Perspetivas atuais sobre a proteção jurídica da pessoa idosa vítima de
violência familiar: contributo para uma investigação em saúde pública
Introdução
O fenómeno da violência, nas suas diferentes formas, é hoje reconhecido como um
problema de saúde, e de saúde pública em especial1. Esta conceção surge na
década de 80, face à constatação de que estes fenómenos, que representam uma
das principais causas de sofrimento humano2, podem ser prevenidos se os fatores
de risco que os potenciam forem conhecidos e definida uma estratégia de
intervenção pública. É neste âmbito que a atuação em saúde pública se torna
necessária, considerando o seu objetivo ' assegurar a promoção, proteção e
melhoria da saúde dos indivíduos e das populações3 ' bem como a abordagem
multidisciplinar e baseada na evidência1, as quais são fundamentais quando se
trata de estudar e compreender esta e outras realidades.
De entre as diversas formas de violência, a violência em contexto familiar tem
vindo a ganhar visibilidade social e jurídica, nomeadamente através da adoção
de regimes específicos de proteção de mulheres e de menores. Neste sentido, a
violência contra as pessoas idosas, que se traduz numa grave violação dos
direitos humanos4, não pode e não deve ser entendida como um fenómeno isolado,
considerando, em especial, o aumento dos relatos de episódios verificados em
contexto familiar5. Estes fenómenos, descritos por Juan Muñoz Tortosa como «un
problema oculto y una de las últimas formas de violencia interpersonal
identificada como problema social»6, são hoje generalizados e globalmente
reconhecidos, sendo assumido e aceite que ocorrem em «qualquer lugar,
perpetrado por qualquer pessoa, ainda que frequentemente se trate de um
familiar»7.
A dimensão do problema, de que se tem uma noção diminuta, atenta contra a
reserva da vida familiar em que ocorre, e os custos sociais, económicos e
individuais associados aos fenómenos de violência8,9, não só recomendam a
realização de um maior número de estudos que permitam o seu conhecimento e
posterior prevenção, como colocaram a questão da violência contra as pessoas
idosas nas agendas políticas internacionais, e lhe conferiram maior
visibilidade social10, facto este potenciado igualmente pelo envelhecimento
demográfico das sociedades contemporâneas.
No entanto, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), é necessário ir mais
além, considerando que as políticas adotadas não terão qualquer eficácia se não
forem efetivamente aplicadas, reconhecendo ainda a inexistência, na maioria dos
ordenamentos jurídicos, de um quadro legal próprio, adequado à proteção da
pessoa idosa vítima de maus tratos e violência11,12.
Na análise dos principais documentos emanados sobre o fenómeno da violência
pelos organismos internacionais, como sejam a OMS e a Organização das Nações
Unidas (ONU), identifica-se um primeiro problema: a ausência de uma matriz
conceptual clara entre as diferentes terminologias utilizadas, i.e. violência/
abuso/maus tratos. Esta heterogeneidade conceptual tem consequências
inevitáveis na forma como se avalia e se medem as diferentes formas de
violência, pelo que é importante procurar um quadro conceptual que permita
agregar consensos, tal como referem Paul e Larion ao afirmarem «Es
imprescindible establecer acuerdos sobre la definición precisa del concepto de
malos tratos a los ancianos, sobre los límites del mismo y sobre las tipologías
en las que se concreta. [ ] No obstante, cualquier definición de este tipo de
problemas suele tener dificultades derivadas de una cierta vaguedad e
imprecisión que deja poco claros los límites del concepto y suele presentar
problemas de interpretación derivados de relativismos socioculturales y sesgos
de tipo profesional y personal»10. Um segundo problema detetável, à partida,
nesta área, refere-se à ausência de uma operacionalização da tipificação
criminal prevista na lei, havendo necessidade de «traduzir» os crimes
tipificados em condutas, de modo a agilizar a conformidade entre a lei
portuguesa e os resultados obtidos através da investigação sociológica e/ou
epidemiológica que se realiza no terreno.
Sendo certo que a penalização em sede criminal da violência familiar se revela
dissuasora e sancionatória, a verdade é que tal não impede que as pessoas
idosas vítimas de violência sofram muitas vezes danos graves sem os
denunciarem10, o que, per si, justifica uma análise mais aprofundada daqueles
dispositivos jurídico-penais, no âmbito do presente artigo.
Face aos problemas descritos, este artigo visará, numa primeira parte, de
natureza teórica, identificar e analisar de forma crítica a terminologia em
conflito, no sentido de clarificar e, numa segunda parte, proceder a uma
análise de soluções normativas adotadas em outros ordenamentos jurídicos para
as situações de violência sub judice, de forma a podermos, em Portugal,
conhecer e ponderar a adoção de respostas legais que melhor acautelam os
direitos e interesses das pessoas idosas vitimas de violência em contexto
familiar.
Considerou-se ser fundamental, numa terceira parte de natureza mais pragmática,
propor uma matriz analítica que permita fazer a correspondência entre os crimes
tipificados na lei portuguesa e os conceitos operatórios utilizados pela
literatura especializada nesta área. Pretende-se construir um modelo de análise
que permita «medir» as condutas que irão ser alvo de avaliação num estudo de
prevalência a desenvolver no âmbito do projeto de investigação financiado pela
Fundação para a Ciência e Tecnologiaa, denominado «Envelhecimento e Violência
(2011-2014)b»
Este artigo pretende realizar um desafio de reflexão, ou seja, propor «ex novo»
um quadro operacional que faça corresponder à terminologia adotada na
literatura relativa a condutas de violência a linguagem jurídico-legal dos
crimes tipificados na lei portuguesa relevantes nesta área.
A questão terminológica: os conceitos de «violência»/«abuso»/«maus tratos»
Tal como mencionado, a primeira necessidade sentida sobre a problemática em
estudo no presente artigo foi a de clarificar a terminologia fundamental a
utilizar no mesmo, de forma a responder a questões como: «De que se fala quando
se usa a expressão violência? O que é o abuso? O que são os maus tratos? O que
significa negligência?»
Numa perspetiva sistemática em que se pretendiam integrar as diversas
abordagens presentes na literatura oriunda de entidades idóneas, recolheu-se
informação nos principais documentos internacionais relativos à temática da
violência contra pessoas idosas, em especial, dos documentos emanados da OMS,
ONU e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), entre outras.
Uma primeira incursão nestes textos permitiu-nos verificar a dificuldade na
identificação de uma matriz conceptual clara entre as diferentes terminologias
adotadas. De facto, o uso dos conceitos de «abuso» e «maus tratos» surge de uma
forma quase sinónima, tal como sucede na Declaração de Toronto de 2002, sobre
abuso de pessoas idosas11, ou no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde,
que, nas suas múltiplas traduções, recorre a ambos os termos sem distinção. Na
versão em língua inglesa, o termo utilizado é «elder abuse»1, tal como se
verifica na versão em italiano, que recorre à expressão «abuso sugli
anziani»13. Já as versões em francês e castelhano recorrem à expressão
«maltraitance»14 e «maltrato»15, como em língua alemã, que adota a expressão
«Misshandlung alter Menschen»16. Nos próximos parágrafos desenvolvem-se estas
ideias em particular para cada um dos conceitos sob análise.
