Caracterização da pessoa dependente no autocuidado: um estudo de base
populacional num concelho do norte de Portugal
Introdução
A evolução social e científica verificada ao longo das últimas décadas tem
resultado num aumento da esperança média de vida e, concomitantemente, numa
maior prevalência de doenças crónicas, fatores que se têm traduzido num aumento
significativo de pessoas em situação de dependência. Esta é uma realidade em
Portugal, tal como em outros países ditos desenvolvidos, sendo que os cuidados
a estas pessoas são maioritariamente prestados no seio familiar. "A
família surge, pois, como um elemento importante de solução e o cuidado fica,
assim, socialmente dividido entre o Estado e a família"1.
Apesar de existirem várias políticas governamentais de apoio a pessoas em
situação de dependência, a identificação dessas pessoas, do seu grau de
dependência e dos cuidados básicos de que necessitam, não se encontram
estudadas de forma a um efetivo aproveitamento dessas políticas por todos
aqueles que delas necessitam.
Neste sentido, o estudo por regiões permitir-nos-á fazer um diagnóstico da
situação, fundamentando a implementação de medidas de intervenção concretas,
até porque é exatamente o grau de dependência que determina os cuidados que
serão necessários2.
Na verdade, a avaliação do tipo e grau de dependência no autocuidado é de
extrema importância, quer na avaliação do estado de saúde quer no planeamento
dos cuidados. O conhecimento da dependência das pessoas em cada domínio de
autocuidado, mais especificamente em cada atividade que o concretizam, permite
não só planear cuidados individualizados, mas também definir e implementar
intervenções realistas e adequadas às necessidades3.
Neste sentido, o presente estudo foi desenvolvido, no âmbito do mestrado4,
sendo norteado pela seguinte questão: "Qual a dependência no autocuidado
das pessoas dependentes integradas em famílias clássicas do concelho de Paços
de Ferreira-".
Importa referir que o conceito de famílias clássicas é o definido pelo
Instituto Nacional de Estatística (INE), segundo o qual a família clássica
inclui "a pessoa independente que ocupe uma parte ou a totalidade de um
alojamento, ou o conjunto de pessoas que residem no mesmo alojamento e que têm
relações de parentesco de direito ou de facto entre si, podendo ocupar a
totalidade ou parte do alojamento"5.
A dependência no autocuidado
O aumento da situação de dependência está relacionado fundamentalmente com 2
fatores: o aumento da esperança de vida e consequente envelhecimento da
população, e a maior prevalência das doenças crónicas. O envelhecimento
demográfico diz respeito ao aumento da proporção das pessoas idosas na
população total, em detrimento da população jovem e/ou da população em idade
ativa. A proporção da população mundial com 65 ou mais anos regista uma
tendência crescente, tendo aumentado de 5,3% para 6,9% do total da população
entre 1960-2001, esperando-se que aumente para 15,6% em 20506.
"Paralelamente ao aumento do número global de idosos, emerge outro
fenómeno, que consiste no aumento do número dos muito idosos, com maior
probabilidade de degradação física e mental"7. Trata-se de um processo
secundário de envelhecimento demográfico, por vezes apelidado como "o
envelhecimento dos idosos" ("the aging of the aged") e que
está a acontecer gradualmente e em todo o mundo. A Organização Mundial de Saúde
(OMS) aponta que em 2025 existirão mais de 1,2 biliões de pessoas com idade
superior a 60 anos, em que os idosos com 80 ou mais anos constituem o grupo
etário de maior crescimento8.
Neste seguimento, o envelhecimento demográfico e as consequentes alterações no
padrão epidemiológico e na estrutura da sociedade portuguesa vêm determinando
novas necessidades em saúde, para as quais urge organizar respostas mais
adequadas9.
Para além disso, a par dessas mudanças sociodemográficas, constatamos que a
evolução dos progressos terapêuticos, o desenvolvimento de técnicas mais
sofisticadas e fármacos mais eficazes, a melhoria das condições socioeconómicas
da população, bem como a alteração dos estilos de vida, se tem traduzido num
aumento significativo de pessoas com doenças crónicas que vivem mais anos e em
situação de dependência7. Associado a isso, se considerarmos que é
essencialmente na população com mais de 65 anos que as limitações na capacidade
de autocuidado se encontram mais patentes, prevê-se o agravamento da dimensão
do problema nas próximas décadas10.
