Utilização do SF-6D na medição das preferências dos portugueses: sistema de
valores e normas da população dos 18 aos 64 anos
Introdução
Existe um interesse crescente no estudo da variação entre países das valorações
dos estados de saúde e alguma evidência recente sugere que os resultados de um
país não têm necessariamente que ser transferíveis para outros países. Nos
últimos tempos tem-se assistido ao desenvolvimento de sistemas de valores dos
instrumentos de medição da qualidade de vida relacionada com a saúde baseado em
preferências mais utilizados, como o EQ-5D, o HUI e o SF-6D.
O SF-6D é um instrumento de medição da qualidade de vida relacionada com a
saúde baseado em preferências. Foi desenvolvido por Brazier, Roberts e
Deverill1 e recentemente têm sido muitos os estudos publicados utilizando
aquele instrumento (e.g.2-16). Nos últimos quatro anos foram desenvolvidos
estudos para determinar o sistema de valores para o Japão17 e Hong-Kong18. Em
2006 foi publicada a versão portuguesa do SF-6D19 e em 2009, o sistema
português de valores do SF-6D20. No entanto, esse sistema apresentava algumas
limitações. As principais limitações eram a existência de incoerências nos
pesos de alguns níveis das dimensões do SF-6D. A correcção dessas incoerências
permitiria obter um sistema de valores para o SF-6D para Portugal melhor que o
anterior.
A contextualização de estudos realizados em Portugal de qualidade de vida
relacionada com a saúde, de avaliação económica (nomeadamente de análises
custo-utilidade) e/ou de estudos de outra natureza em que seja utilizado o SF-
6D, é importante e necessária para muitos investigadores. Neste sentido, existe
uma clara necessidade da existência de normas para a população portuguesa para
o SF-6D.
O objectivo deste artigo é apresentar o sistema português de valores do SF-6D
sem incoerências e determinar as normas da população portuguesa dos 18 aos
64 anos.
Metodologia
Sistema português de valores do SF-6D
O desenho do estudo encontra-se descrito pormenorizadamente noutros
artigos20,21, apresentando-se aqui apenas um resumo. A valoração dos estados de
saúde foi realizada utilizando a técnica do Jogo Padrão, aplicado por
entrevista pessoal. Cada indivíduo respondeu às versões portuguesas do SF-
36v222,23, do EQ-5D e do SF-6D19 e a questões de natureza sócio-demográfica. Em
seguida, cada indivíduo ordenou seis estados de saúde definidos pelo SF-6D,
acrescidos de mais três estados: melhor (111111) e o pior (645655) definidos
pelo sistema descritivo do SF-6D e a morte imediata. Posteriormente, foram
colocadas aos respondentes seis questões de Jogo Padrão, em que tinham que
valorizar os seis estados de saúde definidos pelo SF-6D num jogo contra o
melhor (111111) e o pior estado de saúde (645655 ou morte imediata), consoante
a ordenação efectuada pelos respondentes.
Utilizou-se uma amostra estratificada óptima que se pretendeu ser
representativa da população portuguesa, reflectindo a sua variabilidade em
termos de idade e género20,21. A dimensão da amostra foi determinada com um
nível de confiança de 95% e uma precisão relativa de 4,6%. Os indivíduos foram
seleccionados aleatoriamente de uma base de amostragem da população portuguesa
com mais de 15 anos de idade, que incluía nome, morada, género, idade e
residência. As entrevistas foram realizadas nas residências dos indivíduos,
entre Abril e Outubro de 2006.
Os respondentes avaliaram um total de 55 estados de saúde, tendo cada estado
de saúde sido avaliado em média dez vezes (mínimo 9, máximo 11), representando
um total de 630 valorações20,21.
O modelo geral definido foi o seguinte20,21:
onde i = 1,2,..., n representa os estados de saúde, j = 1,2,..., m representa
os respondentes, yij é o valor ajustado do estado de saúde i valorizado pelo
respondente j, x'ij = (x1ij, x2ij,...,xnij) é um vector de v variáveis dummy
explicativas referenciadas à mesma unidade, nas quais xnij = xdlij para cada
nível λ da dimensão δ do SF-6D. Para qualquer estado de saúde as variáveis
dummy explicativas são definidas como λ se, para esse estado de saúde, a
dimensão d está no nível l, e igual a 0, em caso contrário, sendo o nível 1 a
base para cada dimensão. O termo r'ij = (r1ij, r2ij,...,ruij) é um vector de u
variáveis interaccionadas entre os níveis dos diferentes atributos, também
referenciadas à mesma unidade, β' = (β1, β2,...,βv) e θ' = (θ1, θ2,...,θu) são
vectores de parâmetros. O termo uj é a variação específica do respondente que
se assume variar aleatoriamente entre os respondentes e eij é um termo de erro
da i-ésima avaliação do estado de saúde pelo indivíduo j, assumindo-se que
varia aleatoriamente entre as observações com N [0,σ2e]. Para além disto, Cov
(uj,eij) = 0, o que significa que a alocação dos estados de saúde pelos
respondentes é aleatória. Foi ainda incluída no modelo uma variável dummy em
representação de todas as situações em que qualquer dimensão se encontra no
pior nível (PIOR), definida como tomando o valor 1 se qualquer dimensão estiver
no nível mais grave e 0 caso contrário.
