Participação em saúde: entre limites e desafios, rumos e estratégias
Introdução
A participação cidadã ou a prática participativa dos cidadãos, tem marcado
muitos dos debates da atualidade social e política no mundo. A sua definição
mais elementar converge no sentido de inovação na gestão do bem comum e,
consequentemente, não prescinde de um debate envolvente em torno da questão da
democracia, na medida em que uma maior participação cidadã na política tende a
esboroar as práticas democráticas do modelo representativo de democracia tal
como as conhecemos hoje.
A participação não é, portanto, um assunto novo e muito menos diz respeito a um
fenómeno simples e fácil de implementar. Este é um tema vasto e que implica a
interseção de múltiplas abordagens transdisciplinares.
Muitos dos debates que enquadram a questão da participação cidadã na vida
coletiva assentam, no entanto, em abordagens da ciência política,
designadamente na teoria da deliberação democrática ou em abordagens que
enquadram a proposta de uma democracia participativa. Independentemente da
abordagem que se considere, um dos elementos unificadores dessas perspetivas
radica no facto da participação poder traduzir uma possível correção ou
nivelamento de vários tipos de desigualdades experienciadas pelos cidadãos a
partir de decisões que, sendo participadas, se afirmem com mais qualidade.
Neste âmbito, o domínio da saúde, talvez um dos domínios mais relevantes do
ponto de vista da importância que as desigualdades podem traduzir, não ficou
imune à tentativa de implementação de dinâmicas participativas que se têm
registado ao longo das últimas décadas. O presente artigo versa, assim, sobre a
questão da participação cidadã na saúde, aqui assumida como um desafio que se
vem alimentando entre limites e possibilidades, entre rumos e estratégias.
O trabalho a empreender tenta traçar as origens da participação dos cidadãos na
saúde, contando, para isso, a história dos primeiros passos dados nesse
sentido, há 3 décadas, designadamente a partir da adoção da Declaração de Alma-
Ata, em 1978, decorrente da primeira conferência internacional sobre cuidados
de saúde primários e da Carta de Ottawa, adotada em 1986, e decorrente da
primeira conferência internacional sobre promoção da saúde, assim como as
subsequentes conferências internacionais sobre o tema e respetivas orientações
adotadas.
A par dos marcos cronológicos que enquadram as práticas da participação da
população em saúde e que consubstanciam a relevância do tema em análise e a
forma como tem vindo a ser debatido e promovido, este trabalho articula ainda
esse mapeamento com uma revisão mais convencional dos debates ocorridos na
literatura científica sobre essa matéria.
Este artigo estrutura-se em 4 pontos essenciais. Um primeiro ponto, a tratar de
seguida, faz um breve enquadramento das origens da participação da população na
saúde. Um segundo ponto faz o levantamento mais cuidado dos mecanismos
pioneiros que incentivaram o envolvimento e a participação da população na
saúde ao longo do tempo, os motivos que lhe subjazeram e as recomendações que
daí advieram ao nível da promoção da saúde. Um terceiro ponto debruça-se sobre
o descompasso que a literatura científica tem identificado entre os discursos
que promovem a participação cidadã na saúde e as práticas implementadas ao
longo das últimas décadas. Sob este ponto exploram-se ainda alguns debates
particulares, designadamente ao nível dos processos que enquadram o
envolvimento dos utentes, da questão da sua representatividade em mecanismos
participativos, da capacitação dos cidadãos proporcionada pela participação e
dos debates sobre a efetividade que a participação em saúde tem suscitado. Um
quarto ponto sintetiza as principais conclusões que atravessam este debate.
As experiências pioneiras de participação pública na área da saúde
A participação comunitária na área da saúde nasceu da preocupação, entre
outras, de contribuir para a melhoria das condições de vida de milhões de
pessoas desfavorecidas, sobretudo nos países em desenvolvimento1,2. Este
tornou-se, aliás, num dos temas dominantes tanto dos projetos de
desenvolvimento agrícola como dos projetos de intervenção e desenvolvimento dos
bairros marginalizados das grandes cidades nos anos 50 e 60 do século passado.
O envolvimento das comunidades na definição dos programas de desenvolvimento
passava, assim, a ser considerado de central importância para o seu sucesso2.
Entretanto, com exceção de algumas experiências realizadas na América Latina,
no âmbito do Programa Aliança para o Progresso em meados de 1960 ' onde se
tentou envolver as comunidades nos programas de saúde ', a ideia da
participação da comunidade em saúde apenas se difundiu nos países em
desenvolvimento no início da década de 19703. De acordo com Zakus e Lisack4,
existia nessa época a convicção de que as necessidades básicas de saúde dos
países mais pobres podiam ser resolvidas a partir do envolvimento das
populações locais. Por outras palavras, a participação das comunidades locais
em questões de saúde era considerada a principal estratégia para disponibilizar
serviços de baixo custo aos setores mais pobres da população5. A própria UNICEF
chegou a reconhecer, em 1978, a participação comunitária como a chave do
desenvolvimento e como estratégia para resolver as necessidades básicas das
populações desfavorecidas do mundo3.
Porém, e apesar das investidas registadas na década de 1960 e 1970, a
participação comunitária apenas chegou a ser legitimada pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) em 1978, mais concretamente durante a Conferência de
Alma-Ata, a conferência internacional sobre Cuidados de Saúde Primários6. A
Declaração de Alma-Ata ' realça Mittelmark et al.7 ' afirma a participação não
só como um direito, mas como um dever, a exercer individual ou coletivamente,
no âmbito do planeamento e implementação dos seus cuidados de saúde.
Em 1979, a OMS reiterou a importância da participação da população como uma das
estratégias fundamentais para alcançar a "Saúde para Todos" até ao
ano 20006,8 e, no final de 1980, publicou uma versão revista da Estratégia
Global8, que incluía uma série de indicadores para avaliar as políticas de
saúde a nível mundial. De acordo com a meta delineada por esta estratégia, em
1986 a maioria dos países do mundo deveria ter desenhadas as formas de
participação comunitária no setor de saúde a implementar. Em 1989 deveriam
estar já implantados mecanismos para a participação da comunidade no âmbito dos
cuidados de saúde primários. Este foi um período envolto em grande otimismo no
que se refere às potencialidades e aos efeitos da participação em saúde.
