Tabagismo e Diferenciação Óssea: Efeito de Níveis Sanguíneos e Salivares de
Nicotina no Comportamento de Células Osteoblásticas de Medula Óssea
Humana. Estudo in vitro.
INTRODUÇÃO
O tabagismo constitui um factor de risco em patologias
crónicas que envolvem o tecido ósseo como a osteoporose
(1) e a perda óssea alveolar associada à doença periodontal (2-4).
A osteoporose é uma doença sistémica que se
acompanha de diminuição da densidade mineral óssea,
fragilidade óssea e risco aumentado de fracturas (1). A
associação da osteoporose com os hábitos tabágicos
está descrita tanto nos homens como nas mulheres e
parece afectar todas as faixas etárias, estando disponíveis
na literatura estudos que documentam o efeito negativo
no conteúdo mineral (5-8). Há também uma grande
variedade de estudos que evidenciam os efeitos nefastos
do tabagismo a nível da perda óssea alveolar associada
com a doença periodontal. Destacam-se alguns estudos
prospectivos de longa duração, nomeadamente efectuados ao longo de 10 anos (9,10) e de vinte anos (11),
que concluíram que os fumadores apresentavam aumento
de prevalência de doença periodontal e de perda de osso
alveolar. Também, relacionado com os efeitos crónicos
do tabagismo no tecido ósseo oral, está descrito que os
fumadores apresentam um risco acrescido de incidência
de osso tipo IV (12), morbilidade em enxertos ósseos (13)
e falência na osteointegração de implantes (12,14).
O mecanismo pelo qual o tabagismo influencia o
tecido ósseo é complexo e não está completamente
esclarecido. O fumo do tabaco contém mais de 4000
compostos, muitos dos quais são rapidamente absorvidos
e apresentam actividade biológica nos vários tecidos e
órgãos. A nicotina existe em quantidade apreciável no
fumo do tabaco e tem sido a substância mais estudada na
tentativa de compreender os mecanismos envolvidos
nos efeitos nefastos do tabagismo a nível do tecido
ósseo. É rapidamente absorvida e tem uma distribuição
ampla no organismo devido ao seu carácter lipofílico
(15), encontrando-se presente no plasma em concentrações que variam entre 4 e 75 ng/ml (16). A nicotina
apresenta uma ampla gama de acções farmacológicas,
sendo a vasoconstrição o efeito mais característico (15).
A diminuição do fluxo sanguíneo tem repercussões a
nível geral e local e influencia de modo mais significativo
os processos biológicos com maior actividade metabólica.
Assim, estão descritos efeitos negativos da nicotina a
nível da resposta imunitária (17,18) e na angiogénese e
revascularização (19,20), aspectos que podem afectar
de modo indirecto a actividade metabólica a nível do
microambiente ósseo. Há vários estudos in vitro que
mostram que a nicotina/extractos do fumo de tabaco
afectam o comportamento de células sanguíneas (17,18),
células epiteliais (21), fibroblastos gengivais e periodontais
(21-23) e células ósseas (24-29).
A nível da cavidade oral, os componentes do fumo do
tabaco podem também provocar um efeito local nas
células e estruturas orais. Este aspecto assume particular importância tendo em consideração que, nos fluidos
orais, a nicotina atinge concentrações muito mais elevadas
que as observadas no plasma. Assim, no fluido crevicular, os níveis podem atingir 5961 ng/ml (30) e na saliva
variam entre 96 ng/ml e 1,6 mg/ml (23). Deste modo, o
epitélio oral está sujeito a um efeito citotóxico directo
devido à exposição imediata à nicotina e outros
componentes do fumo do tabaco presentes na fase
gasosa e na saliva. O aumento da fragilidade do epitélio
oral facilita a difusão destas substâncias para os tecidos
periodontais subjacentes, nomeadamente a gengiva, o
ligamento periodontal e o osso alveolar. Relativamente a
este aspecto, é interessante referir que o efeito citotóxico
local parece ser o principal responsável pela deterioração
da saúde periodontal que se observa nos fumadores e
que se manifesta por mobilidade dentária e perda óssea
alveolar (2,3). De salientar, ainda, que este efeito directo
pode tornar-se progressivamente mais significativo à
medida que aumenta a gravidade das lesões periodontais
devido à maior facilidade de contacto dos fluidos orais
com os tecidos periodontais, incluindo o osso alveolar.
