado através de entrevista telefónica. Aquando do
contacto telefónico, foi obtido, oralmente, o consentimento informado.
O contacto telefónico foi realizado até cinco tentativas em diferentes dias e
horários para cada parturiente selecionada. As parturientes às quais não foi
possível efetuar a recolha dos dados por não terem contacto telefónico no
processo ou continuarem incontactáveis após as cinco tentativas de contacto
foram consideradas como não respondentes, assim como aquelas que, após adequada
explicação do estudo, se recusaram a participar.
Os investigadores realizaram um treino conjunto para uniformizar a entrevista,
tendo realizado um teste piloto a 20 indivíduos da população de estudo, que não
pertenciam à amostra.
Os dados recolhidos foram codificados, garantindo-se a confidencialidade, e
registados numa base de dados informática usando o programa SPSS® versão 17.0,
que também foi utilizado para o tratamento estatístico dos mesmos.
Procedeu-se à análise descritiva, à análise bivariada através dos testes Qui-
quadrado e de Fisher (para comparação de proporções) e Mann-Witney (para
comparação de médias) e à análise multivariada utilizando a Regressão
Logística. Nas variáveis em que se obteve uma relação estatisticamente
significativa foi, ainda, calculada a razão de prevalência, dividindo a taxa de
prevalência de AM aos 6 meses no grupo de puérperas que estava presente a
variável em estudo pela taxa de prevalência de AM aos 6 meses no grupo que essa
mesma variável não estava presente.
O nível de significância adotado para aceitação de diferenças estatisticamente
significativas foi de 0,05.
O estudo foi aprovado pela comissão de ética da Unidade Local de Saúde do Alto
Minho e a sua realização foi autorizada pela respetiva administração.
RESULTADOS
Responderam ao questionário 158 parturientes, o que corresponde a uma taxa de
resposta de 96,9%. A idade das inquiridas variou entre 19 e 44 anos, com uma
média de 29 (± 5) anos. A maioria possuía entre 7 a 12 anos de escolaridade e
cerca de metade era ativa. A maioria foi vigiada na USF, mas apenas 41%
frequentou as aulas de preparação para o parto. As caraterísticas
sociodemográficas das parturientes estão resumidas no Quadro_I.
A prevalência de AM aos 6 meses foi de 36% (IC 95% [29-42]). A prevalência de
AM aos 3, 9 e 12 meses foi, respetivamente, 60%, 27% e 14%.
Obteve-se uma relação estatisticamente significativa entre o AM aos 6 meses e a
idade materna (aumento da prevalência do AM com a idade), a escolaridade
(prevalência de AM maior nos extremos de escolaridade, com razão de prevalência
de 1,59 (IC 95% [0,94-2,68]), 1,00 (IC 95% [0,55-1,82]), 0,71 (IC 95% [0,38-
1,30]) e 1,32 (IC 95% [0,69-2,51]), respetivamente para = 6 anos, 7 a 9 anos,
10 a 12 anos e mais de 12 anos de escolaridade), e a frequência de aulas de
preparação para o parto (prevalência do AM maior nas mulheres que não
frequentaram as aulas de preparação para o parto, com razão de prevalência de
0,56 (IC 95% [0,34-0,91]). Não se encontrou associação estatisticamente
significativa entre o AM aos 6 meses e a situação profissional, o tabagismo, o
alcoolismo e a vigilância na USF. Apesar de não se ter obtido relação
estatisticamente significativa (p=0,36), observou-se uma tendência para um
aumento do AM aos seis meses com o aumento da paridade.
Para avaliar a possibilidade de existência de fatores de confundimento
realizou-se uma análise multivariada por regressão logística, deixando de haver
relação estatisticamente significativa relativamente aos fatores escolaridade e
frequência das aulas de preparação para o parto.
Calculou-se, ainda, a prevalência de AM aos seis meses em cada uma das USF's e,
ao contrário do esperado obteve-se uma diferença de prevalências
estatisticamente significativa, tendo sido de 29% numa das USF's e 48% na outra
(p=0,019). Fomos então verificar se as populações eram idênticas relativamente
a todos os fatores estudados e verificou-se que estas diferiam, de forma
estatisticamente significativa, a nível da escolaridade (p=0,008) e da paridade
(p=0,019). No entanto, como referido anteriormente, neste estudo não existiu
relação estatisticamente significativa entre estes fatores e o AM aos 6 meses.
DISCUSSÃO
Neste estudo a prevalência estimada do AM aos seis meses foi de 36% (±7), o que
está de acordo com os resultados obtidos por estudos nacionais e
internacionais.2,11-13,15-17,19
Neste estudo foi encontrada uma relação positiva estatisticamente significativa
entre a idade materna e o AM aos 6 meses. Esta associação está de acordo com a
literatura.10,12,13 Verificou-se também uma associação positiva entre o AM aos
6 meses e os extremos de escolaridade (menor ou igual a 6 anos de escolaridade
e ensino superior) e associação negativa entre o AM aos 6 meses e a frequência
nas aulas de preparação para o parto. Apesar de não ter sido encontrada uma
diferença estatisticamente significativa entre o AM aos 6 meses e a maior
paridade, observou-se uma tendência positiva entre a maior paridade e a maior
prevalência de AM. Todavia, após a análise multivariada, tais associações
deixaram de se verificar, pois a variável idade constituiu uma variável de
confundimento. As parturientes nos extremos de escolaridade e as parturientes
multíparas tinham uma média de idade superior e, por outro lado, as
parturientes frequentadoras das aulas de preparação para o parto tinham uma
média de idade inferior. Existem trabalhos publicados que reportam existir uma
associação positiva entre o AM e a maior escolaridade11-14,17 e
paridade,10,11,13,16,17 o que está em desacordo com os nossos resultados. No
entanto, nenhum dos estudos referidos refere que tenha sido efetuada análise
multivariada para excluir a existência de fatores de confundimento, que poderão
ter existido, tal como aconteceu na nossa população. Mais estudos, que utilizem
amostras maiores, idealmente multicêntricos e, em que seja analisada a
possibilidade da existência de fatores de confundimento deverem ser realizados
para esclarecer tais discrepâncias.
