A(s) crise(s) e a(s) resposta(s) da saúde pública
EDITORIAL
A(s) crise(s) e a(s) resposta(s) da saúde pública
Crisis (s) and answer (s) of public health
Maria Isabel Loureiroa,b, Luís Graçaa,*
aGrupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde, Escola Nacional de Saúde
Pública, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal
bGrupo de Disciplinas de Estratégias de Ação em Saúde, Escola Nacional de Saúde
Pública, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal
«O que podem os cientistas fazer para ajudar a proteger a saúde pública em
tempos de crise económica?» perguntavam, em maio de 2010, três reputados
homens das ciências da saúde, David Stuckler, Sanjay e Martin McKee. A resposta
só podia ser esta: «They should promote an evidence-based approach to economic
and public health recovery, analysing past successes and failures. This will
lead to a better understanding of why some people, households, communities and
societies are resilient to external shocks» (Nature, 465, 20 May 2010, p. 289).
Sim, podemos (e devemos) aprender com os erros e os sucessos do passado.
Todavia, há que ter em conta que os contextos da(s) crise(s) são muito
diversos, das pandemias de gripe (1918/19, 1957/58, etc.) às crises económicas.
Um dos aspetos mais dramáticos que está a assumir a atual crise (e as atuais
políticas económicas baseadas na austeridade fiscal e nos cortes orçamentais) é
o desemprego, o desemprego de longa duração, o desemprego dos jovens, o
empobrecimento. Os mais cínicos (ou realistas) dirão que a crise ' e a
violência, com toda a carga material, simbólica e cultural que ela contém ', é
o «parteiro da história». Que são as crises, os conflitos, que geram «inovação
e mudança». Que as sociedades (e não apenas o mercado) têm mecanismos de
autorregulação. Vistas da perspetiva da saúde pública, as crises são também
verdadeiras «caixas de Pandora», metaforicamente falando. E, claro, podemos
responder a elas com «inteligência social» ou podemos deixar que a «natureza
siga o seu curso», esperando, no caso da economia, o regresso ao business as
usual.
O desemprego, dizem-nos, está inscrito na matriz original do sistema económico
(cujo pensamento dominante pressupõe, de resto, o consumo infinito de recursos
finitos, a começar pelos produtores). As estatísticas deveriam falar por si só,
mas a verdade é que escondem o drama, as vivências e a angústia de milhares e
milhares de indivíduos, famílias e comunidades. Em termos de saúde individual
(e familiar), as implicações do desemprego serão mais sérias no caso dos
trabalhadores idosos, dos jovens trabalhadores precários, dos trabalhadores
pouco ou nada qualificados, que foram, logo nos anos 80/90, as primeiras
vítimas do downsizing e da reengenharia, dois eufemismos para designar os
processos de reestruturação do tecido produtivo, numa altura em que se falava
já das maravilhas e das perplexidades do «novo mundo», aberto pela «terceira
vaga», a sociedade pós-industrial, pós-moderna, etc.
Seria, contudo, abusivo falarmos em termos de generalidade: a experiência do
desemprego ' um exemplo entre outros das consequências da crise ', não é vivida
da mesma maneira por todos os indivíduos. Há uma multiplicidade de fatores
(individuais, organizacionais e societais) a ter em conta, incluindo as redes
de suporte social. E é aqui que entra o papel do Estado, em assegurar o acesso
de todos à educação e à saúde, à proteção social, em criar incentivos e apoio
ao empreendedorismo, etc., papel esse que não pode ser posto em causa pela
crise económica e financeira, com o risco do agravamento das condições sociais,
numa espiral descendente, com desrespeito pelos direitos humanos e pelo
investimento que os cidadãos fazem na «res publica», o Estado que é pressuposto
estar ao serviço de todos nós.
E o que pode, afinal, a saúde pública fazer hoje, aqui e agora? Um dos desafios
que nós temos, face às profundas mudanças que se estão operar, nas nossas
sociedades, a todos os níveis (sociodemográficas, económicas, organizacionais,
tecnológicas, culturais, etc.), tem a ver com a valorização estratégica dos
nossos recursos humanos, valorização essa que não passa só pela fileira da
educação, formação e qualificação, mas também pela proteção e promoção da
saúde.
A saúde pública pode e deve: (I) defender e melhorar o Serviço Nacional de
Saúde; (II) defender uma abordagem de «saúde em todas as políticas»; (III) pôr
na agenda o tema da cidadania em saúde; (IV) investir em literacia em saúde;
(V) valorizar e incentivar a participação dos cidadãos nas políticas e serviços
de saúde; (VI) identificar e divulgar exemplos de boas práticas de resposta
(social e inteligente) aos riscos para a saúde em tempo(s) de crise(s); (VII)
promover as sinergias que resultam de diferentes parcerias; (VIII) reforçar o
trabalho em rede; (IX) valorizar e incrementar a articulação entre o poder
local, a ação social, a saúde, a educação e a sociedade civil; (X) contribuir
para a definição de critérios válidos e fiáveis para a avaliação do desempenho
do sistema de saúde; (XI) pensar globalmente e saber (re)agir localmente e,
sobretudo, pensar bem e (re)agir melhor; (XII) monitorizar o impacto da(s)
crise(s) nos grupos mais vulneráveis da população e levar a cabo ações para
proteger e promover a sua saúde; (XIII) alertar os diferentes «stakeholders»
para a necessidade de reforçar e dar prioridade à segurança alimentar, numa
luta contra a fome e a malnutrição, incluindo a obesidade; (XIV) reforçar a
capacidade das equipas e dos profissionais de saúde para ajudar a lidar com a
perda, o luto, a dor, o sofrimento psíquico; (XV) detetar precocemente sinais
de alteração da saúde das pessoas e, em particular, da saúde mental, e ter
programas ativos e eficazes de prevenção neste domínio; e, (XVI) nunca esquecer
que a saúde é determinada, e em muito, fora dos serviços de saúde, e que, por
fim, e não menos importante, (XVII) proteger e promover a saúde requer
investimentos no e do complexo sistema socioecológico onde os seres humanos
nascem, respiram, vivem, pensam, crescem, se formam, se divertem, estudam,
trabalham, produzem, consomem, adoecem, envelhecem e morrem.
À saúde pública cabe, em última análise, a tarefa nobre, mas extremamente
complexa e exigente, de manter em bom nível de articulação e coerência o
binómio saúde-esperança. Porque, e parafraseando um provérbio árabe, «quem tem
saúde tem esperança; e quem tem esperança, tem tudo».
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Autor para Correspondência: luis.graca@ensp.unl.pt
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