O tecido ósseo possui uma elevada actividade
metabólica, sendo deste modo muito sensível às
características do meio circundante, nomeadamente a
presença de substâncias exógenas bioactivas. O processo
de formação óssea envolve o recrutamento e migração
de pré-osteoblastos, a sua diferenciação em osteoblastos,
e a formação de uma matriz óssea mineralizada. O
presente trabalho tem como objectivo a caracterização in
vitro do efeito da nicotina no processo de diferenciação
de células de linhagem osteoblástica provenientes de
medula óssea humana. O comportamento celular foi
estudado na presença de uma gama de concentrações
de nicotina representativa dos níveis presentes no plasma
e saliva de consumidores de tabaco e avaliado
relativamente à morfologia, proliferação, conteúdo em
proteína total, actividade de fosfatase alcalina e
capacidade de formação de uma matriz extracelular
mineralizada, o evento que reflecte a diferenciação
completa do fenótipo osteoblástico.
MATERIAIS E MÉTODOS
Os reagentes utilizados na manutenção e
caracterização das culturas celulares foram da marca
Sigma (St. Louis), e Gibco BRL (Nova Zelândia). O
material descartável utilizado foi da marca Costar (USA).
Os reagentes utilizados apresentaram um grau de
pureza superior a 98%.
Obtenção e manutenção das culturas celulares
As culturas de células osteoblásticas foram
estabelecidas a partir de medula óssea humana obtida
de procedimentos cirúrgicos ortopédicos. Este material
biológico, que de outra forma seria desperdiçado, foi
recolhido após consentimento informado do paciente e
autorização para a realização do estudo.
Os pacientes tinham idades compreendidas entre os
30 e 45 anos, e não apresentavam qualquer patologia ou
efectuavam terapêuticas relacionadas com o metabolismo
ósseo. A medula óssea foi cultivada em α-Minimal Essential Medium (α-MEM), contendo 10% soro bovino
fetal, ácido ascórbico (50 µg/ml), penicilina-estreptomicina
(100 IU/ml e 10.000 µg/ml, respectivamente) e anfotericina
B (2,5 µg/ml). As culturas foram incubadas a 37º C numa
atmosfera húmida de 95% de ar e 5% de CO2, e o meio
de cultura foi renovado duas vezes por semana.
A cultura primária foi mantida até próximo da
confluência (10 a 15 dias). As células aderentes foram
libertadas enzimáticamente e a suspensão celular foi
cultivada (104 células/cm2), durante 28 dias, na ausência
(culturas controlo) e na presença de nicotina - 10 ng/ml a
1 mg/ml (0,00006 mM a 6 mM). A nicotina, (-)-Nicotine
([-]-1 metil-2-3-pirrolidina, foi adicionada após se verificar
o processo de adesão celular (culturas de 24 horas) e
esteve presente durante todo o tempo de cultura, sendo
renovada em cada mudança de meio (3 vezes por
semana). As condições experimentais foram semelhantes
às descritas para a cultura primária, mas o meio de
cultura foi suplementado com β-glicerofosfato de sódio
(10 mM) e dexametasona (10 nM). As culturas controlo e
as culturas expostas à nicotina foram caracterizadas nos
dias 3, 7, 14, 21 e 28 para avaliação da proliferação
celular e actividade funcional.
Morfologia celular
As células em cultura foram observadas diariamente
por microscopia de contraste de fase. Após fixação,
foram submetidas a marcação fluorescente dos filamentos
de actina e dos núcleos e observadas por microscopia
confocal (Laser Scanning Confocal Microscope Leica
SP2 AOBS SE - Leica Microsystems, Germany). Este
método utiliza um scan pontual emitido por um laser e
focado pela objectiva. A detecção dos pontos de luz é
realizada por um tubo fotomultiplicador que, através de
um sistema computorizado, é responsável pela formação
da imagem.
Proliferação e viabilidade celular. Conteúdo em
proteína total
A proliferação/viabilidade celular foi avaliada pelo
ensaio do MTT, que se baseia na capacidade das células
viáveis reduzirem o MTT (0,5 mg/ml, brometo de 3-(4,5dimetiltiazol-2-il) -2,5-difeniltetrazólio), com a formação
de cristais de cor púrpura que se acumulam no citoplasma.