A par do envelhecimento e das doenças crónicas, também o número significativo
de acidentes rodoviários e de trabalho têm contribuído para o aumento de
pessoas dependentes no autocuidado.
é frequente a referência ao autocuidado como um conjunto de atividades
iniciadas e executadas pela pessoa, ao longo do ciclo vital, cujo objetivo é a
manutenção da vida, saúde e bem-estar. Todos os indivíduos adultos e saudáveis
têm capacidade de se autocuidar. Porém, quando por motivo de doença, idade,
estado de desenvolvimento, falta de recursos ou fatores ambientais a
necessidade de autocuidado do indivíduo é superior à sua capacidade de o
realizar, ou seja, quando existe défice de autocuidado, pode necessitar de
ajuda a fim de satisfazer as suas necessidades de autocuidado, podendo essa
ajuda provir dos familiares, amigos ou profissionais11. Neste sentido, a pessoa
dependente é aquela que durante um período de tempo, mais ou menos prolongado,
necessita de ajuda de outra pessoa ou de equipamento para realizar certas
atividades da vida diária12-14.
é consensual que ao longo do ciclo vital a pessoa oscila nas necessidades de
autocuidado, nas capacidades da sua satisfação e nas necessidades de ajuda dos
outros, quando pelas mais variadas razões, nos processos de transição, se
altera a condição do indivíduo ou do meio e da autonomia se caminha para a
dependência.
Uma transição é normalmente precipitada por um evento ou "ponto de
viragem"15. Na transição para a dependência esse ponto pode ser
identificado como o início de uma doença ou um acidente, ou não ser possível de
reconhecer, quando falamos, por exemplo, num estado de dependência progressivo
associado ao envelhecimento. Daqui se depreende que a situação de dependência
pode ser provocada pelo aparecimento de uma ou várias doenças crónicas, ou ser
o reflexo de uma perda geral das funções, atribuível ao processo de
envelhecimento. Assim sendo, a passagem de uma situação de independência para
uma situação de dependência no autocuidado poderá inserir-se no conceito de
transição saúde/doença e/ou de desenvolvimento.
A dependência não é um fenómeno novo. Sempre existiram pessoas dependentes,
contudo, atualmente, numa época verdadeiramente marcada por profundas
transformações estruturais como o envelhecimento da população, a mudança do
perfil das patologias, com maior incidência de doenças crónicas, as alterações
na estrutura familiar decorrentes da entrada das mulheres no mundo do trabalho,
o fenómeno da dependência no autocuidado apresenta-se como um dos maiores
desafios, não só ao nível da saúde, mas também ao nível social e político13,16.
Os esforços desenvolvidos ao longo dos últimos tempos, no sentido de dar
respostas aos utentes na comunidade que carecem de cuidados continuados, têm
sido incrementados, sendo, no entanto, ainda insuficientes para as necessidades
sentidas por parte das populações.
Na verdade, com as dificuldades do sistema de saúde e de proteção social em dar
resposta a todas as necessidades de cuidados da população, foi atribuída à
família a responsabilidade dos cuidados a prestar aos seus membros em situação
de dependência13.
O problema é que, atualmente, as novas políticas de saúde denotam tendência
para que o tempo do internamento hospitalar seja cada vez menor, o que conduz a
altas precoces com pessoas no domicílio ainda em fase de recuperação das suas
doenças ou em estadio terminal de vida, totalmente dependentes de outros7,
nomeadamente dos membros da família. Estes estão na maioria das vezes
impreparados para responder às necessidades do familiar dependente. Na
sequência dessa situação, vivenciam transições situacionais e/ou transições de
caráter organizacional, que importa equacionar numa resposta dos serviços de
saúde.
Na atualidade, o facto de esta realidade não ser suficientemente conhecida tem
dificultado uma planificação adequada às verdadeiras necessidades da pessoa
dependente, bem como da família que a integra. Neste contexto releva a
necessidade de conhecer a realidade portuguesa, para que se possa trabalhar na
construção de modelos de intervenção adaptados às reais necessidades dos
dependentes e famílias prestadoras de cuidados. Na verdade, a verificação
desses dados é uma prioridade, pois só com resultados objetivos será possível
realizar o diagnóstico da situação.
Método
Foi delineado um desenho de investigação quantitativo, exploratório, de
natureza descritiva-correlacional e de caráter transversal. O contexto do
estudo foi o concelho de Paços de Ferreira, subdividido em 16 freguesias. A
população do estudo foi constituída pelas famílias clássicas residentes nesse
concelho, à data dos censos de 2001.