Foram estimados diversos modelos cujos resultados são apresentados com algum
detalhe em Ferreira et al.20,21. Resumidamente pode-se referir que foram
estimados modelos lineares, modelos lineares mistos e modelos de efeitos
aleatórios com a constante forçada à unidade pelas equações de estimação
generalizadas (EEG), uma extensão do modelo linear generalizado para dados
correlacionados. Foi utilizada uma bateria de medidas de bondade do
ajustamento, que levou à escolha do modelo de efeitos aleatórios estimado com a
constante forçada à unidade pelas EEG com efeitos principais. No entanto, este
modelo apresentava algumas incoerências, na medida em que se esperava que os
coeficientes estimados aumentassem em grandeza absoluta, uma vez que as
variáveis dummy representam problemas progressivamente piores em cada dimensão,
quando comparadas com a base de cada dimensão20,21. Por esta razão, considerou-
se que ocorria uma incoerência quando um coeficiente estimado diminuísse em
valor absoluto, quando se passasse para um nível mais grave de uma dada
dimensão. Para resolver este problema, seguiu-se uma abordagem já utilizada na
literatura24: agregaram-se os níveis das dimensões em que ocorriam
incoerências, de forma a obter escalas consistentes. Os modelos foram então
estimados novamente, tendo-se obtido modelos parcimoniosos sem incoerências21.
Normas portuguesas do SF-6D dos indivíduos entre 18 e 64 anos
Para a obtenção das normas portuguesas dos 18 aos 64 anos foi utilizada uma
amostra aleatória de 2.459 indivíduos pertencentes à população residente em
Portugal continental, com idades entre 18 e 64 anos de idade, cujo desenho
amostral se encontra descrito com mais detalhe em Ferreira e Santana25.
Embora a amostra tenha sido aleatoriamente seleccionada, diferia ligeiramente
da população portuguesa entre os 18 e os 64 anos. Para resolver este problema,
foi necessário utilizar métodos de estimação pós-estratificados para ponderar
(ajustar) os resultados iniciais por idade e género, de acordo com os valores
da população portuguesa11. Neste estudo, os dez pós-estratos resultantes do
cruzamento das duas variáveis eram conhecidos ao nível populacional. O problema
de estimação foi assim reduzido ao caso em que se utiliza apenas uma variável
de pós-estratificação sendo os métodos de pós-estratificação directamente
aplicáveis. Foram utilizados estimadores pós-estratificados, baseados na
abordagem design-based, que considera que as características da população são
fixas e que a componente probabilística é introduzida quando se adopta um
determinado plano de amostragem26. Os estimadores utilizados são apresentados
seguidamente.
Sendo yhi a utilidade SF-6D do i-ésimo indivíduo pertencente ao pós-estrato h,
o estimador pós-estratificado para a média é dado pela equação seguinte11:
onde N é a dimensão da população, n é a dimensão da amostra, Nh é o número de
indivíduos da população que pertencem ao pós-estrato h e nh é o número de
indivíduos da amostra que pertencem ao mesmo pós-estrato. A partir desta
equação é possível concluir que o estimador pós-estratificado é uma média
ponderada, em que as utilidades de cada indivíduo pertencente à amostra são
pesadas. Isto é, os resultados amostrais são ajustados pelos pesos de acordo
com as classes definidas na população da variável auxiliar qualitativa.
A média da utilidade SF-6D para um subgrupo da população (e.g. mulheres)
deveria ser estimada utilizando um estimador pós-estratificado para domínios.
Sendo um domínio uma subpopulação de dimensão desconhecida, para a qual se
pretendem estimar parâmetros, se for possível identificar domínios de estudo
antes de a amostra ser recolhida, então o plano de sondagem a adoptar deverá
ter em consideração esses domínios planeados, considerando-os como estratos27.
Como na definição do plano de sondagem não se tomou em consideração a definição
desses domínios (e.g. mulheres, homens, casados, solteiros, etc.) como
estratos, eles são designados como domínios não planeados.