O conceito de «violência»
Começamos por apresentar os conceitos de violência formulados em 2002 por
organizações internacionais de impacto relevante nesta área, em que a primeira
é a OMS, na qual se define a «violência contra as pessoas idosas» como «um ato
único ou repetido, ou a falta de uma ação apropriada, que ocorre no âmbito de
qualquer relacionamento onde haja uma expectativa de confiança, que cause mal
ou aflição a uma pessoa mais velha»11. Por sua vez, a ONU define violência, em
termos gerais, como «todo o ato de natureza violenta que acarreta, ou tem o
risco de acarretar, um prejuízo físico, sexual, ou psicológico; que pode
implicar ameaças, negligência, exploração, constrangimento, privação arbitrária
da liberdade, tanto no seio da vida pública como privada»17. Já a definição
avançada pela 2.ª Assembleia Mundial sobre Envelhecimento assemelha-se à
adotada pela OMS: «qualquer ato único ou repetido, ou falta de ação apropriada
que ocorra em qualquer relação, supostamente de confiança, que cause dano ou
angústia, a uma pessoa de idade»18.
As três definições transcritas assentam em pressupostos comuns: um ato ou
conduta, variável de acordo com a sua natureza e tipo, uma relação interpessoal
de confiança e uma consequência que provoca um efeito, obrigatoriamente
traduzido num dano físico e/ou mental.
No Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, a violência contra a pessoa idosa
adquire ainda uma maior abrangência quando é definida como «o uso intencional
de força física ou poder, sob a forma de ameaça real, contra si mesmo, contra
outra pessoa, grupo ou comunidade, do qual resulte, ou exista a probabilidade
de resultar, uma lesão física ou psicológica, morte, atraso de desenvolvimento,
ou qualquer forma de prejuízo ou privação»1. Nesta definição são abrangidos
diversos subconceitos para densificar o conceito principal, tais como o ato de
violentar, a veemência, a irascibilidade, o abuso de força, a tirania, a
opressão, bem como o constrangimento e a coação, não se contemplando as
situações em que não haja intencionalidade no agir. No relatório aqui referido,
a OMS considera ainda como forma de violência a privação e a negligência,
reconhecendo-se a necessidade de desenhar uma estratégia global para a sua
prevenção, na qual foram definidas três grandes áreas: negligência (isolamento,
abandono e exclusão social); violação (direitos humanos legais e médicos) e a
privação (eleição, tomada de decisões, situação social, gestão económica e de
respeito).
No que concerne à natureza dos atos, a OMS, no relatório aqui citado,
identifica quatro formas essenciais de violência: a física, a sexual, a
psicológica e a privação ou negligência. No entanto, no capítulo quinto,
dedicado à violência contra a pessoa idosa, às categorias referidas acresce a
violência financeira ou material, a qual contempla o uso «ilegal e impróprio»
do património da pessoa idosa1. Deste modo, e apesar do uso generalizado do
conceito de violência no referido relatório, no capítulo destinado à pessoa
idosa, a terminologia usada é o conceito de abuso1, pelo que se pode concluir
essencialmente através da leitura deste documento que não existe uma
uniformidade oficial nos termos utilizados.
No ponto seguinte, abordaremos o conceito de abuso, o qual, como veremos,
apresenta um significado diverso do conceito de violência.
O conceito de «abuso»
A problemática em torno dos conceitos em causa não é recente. No que se refere
ao conceito de «abuso», têm sido realizadas tentativas no sentido de se
encontrar uma definição capaz de agregar consensos, como a apresentada por
Loughlin e Duggan, em 1998, centrada em três ordens de definições a partir do
âmbito em que a temática é tratada: legal definitions, no âmbito de processos
de tomada de decisão em entidades de natureza pública; case-management, nos
processos associados à prestação de cuidados de saúde, e por fim as definições
para efeitos de investigação19.
O termo «abuso de pessoa idosa», genericamente designado na literatura
internacional como «elder abuse» ou «mistreatment», encontra-se definido no
Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, como a «ação ou omissão, intencional
ou não, da qual resulta sofrimento desnecessário, lesão, dor, a perda ou a
violação dos direitos humanos, e consequentemente uma diminuição da qualidade
de vida do idoso»1. Evidenciando-se aqui uma primeira diferença face ao
conceito de violência, diferença essa que se traduz na admissibilidade de
ausência de intenção.
De igual modo, o abuso poderá também revestir uma natureza multifacetada,
abrangendo diversos âmbitos: físico, sexual, psicológico ou financeiro, podendo
a intencionalidade subjacente ser mais ou menos consciente, desde que seja
causa suficiente e adequada para provocar danos temporários ou permanentes à
pessoa idosa vítima da conduta em questão. Já em 1995, a organização não
governamental inglesa «Action on Elder Abuse» sintetizava a noção de abuso
contra pessoa idosa como sendo o «ato ou a repetição de atos, bem como omissão
de atuação adequada, nas situações em havendo uma relação de confiança, esta é
defraudada, daí decorrendo dano ou sofrimento para a pessoa idosa», os quais se
concretizam numa atuação que pode consubstanciar uma atuação de natureza
física, psicológica, financeira ou material1.
Uma outra similitude com o conceito de violência decorre das diversas formas
que o conceito de abuso pode também tomar, reconhecendo-lhe a OMS cinco grandes
categorias, em tudo idênticas às enunciadas no âmbito do conceito de
violência1, a saber: o abuso físico, psicológico ou emocional, o abuso
financeiro ou material, o abuso sexual e a negligência11. Categorização esta
que é igualmente adotada pela generalidade dos países participantes no projeto
«The European Reference Framework Online for the Prevention of Elder Abuse and
Neglect Project» (EUROPEAN)20.
Resta-nos abordar em seguida o conceito de «maus tratos», o qual é igualmente
utilizado em sinonímia com os termos «violência» e «abuso».
O conceito de «maus tratos»
Referimos anteriormente que, na definição apresentada pela OMS, os conceitos de
violência e de abuso se confundem, apresentando fronteiras conceptuais de
distinção tão ténue que se tornam difíceis de distinguir e de gerar consensos.
Idêntico problema se verifica quando falamos do conceito de «maus tratos» ou
«mistreatment», o qual surge associado ao termo anglo-saxónico «elder abuse».
Como ilustração desta afirmação, basta ler na Declaração de Toronto de 2002, a
definição da OMS de «maus tratos a pessoas idosas», a qual é praticamente
sobreponível à própria definição que a mesma organização internacional faz de
«violência», i.e. «qualquer ato isolado ou repetido, ou a ausência de ação
apropriada, que ocorre em qualquer relacionamento em que haja uma expectativa
de confiança, e que cause dano, ou incomodo a uma pessoa idosa. Estes atos
podem ser de vários tipos: físico, psicológico/emocional, sexual, financeiro
ou, simplesmente, refletir atos de negligência intencional, ou por omissão»11.