Após dissolução com DMSO (dimetilsulfóxido), a
absorvância (A) da solução foi determinada a 600 nm. O
conteúdo em proteína total foi avaliado pelo método de
Lowry (31), após remoção do meio de cultura, lavagem
com tampão PBS (Phosphate Buffer Saline) e tratamento
da camada celular com 0,1 M de NaOH.
Síntese de fosfatase alcalina
A actividade da fosfatase alcalina foi determinada em
lisados da camada celular, pela hidrólise do pnitrofenilfosfato e determinação espectrofotométrica do
p-nitrofenol formado (λ = 405 nm). A actividade enzimática
foi expressa em nmol de substrato metabolizadao por
minuto e por µg de proteína (nmol/min/µg proteína),
deste modo, normalizada em termos de proliferação
celular.
A presença de fosfatase alcalina nas culturas celulares
fixadas foi visualizada por coloração histoquímica. O
método utilizado baseou-se na hidrólise do naftil fosfato
de sódio pela fosfatase alcalina e precipitação do fosfato
libertado por reacção com um composto apropriado
(“Fast Blue RR salt”). A reacção positiva foi identificada
por uma coloração que variou entre o amarelo
acastanhado e o preto, dependendo da actividade da
enzima.
Mineralização da matriz extracelular
A formação de uma matriz extracelular mineralizada
foi avaliada de modo indirecto através da variação dos
níveis de fósforo e cálcio ionizados no meio de cultura ao
longo do período de incubação e, ainda, pela identificação
histoquímica de depósitos de fosfato (método de von
Kossa (32)) e observação das culturas por microscopia
electrónica de varrimento.
Concentração de fósforo e cálcio ionizados no meio
de cultura. O fósforo e o cálcio ionizados foram
determinados por métodos colorimétricos, após
tratamento do meio de cultura com ácido tricloroacético
a 20% para precipitar o fósforo e o cálcio ligados às
proteínas e aos lípidos. Os resultados foram expressos
em mmol por litro de meio (mmol/L).
Método de von Kossa. Em culturas fixadas, o fosfato
de cálcio presente na matriz extracelular origina fosfato
de prata, na presença de nitrato de prata a 1%. O fosfato
de prata é, seguidamente, reduzido pela radiação
ultravioleta, libertando-se prata metálica que é visível
pelo aparecimento de depósitos negros na matriz.
Microscopia electrónica de varrimento. Após fixação,
as culturas celulares foram desidratadas com álcool
etílico de graduação crescente, submetidas a secagem
utilizando o sistema de ponto crítico de CO2, cobertas
com um filme de ouro e observadas num microscópio
electrónico de varrimento (Jeol JSM 6301F9, Japão).
Este método utiliza o “varrimento” de um feixe de electrões
sobre a amostra originando imagens da superfície, por
emissão de electrões a partir da amostra. A associação
com um espectofotómetro de raios X permite efectuar
uma análise química da amostra.
Análise estatística
Foram efectuadas quatro experiências independentes,
sendo as culturas celulares estabelecidas a partir de
material biológico proveniente de pacientes diferentes.
Observou-se uma relativa variabilidade entre experiências
mas o padrão de comportamento das culturas efectuadas
em situação controlo e na presença de nicotina foi idêntico
nos vários ensaios. Em cada experiência, foram
efectuadas 6 réplicas nos ensaios quantitativos e três
réplicas nos ensaios qualitativos. Apresentam-se os
resultados de uma experiência considerada representativa.
Os resultados bioquímicos são apresentados como
média ± desvio padrão. As médias obtidas nas várias
experiências foram comparadas por uma análise de
variância (ANOVA) não se observando diferenças
significativas entre as experiências realizadas. Em cada
experiência, as diferenças observadas entre as culturas
controlo e as culturas expostas à nicotina foram
determinadas pelo método de Bonferroni e o nível de
significância adoptado foi de 95%.