Em 1998, a OMS-Europa, com o objetivo de aumentar o potencial de saúde das
pessoas, lançou a política "Saúde 21" (Saúde para todos no século
XXI), norteada por 4 estratégias de ação, uma das quais, a participação dos
parceiros mais relevantes e da comunidade nos processos de decisão9,10.
Em 2002, a OMS publicou o volume "Community participation in local health
and sustainable development. Approaches and techniques". Com esta
publicação a OMS tentou implementar uma ferramenta capaz de descrever o que era
e para que servia a participação comunitária em saúde, explorando as técnicas e
os métodos mais frequentemente usados nesta área, uma estratégia para
incentivar todos os interessados em participar na área da saúde11.
Entretanto, diversos processos participativos e movimentos sociais surgidos nas
sociedades ocidentais no final dos anos 60 alcançaram a sua maturidade e
provocaram efeitos substanciais na saúde e na organização dos serviços de
saúde. É também neste período que começa a difundir-se uma ampla
conscientização sobre os limites do paradigma biomédico face à
"complexidade das atividades de manutenção da saúde"12. Como
consequência do questionamento desse paradigma, desenvolveram-se novas áreas de
interesse e de investigação no âmbito da saúde: medicina familiar, comunidades
terapêuticas, autoterapias, grupos de autoajuda, movimento de humanização e de
defesa dos direitos dos doentes. Neste âmbito, importa enfatizar o importante
papel desempenhado pelas associações de doentes e pelos movimentos de defesa
dos direitos dos utentes, sobretudo a partir de 1970, e que muito tem
contribuído para a valorização do conhecimento leigo no âmbito da saúde e para
pôr em causa a chamada "dominância médica"13,14,15.
No decorrer dos anos 80, graças ao trabalho pioneiro de Donadedian16, a
abordagem à qualidade entra nos serviços de saúde, altura em que começa a
assumir relevância uma linha de investigação sobre a satisfação dos doentes,
legitimando, dessa forma, a necessidade de inserir os utentes no centro do
sistema de saúde.
Todos os processos acima mencionados contribuíram para colocar em primeiro
plano a importância de envolver os cidadãos e a crescente preocupação para
reequilibrar a relação entre serviços de saúde e seus beneficiários.
Participação e promoção da saúde
Inspirada pelas ideias e pelos movimentos sociais dos anos 60 e 70 ' alguns dos
quais mencionados anteriormente ' sobretudo no final dos anos 80, a promoção da
saúde passou a assumir cada vez mais importância enquanto estratégia para o
desenvolvimento de uma nova política de saúde pública, capaz de produzir
mudanças nos estilos de vida e na prevenção dos riscos ambientais17,18. O
fortalecimento da ação comunitária foi também identificado pela Carta de
Ottawa19 como um dos cinco pilares da promoção da saúde7,20:
"Health promotion works through concrete and effective community action
in setting priorities, making decisions, planning strategies and implementing
them to achieve better health. At the heart of this process is the empowerment
of communities - their ownership and control of their own endeavors and
destinies. ( ) This requires full and continuous access to information,
learning opportunities for health, as well as funding support"19.
A primeira Conferência, realizada em Ottawa (1986), tem vindo a inspirar uma
ampla variedade de políticas internacionais que adotam e reafirmam a
necessidade de implementar ideias chave como a promoção da saúde e o
imprescindível papel da participação dos cidadãos e das comunidades em saúde.
A segunda Conferência sobre Promoção da Saúde e Políticas Públicas, realizada
em Adelaide, em 198821, por seu lado, enfatizou o papel da mulher como
promotora de saúde e recomendou o seu maior envolvimento nos processos de
organização, planeamento e implementação de atividades de promoção da saúde.
Nesse âmbito, exortou igualmente os governos nacionais a reconhecerem e
proverem com mais informações e um maior suporte as redes e as organizações de
mulheres com influência na área da saúde:
"For their effective participation in health promotion women require
access to information, networks and funds. All women, especially those from
ethnic, indigenous, and minority groups, have the right to self-determination
of their health, and should be full partners in the formulation of healthy
public policy to ensure its cultural relevance"21.
A terceira Conferência, realizada em Sundsvall (Suécia), em 1991, incorporou
preocupações acerca das ameaças ambientais a nível global lançadas pelo
relatório "Our Common Future" da Comissão Mundial sobre Ambiente e
Desenvolvimento22. A declaração final incitou as populações de todo o mundo a
envolverem-se ativamente na promoção de um meio ambiente ' no sentido não
somente físico, mas também social, económico e político ' favorável e protetor
da saúde, em vez de gerador de doenças:
"Supportive environments enable people to expand their capabilities and
develop self-reliance. ( ) In summary, empowerment of people and community
participation are essential factors in a democratic health promotion approach
and the driving force for self-reliance and development"23.
Por seu lado, a quarta Conferência Internacional de Jacarta, realizada em 1997,
reafirmou a centralidade das pessoas na promoção da saúde, focando com nitidez
a participação de indivíduos, grupos e comunidades ' desde que adequadamente
informados, treinados, dotados de recursos e capacitados ' como uma importante
estratégia para intervir nas determinantes da saúde:
"Health promotion is carried out by and with people, not on or to people.
It improves both the ability of individuals to take action, and the capacity of
groups, organizations or communities to influence the determinants of health.
Improving the capacity of communities for health promotion requires practical
education, leadership training, and access to resources"24.