Da mesma forma, sendo ydhi a utilidade SF-6D observada do i-ésimo indivíduo
pertencente ao pós-estrato hno domíniod, o estimador pós-estratificado para a
média dos domínios é dado pela equação27:
onde Nd é a dimensão da população no domínio d, nd é a dimensão da amostra no
domínio d, Ndh é o número de indivíduos da população que pertencem ao pós-
estrato h no domínio d e ndh é o número de indivíduos da amostra que pertencem
ao mesmo pós-estrato no domínio d. Nos casos em que o domínio coincide com o
pós-estrato, Ndh = Nh e ndh = nh, as equações (2) e (3) são análogas.
Na tabela 1 são indicados os ponderadores finais utilizados para cada estrato,
as dimensões amostrais e populacionais28 por género e classe etária.
Tabela_1 -Dimensão populacional, dimensão amostral, pesos na população e na
amostra e ponderadores por estrato
Os indivíduos responderam à versão portuguesa do SF-36v2 e a questões de
caracterização. O questionário foi aplicado por entrevista pessoal em 200225. O
sistema de valores parcimonioso do SF-6D foi aplicado a esses dados para
determinar as preferências dos indivíduos e obter as normas da população
portuguesa dos 18 aos 64 anos.
Para apresentação das normas portuguesas dos 18 aos 64 anos foi realizada uma
análise descritiva, tendo-se calculado frequências e medidas de estatística
descritiva para os valores do SF-6D. A sua organização em tabelas seguiu a
estrutura dos valores apresentados para o EQ-5D no Reino Unido29 e noutros
países30. Foram também realizados testes paramétricos e testes não paramétricos
na análise da existência de diferenças entre os grupos sociodemográficos. A
análise de dados e a modelação econométrica foram realizadas nos programas
Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 17.0 e Stata, versão
9.1.
Resultados
Sistema português de valores do SF-6D
A tabela 2 apresenta os resultados dos modelos estimados pelas EEG (M1 e M2)
que foram considerados os melhores modelos em termos da bateria de medidas de
bondade do ajustamento, número de coeficientes negativos e número de
coeficientes significativo21. Como se pode observar pela tabela 2, esses
modelos apresentavam cinco incoerências, na medida em que se verificaram cinco
situações em que um coeficiente estimado diminuía em valor absoluto, quando se
passava para um nível mais grave de uma dada dimensão. Neste sentido, decidiu-
se agregar os níveis das dimensões em que ocorriam incoerências24 e estimar
novamente os modelos, tendo-se obtido modelos parcimoniosos sem incoerências21,
que são também apresentados na tabela 2.
Tabela 2 - Modelos EEG e modelos coerentes parcimoniosos (n = 630)
O modelo parcimonioso para o M1 (M3) corresponde à especificação preferida para
o sistema de valores do SF-6D e é consistente com o sistema de valores do SF-6D
do Reino Unido21.
A figura 1 compara os valores dos estados de saúde previstos pelo M3 com os
observados. A partir da figura é possível concluir que embora a subprevisão dos
estados de saúde menos graves tenha sido reduzida relativamente aos resultados
apresentados anteriormente20, existe ainda um problema de subprevisão dos
estados de saúde mais graves. No entanto, a figura 1 mostra claramente que, de
uma forma geral, o M3 prevê adequadamente os estados de saúde observados.
Figura_1 -Valores dos estados de saúde observados e previstos pelo M3. Fonte:
adaptado de Ferreira et al.21.
Normas portuguesas do SF-6D dos indivíduos entre 18 e 64 anos
Na tabela 3 são resumidas as principais características da amostra utilizada
(n = 2.459) e da população portuguesa com idades compreendidas entre os 18 e os
64 anos28,31,32.
Tabela_3 -Principais caracterí da amostra e da população portuguesa (18-64
anos)
Os 2.459 indivíduos pertencentes à amostra tinham uma idade média de 37 anos
(DP = 11), sendo na sua maioria mulheres (58,1%). Com idades compreendidas
entre os 18 e os 64 anos, a amostra era predominantemente constituída por
indivíduos entre os 35 e os 54 anos de idade (64,4%). É ainda de referir que
69,5% dos indivíduos eram casados ou viviam em união de facto e 25,5% eram
solteiros. Cerca de 47% dos indivíduos tinham um nível baixo de escolaridade
(primário ou básico) e 5,5% não sabiam ler, nem escrever. No que respeita à sua
situação face ao trabalho, cerca de 30% eram trabalhadores qualificados e cerca
de 35% não qualificados; por outro lado, 16,9% eram domésticas. Relativamente
ao local de residência, cerca de 63% residiam numa zona rural e cerca de 37%
numa zona urbana ou semiurbana.
A tabela 4 apresenta a distribuição das respostas dos indivíduos às dimensões
do SF-6D.