Perante a impossibilidade de estudar a totalidade da população, foi constituída
uma amostra representativa da população em estudo. Para determinar a dimensão
da amostra utilizámos a fórmula publicada pela OMS de Lwanga e Lemeshow17, em
que n = Z2 p (1-p)/d.
A técnica de amostragem usada foi probabilística, aleatória, estratificada e
proporcional. Uma vez que, na investigação, pretendíamos estudar uma grande
população - as famílias clássicas residentes no concelho de Paços de Ferreira e
que esta população se encontrava dividida em grupos com uma característica
específica - o local de residência, os estratos utilizados foram as freguesias
do concelho.
A proporcionalidade foi de acordo com a representação das famílias de cada
freguesia, em relação ao valor na população total do concelho de Paços de
Ferreira.
Para conhecer a distribuição geográfica das famílias (em cada freguesia),
recorremos à Base Geográfica de Referenciação de Informação18 e a um sistema de
informação geográfico (SIG), Quantum GIS, para a seleção geográfica aleatória
estratificada de subsecções territoriais, onde se encontravam as famílias
clássicas a amostrar, de acordo com a dimensão pretendida em cada freguesia. Os
outputs com as referidas subsecções geográficas, bem como com o número de
famílias clássicas a amostrar, depois de importados para o Bing Maps,
facilitaram a recolha de dados no terreno.
Salientamos que o presente estudo está inserido num projeto de base
populacional, pois a amostragem probabilística a que se recorreu permite
extrapolar os resultados para o concelho onde foi desenvolvida a investigação,
concorrendo para um conhecimento epidemiológico das pessoas dependentes,
integradas em famílias clássicas do nosso país.
A estratégia adotada para contactar a amostra foi a deslocação dos
investigadores às seleções geográficas definidas previamente, recolhendo dados
"porta a porta", até se obter o número de famílias determinado para
a freguesia.
Como instrumentos de colheita de dados, foram usados os formulários intitulados
"Famílias que integram Dependentes no Autocuidado", baseados numa
investigação anterior3. Estes são constituídos por 2 partes: parte I -
Inquérito Preliminar, e parte II - Formulário Prestador de Cuidados do
Dependente (PCD).
A colheita de dados realizada nos domicílios das famílias clássicas decorreu de
acordo com o seguinte procedimento: realização do inquérito preliminar; pedido
de colaboração voluntária na investigação; informação sobre os objetivos da
investigação e sobre a confidencialidade das respostas, garantindo-se o
esclarecimento de quaisquer dúvidas; e, por fim, a aplicação dos instrumentos.
Em consonância com os princípios definidos para a colheita de dados, os
formulários foram, preferencialmente, aplicados aos membros da família
prestadores de cuidados. Durante a aplicação dos instrumentos de colheita de
dados foi o investigador a fazer as questões, preenchendo ele próprio o
formulário, de acordo com os dados fornecidos. Este tipo de administração
permitiu, em simultâneo, esclarecer as perguntas e ter uma maior adesão nas
respostas. Para além disso, permitiu que alguns dados fossem documentados pelo
investigador, após o seu juízo clínico, nomeadamente nas questões que o
exigiam.
A presente investigação cumpriu todos os requisitos legais e éticos ao seu
desenvolvimento, sendo que a sua realização foi do conhecimento da comissão de
proteção de dados.
Resultados
Antes da apresentação dos resultados obtidos parece-nos importante evidenciar
os dados relativos à amostra do estudo. Neste sentido, e atendendo a que o
objetivo foi identificar um sistema social particular (famílias clássicas que
integravam pessoas dependentes no autocuidado), com base numa abordagem do tipo
"porta a porta", guiada pelo plano de amostragem já definido,
encontrámos 2.126 famílias, das quais 11 recusaram participar no inquérito
preliminar. Das 2.115 famílias clássicas que aceitaram responder ao inquérito
preliminar, 248 integravam pessoas dependentes. Daqui se depreende que um valor
percentual de 11,73% de famílias clássicas do concelho de Paços de Ferreira
integravam pessoas dependentes no autocuidado. Das 248 famílias referidas, 7
recusaram participar na investigação. Por esse motivo, ficámos com uma amostra
de 241 famílias que integravam pessoas dependentes no autocuidado.