A quinta Conferência, realizada na Cidade do México, em 2000, constatou que a
promoção da saúde não é ainda considerada uma componente fundamental das
políticas e programas públicos entre os países e assinalou a necessidade de
aprimorar a participação da sociedade civil:
"Assumir um papel de liderança para assegurar a participação ativa de
todos os setores e da sociedade civil na implementação das ações de promoção da
saúde que fortaleçam e ampliem as parcerias na área da saúde"25.
A sexta conferência, ou Conferência de Banguecoque, realizada em 2005, atribuiu
prioridade às parcerias locais (com instituições públicas, privadas e ONG) como
estratégia de fortalecimento da sociedade civil, especialmente das comunidades
locais consideradas essenciais para a sustentabilidade da promoção da saúde:
"Communities and civil society often lead in initiating, shaping and
undertaking health promotion. They need to have the rights, resources and
opportunities to enable their contributions to be amplified and
sustained"26.
Os participantes da sexta conferência revisaram os 5 campos de ação
estabelecidos em Ottawa, em 1986, com o objetivo de os readaptar às
necessidades de um mundo globalizado e responder de forma mais efetiva aos
desafios da promoção da saúde27. Relativamente à "ação
comunitária", foram apresentados diversos estudos que apontavam para a
necessidade de procurar mais evidências acerca da efetividade das intervenções
comunitárias nas atividades de promoção da saúde28.
A sétima Conferência, de Nairobi, em 2009, dedicou uma sessão específica ao
tema do empoderamento comunitário, promovendo o encontro de estudiosos
internacionais sobre o assunto. O documento final desta sessão de trabalho
serviu de base a uma análise crítica de algumas experiências de participação
realizadas no âmbito dos programas de promoção da saúde e apontou os principais
desafios e limites, assim como os novos rumos e estratégias tendentes a
aprimorar a participação comunitária:
"Communication plays a vital role in ensuring community empowerment.
Participatory approaches in communication that encourage discussion and debate
result in increased knowledge and awareness, and a higher level of critical
thinking"29.
"Enabling implies that people cannot be empowered by others; they can
only empower themselves by acquiring more of power's different form"30.
Desde a adoção da Declaração de Alma-Ata, em 1978, que uma nova orientação para
a política de saúde tem enfatizando o envolvimento das pessoas, a cooperação
entre os setores da sociedade e os cuidados de saúde primários como o principal
caminho apontado para o desenvolvimento da saúde, à semelhança, aliás, das
subsequentes recomendações das Conferências Internacionais sobre Promoção da
Saúde, apesar do foco distinto de cada uma. Não obstante, a participação em
saúde tem oscilado entre um discurso encorajador e uma prática nem sempre
coincidente, tal como abordado no ponto seguinte. Aliás, a avaliação dos 30
anos após Alma-Ata sustenta como grande conclusão o ainda deficitário
envolvimento dos cidadãos em saúde, considerando que a participação das
comunidades nesta área, sobretudo das comunidades mais pobres, é, sem dúvida, o
maior desafio que esta realidade continua a enfrentar30,31. No mesmo sentido, a
OMS reitera, em 2008, preocupações não só com a questão da promoção da saúde e
a participação em saúde, como com a relação entre ambas. No relatório sobre
cuidados de saúde primários sugestivamente intitulado "Now More than
Ever", reafirma-se a necessidade de transformar os sistemas de saúde por
forma a melhorar a saúde, realçando o que é valorizado pelas pessoas, sistemas
"equitativos, orientados para as pessoas" e reforçando que as
reformas dos cuidados públicos de saúde devem ser exercidos "através de
modelos colaborativos de diálogo político e com todos os interessados
envolvidos", garantindo que são estas formas de participação que tornam o
sistema de saúde mais efetivo32. Estas avaliações mais recentes sobre a
relevância da promoção da saúde na sua relação com a questão da participação
cidadã reafirmam o percurso sinuoso desta realidade em termos práticos e a
necessidade de se avaliar de forma mais profunda os discursos e as práticas de
participação.
Participação em saúde: entre discursos e práticas
Como se pôde observar, as últimas conferências, em particular as de Banguecoque
(2005) e de Nairobi (2009), foram explícitas ao enfatizar a complexa relação
entre participação e promoção da saúde. Porém, no final de 1990, ou seja, cerca
de 10 anos depois da Carta de Ottawa, a própria academia tinha também investido
na análise das limitações colocadas ao desenvolvimento da promoção da saúde
comunitária. Guldan33, por exemplo, denunciava que apesar da retórica dos
serviços de saúde, muito poucas comunidades tinham sido capacitadas para
melhorar efetivamente a sua saúde e identificava os principais obstáculos à
promoção da saúde. Também Nilsen34 lembrava que as "expectativas dos
benefícios obtidos através do envolvimento da comunidade na promoção da saúde e
na prevenção das doenças parecem ser reduzidas".
Desde o início que o descompasso entre um discurso encorajador e uma prática
mais aquém foi identificado. Assim, apesar das boas intenções e de louváveis
esforços empreendidos, a prática da participação, e mais do que isso, a
participação com resultados mensuráveis tarda a efetivar-se ao nível dos
sistemas de saúde e dos seus serviços3,4,31,35,36. No recente encontro de
Amesterdão, por exemplo, depois ter apresentado os progressos alcançados nos
países europeus ' em particular o reconhecimento da importância da participação
e o desenho de um marco legislativo adequado ' a WHO-Europa37 lembra que são
ainda poucas as evidências que demonstram como garantir a participação dos
cidadãos e como esta pode melhorar os resultados de saúde nos diferentes países
europeus. Para Zakus e Lisack4, os esforços realizados não tiveram êxito porque
as estratégias implementadas a partir da Declaração de Alma-Ata se baseavam em
"abordagens muito simples". A realidade, acrescentam, tem
demonstrado serem necessárias "estratégias mais complexas". Nesta
mesma linha, Susan Rifkin atribui tais insucessos "à abordagem
vertical" adotada pelos sistemas de saúde que têm considerado a
participação comunitária como uma receita capaz de "resolver tanto os
problemas enraizados no sistema de saúde como no poder político"31. Mais
recentemente Susan Rifkin complementou esta abordagem crítica salientando que,
na prática, as comunidades participativas há tanto teoricamente advogadas não
se chegaram a efetivar porque as pessoas e as comunidades têm outras
prioridades e a saúde só chega a ser prioridade quando se está doente. Para
além disso, considera ainda que a falha está na promoção de modelos standard de
participação, os quais esbarram com fatores históricos e culturais, com os
quais essa participação standard não se tem coadunado38.