Tabela_4 -Distribuição das frequências relativas das dimensões do SF-6D (%) (n
= 2.459)
Estes resultados mostram níveis elevados de problemas nas dimensões Limitação
no Desempenho, Dor Física, Saúde Mental e Vitalidade, uma vez que mais de 56,1%
dos indivíduos responderam nos níveis 3 a 6. Além disto, 65,5% dos indivíduos
identificaram algumas limitações na Função Física e 53,6% na sua Função Social.
É ainda de notar que as dimensões Função Física e Limitação no Desempenho
apresentam um elevado número de indivíduos nos seus últimos níveis,
evidenciando o problema de efeito chão, uma das limitações que caracterizam o
SF-6D3,6,8,9,11,12,33.
O recurso aos estimadores pós-estratificados permitiu o cálculo da utilidade
média dos estados de saúde da população activa portuguesa, tendo-se chegado a
um valor médio de 0,81 (DP = 0,12). As normas portuguesas do SF-6D relativas à
população dos 18 aos 64 anos por género, grupo etário, estado civil e nível
habilitacional foram calculadas utilizando-se os estimadores pós-estratificados
para domínios, tendo-se previamente definido os estratos a partir do género e
dos grupos etários, tal como já havia sido referido. Os resultados são
apresentados nas tabelas 5 e 6.
Tabela_5 -Normas do SF-6D relativas à população portuguesa dos 18 aos 64 anos.
medidas descritivas do SF-6D por género e grupo etário
Tabela_6 -Normas do SF-6D relativas à população portuguesa dos 18 aos 64 anos.
medidas descritivas do SF-6D por estado civil e habilitações literárias
A partir das tabela_5 e dos testes paramétricos realizados foi possível
observar os valores mais baixos de utilidade atribuídos pelas mulheres quando
comparados com os dos homens (t = -9,114; gl = 2.425; p < 0,001). São também os
jovens (18-24 anos) os indivíduos que apresentaram valores médios mais
elevados, sendo as diferenças em relação aos mais velhos significativas para
todos os grupos etários (H = 144,300; gl = 4; p < 0,001). Contudo, estes
valores não são tão elevados como os observados noutras populações, talvez por
causa de uma tendência dos portugueses referirem valores mais baixos em termos
de avaliação do estado de saúde (veja-se por exemplo34-36).
Analisando a tabela_6 verifica-se que as utilidades médias foram 0,13 mais
baixas no nível mais baixo de instrução quando comparado com as do nível de
instrução mais alto (H = 270,924; gl = 3; p < 0,001). Na tabela_6 constata-se
também que as pessoas solteiras e as casadas/união de facto apresentam valores
médios de utilidade mais altos quando comparados com os viúvos e os
divorciados/separados (H = 101,163; gl = 3; p < 0,001).
Verificou-se também que os habitantes em áreas rurais apresentaram também
valores médios mais baixos de utilidade em relação aos cidadãos que vivem nas
áreas urbanas (t = 3,107; gl = 1971; p < 0,005). Em relação à situação
profissional, os trabalhadores não qualificados, as domésticas e os
aposentados/reformados apresentaram valores de utilidade mais baixos do que os
trabalhadores qualificados e do que os estudantes (H = 215,962; gl = 5;
p < 0,001).
Conclusão
Neste artigo foi apresentado o sistema português de valores do SF-6D sem
incoerências, que era uma das limitações encontrada nos resultados publicados
recentemente em Ferreira et al.20. Estes resultados proporcionam um sistema de
valores adaptado às especificidades e cultura da população portuguesa e,
portanto, uma alternativa ao sistema de valores britânico do SF-6D.
Este sistema foi aplicado a uma amostra da população portuguesa dos 18 aos
64 anos (n = 2.459) que havia respondido ao SF-36v2, após se ter aplicado a
pós-estratificação de forma a ajustar os resultados iniciais por idade e
género, de acordo com os valores da população portuguesa. Desta forma,
obtiveram-se as normas portuguesas dos 18 aos 64 anos do SF-6D por idade,
género, estado civil e nível de habilitações literárias.
É, ainda, de referir que, seguindo a opinião de alguns autores37 que realçam a
necessidade da validação do sistema de valores obtido para um determinado país
a partir da população em geral, em amostras de doentes e em subgrupos culturais
eventualmente existentes na população em geral, já se iniciou a sua validação
em amostras de indivíduos com algumas doenças com elevada prevalência em
Portugal, como a artrite reumatóide2, as cataratas10 e a asma13 e está neste
momento a ser desenvolvida noutras doenças, como a doença pulmonar obstrutiva
crónica. Prevê-se, para um futuro próximo, a sua validação em oncologia e em
outras doenças do foro reumatológico.