Os alojamentos onde viviam as famílias eram, maioritariamente, moradias
(83,8%), cujas necessidades de reparação eram de pequenas (33,6%) a médias
(29,0%). Desses 241 alojamentos, só 27,2% possuíam acessibilidade a pessoas com
mobilidade comprometida e 52,1% aquecimento.
De entre as várias tipologias de famílias, sobressaíram as com um núcleo
(61,9%), seguidas das famílias com 2 núcleos (21,2%). é de destacar um número
significativo de famílias sem núcleo (16,5%). Importa referir que, de acordo
com o INE, o núcleo familiar é entendido como o conjunto de 2 ou mais pessoas
residentes numa família clássica, entre as quais existe pelo menos um dos
seguintes tipos de relação: casal, casal com filho(s), pai ou mãe com filho
(s)5.
Apesar de não ter sido nossa pretensão identificar prestadores de cuidados
principais e secundários (até porque não era disso que se tratava), houve
situações em que os cuidados à pessoa dependente eram "partilhados"
por 2 prestadores, sem que algum deles se assumisse como o principal. Assim,
nas situações em que existiam 2 prestadores de cuidados foram identificados 2
perfis - o perfil 1 e o perfil 2.
Os prestadores de cuidados do perfil 1 (amostra constituída por 241
prestadores) eram, maioritariamente, do sexo feminino (89,6%), com uma idade
média de 56,33 anos, casados ou a viver em união de facto (75,9%), com 1.º
ciclo do ensino básico (50,6%) e domésticos (33,6%) ou pensionistas/reformados
(21,2%). Relativamente ao parentesco eram, predominantemente, filhos/filhas
(42,7%) ou maridos/esposas (27,8%). Verificou-se que 89,4% coabitavam com a
pessoa dependente.
Os prestadores de cuidados do perfil 2 (amostra constituída por 32 prestadores)
eram também maioritariamente do sexo feminino (56,3%), com uma idade média de
54,55 anos, casados ou a viver em união de facto (87,5%), com o 1.º ou 2.º
ciclo do ensino básico (respetivamente 41,9 e 22,6%) e pensionistas/reformados
(28,1%) ou vendedores (15,6%). Relativamente ao parentesco eram,
predominantemente, pais (34,4%), filhos/filhas (21,9%) ou maridos/esposas
(21,9%). Constatou-se que 71,9% coabitavam com a pessoa dependente.
Relativamente aos 241 dependentes (tabela_1), eram, maioritariamente, do sexo
feminino, com uma idade média de 67,57 anos. No que se refere ao grupo etário,
era na classe de idades superiores a 80 anos que se encontrava maior
percentagem de pessoas dependentes. Importa referir que 6,2% tinham idade
inferior a 18 anos.
Quanto ao estado civil, constatámos que, maioritariamente, eram casados ou
viúvos, e tendo em conta a própria faixa etária, a quase globalidade
encontrava-se na situação de pensionista/reformado. Nesta mesma linha
interpretativa, o nível de literacia na presente amostra é muito baixo, sendo
que a maioria não tinha qualquer nível de escolaridade, o que espelha bem a
realidade portuguesa nesta faixa etária.
Relativamente à situação que originou a dependência (tabela_2), destacamos como
principais causas de dependência a doença crónica e o envelhecimento. Em
consonância com o referido, a instalação da dependência foi predominantemente
gradual.
No que concerne ao tempo de dependência, obteve-se a média de 11,5 anos,
repartindo-se os maiores valores percentuais entre os tempos de dependência
inferiores a 5 anos e entre 6-10 anos.
Quanto à necessidade de fármacos, prevaleceu o consumo de medicamentos em 97,5%
dos dependentes, frequentemente em regime de polimedicação. Importa ainda
referir que 6,2% tiveram internamentos no último ano e 31,1% referiram
episódios de recursos ao serviço de urgência.
Uma vez caracterizadas as pessoas dependentes, para se perceber o tipo e grau
de dependência que as mesmas apresentavam, partimos dos domínios de autocuidado
do instrumento de Avaliação da Dependência no Autocuidado que integra o
Formulário PCD, anteriormente referido. Cada um dos domínios de autocuidado
estudados (tomar banho, vestir-se e despir-se, arranjar-se, alimentar-se, uso
do sanitário, elevar-se, virar-se, transferir-se, usar cadeira de rodas, andar
e tomar medicação) concretiza-se através de indicadores, sendo cada um deles
classificado em:
* "dependente, não participa" - pessoa totalmente dependente, que
não é capaz de realizar a atividade em análise;
* "necessita de ajuda de pessoa" - pessoa que realiza (inicia e/ou
completa) a atividade em análise, necessariamente com ajuda de uma pessoa;
* "necessita de equipamento" - pessoa que é capaz de realizar a
atividade em análise, apenas com auxílio de equipamento adaptativo, não
exigindo a colaboração de pessoa;
* "completamente independente" - pessoa sem qualquer tipo de
dependência na realização da atividade em análise.