Nos últimos anos têm sido vários os estudiosos a enfatizarem criticamente as
experiências de participação em saúde baseadas em visões utópicas tanto da
comunidade como da participação, descurando a análise da sua efetividade, do
seu real impacto e da sua sustentabilidade. Também eles têm reconhecido a
existência de uma contradição entre os discursos promotores da participação no
sistema de saúde e as práticas organizativas dos serviços (suas características
e suas modalidades de intervenção) que essa participação pressupõe, ainda
predominantemente autorreferencial35,39,40.
No mesmo sentido, devem ainda considerar-se as críticas de alguns estudiosos
britânicos em relação aos métodos de envolvimento dos cidadãos na política,
desenvolvidos a partir dos anos 9041,42,43,44,45,46,47. De acordo com esta
abordagem, as novas experiências participativas têm sido adotadas simplesmente
para legitimar as reformas económicas e de gestão introduzidas nos sistemas de
saúde, já que a influência das comunidades locais nas decisões dos gestores e
na definição das prioridades tem ficado muito aquém do que tinha sido
preconizado pelos discursos políticos que tanto exaltavam as Local
Voices42,48,49.
Apesar da importância atribuída à participação nas normativas sanitárias
nacionais e internacionais, e apesar de a participação se ter difundido nos
últimos 30 anos, a partir de múltiplas experiências, estas são ainda
escassas50,51,52. Constata-se, afirmam Monno e Khakee40, um crescente
distanciamento entre os ideais que norteiam as teorias de planeamento e as
práticas de participação. Importa, por isso, atentar com mais rigor na forma
como a participação dos cidadãos nos sistemas de saúde dos países ocidentais
tem decorrido, focando tanto a busca de novas estratégias para o envolvimento
dos cidadãos como os principais aspetos críticos referentes a essas práticas
participativas.
Quatro elementos constituem o âmago da análise crítica que tem sido
desenvolvida sobre a forma como se tem preconizado o envolvimento dos cidadãos
na saúde: a questão que versa sobre os procedimentos relativos ao envolvimento
dos utentes no processo, a questão da representatividade nos mecanismos
participativos, a questão da capacitação cidadã na saúde e a questão da
efetividade dos processos participativos, aspetos a desenvolver seguidamente.
O envolvimento dos utentes
Nos últimos anos, na perspetiva da governance, os métodos deliberativos têm
recebido interesse crescente enquanto estratégia inovadora que reforça a
interação entre decisores e cidadãos, que promove uma democracia mais forte e
como garantia de qualidade das decisões. A democracia deliberativa focaliza,
assim, os processos comunicativos entre decisores políticos e cidadãos, a
formação das opiniões e das vontades que precedem a votação sobre uma
determinada decisão. Neste sentido, a democracia deliberativa não deve ser
pensada como uma alternativa à democracia representativa53,54,55, mas como a
sua natural expansão ou, de acordo com Santos, como duas formas
complementares55.
Na verdade, apesar de coincidentes no pressuposto da participação, a proposta
de Boaventura de Sousa Santos radica na ideia de uma democracia
participativa55,56, substancialmente distinta da proposta da deliberação
strictu sensu.
Os dispositivos deliberativos são baseados em amostras representativas da
sociedade, muito centradas nos participantes individuais que se juntam a um
grupo de pessoas que se reúne num lugar específico para deliberar sobre
questões de interesse público. Existe, portanto, uma dimensão mais prática da
democracia deliberativa que demonstra exatamente uma certa incompatibilidade
entre a abordagem deliberativa e a abordagem da democracia participativa, já
que esta última respeita uma lógica de mobilização social, mais consistente com
a mobilização das classes mais baixas e a sua inclusão a partir da
participação, mais atenta à organização dos movimentos sociais e também mais
utópica57,58.
Os métodos deliberativos representam, portanto, uma forma de participação que
oferece aos indivíduos a oportunidade de expressarem os seus pontos de vista,
conhecerem e compreenderem o que pensam e porque pensam dessa forma outros
cidadãos que participam nos mesmos processos, identificarem preferências e
problemas, até chegarem a adquirir um juízo fundamentado sobre temas de
relevância pública. Através de discussões e análise ' preferencialmente
decorrentes em pequenos grupos (face-to-face discussion) ' dos diversos
argumentos colocados pelos participantes livres e dotados de iguais
oportunidades para participar, é possível conhecer as diversas opções e
estabelecer os critérios de avaliação até chegar à identificação da melhor
solução a implementar59,60. A prática deliberativa supõe obrigatoriamente um
processo de decisão coletivo em que os participantes interessados na discussão
dos temas enfrentados têm a oportunidade de convergir sobre uma opinião, dando
voz e relevância a todos os argumentos apresentados. Contudo, cabe destacar que
deliberação é muito mais que uma simples discussão de assuntos61. O processo
deliberativo também se preocupa com o resultado da discussão, ou seja, com as
decisões e recomendações propostas e com o processo que leva a esse resultado.
Na base destas preocupações está, portanto, a ideia de democracia enquanto
processo.
Embora a ideia de democracia deliberativa seja muito antiga, ela renasceu no
final de 1989 a partir da contribuição teórica de Bernard Manin62, Joshua
Cohen63 e John Rawls64. Neste âmbito, Gutmann e Thompson65 providenciaram
também um dos argumentos mais consistentes da teoria da deliberação
democrática, baseado na possibilidade de posições adversárias se unirem em
questões morais e políticas. A teoria da deliberação democrática foi ainda
profundamente inspirada na noção de esfera pública de Habermas66 e na ideia de
"democracia comunicativa", assim como em John Rawls67 e no conceito
de "razão pública". Neste domínio, sobretudo nas suas primeiras
abordagens, conceitos como "formação discursiva do consenso" e
"ação comunicativa orientada para o entendimento" assumem também
particular relevância.