RESULTADOS
Efeito da nicotina na morfologia celular
As células de medula óssea em cultura apresentaram
um aspecto alongado com prolongamentos
citoplasCASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, 73 anos, recorreu ao Serviço
de Urgência por quadro clínico caracterizado por astenia,máticos, núcleo proeminente (com nucléolos
evidentes) e membrana celular rica em fosfatase alcalina.
Observou-se uma elevada taxa de proliferação celular,
com a ocupação da superfície de cultura após cerca de
uma semana. O efeito mais característico da nicotina na
morfologia celular foi a presença de vacuolização
citoplasmática e aumento do tamanho celular para
concentrações superiores a 0,2 mg/ml. Este efeito foi
evidente nas culturas expostas a 0,3 mg/ml durante a 1ª
semana, mas diminuiu significativamente para tempos
de incubação mais longos. No entanto, na presença de
níveis mais elevados, a vacuolização citoplasmática foi
permanente e dependente da dose. A exposição a 0,5 e
1 mg/ml resultou num efeito citotóxico muito significativo
que se traduziu por uma morfologia muito alterada, com
vacuolização e retracção do citoplasma, arredondamento
e destacamento da superfície de cultura, seguido de
morte celular. As Figs. 1 e 2 são representativas do
comportamento descrito.
Efeito da nicotina na proliferação celular e actividade
de fosfatase alcalina
As células de medula óssea proliferaram de forma
gradual ao longo de todo o tempo de cultura. A exposição
à nicotina traduziu-se por ausência de efeitos significativos
na gama 10 ng/ml a 0,05 mg/ml, estimulação na presença
de 0,1 e 0,2 mg/ml, efeito inibitório inicial seguido de
recuperação durante a exposição a 0,3 e 0,4 mg/ml e
diminuição significativa do número de células em cultura
após tratamento com 0,5 e 1 mg/ml. Estes resultados
mostram-se na Fig. 3A. O conteúdo em proteína total
seguiu um padrão semelhante ao observado no ensaio
do MTT, providenciando o mesmo tipo de informação.
As culturas controlo apresentaram níveis de fosfatase
alcalina relativamente baixos durante a 1ª semana, mas
a actividade enzimática aumentou significativamente
durante a 2ª semana, observando-se o valor máximo na
proximidade do dia 14. Seguidamente, verificou-se uma
diminuição significativa dos níveis enzimáticos. A
exposição a concentrações de nicotina de 0,01 a 0,3 mg/
ml resultou num aumento significativo da actividade de
fosfatase alcalina. A presença de níveis superiores (0,4
a 1 mg/ml) causou um efeito inibitório dependente da
dose. A Fig. 3B mostra os resultados descritos.
A coloração histoquímica das culturas (Fig. 1C)
mostrou que as células osteoblásticas apresentaram um
padrão de crescimento característico, com a formação
de áreas de maior densidade celular que aumentaram de
tamanho com o tempo de incubação e coraram mais
intensamente para a presença de fosfatase alcalina. A
exposição à nicotina resultou num comportamento
semelhante ao descrito relativamente à avaliação
bioquímica da actividade enzimática.
Efeito da nicotina na mineralização da matriz
Concentração de fósforo ionizado (Pi ) e cálcio ionizado
(Cai) no meio de cultura
O Pi e o Cai presentes no meio de cultura
(aproximadamente 2 e 1,8 mmol/L, respectivamente)
têm origem em compostos de fosfato e cálcio presentes
no α-MEM e no soro bovino fetal. Além disso, o βglicerofosfato adicionado ao meio (10 mmol/L) é uma
fonte de Pi, após ter sido hidrolisado pela fosfatase
alcalina presente nas culturas celulares. O consumo de
Pi e Cai a partir do meio de cultura reflecte o processo de
mineralização, nomeadamente a formação de depósitos
de fosfato de cálcio na matriz extracelular. Neste trabalho,
os níveis de Pi e Cai determinados não são cumulativos,
pois o meio de cultura foi totalmente substituído em cada
mudança de meio. Deste modo, reflectem alterações
observadas em intervalos de 2 - 3 dias ao longo do tempo
de cultura, providenciando informação sobre a taxa de
deposição mineral.
As culturas controlo apresentaram um aumento
significativo dos níveis de Pi durante a 2ª semana de
cultura, comportamento que reflecte a actividade elevada
de fosfatase alcalina nesta fase. Na proximidade do dia
14, observou-se uma diminuição da concentração de Pi.