Importa sublinhar que, aquando da realização de cada uma das atividades,
atendendo ao grau de dependência apresentado, a pessoa pode necessitar da ajuda
de outra, ou, em casos mais extremos, necessitar de substituição. Nesta última
situação, a pessoa não tem nenhum papel ativo no seu autocuidado
("dependente, não participa"), requerendo substituição em todas as
suas atividades.
Apesar de as necessidades inerentes aos graus de dependência "dependente,
não participa" e "necessita de ajuda de pessoa" serem
diferentes, ambos refletem a necessidade de outra pessoa para a execução plena
das atividades de autocuidado.
Neste contexto, se relativamente a cada atividade agruparmos as pessoas
"dependentes, não participam" e as que "necessitam de ajuda
de pessoa", conseguimos perceber em quais atividades de autocuidado um
maior número de pessoas era dependente, no mínimo de pessoa.
Uma vez conhecida a dependência em cada atividade de autocuidado procurámos
saber qual o grau de dependência das pessoas, face a cada domínio de
autocuidado. Assim, de acordo com o grau de dependência, numa variação entre o
score 1 "dependente, não participa" e o score 4
"completamente independente", relativamente aos 241 dependentes,
considerámos:
* dependente, não participa - pessoas dependentes que obtiveram score 1 em
todos os itens;
* completamente independente - pessoas que obtiveram score 4 em todos os itens;
* necessita de equipamento - pessoas que não foram categorizadas, de acordo com
os critérios anteriores, e que só necessitavam de equipamento, ou seja,
apresentavam uma média de scores ≥ 3;
* necessita de ajuda de pessoa - as restantes pessoas que não foram
categorizadas, de acordo com os critérios anteriores, ou seja, necessitavam
de ajuda de pessoa, apresentando uma média de scores < 3.
Os resultados relativos aos diferentes domínios de autocuidado encontram-se na
tabela_3.
Os resultados obtidos, tendo por referência os diferentes domínios de
autocuidado, mostraram-nos que uma parte substantiva dos dependentes
necessitava de ajuda de pessoa para concretizar as atividades de autocuidado.
Como se pode constatar na tabela_3, verificámos que nos autocuidados - tomar
banho, vestir-se e despir-se, arranjar-se, alimentar-se e tomar medicação -
mais de 50% das pessoas dependentes necessitavam de ajuda de pessoa para
realizar o autocuidado.
No entanto, de modo a compreendermos a magnitude da problemática da pessoa
dependente no autocuidado, ao agruparmos as pessoas "dependentes, não
participam" e as que "necessitam de ajuda de pessoa",
obtivemos o valor percentual das pessoas dependentes que necessitavam, pelo
menos, de ajuda de pessoa em cada domínio de autocuidado.
Assim, como se pode constatar na figura_1, o domínio de autocuidado com maior
percentagem de pessoas dependentes que, no mínimo, necessitavam de ajuda de
pessoa, está relacionado com o tomar medicação. Seguem-se os autocuidados
alimentar-se, arranjar-se, tomar banho, vestir-se e despir-se, usar cadeira de
rodas, uso do sanitário, andar, transferir-se, elevar-se e, por último, virar-
se.
Por sua vez, os domínios de autocuidado com maior percentagem de pessoas que só
necessitavam de equipamento (Fig.2) para a sua concretização eram os
autocuidados relacionados com défices na mobilidade, como o andar, o elevar-se
e o transferir-se. Deste modo, podemos depreender que, entre outros, o
andarilho, a bengala e as canadianas, o transfer da cama e as grades de
segurança, bem como as barras de apoio, são equipamentos que facilitam a
execução das atividades inerentes a esses autocuidados.
Importa referir que nenhuma pessoa concretizava o autocuidado tomar medicação
com recurso apenas a equipamento.