A abordagem da teoria da deliberação democrática tem também seduzido a área da
saúde, onde tem vindo a suscitar interesse crescente, na medida em que se
percebe a necessidade de criar uma esfera pública' apropriada68 para
incentivar o diálogo entre os diferentes atores do sistema de saúde. Entre os
métodos mais utilizados para colocar a deliberação em curso na área da saúde
encontramos processos como júris de cidadãos, workshops de cidadãos, unidades
de planeamento, painéis de cidadãos, conferências de consenso, processos de
votação deliberativa e grupos focais deliberativos. Comum a todos eles está o
elemento deliberativo que considera alguns aspetos essenciais como: prover
informações sobre o assunto em discussão a todos os participantes; descrever e
formular os assuntos analisados no idioma dos cidadãos participantes;
considerar atentamente os pontos de vista dos outros participantes; estimular a
discussão para alcançar o consenso ou para aproximar as diversas posições sobre
o assunto. Entre os benefícios dos processos deliberativos realçados cabe
assinalar os seguintes: possibilidade de alterar as opiniões dos participantes;
capacidade de aumentar o nível de tolerância e compreensão entre grupos para
aceitar os diversos pontos de vista; maior envolvimento dos cidadãos nas
políticas de saúde; oportunidade para conhecer as necessidades de saúde e
valorizar as próprias experiências; mecanismo idóneo para produzir decisões
coletivas e para aumentar a legitimidade das decisões53,54,69,70,71.
Além disso, é importante mencionar que os processos deliberativos aplicados na
área da saúde comportam dois grandes constrangimentos. Em primeiro lugar, a
questão da representatividade, que subjaz aos métodos de participação dos
cidadãos, à qual o próximo ponto deste artigo dedica especial atenção. Em
segundo lugar, a questão da avaliação. De facto, apesar da ampla literatura
sobre o tema da participação cidadã, são ainda escassos os estudos que se
debruçam sobre a efetividade dos métodos deliberativos61,72,73,74. Sobre este
aspeto, por exemplo, os resultados das avaliações de júris de cidadãos ' um
método deliberativo experimentado no sistema de saúde do Reino Unido e bastante
conhecido a nível internacional ' para além de demonstrarem potencialidades
várias, evidenciam alguns pontos críticos, tais como: i) a não garantia de que
as recomendações dos jurados serão consideradas nos processos de decisão; ii) o
baixo nível de institucionalização no âmbito do sistema de saúde, tratando-se
de uma forma de participação ocasional ativada por iniciativa das autoridades
de saúde; iii) os custos financeiros e humanos excessivos que este método
comporta75,76,77,78.
A questão da representatividade nos mecanismos participativos
Tal como mencionado, outro aspeto problemático dos processos deliberativos, já
evidenciado nos anos 904,79,80,81, refere-se à representatividade nas
instâncias de participação, que nem sempre conseguem cobrir as necessidades de
toda a população. Muitos estudos têm, assim, demonstrado que nem sempre os
representantes dos utentes e as associações de doentes conseguem ser garantes
das necessidades de toda a população e, sobretudo, dos sectores sociais mais
desfavorecidos. Também é certo que no caso da participação pública não se pode
falar de participação de todos e a toda a hora e a representatividade no
sentido próprio do termo não existe, na medida em que não existem mecanismos
formais de delegação através dos quais grupos ou categorias de utentes possam
escolher os seus representantes. No caso das associações de doentes, por
exemplo, como apontam Bovenkamp et al.82, não existe uma seleção formal das
associações que podem participar nos processos de tomada de decisões.
Teoricamente, todas podem participar. Além disso, é difícil argumentar que tais
fóruns possam representar todos os cidadãos de uma determinada área ou todos os
utentes de um serviço, considerando a proporção limitada de pessoas e
associações que participam ativamente nas atividades participativas83,84.
Os mecanismos de participação pública diferem das formas tradicionais de ação
política devido ao limitado uso de representação formal. Sobre isto,
Contandriopoulos afirma que os participantes envolvidos em mecanismos de
participação pública "são auto-designados ou nomeados através de
procedimentos formais de representação débil"85. Na mesma linha, Lomas81
demonstra que os membros designados para participar "não são, do ponto de
vista social e demográfico, representativos da comunidade". Assim, a
questão da representatividade nos mecanismos participativos em saúde está muito
associada a um défice de "representação descritiva"86 e que implica
a referência a variáveis demográficas, tais como sexo, idade, etnicidade,
níveis educacionais e escalões de rendimento. Mas há que considerar também um
défice de "representação substancial"86, sobretudo quando os
membros designados ' embora representem as diversas categorias da população ou
a área geográfica ' não perseguem os reais interesses daqueles que representam.
De facto, uma representatividade efetiva e responsável supõe a ativação de
canais de comunicação bilateral entre as pessoas designadas para participar e
aqueles que representam.
A nível europeu é ainda questionada a representatividade das associações de
doentes e de consumidores, as quais nem sempre conseguem envolver determinados
grupos de pacientes devido a dificuldades de comunicação, a condições sociais e
a barreiras económicas e culturais em que esses doentes vivem87.
Os métodos deliberativos são, assim, amplamente questionados pelo défice de
representatividade, elemento que deveria constituir-se como fundamental no
âmbito da democracia participativa.
Nos mecanismos disponíveis para a participação no âmbito da saúde, a opção pelo
envolvimento de pequenos grupos de participantes tem sujeitado os processos
deliberativos a fortes críticas61. "Numa área metropolitana, envolver
através de um grupo focal deliberativo 100 pessoas de uma comunidade de 200.000
pode ser visto como um exercício não representativo"71.