No que se refere às diversas formas que o conceito de «maus tratos» pode tomar,
verificamos que são, uma vez mais, em tudo idênticas aos conceitos de
«violência»e de «abuso», sendo que, ao incorporar o conjunto de ações ou
comportamentos que, uma vez infligidos a outrem, colocam em perigo a saúde ou
integridade física deste, admite tanto a forma física como psicológica. Deste
modo, por «maus tratos físicos», entendem-se aqueles que afetam a integridade
física, tal como se verifica na violência ou abuso físico, os quais abrangem as
situações em que é «infligida dor ou lesão, coação física, ou domínio induzido
pela força ou por drogas»1, enquanto os «maus tratos psíquicos» incluem as
condutas que afetam a autoestima e as competências sociais, potenciadoras de
angústia mental1.
Traço comum à generalidade dos conceitos aqui analisados, é a necessidade de
proteção de alguém que se encontra numa situação de vulnerabilidade,
fragilidade ou dependência face a outrem, a quem incumbe o cuidado de zelar
pela sua saúde, bem-estar e integridade, mas cujo comportamento se apresenta,
pelo contrário, violento ou abusivo, causador de sofrimento e danos físico ou
psíquicos.
As ténues fronteiras conceptuais entre violência, abuso e maus tratos geram uma
incerteza relativamente à existência de uma opção única quanto ao conceito a
utilizar. A este facto acresce um segundo problema que diz respeito a saber
como utilizar de forma correta os conceitos emanados pelos organismos
internacionais nos estudos de investigação epidemiológica e/ou sociológica a
desenvolver em cada país. Para além disso, existem especificidades culturais
que não podem ser ignoradas, tais como os ordenamentos jurídicos próprios de
cada país, o que torna mais complexa a análise e tem consequências em termos de
comparabilidade dos resultados. As especificidades do contexto cultural também
moldam as condutas de violência, devendo ser acauteladas no enquadramento
normativo e jurídico-legal de cada país. Esse facto levanta um novo problema,
pois, quando se analisam os fenómenos de violência, há que «operacionalizar»
tais crimes, traduzindo-os em condutas, de modo a criar uma correspondência
terminológica que permita realizar a investigação sem desfasamentos
«semânticos», seja esta de natureza epidemiológica ou sociológica.
Idêntica preocupação metodológica é seguida por Robert Cario, o qual recorre,
no entanto, ao termo «vitimização» para expressar de forma genérica as condutas
violentas das quais a pessoa idosa é vítima21. Estas condutas são abordadas
pelo autor a partir das diferentes terminologias do conceito de «abuso»,
dispostas em cinco grandes categorias: abuso físico, psicológico ou emocional,
financeiro ou material, sexual e a negligência21.
É importante referir, no entanto, que a tipificação das condutas que se irão
apresentar neste artigo tem como base a tipologia proposta por Pillemer22.
Proteção da jurídica da pessoa idosa
A Constituição da República Portuguesa (CRP) salvaguarda o reconhecimento da
dignidade da pessoa humana no seu artigo 1.°, bem como o direito à integridade
moral e física no artigo 25.°, direito este que se revela independentemente das
especiais circunstâncias de cada indivíduo. Para além destes direitos, é ainda
neste normativo que se encontram salvaguardados outros direitos fundamentais,
como sejam a proteção do direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da
personalidade, à capacidade, ao bom nome, à reserva da vida privada e familiar,
ou a proteção contra quaisquer formas de discriminação23. Idênticos princípios
encontram previsão na Constituição Espanhola, também aqui no âmbito dos
consagrados «derechos y deberes fundamentales»24 ou na Constituição Italiana,
tanto no âmbito dos «principios fundamentales», como das «relaciones civiles» e
das «relaciones ético-sociales»25, apenas para referir alguns exemplos.
No que se refere especificamente à pessoa idosa, o artigo 72.° da CRP, sob a
epígrafe «terceira idade», determina que as «pessoas idosas têm direito à
segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e
comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o
isolamento ou a marginalização social», bem como o direito à realização pessoal
e a uma participação ativa na vida da comunidade23.
Para além deste preceito, não se encontra, no ordenamento vigente, um quadro
específico de proteção à pessoa idosa, em especial àqueles que se encontram
numa situação de maior vulnerabilidade, conforme salientado no trabalho de
Sandra Rodrigues26. Existem alguns exemplos de iniciativas dispersas, como no
Plano Nacional para a Saúde das Pessoas Idosas27 ou a Rede de Cuidados
Continuados Integrados28, bem como preceitos de natureza geral que acautelam a
proteção de «pessoas especialmente vulneráveis em razão da idade», sendo esta
solução normativa adotada na generalidade dos ordenamentos jurídicos aqui
considerados, como veremos.
A proteção da vulnerabilidade e as obrigações familiares
O conceito de pessoa idosa não é unânime, em especial no que se refere ao
limite etário mínimo a partir do qual se considera que alguém passa a ser
incluído neste grupo. A OMS, relativamente ao conceito de velhice, considera
que esta reflete a fase da vida em que os indivíduos, face ao declínio físico
em que se encontram, já não conseguem desempenhar de forma independente as
atividades necessárias à sua vida familiar e de trabalho1.
Já a ONU, preconiza que o limite etário mínimo, quando nos referimos ao
conceito de pessoa idosa, deverá ser os 60 anos, por entender que este é aquele
que melhor espelha a realidade verificada num maior número de países,
nomeadamente no continente africano17. Ainda que esta opção não seja
consensual, a categoria dos idosos surge, numa perspetiva demográfica, como
aquela em que se incluem todos aqueles que possuem 65 ou mais anos, idade
associada socialmente à idade da reforma.
Este grupo etário tem vindo a aumentar de forma significativa na generalidade
dos países e na Europa em particular. Em Portugal, a população idosa residente
estimada em 2009 representava cerca de 17,9% da população portuguesa. Entre
2004 e 2009, a proporção de jovens decresceu de 15,6 para 15,2% da população
residente total, constatando-se um aumento da categoria das pessoas idosas de
17,0 para 17,9%29. De acordo com as projeções demográficas do Instituto
Nacional de Estatística (INE), até 2060, a percentagem de população jovem no
total da população diminuirá para 11,9%, aumentando a proporção de idosas para
32,3%29.
Deste modo, a proteção da vulnerabilidade é hoje uma preocupação central nas
sociedades atuais, seja pela necessidade de adaptar as sociedades às
necessidades próprias deste grupo etário, como sejam as doenças crónicas
associadas à idade, ou outras de natureza social e cultural.
Neste sentido, alguns ordenamentos jurídicos incorporam atualmente regimes de
proteção da vulnerabilidade da pessoa idosa, como sucede no Brasil, onde, em
2003, a Lei n.° 10.471/2003 aprovou o Estatuto do Idoso30. Este normativo, a
par com a Lei n.° 8.842/94, de 4 de janeiro31, permitiu criar um quadro
referencial e normativo específico para a pessoa idosa, que salvaguarda e
procura garantir os seus direitos sociais, a sua autonomia, a sua integração e
participação, e que acautela os princípios da dignidade e qualidade de vida
subjacentes, que decorrem, aliás, do próprio preceito constitucional
brasileiro, o qual, no seu artigo 230.°, determina que a «família, a sociedade
e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua
participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-
lhes o direito à vida»32. Princípio este que se encontra reforçado pelo artigo
229.°, no qual se consagra a reciprocidade das relações familiares ao
determinar que «os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos
menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na
velhice, carência ou enfermidade»32.