De modo similar ao realizado face a cada tipo de autocuidado, procedemos à
análise do nível de dependência, mas agora face ao domínio do autocuidado
global (fig._3). Perante os resultados obtidos, verificámos que a quase
totalidade dos dependentes necessitavam, no mínimo, de ajuda de pessoa para
realizar, pelo menos, uma atividade de autocuidado.
Após a análise descritiva, procedemos à análise inferencial, no sentido de
identificarmos diferenças estatísticas passíveis de se revelarem importantes
para o estudo.
Com recurso à análise da variância (ANOVA One-Way), pretendíamos indagar sobre
a existência de significância estatística entre a diferença das médias das
variáveis em estudo e a dependência nos vários domínios de autocuidado. Por
outro lado, recorrendo ao teste estatístico Qui-Quadrado, procurámos averiguar
a existência de diferenças na distribuição das variáveis. Dado o elevado número
de variáveis envolvidas no estudo, para efeitos deste artigo apenas
apresentaremos os resultados, cujos valores de p encontrados permitiram afirmar
significância estatística entre as variáveis (p < 0,05), evidenciando-os num
esquema apresentado na figura_4.
Aquando do estudo da significância estatística entre as variáveis
sociodemográficas da pessoa dependente e a dependência no autocuidado,
verificámos a existência de diferenças estatisticamente significativas no caso
das variáveis idade, estado civil e profissão. Relativamente à idade,
verificámos que eram os dependentes que necessitavam de ajuda de pessoa para a
realização do autocuidado, os que apresentavam uma média de idades mais
elevada. No que concerne ao estado civil, foi nos casados ou nos que viviam em
união de facto e nos viúvos que se constataram maiores percentagens de
dependentes que necessitavam de ajuda de pessoa. Em relação à profissão, foi
nos pensionistas/reformados que se registaram percentagens mais elevadas de
dependentes que necessitavam de ajuda de pessoa.
No estudo da significância estatística entre as variáveis de caracterização da
dependência e a dependência no autocuidado, verificámos que as pessoas cuja
dependência decorreu de uma doença crónica e em que o modo de instalação da
dependência foi gradual, apresentavam valores superiores no que se reporta à
necessidade de ajuda de pessoa.
Também a dependência foi significativamente superior nas pessoas com maior
consumo de medicamentos e com referência a internamentos e a recursos ao
serviço de urgência no último ano. Verificámos que foram os dependentes que não
participavam os que apresentavam médias de internamento e médias de recursos ao
serviço de urgência, no último ano, mais elevadas.
No estudo da significância estatística entre as variáveis sociodemográficas do
prestador de cuidados e a dependência no autocuidado, verificámos a existência
de diferenças estatisticamente significativas no caso das variáveis parentesco,
coabitação com a pessoa dependente e profissão. Quando o prestador de cuidados
era filho/filha verificavam-se valores mais elevados de dependentes que
necessitavam de ajuda de pessoa. Nos casos em que o prestador de cuidados se
assumia sem profissão remunerada, isto é, doméstico, e coabitava com a pessoa
dependente, esta apresentava maior dependência, necessitando de ajuda de
pessoa.
Na figura_4 explicitamos em diagrama os resultados significativos que emergiram
do estudo.
Discussão
O ambiente físico que rodeia a pessoa dependente pode exercer uma influência
positiva ou negativa no processo de dependência8,19.
No nosso estudo, em relação às condições de alojamento, emergiram 2 resultados
que podem obstaculizar os cuidados à pessoa dependente e a promoção da sua
autonomia. Por um lado, o facto de apenas 27,2% dos alojamentos possuírem
acessibilidade a pessoas com mobilidade comprometida, o que corrobora a ideia
de que as barreiras arquitetónicas constituem ainda hoje um dos principais
fatores limitativos de uma vida social completa para pessoas com dependência19.
Por sua vez, a inexistência de condições de aquecimento em praticamente metade
dos alojamentos, pode potenciar mais dependência, aquando do tempo frio, pela
maior permanência no leito.
Quanto ao tipo de família, as pessoas dependentes do estudo encontravam-se
inseridas, maioritariamente, em famílias com um núcleo (61,9%), que aquando da
colheita de dados constatámos serem constituídas pela própria pessoa dependente
e pelo cónjuge. Isto remete-nos para um contexto em que a pessoa dependente é
idosa, mas o prestador de cuidados também o é, e eventualmente também este com
necessidades específicas.