São, portanto, vários os estudos que têm enfatizado o paradoxo da participação
pública, já que esta, ao invés de cumprir um dos objetivos a que se propõe '
mitigar desigualdades ao nível da saúde ', pode, pelo contrário, contribuir
para o seu aumento, na medida em que os grupos sociais vulneráveis '
imigrantes, idosos, pessoas com problemas de saúde mental e, em geral, as
pessoas com escassas competências linguísticas ' participam menos que as
pessoas com mais escolaridade e mais integradas socialmente36. Existe,
portanto, o risco de que a deliberação pública se torne uma prática reservada a
grupos mais favorecidos que, assim, podem consolidar as suas posições sociais
reforçando o seu capital social53. Nesse sentido, as instituições de saúde têm
vindo a ser criticadas pelo facto de não brindarem com oportunidades adequadas
e mecanismos apropriados os cidadãos que não dispõem de recursos económicos e
culturais para participar nos processos de tomada de decisão70,86,88,89. Não
obstante, não está ainda claro qual é a melhor forma de envolver os cidadãos
mais difíceis de implicar (the hard-to-reach' citizens)90, geralmente os que
são excluídos não só dos processos de decisão, mas também da sociedade num
sentido mais amplo.
A capacitação proporcionada pela participação na saúde
A tendência registada nas democracias liberais tem vindo a evidenciar um claro
protecionismo dos processos de decisão da "intrusão" de cidadãos
leigos em decisões que pressupõem um determinado conhecimento perito. Este é um
processo legítimo a que se tem designado "modelo de dupla
delegação"91. De acordo com este modelo, a democracia representativa tem,
assim, legitimado através do voto uma dupla delegação tanto na gestão das
decisões que são entregues a políticos eleitos, como no conhecimento implicado
à sua fundamentação que é entregue à ciência ou ao conhecimento perito. O
modelo reconhece que o cidadão é capaz de ter opinião sobre as matérias
implicadas nos processos de decisão, mas apenas quando sujeito a um processo
"educativo" terá uma participação relevante nos processos de
decisão. Este enquadramento dá ainda conta de como, através do voto, limitamos
a nossa participação na política92.
Este debate constitui-se como um dos temas mais controversos no âmbito da
temática da participação cidadã. De facto, a própria teoria da deliberação
democrática subscreve, sobretudo nas suas correntes fundadoras66,93,94,95, que
só mediante educação os cidadãos podem participar de forma relevante em
processos de decisão. Além disso, sobrevalorizam aspetos que constrangem a
verdadeira capacitação nestes processos, como a capacidade comunicativa e
discursiva, que nem todos os cidadãos possuem; a existência de um espaço
adequado às discussões, o qual pode constranger a participação; as mesmas
oportunidades de argumentação, entre outros96,97. Neste sentido, a deliberação
torna-se um ato público onde todos são informados previamente com a mesma
informação para que reajam face às decisões a tomar65,98,99. Há, no entanto,
pessoas e grupos sociais desfavorecidos que não se enquadram nestas formas
idealizadas de deliberação, as quais servem, portanto, apenas grupos sociais
privilegiados100,101.
Têm sido várias as críticas apontadas aos aspetos referidos, tendo provocado a
abertura desta abordagem no sentido de maior permissividade a novas formas
comunicativas em processos deliberativos como, por exemplo, o testemunho ou
história de vida, numa clara tentativa de abrir a deliberação aos que
usualmente são excluídos desses processos por não serem detentores dos
requisitos necessários101. Advoga-se assim uma perspetiva mais ampla em que
outras formas de experiência possam ser integradas na deliberação, elevando-
a além da racionalidade cognitiva e técnica, enquadrada na academia e pelas
elites burocráticas102,103,104. Desta forma, os processos deliberativos
assentes nessas formas de participação condicionada têm limitado também a
capacitação dos cidadãos nesses processos.
A intemporal "escada de participação" de Sherry Arnstein105 assume-
se aqui como um contributo válido para a discussão desta questão. Segundo a
autora, a participação ocorre a partir de possibilidades distintas de
relacionamento com a esfera de decisão que tenta ilustrar a partir da imagem de
uma escada composta por oito degraus e que podem ir desde a manipulação,
terapia, consulta, apaziguamento, à parceria, ao poder delegado, até ao
controlo efetivo do cidadão na tomada de decisões. Assim, nesta abordagem, a
"verdadeira participação" é aquela que se regista no topo da
escada, à qual corresponde um nível ótimo de capacitação da população, uma
aceção ainda assim controversa, na medida em que autores como Rowe e Frewer106,
embora também relacionem a participação com as diferentes formas como os
cidadãos podem ser envolvidos nas decisões, consideram a participação uma ação
mais lata, ou seja, não tão dependente do controlo que os cidadãos possam
exercer. O trabalho de Arnstein, ainda muito referenciado, foi recentemente
alvo de fortes críticas, sobretudo por conceber a participação como um modelo
unidimensional, baseada somente na lógica do poder, e descurando a necessária
atenção ao processo. Duas críticas fundamentais foram apontadas: a) o facto de
não se preocupar com os métodos de participação, não identificar relações entre
fim, tipos de participantes e métodos adotados; b) limitar a possibilidade de
compartilhar experiências e conhecimentos entre diversas perspetivas89.
Sobre esta abordagem particular, outros autores sugerem que paremos de olhar
para cima a escada e comecemos a olhar em redor, buscando e avaliando novos
processos de democratização das decisões, ou seja, outras relações entre
sociedade, política e deliberação107.
Outro modelo interessante no âmbito da análise da intensidade da participação
comunitária foi proposto por Laverack108, o qual identifica os seguintes
níveis: i) possibilidade de não participarem todos os membros; ii) estarem
presentes nos encontros mas nem todos participarem nas discussões; iii) estarem
envolvidos nas discussões, mas não participarem nas decisões; iv) participarem
nas decisões e existirem mecanismos para partilhar as informações; v)
participarem regularmente na tomada de decisões e serem envolvidos também em
atividades externas à comunidade.