Este facto remete para o significado jurídico das obrigações familiares,
contempladas no âmbito do direito civil. A lei prevê que as obrigações
familiares se estendam até à família alargada. O sentido da solidariedade
familiar traduz-se, como refere Paula Gil, nestes países, quer na perspetiva
dos cuidados, quer do ponto de vista económico33,34. É o caso de Portugal, onde
o Código Civil prevê a obrigação de alimentos, salvaguardando os direitos das
pessoas idosas35. Esta obrigação alimentar assenta no pressuposto de que existe
um vínculo familiar e, por isso, uma obrigação que se rege pelas normas da
solidariedade familiar, entendendo-se por pensão de alimentos «tudo o que é
indispensável ao sustento, habitação e vestuário»36, traduzindo-se, na quase
generalidade das situações, em prestações pecuniárias mensais.
No que se refere aos indivíduos sobre os quais recai esta obrigação, o artigo
2009.°, no seu n.° 1, define as pessoas que estão vinculadas à obrigação de
prestação de alimentos: «o cônjuge ou ex-cônjuge; os descendentes; os
ascendentes; os irmãos; os tios; durante a menoridade do alimentado; o padrasto
e a madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no
momento da morte do cônjuge, a cargo deste»35. No ordenamento jurídico
português, o não cumprimento desta obrigação encontra previsão nos termos do
artigo 250.° do Código Penal37. Também o Código Civil italiano contempla
preceitos de idêntica natureza, como decorre do disposto nos artigos 315.°,
324.° e 433.°37.
A opção legislativa aqui enunciada espelha aquele que é o espectro normativo
europeu, presente no artigo 25.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, e que consagra expressamente o direito das pessoas idosas a uma
existência condigna, bem como onera os Estados-Membros na sua prossecução39,
ónus este que se reflete nas soluções normativas adotadas em alguns dos
ordenamentos jurídicos vigentes.
Também em Espanha se verifica a consagração normativa do dever de cuidar
enquanto responsabilidade dos filhos face a progenitores em situação de
necessidade, nomeadamente por força do estatuído nos artigos 143.° e 144.° do
Código Civil espanhol, nos quais se adota uma solução normativa idêntica à
vigente entre nós40. Para além destes preceitos, é igualmente possível
encontrar outras iniciativas legislativas destinadas a proteger e salvaguardar
as situações de vulnerabilidade, em especial aquelas em que a pessoa idosa se
encontra numa situação de dependência, como resulta do regime decorrente da
entrada em vigor da Ley n.° 39/2006, de 14 de Diciembre, que veio adotar o
regime jurídico da «promoción de la autonomía personal y atención a las
personas en situación de dependencia»41.
Também em Portugal a dependência, entendida como a ausência de autonomia face
aos atos necessários à satisfação das necessidades básicas da vida
quotidiana41,42, está protegida através do complemento por dependência,
atribuído a pensionistas dos regimes de segurança social que se encontrem em
situação de dependênciac42.
De entre os países com um quadro normativo especifico de proteção da pessoa
idosa, destaca-se o Canadá, no qual existe um conjunto significativo de
diplomas cujo escopo é a proteção da pessoa idosa nas suas diferentes
dimensões, os quais podem ser agrupados, de acordo com a Canadian Network for
the Prevention of Elder Abuse (CNPEA), em quatro tipologias: «family violence
laws», «criminal law», «adult protection laws» e «adult guardianship laws». Os
regimes ínsitos no grupo «family violence laws» destinam-se a proteger o bem-
estar e a integridade física da pessoa idosa, num claro alargar do regime
jurídico inicial (violência doméstica), como forma de acautelar um certo
sentido de coerência entre a norma vigente e as condutas verificadas. Já a
sanção de condutas suscetíveis de jurisdição penal, são abrangidas pela
«criminal law». Os dois restantes grupos de normativos («adult protection
laws»¸e «adult guardianship laws») destinam-se a proteger as pessoas idosas de
abusos e maus tratos, onerando os serviços sociais e de saúde com a
responsabilidade de assegurar e de encontrar as respostas mais adequadas, mais
do que sancionar o agressor, tal como sucede no âmbito do ordenamento penal43.
A proteção da vulnerabilidade da pessoa idosa
A cautela normativa de consagrar um regime civilístico adequado à salvaguarda
da pessoa idosa não encontra eco na generalidade dos ordenamentos penais, em
que a proteção da pessoa idosa vítima de violência, em contexto familiar, se
encontra explanada tanto nos regimes jurídico-penais gerais, como nos regimes
de proteção face à violência doméstica.
No caso português, como na generalidade dos ordenamentos jurídicos europeus, a
proteção da pessoa idosa, ainda que não apresentando um quadro normativo
específico20, encontra-se salvaguardada no âmbito do conceito de «pessoa
particularmente indefesa em razão da idade», conceito este cujo escopo visa a
proteção de situações de evidente fragilidade, vulnerabilidade ou desamparo do
individuo a proteger.
De facto, se atendermos ao preceito penal português, é possível encontrar nas
normas relativas ao agravamento de condutas tipificadas37, a expressão «pessoa
particularmente indefesa em razão da idade». Ainda que não se trate de uma
ressalva exclusiva para as pessoas idosas, considerando nomeadamente que neste
âmbito se enquadram igualmente os menores, a verdade é que nesta sede, tal como
no IV Plano Nacional Contra a Violência Doméstica44, esta referência sugere uma
especial proteção da vulnerabilidade daqueles que têm 60 ou mais anos.
De igual modo, a Lei n.° 112/2009, de 16 de setembro, que veio aprovar o regime
jurídico da prevenção da violência doméstica e da proteção e assistência das
suas vítimas, prevê, na alínea b) do seu artigo 2.°, as «vítimas especialmente
vulneráveis»45, o que nos leva a concluir que, para o legislador português, a
idade avançada ou diminuta carece de igual tutela normativa, por ser condição
suficiente para o requisito de especial vulnerabilidade e fragilidade, essas
sim, especialmente protegidas à luz daqueles preceitos, como veremos de seguida
no âmbito do quadro criminal.
A proteção jurídica da pessoa idosa vítima de violência
Breve análise de contributos normativos
Não obstante um reconhecimento crescente da necessidade de proteção da pessoa
idosa em situação de vulnerabilidade, da qual resultou a sua inclusão no âmbito
dos objetivos específicos da Lei n.° 38/2009, de 20 de julho46, a verdade é que
este reconhecimento não se traduziu, até ao momento, na adoção de instrumentos
jurídicos específicos.
Consideremos as diferentes formas que o fenómeno de violência contra pessoas
idosas assume, sem nos determos ainda na concretização das condutas enunciadas
pela diferente literatura especializada, e verificamos que, na sua
generalidade, a censurabilidade associada encontra previsão na norma penal
geral, o que poderá, per si, justificar a ausência de um enquadramento
normativo próprio para a proteção da pessoa idosa vítima de violência doméstica
na generalidade dos países20. Neste sentido, o esforço legislativo realizado
tem sido no sentido de fazer aprovar regimes específicos de proteção às vítimas
de violência doméstica, nos quais se incluem as mulheres e as pessoas com
particular vulnerabilidade em razão da idade, inserindo-se aqui, tal como
referido infra, as pessoas idosas44. Podemos então inferir que o processo de
reconhecimento da necessidade de proteção deste grupo etário se faz entre nós a
partir de uma apropriação da regra de proteção às mulheres vítimas de violência
doméstica. Como resulta da análise dos diferentes documentos, podemos afirmar
que idêntico processo veio a ocorrer ou está em curso na generalidade dos
países, em especial na Europa.