Relativamente aos prestadores de cuidados, emerge um perfil que veicula uma
realidade social: maioritariamente mulheres (filhas, esposas, mães), com um
baixo nível de escolaridade.
Numa análise interpretativa entre a idade do prestador de cuidados e a sua
escolaridade, não nos surpreende que, relativamente à profissão, os prestadores
de cuidados do estudo, à semelhança do que acontece noutros estudos20-22,
sejam, na sua maioria, domésticos ou pensionistas/reformados, o que privilegia
a conceção tradicional de cuidar da pessoa dependente em contexto familiar.
Por sua vez, o perfil das pessoas dependentes é o já evidenciado noutras
investigações, nomeadamente idosos, com maior predominância do género feminino,
maioritariamente pensionistas/reformados. Embora a dependência não seja
exclusiva da idade, indubitavelmente que à medida que a idade avança aumentam
as limitações funcionais, que são muitas vezes agravadas pela coexistência de
doenças crónicas23-25.
Corroborando esta ideia, é consensual que a "dependência está presente ao
longo da vida, na infância, na juventude e na adultícia, não sendo um atributo
exclusivo da velhice, residindo a diferença no facto de, na velhice, a
dependência assumir um carácter definitivo e permanente"26.
Efetivamente no nosso estudo encontrámos pessoas em situação de dependência
numa amplitude etária dos 7-97 anos. Contudo, constatámos um número
significativo de pessoas dependentes com idades superiores a 80 anos, ou seja,
idosos da quarta idade. Verificámos um predomínio do género feminino, o que
está em consonância com a maior longevidade das mulheres. No entanto, as
mulheres, apesar de viverem mais anos, têm uma esperança de vida sem
incapacidades bastante mais reduzida, quando comparada com a dos homens27.
No sentido de melhor compreendermos a situação de dependência das pessoas,
analisámos o contexto situacional e os vários fatores que para ela concorrem. O
envelhecimento e a doença crónica foram na presente investigação os fatores que
mais contribuíram para a dependência. De facto, estima-se atualmente que 80%
das pessoas com 65 ou mais anos sofrem, pelo menos, de uma doença crónica e,
para muitas, a presença de 2 ou mais complica o estado de dependência28. Assim
sendo, a passagem do estado de independência para dependência inseriu-se,
maioritariamente, no conceito de transição saúde/doença e/ou de
desenvolvimento, relacionada com o envelhecimento.
Em consonância com o referido, entendemos que a instalação da dependência fosse
predominantemente gradual, dado o carácter insidioso e progressivo das
situações de dependência, associadas às doenças crónicas e ao envelhecimento.
Tudo isto se conjuga na compreensibilidade de um tempo médio de dependência de
11,5 anos.
Quanto à necessidade de fármacos, no presente estudo prevaleceu o consumo de
medicamentos na quase totalidade das pessoas dependentes. Os idosos são os
maiores consumidores de fármacos29, uma vez que também é neste grupo etário que
se verifica o predomínio de doenças crónicas, a que se associam frequentemente
regimes medicamentosos complexos.
Os resultados encontrados relativamente ao autocuidado "tomar
medicação" em que a maioria das pessoas dependentes necessitavam, no
mínimo, de ajuda de pessoa, constitui um fenómeno relevante, quando se estuda a
problemática da dependência no autocuidado e dos cuidados prestados aos
dependentes no seio da família. As situações de polimedicação encontradas,
aliadas ao perfil dos cuidadores, também maioritariamente idosos e com baixo
nível de literacia, podem configurar um problema de gestão adequada do regime
medicamentoso, que é preciso enquadrar nas políticas de saúde.
No que concerne à dependência por domínio de autocuidado, os resultados
demonstraram elevados graus de dependência. Apesar de as alterações na
capacidade da pessoa para executar as atividades de autocuidado poderem estar
relacionadas com limitações resultantes do compromisso motor, sensorial ou
cognitivo, ou da sua combinação30, numa análise interpretativa dos resultados
descritos constata-se que as atividades de autocuidado que apresentavam maior
dependência são aquelas cuja execução exige maior amplitude e coordenação do
movimento, maior capacidade motora fina e grosseira, bem como maior destreza
manual, força muscular (nomeadamente nos membros superiores e inferiores) ou
equilíbrio corporal.
Do referido são exemplos os níveis de dependência percentualmente elevados nos
autocuidados alimentar-se, arranjar-se, tomar banho e vestir-se e despir-se.