A relação entre participação e capacitação pressupõe, assim, que os
conhecimentos dos que participam, as suas opiniões e o saber de experiência
sejam contemplados nos processos de decisão como forma de garantir decisões que
contemplem essas dimensões experienciadas por aqueles que sofrem
quotidianamente os problemas que as decisões tentam colmatar. Associada a uma
maior capacitação cidadã está a possibilidade de conferir intensidade à
democracia a partir de formas participativas onde todos os cidadãos sejam o
centro das decisões, o que lhes permite garantir direitos de cidadania, a
promoção de justiça social e a mitigação de desigualdades56,92,109.
A área da saúde é, por sinal, uma das áreas onde o conhecimento perito é, quase
sempre, fonte inequívoca de fundamentação para as decisões a tomar. É, por
isso, uma área tradicionalmente mais hermética à participação cidadã, o que
justifica muitas das controvérsias que ocorrem na área da saúde e que invocam
essa resistência em admitir as potencialidades de outro tipo de conhecimentos
na formulação de decisões mais adequadas aos problemas de saúde. Pela
capacitação dos cidadãos através da participação, o indivíduo e/ou a comunidade
orientam-se no sentido de mudar as suas vidas e as suas condições de vida e,
portanto, sua saúde. Desta forma, a capacitação dos cidadãos em saúde é
considerada uma aliada do sucesso de uma comunidade, que se torna capaz de
alcançar condições mais saudáveis através de suas próprias ações108,110. Não
obstante, neste domínio, embora a participação tenda a alastrar a partir de
mecanismos diversos, a tendência ainda é para uma participação muito associada
a um baixo índice de capacitação cidadã, não estando as decisões sob o controlo
dos cidadãos, nem valorizados suficientemente os conhecimentos que eles podem
importar para as decisões111.
A indefinição sobre a efetividade da participação
Um tema recorrente na literatura sobre participação em saúde (1997-2009) diz
respeito a processos de avaliação que demonstrem a efetividade dos mecanismos
participativos implementados. Esta é uma preocupação recente, na medida em que
nos anos 80 e 90 a prioridade era promover e legitimar a prática da
participação enfatizando os seus benefícios. Na visão de Entwistle112, "a
noção de participação faz pouco sentido se faltar o potencial de
influência".
A necessidade de compreender tanto as forças como as fraquezas das experiências
de participação, assim como as razões que geram uma crescente desafeição dos
cidadãos, representa, de acordo com Monno e Khalee40, um importante motivo para
desenvolver um referencial metodológico para a avaliação das práticas
participativas.
A escassez de avaliação no âmbito da participação pública em saúde tem sido
amplo objeto de debate no âmbito da OMS26, a qual tem, apesar de disso,
encorajado os países membros a investir em mais experiências participativas,
consideradas boas práticas. A avaliação das experiências participativas dos
cidadãos é ainda mais urgente face à sua grande proliferação nos últimos anos,
sobretudo a partir de novos métodos de promoção da participação.
É também escasso o conhecimento que dispomos sobre a qualidade e efetividade da
participação em saúde, sobretudo se os distintos mecanismos participativos
permitem concretizar os diversos objetivos de que o conceito de participação
pública se reveste. Já no final dos anos 70, Rosener113 observou que "a
falta de conhecimento sobre a efetividade da participação está provavelmente
relacionada com o facto de que poucos estudiosos reconhecem esta
complexidade". Mais tarde, Rosener veio a identificar quatro problemas
inerentes a realização deste tipo de avaliação: i) o conceito de participação é
complexo e está carregado de valores; ii) não há muitos critérios para julgar
os êxitos e os fracassos de uma estratégia participativa; iii) não há acordo
sobre os métodos de avaliação a implementar; iv) os instrumentos de medida são
poucos fiáveis114.
Trinta anos depois, os mesmos questionamentos sobre a dificuldade em avaliar a
complexidade da participação pública continuam a reiterar-se. Seguramente, a
dificuldade em desenhar modelos apropriados e rigorosos de avaliação é o fator
responsável pelo ainda escasso conhecimento sobre impacto dos diferentes
mecanismos de participação a vários níveis115. De facto, antes de construir uma
estratégia apropriada de avaliação da efetividade, torna-se necessário
clarificar o que entendemos por participação pública, assim como conceptualizar
os seus benefícios, mais concretamente o que entendemos por efetividade e como
defini-la teórica e empiricamente, torna-se a grande questão.
Para isso, no entanto, é importante compreender que o que se alcança com a
participação constitua um bom resultado, assim como os processos que contribuem
para o alcançar52. Por outras palavras, a avaliação da efetividade requer uma
definição de êxito para as distintas práticas de envolvimento dos cidadãos116.
Nesse sentido, não é suficiente desenvolver uma definição única de êxito, já
que na arena sanitária existe uma multiplicidade de atores envolvidos e uma
diversidade de perspetivas sobre os objetivos que a participação pública deve
cumprir. Por exemplo, em relação à função que devem desempenhar os
representantes dos cidadãos, cabe perguntar: devem participar na difusão das
informações? Devem expressar suas opiniões sobre o que já está decidido? Ou
devem participar no processo de tomada de decisões? Infelizmente, estas
questões conceptuais e metodológicas têm recebido pouca consideração por parte
da literatura académica52 e isto tem permitido elevar muito do que se considera
participação a atividade bem-sucedida.
As reflexões sobre a efetividade da participação têm convergido no sentido da
preocupação em definir "efetividade" e em identificar critérios
para avaliar a efetividade das experiências de
participação40,90,104,117,118,119. Muitas das definições encontradas reconhecem
a complexidade e a multidimensionalidade do sucesso destes processos e adotam,
consequentemente, múltiplos critérios: critérios baseados no processo, no
resultado ou em ambos. Torna-se, portanto, cada vez mais urgente desenvolver um
modelo robusto e confiável para avaliar o impacto da participação pública115.