Vejamos a realidade espanhola, onde, como referido anteriormente, se veio a
promulgar um quadro normativo próprio para a salvaguarda das situações de
dependência. De facto, tal como afirma Juan Muñoz Tortosa, e no que se refere à
previsão de uma eventual tutela específica, esta decorre de uma extrapolação
dos textos legais de proteção às mulheres e aos menores6. Consideremos, a
título de exemplo, a Ley Orgánica 1/2004, de 278 de Diciembre, que veio a dotar
as medidas de «protección integral contra la violencia de género», visando a
adoção e implementação de mecanismos e instrumentos aptos a proteger as
mulheres vítimas deste tipo de violência47.
Também no Reino Unido se verifica, numa primeira análise realizada através do
repositório de legislação disponibilizado pelo governo inglês
(lesgislation.gov.uk), que a censurabilidade das situações de violência contra
pessoas idosas se encontra intimamente relacionada com os crimes de violência
de género e doméstica, bem como a regimes de proteção de menores, em especial
no âmbito do «Family Law Act» de 199648.
Nos termos deste normativo, no qual se refere expressamente «causing or
allowing the death of a child or a vulnerable adult», a proteção da pessoa
idosa resulta de um constructo normativo, do qual se fazem apelo a regimes tão
díspares como a proteção da saúde mental49, o direito da família48 ou a
violência doméstica, esta última através da previsão e sanção das diferentes
formas de violência ocorridas no seio da família, onde se inserem as agressões
a pessoas idosas por familiares, como veio a acontecer em 2004, com a entrada
em vigor do «Domestic Violence, Crime and Victims Act»50.
É, uma vez mais, da conjugação de preceitos de natureza penal51,52 e de
proteção dos direitos humanos53,54 que surge a proteção da pessoa idosa,
decorrendo do texto do «Family Law Act» a clarificação do conceito de
«vulnerabel adult», no qual se compreendem todos os indivíduos, com 16 ou mais
anos, cuja capacidade de se proteger e salvaguardar de situações de violência,
abuso ou negligência, se encontra prejudicada por doença, deficiência física ou
mental, velhice ou qualquer outra forma48, sendo a solução normativa adotada
igualmente no sentido de proteger a vulnerabilidade e fragilidade enquanto
circunstâncias especiais que exigem tutela jurídica.
Traço comum dos ordenamentos aqui considerados, a ausência de uma
sistematização específica, consagrada em regime jurídico próprio55. Já no que
se refere ao ordenamento jurídico francês, afigura-se pertinente destacar o
papel conferido à proteção da vulnerabilidade no âmbito do seu direito penal.
Uma vez mais, o requisito «particulière vulnérabilité due à son age», encontra-
se presente, sendo nesta sede que se inserem as pessoas idosas, e não no âmbito
de um regime de tutela específico de proteção desta faixa etária, como refere
Veron «le code penal n'envisage pas les personnes âgées comme une catégorie
qu'il convient tout particulièrement de proteger, comme une catégorie
spécifique»56, tal como sucede nos ordenamentos jurídicos anteriores.
Este requisito de vulnerabilidade surge então no direito penal francês com uma
dupla finalidade, o que, de certa forma, representa uma solução normativa
distinta das anteriormente referidas, tanto como circunstância agravante, como
elemento constitutivo de um crime específico57, o qual se torna especialmente
punido em atenção à qualidade da vítima, como sucede, a título de exemplo, com
o regime decorrente do artigo 223-3 do Código Penal francês, relativo ao crime
de abandono, «Du délaissement d'une personne hors d'état de se protéger»58, e
cujo tipo não se preenche com a simples negligência, antes exige um ato
voluntário por parte de alguém que conhece a vítima e a sua incapacidade para
se proteger56. Idêntico preceito encontra consagração no artigo 138.° do texto
penal português37, como veremos no âmbito da análise das condutas em estudo.
Quanto às circunstâncias de agravamento, a vulnerabilidade surge como um
requisito face a uma conduta condenável per si. Como refere Veron, aqui não se
trata de sancionar a simples negligência, antes refere que estamos na presença
de atos voluntários, cometidos por um agente conhecedor das circunstâncias em
que a vítima se encontra56. Isso mesmo decorre dos parágrafos do artigo 222-
3 do referido código, em especial dos parágrafos 2.° e 3.°, os quais determinam
«Sur une personne dont la particulière vulnérabilité, due à son âge, à une
maladie, à une infirmité, à une déficience physique ou psychique ou à un état
de grossesse, est apparente ou connue de son auteur; 3.° Sur un ascendant
légitime ou naturel ou sur les père ou mère adoptifs». Verificadas as
circunstâncias aqui referidas, a sanção não será de 15 anos, nos termos do
artigo 222-1, mas de 20 anos58.
Ainda nesta sede, importa referir que, para além dos crimes contra a pessoa, o
Código Penal francês considera igualmente o requisito de «particulière
vulnérabilité» para agravar as sanções a aplicar aos crimes contra o património
destes indivíduos58.
Para além desta especificidade, também neste âmbito se considera que o quadro
normativo oferece as necessárias medidas de proteção, ainda que não contemple,
como já referido anteriormente, uma tutela específica. De forma distinta, o
quadro normativo canadiano. De facto, no direito criminal canadiano, ainda que
existam soluções normativas diferentes de província para província, como refere
a CNPEA, tem vindo a ser desenvolvido um esforço nacional, no sentido de melhor
adaptar o quadro legal ao fenómeno da violência contra as pessoas idosas,
nomeadamente no que se refere à necessidade de identificar barreiras e soluções
para a sua implementação.
De entre os principais obstáculos encontrados para uma efetiva implementação da
legislação de proteção à pessoa idosa, a CNPEA identifica um conjunto de
situações, como seja a reduzida preparação ou formação dos diferentes
profissionais envolvidos, tanto no que se refere à identificação de situações
de violência contra pessoas idosas, como nas técnicas de intervenção, recolha
de informação e registo. A estas acresce um enquadramento normativo ainda pouco
vocacionado para lidar com este tipo de vítimas, bem como com as suas
necessidades, seja ao nível dos serviços, dos tribunais e dos próprios
profissionais, como dos advogados, verificando-se uma tendência para considerar
que estas situações se tratam de problemas do setor da saúde. Ainda segundo a
informação disponibilizada pela CNPEA, verifica-se um desconhecimento ao nível
da generalidade da comunidade, no que se refere ao impacto que o abuso
representa na vida destes indivíduos59.
O esforço legislativo realizado neste país e a importância que esta
problemática assume encontram-se espelhados em diversos planos e programas
provinciais e nacionais de proteção e combate ao fenómeno de violência contra
pessoas idosas, bem como em opções estratégicas nacionais60, e iniciativas
legislativas, tanto de âmbito criminal, como assistencial, já aqui enunciadas.