Para além disso, se focarmos a nossa atenção nos autocuidados transferir-se,
elevar-se e virar-se, fortemente influenciadores da capacidade dos dependentes
saírem da cama, percebemos que cerca de um terço das pessoas dependentes
necessitavam no mínimo, de ajuda de pessoa. Estes resultados confirmam uma
dependência significativa e preocupante, pois, para além de estarem sujeitas
aos problemas com elevado risco de compromisso dos processos corporais,
precisam obrigatoriamente da ajuda de outra pessoa para a sua sobrevivência e
bem-estar3,7. Quer isto dizer que estas pessoas, sem ajuda de outra, adquirem o
estatuto de "acamados", com todas as potenciais complicações que
daí possam resultar.
Acresce a esta situação que o papel assumido pelo prestador de cuidados é,
muitas vezes, de agir pela pessoa dependente ou em substituição da mesma, em
detrimento das ações de promoção da capacidade de autocuidado, negando
inconscientemente, todas as oportunidades para desenvolver o potencial
remanescente da pessoa dependente.
Para além disso, importa também referir que o comprometimento na execução das
atividades de autocuidado pode ser atenuado/ultrapassado pela utilização de
equipamentos específicos a cada tipo de autocuidado. Assim, configura-se a
necessidade de cuidados de substituição, para as pessoas dependentes que não
participam, e cuidados de complementaridade para aqueles que "necessitam
de ajuda de pessoa"31.
Quanto ao valor percentual residual (0,4%) de dependentes que só tinham
necessidade de equipamento para a concretização do autocuidado, levanta-se uma
questão interessante: será este resultado reflexo da utilização incipiente e
deficitária dos equipamentos que poderiam ser úteis para a promoção do
autocuidado das pessoas dependentes-
Na verdade, todos reconhecemos a importância dos equipamentos adaptativos na
execução das atividades de autocuidado, no entanto, o desconhecimento das
possibilidades de equipamento existente ou a impossibilidade de o adquirir por
limitações económicas poderão justificar a "não utilização", o que
contribuirá para o aumento da dependência de pessoa.
Os resultados do presente estudo permitem um retrato epidemiológico de uma
região, que evidencia um problema de saúde pública que é preciso equacionar nas
políticas de saúde e na organização dos cuidados de saúde. A monitorização e
acompanhamento das pessoas dependentes no domicílio, bem como o apoio e a
orientação do familiar prestador de cuidados trariam indubitavelmente
"ganhos em saúde", pela minimização dos riscos associados à
situação de dependência.
Conclusão
A identificação do perfil dos portugueses dependentes no autocuidado e
integrados em famílias, pode "tornar-se um importante vetor para a
melhoria das respostas às necessidades em cuidados de saúde dos
cidadãos"3. Tal conhecimento potenciará a construção de modelos de
intervenção de saúde mais consentâneos com as reais necessidades da pessoa
dependente e, consequentemente, das famílias prestadoras de cuidados.
As mudanças nas necessidades em saúde que surgem da hegemonia das doenças
crónicas e do aumento da longevidade implicam necessariamente mudanças no
exercício dos profissionais de saúde em geral, em particular dos profissionais
de enfermagem.
Perante o contexto do atual paradigma da desinstitucionalização, com tendência
a altas precoces e consequentemente pessoas no domicílio ainda em fase de
recuperação das suas doenças ou em estadio terminal de vida, totalmente
dependentes de outros, impõe-se o conhecimento das necessidades de saúde.
O atendimento na comunidade, especificamente os cuidados domiciliários, surgem
como uma resposta aos novos desafios, prevenindo ou minimizando os efeitos
deletérios da dependência e das morbilidades que lhe estão associadas.
Paralelamente, o conhecimento mais aprofundado, acerca dos vários fatores
intervenientes, nomeadamente na dependência no autocuidado, poderá permitir uma
abordagem mais proativa da problemática, favorecendo, no futuro, um campo de
intervenções preventivas e de cuidados individualizados.
Neste contexto, o conhecimento produzido, se aplicado, poderá beneficiar a
comunidade, mas também potenciar o aperfeiçoamento da prática de enfermagem e a
qualidade dos cuidados, uma vez que a caracterização da população abre caminho
aos enfermeiros para implementarem intervenções, dentro das suas competências,
que contribuam para aumentar o bem-estar dos clientes e suplementar/
complementar as atividades de vida, relativamente às quais a pessoa é
dependente.