Conclusões
A participação em saúde tem sido adotada como uma estratégia importante para
promover uma maior abertura do sistema e, consequentemente, uma maior interação
com os representantes das comunidades e das associações de doentes e utentes.
Este artigo focou alguns dos aspetos mais relevantes evidenciados pelo atual
debate sobre participação em saúde e que destacam novos rumos e estratégias de
aproximação entre o sistema de saúde e seus beneficiários. Trata-se obviamente
de um processo ainda em evolução, embora sejam já visíveis algumas das mudanças
que têm ocorrido na forma de organização dos serviços de saúde em resultado da
crescente exigência por participação, assim como uma maior exigência por
personalização e humanização dos cuidados a prestar. Os processos de mudança
têm vindo a afetar os vários atores envolvidos na área da saúde, na medida em
que se começam a experimentar e a desenvolver novas relações entre o sistema,
por um lado, e pacientes, cidadãos e organizações da sociedade civil, por
outro.
O sistema de saúde tenta, hoje, caminhar no sentido de se afastar da relação
insensível que mantinha com o seu ambiente social. Os múltiplos processos e
fenómenos sociais surgidos e desenvolvidos nos últimos 30 anos ' tais como a
crise do paradigma biomédico, a crise financeira e as subsequentes reformas do
setor da saúde, a difusão do conceito de qualidade de cuidados a prestar, a
valorização do papel do paciente, o desenvolvimento de movimentos dos utentes e
consumidores, a ênfase na promoção da saúde, entre outros ' têm, sem dúvida,
contribuído para uma maior abertura do sistema de saúde ao reconhecimento da
importância que nele pode ter a voz dos cidadãos.
Não obstante essa crescente abertura, o sistema de saúde, sobretudo a partir de
alguns comportamentos profissionais e organizacionais, vive ainda subordinado a
uma cultura burocrática e tradicional, revelando-se pouco sensível ao ambiente
social envolvente. Os utentes e as associações de doentes também encontram
dificuldades no desempenho das suas funções de representação dos cidadãos,
independentemente da maior abertura à participação que o sistema possa
apresentar. Assim, os membros designados para participar no contexto da saúde
ou não são representativos dos diversos setores da sociedade ou não conseguem
desenvolver com ela a necessária interação. Além disso, há estudos que
assinalam que os pacientes e os cidadãos nem sempre querem ser envolvidos ou
expressar a sua própria voz sobre questões de planeamento e organização dos
cuidados de saúde48,69,120,121. Decorre daqui a necessidade de entender a
participação como uma questão de vontade e não de obrigação, que facilmente a
eleva ao registo de "tirania da participação"122, não devendo,
portanto, a literatura sobre participação em saúde inferir sobre esse
"desejo implícito" de participação por parte dos cidadãos85.
Mas talvez o maior problema evidenciado seja a constatação de que as instâncias
de participação em saúde são ainda pouco utilizadas pelos grupos sociais que
têm menos acesso aos serviços de saúde. Desta forma, a escassez de mecanismos
capazes de aproximar esses cidadãos ao sistema de saúde tem obstaculizado a
relação do sistema de saúde com o ambiente social envolvente, assim como uma
relação mais democrática na saúde a partir da mais participação. Como se pode
observar, seja do lado do sistema de saúde e seja do lado dos beneficiários,
sobressaem dificuldades e praxis operativas que contribuem para aumentar a
complexidade da relação.
Os principais itens considerados na análise deste artigo remetem-nos para
questões muito particulares que se colocam no âmbito da participação em saúde.
Desde logo, é por demais evidente na análise efetuada a dificuldade em integrar
a participação como prática regular e efetiva. Destacam-se as dificuldades no
envolvimento dos cidadãos, muitas vezes devido aos constrangimentos que certos
modelos de participação colocam a uma efetiva representatividade dos cidadãos e
dos seus problemas. Para além disso, a participação dos cidadãos em saúde,
muitas vezes, quando acontece, não tende a perpetuar-se através de formas
regulares e institucionalizadas. Nesse sentido, fala-se de estratégias
ocasionais, na medida em que são iniciativas de participação esporádicas e
fomentadas a partir de iniciativas das autoridades locais de saúde. Este tipo
de participação é igualmente importante e necessária em determinados momentos
do processo de planeamento dos serviços, embora não represente, no entanto, uma
estratégia participativa consolidada e institucionalizada. Outro dos paradoxos
da participação em saúde assenta na notada falta de reflexo da participação nas
decisões tomadas, o que coloca em causa tanto o investimento na capacitação dos
cidadãos como a utilidade destas formas de envolvimento cidadão em processos
deliberativos. Desta forma, esta ausência de efeitos visíveis ' para além das
sérias dificuldades em avaliar a efetividade da participação em saúde '
desemboca geralmente numa deceção sistemática quanto à esperança de ganhos de
racionalidade associada à participação.
É muito importante que os atores que interagem no sistema de saúde tenham a
capacidade de identificar e desenvolver novas e mais efetivas formas de relação
e de intermediação coletiva a nível local e entre os cidadãos e os serviços de
saúde. Obviamente, o compromisso e a cooperação das autoridades de saúde é um
passo indispensável nesse sentido. Sem a colaboração e empenho de gestores e
profissionais, na ausência de recursos financeiros e de uma estrutura
organizacional adequada, a participação no sistema de saúde tem escassas
possibilidades de se poder afirmar e auto sustentar no tempo. A manutenção das
associações e dos movimentos de utentes é, portanto, uma forma importante de
garantir uma infraestrutura participativa através da qual os membros da
comunidade possam organizar as suas perspetivas sobre as questões da saúde.
Neste sentido, os decisores políticos, além de deverem instituir mecanismos de
participação para acolher a voz dos utentes no sistema, envolvendo-os nos
processos de decisão, deveriam também encorajar o desenvolvimento de formas de
intermediação coletiva entre cidadãos e instituições de saúde.