Verifica-se, com base no enunciado nesta secção, que, apesar do reconhecimento
da importância dos fenómenos de violência contra pessoas idosas, estas não
possuem um quadro normativo especifico, antes se verifica a sua inclusão no
âmbito dos regimes jurídicos de proteção da violência doméstica e dos maus
tratos, que abordaremos nos parágrafos seguintes.
Nota sobre o regime da violência doméstica e dos maus tratos contra pessoa
idosa
Em Portugal, as sucessivas revisões da norma penal vieram a consagrar a opção
internacionalmente adotada de autonomização dos crimes de violência doméstica e
de maus tratos. Neste sentido, é do texto dos artigos 152.° e 152.°-A que
decorrem os requisitos e tipificação dos referidos crimes37.
A tipificação destas condutas, surgida na reforma penal de 1982, resulta da
inclusão do crime de violência doméstica no quadro jurídico-penal português.
Posteriormente, veio esse mesmo regime a ser alargado às situações de maus
tratos parentais, nomeadamente através da entrada em vigor da Lei n.° 7/2000,
de 27 de maio61.
Foi apenas aquando da reforma do Código Penal de 2007 que se vieram a separar
os regimes dos crimes de violência doméstica e maus tratos, como refere Moreira
das Neves: «Na reforma de 2007, o legislador procedeu a uma separação de
matérias que até então estavam sob a mesma epígrafe, tendo deixado no novo
artigo 152.°, agora epigrafado de «violência doméstica» ( ) o crime de maus-
tratos sobre o cônjuge ou pessoa com que se mantenha relação análoga, ainda que
sem coabitação, a progenitor de descendente comum e às pessoa particularmente
indefesas com quem se coabite». Mais refere este magistrado, em particular no
que se refere ao crime de maus tratos, que este abrange «as demais condutas
relativas a menores e pessoas particularmente indefesas»62, como resulta,
aliás, do texto do artigo 152.°-A37.
Entre as condutas aqui referidas, encontram-se aquelas que se traduzem numa
prática reiterada, e de continuidade, desde que apresentando uma gravidade
significativa, sendo exigível mais do que os maus tratos leves isolados63. Quer
isto dizer que, caso a conduta assuma uma especial gravidade, onerada tanto
pela especial relação existente entre o agressor e a vítima, como pelo
resultado, a mesma será tratada à luz do preceito em causa.
No caso do crime de violência doméstica, a alteração à norma veio afastar a
obrigatoriedade da verificação da coabitação como elemento sine qua non da
tipificação, desde que se verifique a existência de uma das situações descritas
nas alíneas do n.° 1 do artigo 152.° do Código Penal37. No que se refere ao
crime de violência «en el ámbito familiar», o preceito espanhol, cuja conduta
se encontra tipificada no artigo 153.°, ainda que tratando a questão da
violência de género, inclui, face à alteração normativa de 1995, a expressão «o
persona especialmente vulnerable que conviva con el autor», encontrando-se
deste modo a pessoa idosa em igualdade de tratamento face às mulheres vítimas
de violência doméstica, as quais se encontram em situação de especial
vulnerabilidade64.
Tal como sucedeu em Portugal, o crime de violência doméstica traduz-se numa
conduta em construção, que tem vindo a evoluir através das sucessivas
alterações legislativas. De acordo com Virginia Mayordomo, apenas após a
aprovação da Ley Orgánica 11/2003, de 29 de Septiembre, que aprova as «medidas
concretas en materia de seguridad ciudadana, violencia doméstica e integración
social de los extranjeros»65, contempla-se a violência psíquica habitual como
conduta a sancionar»66. Um outro aspeto comum entre ambos os ordenamentos, a
exigência de que entre a vítima e o agressor exista uma relação familiar e afim
prévia. Já a Ley Orgánica 1/2004, que adota as «medidas de protección integral
contra la violencia de género»47, não contempla uma norma específica para
pessoas idosas, deixando de fora os menores e as pessoas idosas, quando o
requisito de especial vulnerabilidade não se encontre satisfeito. Também no
caso inglês, já aqui enunciado, a violência doméstica apresenta um regime
próprio, também ele composto, nomeadamente, pelos preceitos já aqui
enunciados48,50. Opção normativa igualmente adotada por países como a Áustria,
que fez aprovar em 1997 e em 2009 legislação específica de proteção contra a
violência doméstica67,68, e a generalidade dos países da região europeia,
incluindo os ordenamentos do leste europeu20.
No que se refere ao crime de maus tratos, exige o legislador a verificação de
uma especial relação entre as partes conflituantes, em especial quando sob o
agressor impede o ónus de guardar ou cuidar da vítima69, pelo que alguns
autores referem a especial perversidade subjacente às condutas aqui
tipificadas, as quais integram ofensas físicas e psicológicas, que afetam a
dignidade, a integridade, e até a própria saúde do indivíduo70, considerando
que o mesmo pressupõe a existência prévia de uma situação de dependência e
fragilidade conhecida pelo agente.
Já no Código Penal espanhol, o artigo 619.° determina «Serán castigados con la
pena de multa de 10 a 20 d los que dejaren de prestar asistencia o, en su caso,
el auxilio que las circunstancias requieran a una persona de edad avanzada o
discapacitada que se encuentre desvalida y dependa de sus cuidados»64. Preceito
este que não encontra identidade no âmbito do Código Penal português.
Veremos de seguida as condutas identificadas pela literatura à luz das condutas
tipificadas pelos ordenamentos penais.
Proposta de matriz de harmonização de condutas e conceitos
A investigação que se encontra na origem do presente artigo contempla a
realização de um inquérito junto da população com 60 e mais anos, no qual as
questões fossem claramente compreendidas por esta e que, simultaneamente,
fossem gerais o suficiente para abarcar condutas violentas que permitissem uma
identificação clara pelos inquiridos.
Esta situação origina, de forma óbvia, a impossibilidade de fazer coincidir de
forma total as condutas identificadas no inquérito com a tipificação dos crimes
que às mesmas se fazem corresponder. Queremos, com esta nota, esclarecer a
razão pela qual se juntam na mesma conduta, dois ou mais crimes cuja
tipificação no Código Penal se apresenta com elementos diversos (por exemplo,
burla e extorsão). Esta simplificação foi necessária para realizar a
correspondência conduta violenta/crime no âmbito da investigação que esteve na
base do presente artigo.
Deste modo, e tendo como ponto de partida o conceito já analisado de
«violência», procurou-se encontrar uma sistematização das condutas, que
permitisse obter, como produto final, uma correspondência entre as condutas
«violentas» analisadas no projeto de investigação e os crimes tipificados no
Código Penal português. Este exercício baseou-se em cinco grandes grupos de
«violência», idênticos aos propostos pela Organização Mundial de Saúde, i.e., a
«violência física», a «violência psicológica», a «violência sexual», a
«violência financeira» e a «negligência». No que se refere à violência sexual,
que neste artigo se individualiza, é de referir que esta surge em alguns
documentos21 como subcategoria da violência física.