Não foi obtida associação estatisticamente significativa entre o AM e a
vigilância médica em consultas de saúde materna da USF, nem com a frequência de
aulas de preparação para o parto. Na nossa opinião, tais resultados poderão ter
sido resultado da contaminação exterior com informações e atitudes promotoras
do AM, veiculadas pela comunicação social, por outros profissionais de saúde
externos às USF's, por familiares, amigos e por sites de informação via
internet, anulando desta forma os efeitos supostamente benéficos da intervenção
pelos profissionais de saúde das USF's.11,17
A análise inferencial das variáveis tabagismo e consumo de álcool não revelou
qualquer associação estatisticamente significativa com o AM aos 6 meses, ao
contrário da literatura.17 É de salientar que nesta análise foi necessário
aplicar um teste estatístico com menor poder (Teste de Fisher), havendo a
possibilidade de ter sido introduzido um erro aleatório do tipo II.
Procedeu-se à análise estratificada por USF das parturientes. Constatou-se
haver uniformidade entre os dois grupos quanto à idade. Para surpresa dos
investigadores deste estudo, obteve-se uma diferença estatisticamente
significativa na prevalência do AM aos seis meses entre as duas USF. Foi,
então, estudada a influência dos fatores, separadamente nas duas USF's e
verificou-se que numa das USF's a menor e maior escolaridade está associada a
aumento da prevalência do AM aos 6 meses, enquanto na outra USF tal não se
verifica. Assim, os diferentes resultados de prevalência encontrados entre as
USF's poderão ter-se devido a influência de outros fatores não caraterizados
neste estudo, tais como o seguimento em consultas médicas particulares de
obstetrícia, estado civil, raça, nível socioeconómico e diferentes metodologias
de trabalho entre as duas equipas de saúde, nomeadamente no que concerne à
promoção do AM, que poderão ter atenuado a influência da escolaridade na USF em
que não se verificou associação com essa variável.
O presente estudo apresenta algumas limitações. A população estudada apresenta
dimensão reduzida, pelo que a estimativa da prevalência obtida encontra-se num
intervalo relativamente amplo. O reduzido tamanho amostral poderá, ainda, ter
impedido a rejeição de algumas das hipóteses nulas, quando na realidade poderão
ser falsas. A utilização de um questionário não validado poderá ter introduzido
um viés de medição. Os autores procuraram minimizar este inconveniente,
utilizando perguntas concisas, claras e de respostas objetivas. A existência de
dois entrevistadores poderá ter condicionado um viés do entrevistador por
diferenças na recolha de dados, todavia, este viés foi minimizado pelo treino
conjunto para uniformização da entrevista e pela realização do teste piloto. A
recolha de dados implicou um esforço de memória por parte dos participantes no
estudo, pelo que poderá ter sido introduzido um viés de memória. Procurou-se
minimizar este viés através da realização de uma entrevista pausada e da
aplicação de um questionário pouco extenso, com perguntas simples, de forma a
facilitar a cooperação dos participantes e a recordação dos factos relevantes
para o estudo.
Tanto quanto os investigadores deste trabalho têm conhecimento, tratou-se de um
estudo original em Portugal, no âmbito dos cuidados primários, uma vez que a
maioria dos estudos existentes é feita a nível hospitalar, por
pediatras.10,12,14-17De referir que os poucos estudos efetuados a nível dos
cuidados primários11,13 utilizaram amostras de menor dimensão que a nossa e não
foi efetuada, ou pelo menos não se encontra descrita, a realização de análise
multivariada. De salientar, ainda, deste trabalho que foram estudados fatores
de intervenção profissionais potencialmente promotores do AM20 levadas a cabo
pelas equipas de saúde das USF's (vigilância da gravidez na USF e frequência de
aulas de preparação para o parto) que, no entanto, como se verificou no estudo,
não parecem ser muito influentes na manutenção do AM.
Os autores salientam que o estudo foi realizado numa população de uma zona
geográfica de Portugal predominantemente rural, com características
socioculturais específicas e pertencentes a duas USF's, com rotinas de trabalho
próprias, pelo que, apesar da amostra ser representativa da população de
parturientes inscritas nestas duas USF's, não é possível generalizar os
resultados para a população portuguesa, nem tão pouco para o distrito de Viana
do Castelo.
Nas metas para a saúde no ano de 2000 a Organização Mundial de Saúde definiu
como objetivos aumentar a prevalência do AM aos 6 meses para 50%.21 A
prevalência do AM encontrada expressa uma realidade negativa, onde apenas cerca
de um terço das parturientes continuam a amamentar (exclusivamente ou não) aos
6 meses. Tendo em conta os benefícios do AM até pelo menos aos 6 meses de idade
e o seu impacto potencial na melhoria dos cuidados de saúde primários na nossa
população, importa conhecer melhor os fatores condicionantes do AM em cuidados
primários. Os resultados obtidos levam-nos a pensar que os motivos de abandono
do AM não podem ser encarados numa perspetiva simplista, mas sim num contexto
multifactorial complexo, que deve ser averiguado através da realização de mais
estudos, mais abrangentes e de maior dimensão.
É importante divulgar estes resultados na comunidade médica, como um incentivo
a novos estudos e à implementação e reforço de medidas promotoras do AM.