Quanto ao conceito de «negligência» utilizado na Tabela_1, é necessário
clarificar que este não é totalmente coincidente com o mesmo termo, na forma
como este é entendido pelo direito português. De facto, a conduta negligente,
tal como é analisada na investigação que dá corpo a este artigo, refere-se à
«negligência» como uma conduta «violenta», sem graduação na gravidade/
intencionalidade do comportamento, tipificada na literatura sobre a temática
dos maus tratos a pessoas idosas, sendo esta a «recusa ou não cumprimento da
obrigação de cuidar que impende sobre alguém que tem outrem a cargo»21. Em
direito, o conceito de «negligência», sendo uma figura «clássica» nos Direitos
Civil e Penal, refere-se já a uma graduação de elemento volitivo do
comportamento ilícito, identificando-se como «mera culpa», ou seja, como uma
omissão do dever de diligência71 mas numa forma mitigada, em que o dano
(responsabilidade civil/direito civil) ou o crime (direito penal) tiveram na
sua base uma conduta não dolosa (não intencional).
As disposições normativas fundamentais para se apurar o sentido da noção
jurídica de «negligência» no direito criminal são os artigos 13.° a 15.° do
Código Penal. Destes, concluímos que o conceito de negligência neste ramo do
direito se define por contraposição ao conceito de dolo. De facto, no
supramencionado artigo 13.° podemos ler que «só é punível o facto praticado com
dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência»37. O dolo
vem, por sua vez, definido no artigo 14.° de forma tripartida, isto é, como
dolo direto («age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de
crime, atuar com intenção de o realizar», cf. n.° 1 do referido artigo 14.°);
dolo necessário («age ainda com dolo quem representar a realização de um facto
que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta», cf.
n.° 2 do mesmo preceito) e dolo eventual («quando a realização de um facto que
preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da
conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização», cf.
n.° 3 do artigo 14.°). Quanto à negligência, esta é tratada no artigo 15.° do
Código Penal, no qual é definida no seu n.°1 como a conduta de alguém que não
procede «com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que
é capaz»37, na forma consciente se «representar como possível a realização de
um facto que preenche um tipo de crime mas atuar sem se conformar com essa
realização» (artigo 15.°, alínea a) ou inconsciente se «não chegar sequer a
representar a possibilidade de realização do facto» (artigo 15.°, alínea b)72.
No caso português, as expressões «violência física», «violência psicológica»,
«violência sexual», e «violência financeira», resultam de forma clara da
terminologia jurídica vigente. Assim, consideram-se integrantes do conceito de
violência física todos os atos e condutas que causem dano à integridade física
(corpo) e saúde dos indivíduos. Por sua vez, as ameaças e as condutas que visam
a humilhação, a diminuição psicológica, o isolamento e que prejudiquem a saúde
psicológica, a autodeterminação e o desenvolvimento individual encontram-se
inseridas no âmbito da violência psicológica70. Quanto à violência sexual, esta
contempla as ações destinadas a obrigar alguém a manter contacto sexual com
outrem contra a sua vontade, nas suas diferentes formas, recorrendo à
intimidação, ameaça, violência física ou a qualquer outra ação que diminua ou
anule a vontade da pessoa alvo da mesma. Por último, a violência financeira
abrange as situações em que existem condutas que têm como objetivo a obtenção
de um determinado benefício ilegítimo, de natureza financeira ou patrimonial.
Deve, no entanto, referir-se que estes diversos tipos de violência podem, no
caso do direito português, de acordo com o disposto nos artigos 152.° e 152.°-
A do Código Penal português, ser todos eles considerados como subsumíveis ao
«crime de violência doméstica», ou ao «crime de maus tratos», dependendo esta
diferença na designação apenas da existência (no caso da «violência doméstica»)
ou da não existência (no caso dos «maus tratos») de vínculo parental entre a
vítima e o agente agressor.
Definidas as dimensões da violência, foi possível verifica, um conjunto de
condutas que não encontram eco no âmbito do quadro jurídico-penal vigente entre
nós, e de que é exemplo a apropriação do domicílio. Para estas, ainda que
mantendo a sua identidade autónoma face às condutas tipificadas na lei,
considerou-se a sua inclusão no tipo de violência em que se inserem, como se
sistematiza na Tabela_1, na qual se apresenta, de forma simplificada, a matriz
analítica das condutas face à tipificação decorrente do Código Penal, sem que,
no entanto, se proceda a um aprofundar da análise dos regimes, nomeadamente no
que refere ao requisito dolo.
Notas à Tabela_1:
Há a destacar, em relação à tabela ora apresentada, as condutas de apropriação
do domicílio, e a não comparticipação indevida nas despesas domésticas (i.e.
quando tal tenha sido acordado e haja capacidade de o cumprir por parte daquele
que não contribui), pois estas condutas, não obstante estarem identificadas na
literatura como formas frequentes de violência financeira contra pessoas
idosas22, não encontram correspondência enquanto condutas tipificadas, nem
sanção jurídico-penal na generalidade dos ordenamentos jurídicos considerados,
a qual poderá resultar de um não reconhecimento da sua dignidade penal, face
aos bens juridicamente tutelados nas restantes situações. A ausência de uma
reflexão sócio-jurídica face ao tipo de resposta mais adequada não nos permite
inferir ab initio, de tal opção.
Ainda uma nota relativa à negligência, prevista nos artigos 13.° e 15.° do
Código Penal. De acordo com este preceito, age com negligência aquele que não
atuar com o cuidado a que se encontra obrigado por força as circunstâncias em
que se encontra e de que é capaz, sendo elementos da negligência: a) a violação
do dever objetivo de cuidado (falta de cuidado); b) a previsão ou
previsibilidade do facto ilícito como possível consequência da conduta
(representação ou representabilidade do facto); e c) a não aceitação do
resultado37.
Consideremos agora os requisitos dos crimes de violência doméstica e de maus
tratos, previstos respetivamente nos artigos 152.° e 152.°-A do Código Penal
vigente, os quais se sistematizam na Tabela_2.
Verificamos, com base na análise dos regimes jurídicos dos crimes de violência
doméstica e maus tratos, respetivamente previstos nos artigos 152.° e 152.°-
A do Código Penal português, que os mesmos apresentam similitudes consideráveis
no que se refere aos bens jurídicos em causa37. De facto, em ambos os regimes
se visa proteger a dignidade, a integridade física e psíquica, a liberdade, a
autodeterminação, a honra da vítima, bem como a vulnerabilidade e
fragilidade72, como resulta reforçado na autonomização do crime de violência
doméstica, mais recente no nosso ordenamento jurídico, até então tratado
enquanto forma especial do crime de maus tratos.
Elemento distintivo das condutas aqui em confronto, a relação com o agente
agressor e o requisito de coabitação. Se, no crime de violência doméstica, a
ilicitude da conduta é especialmente conferida e agravada pela relação
familiar, parental ou de dependência existente entre a pessoa idosa e o
agressor, já no crime de maus tratos, esta decorre da violação de um dever de
cuidar e de guarda existente e reconhecido enquanto tal, que impende sobre o
agressor, tal como decorre do estatuído no preceito invocado37. No que se
refere às condutas observadas, as mesmas encontram-se sistematizadas na tabela
síntese seguinte (Tabela_3).
As condutas aqui enunciadas consubstanciam os comportamentos referenciados pela
literatura73,74,75,76, como sendo as formas de violência contra pessoas idosas
mais comuns. Foi igualmente possível identificar outras situações que se
inserem em condutas tipificadas no Código Penal, como sejam situações de
abandono (sancionado no âmbito do artigo 138.° do Código Penal), de não
cumprimento da obrigação de alimentos (previsto no artigo 250.°), de
importunação sexual (sancionado nos termos do artigo 170.°), de tratamentos
médico-cirúrgicos sem consentimento da pessoa idosa (previsto nos termos do
artigo 156.°) igualmente referido por Cario21. Para além destas situações, mais
comuns, são ainda referidas outras que ferem igualmente a esfera dos direitos
da reserva de vida privada da pessoa idosa.
Face a este quadro normativo, verifica-se que, tal como sucede na generalidade
dos ordenamentos jurídicos, as condutas que consubstanciam situações de
violência contra pessoas idosas encontram previsão e proteção nos preceitos da
lei penal geral, encontrando-se as situações de especial vulnerabilidade em
função da idade salvaguardadas por uma tutela de cuidado idêntica à dos
menores, centrando-se a questão da tipificação e sanção das condutas nas
situações identificadas pela literatura e que não têm previsão legal, como seja
a proteção do domicilio e a comparticipação nas despesas. Será que, per si, a
sua identificação justifica um quadro sancionatório específico?Retomemos o
exemplo canadiano, onde têm vindo a ser desenvolvidas inúmeras iniciativas
legislativas e políticas neste âmbito. Face ao trabalho já realizado naquele
país, tanto ao nível da investigação sobre a violência contra pessoas idosas,
como no campo normativo59,77, enuncia-se um conjunto de questões a serem
ponderadas, nomeadamente, sobre se o quadro normativo genérico que tutela a
generalidade dos indivíduos se afigura adequado ou não de modo a garantir a
proteção das pessoas idosas vítimas de violência, ou se, antes pelo contrário,
o problema requer e exige, como o garantem os bens jurídicos envolvidos, a
adoção de um regime jurídico próprio e sobre se a adoção de um regime próprio
não irá, no limite, criar uma situação de discriminação daqueles indivíduos.
Para além destas considerações, importa ainda equacionar, como referem aqueles
autores, se, de entre as diversas formas de violência consideradas, existem
algumas que se cinjam, no que se refere às vítimas, a este grupo etário ou se,
pelo contrário, as condutas identificadas são suscetíveis de ocorrer fora
destas situações, o que não justificaria a aprovação de um regime normativo
próprio que acautele a especial condição das pessoas idosas, tal como referem
alguns autores10,21.
Conclusão
Tem sido entendimento da OMS a necessidade de promover mais estudos que
permitam em cada Estado conhecer melhor os fenómenos de violência contra as
pessoas idosas, sua caracterização e prevalência8, de forma a ser possível agir
ao nível da prevenção11.
No entanto, é necessário ir mais além, considerando que as políticas adotadas
não terão qualquer eficácia se não forem efetivamente aplicadas, sendo
inexistente, na maioria dos ordenamentos jurídicos, um quadro legal próprio,
adequado a este grupo específico de indivíduos. Sustenta-se ainda a necessidade
de disseminar boas práticas e promover a educação dos profissionais envolvidos
e da comunidade em geral no que se refere aos maus tratos e violência contra as
pessoas idosas11,12.
Os diferentes ordenamentos jurídicos analisados reconhecem, no âmbito do seu
direito constitucional, o princípio da salvaguarda da dignidade e dos direitos
das pessoas idosas como um imperativo constitucional. Verifica-se, ainda, que
os ordenamentos civilísticos europeus reconhecem e oneram os descendentes no
dever de cuidar e guardar os seus ascendentes numa fase avançada do seu
processo de vida, por esta se poder caracterizar por uma especial
vulnerabilidade e pela incapacidade de continuar a subsistir de forma autónoma
e independente, nomeadamente no que se refere às atividades de vida diária,
como sucede no âmbito das designadas obrigações de alimentos.
O regime jurídico português não dispõe de um normativo específico de proteção à
pessoa idosa. No entanto, é possível verificar que a generalidade das condutas
identificadas pela literatura, com exceção da apropriação do domicílio e da
comparticipação previamente acordada e não cumprida, nas despesas domésticas,
se encontra prevista no Código Penal português, ou em normas avulsas, como
sucede no caso do regime jurídico de proteção das vítimas de violência
doméstica, pelo que, e como se conclui anteriormente, a maioria das formas de
violência está prevista no Código Penal.
Ainda no que se refere a especificidades resultantes dos estudos já realizados,
é de considerar a necessidade de um maior conhecimento relativamente às
situações de negligência, nomeadamente no que se refere às formas e
consequências, no sentido de equacionar a necessidade ou não de esta vir a ser
considerada, per si, uma conduta suscetível de sanção específica quando estejam
em causa vítimas, pessoas em situação de vulnerabilidade física e/ou mental.
Considerando os diferentes enquadramentos normativos analisados, podemos
concluir que o regime de proteção da pessoa idosa vítima de violência e maus
tratos se encontra ainda, pelo menos em alguns países da União Europeia, numa
fase inicial de maturação. De facto, a atual proteção jurídica da pessoa idosa
vítima de violência surge associada ao percurso que abrange tanto o
desenvolvimento de regime de prevenção e combate da violência de género como da
proteção de menores, pelo que não será de estranhar que a tutela jurídica da
pessoa idosa surja atualmente no âmbito dos citados regimes jurídicos da
violência doméstica e da proteção de mulheres vítimas de violência.
A violência contra as pessoas idosas é hoje ainda encarada como um assunto
estritamente familiar, diluindo-se na esfera doméstica, como lugar de reserva e
intimidade, tornando-se, por isso, difícil o seu conhecimento e prova. A
dificuldade das próprias vítimas em denunciarem os atos de violência de que são
alvo, pelos próprios familiares, faz com as mesmas sintam culpa pelo laço de
parentesco, silenciando e isolando-se, levando, assim, a que o problema seja
ocultado na esfera familiar34.
Portugal apresenta um quadro normativo condizente com a tendência
internacional, representando o preceito constitucional e o reconhecimento da
dignidade humana o requisito primeiro, que se consubstancia num quadro penal,
ainda que genérico, com proteção adequada face às condutas identificadas, sendo
possível o seu enquadramento no âmbito dos crimes tipificados no ordenamento
penal, bem como em regimes avulsos, como sucede no âmbito do crime de violência
doméstica.
O momento presente impõe, neste sentido, considerar os estudos já realizados,
bem como a casuística nacional, com vista a atender às especiais
características e necessidades deste grupo de indivíduos, que, até 2050, deverá
representar cerca de 32% da população portuguesa78. Face aos novos cenários
demográficos que se perspetivam torna-se necessário equacionar a pertinência de
consagrar um regime tutelar especifico para as pessoas idosas, que seja mais
adequado às diferentes formas de vitimação identificadas nos estudos de
prevalência.
Assim, o percurso normativo até hoje realizado reflete a premência de uma
revisão, bem como a progressiva tomada de consciência política e social de que
é necessário intervir face à problemática da violência no espaço familiar.