Os níveis de Cai mantiveram-se aproximadamente
constantes durante as duas primeiras semanas, mas
diminuíram significativamente durante a 3ª semana. Estes
resultados sugerem que o processo de deposição de
fosfato de cálcio se iniciou na proximidade do dia 14 e
ocorreu a uma taxa elevada. A nicotina, em concentrações
≤ 0,3 mg/ml, causou um aumento dos níveis máximos de
Pi, particularmente na presença de 0,1 e 0,2 mg/ml; este
comportamento é previsível tendo em atenção a
estimulação da actividade da fosfatase alcalina nestas
situações. O padrão de variação dos níveis de Pi e Cai
sugere uma deposição mineral mais precoce nas culturas
expostas a concentrações ≤ 0,2 mg/ml. Níveis superiores
causaram um efeito inibitório que se reflectiu por uma
taxa de deposição mineral muito baixa nas culturas
expostas a 0,3 mg/ml e ausência de mineralização na
presença de níveis superiores. Estes resultados são
apresentados na Fig. 4A.
Coloração histoquímica e microscopia electrónica de
varrimento
As culturas controlo apresentaram uma reacção
histoquímica positiva para a presença de depósitos de
fosfato a partir do dia 14, e a intensidade de coloração
aumentou significativamente para tempos mais longos
(dias 21 e 28). Na presença de nicotina, 10 ng/ml a 0,2
mg/ml, observou-se um padrão semelhante mas a
intensidade de coloração foi superior, particularmente
nas culturas expostas a 0,1 e 0,2 mg/ml. As culturas
tratadas com 0,3 mg/ml apresentaram uma reacção
levemente positiva no dia 21 e a deposição mineral
aumentou seguidamente de forma gradual. Na presença
de concentrações superiores, 0,4 a 1 mg/ml, as reacções
histoquímicas foram negativas. A Fig. 4B mostra o aspecto
das culturas no dia 21. A comparação das Figs. 1C e 4B
permite concluir que a deposição mineral está intimamente
associada com as zonas que apresentam maior densidade
celular e actividade de fosfatase alcalina mais elevada.
A observação das culturas por microscopia electrónica
de varrimento permitiu a confirmação dos resultados
descritos (Fig. 5). No dia 14, as culturas controlo mostraram
a presença de estruturas globulares mineralizadas em
estreita associação com a camada celular, particularmente
com a parte fibrosa. Na presença de nicotina, na gama de
concentrações de 10 ng/ml a 0,2 mg/ml, observou-se
maior abundância de estruturas mineralizadas. Esta
diferença esbateu-se para tempos de incubação mais
longos (dias 21 e 28). As culturas expostas a 0,3 mg/ml
apresentaram, no dia 14, alguns depósitos minerais que
aumentaram ligeiramente de tamanho durante o restante
período de incubação. Na presença de concentrações
mais elevadas, não se verificou qualquer deposição
mineral. A Fig. 6A mostra um pormenor das estruturas
mineralizadas observadas nas culturas controlo e na
presença de 0,3 mg/ml de nicotina. A análise destas
formações por difracção de raios X (Fig. 6B) revelou uma
composição química rica em cálcio e fósforo.
DISCUSSÃO
A medula óssea é um tecido rico em precursores
osteoblásticos (33) e, no presente trabalho, as culturas
celulares foram efectuadas na presença de ácido
ascórbico, β-glicerofosfato e dexametasona, condições
que favorecem a proliferação e a diferenciação de células
de linhagem osteoblástica (34,35). Os resultados descritos
mostraram que as culturas celulares apresentaram uma
proliferação gradual, que se acompanhou da produção
de matriz extracelular abundante, aumento significativo
da actividade de fosfatase alcalina durante a 2ª semana
e formação de uma matriz mineralizada para tempos de
incubação mais longos (essencialmente, durante a 3ª
semana). Este comportamento sugere um processo de
diferenciação progressivo, que é representativo do
desenvolvimento do fenótipo osteoblástico (34). O efeito
da nicotina foi estudado na 1ª subcultura, devido à
diminuição progressiva da expressão dos parâmetros
osteoblásticos com a subcultura sucessiva (35).
A exposição de células osteoblásticas humanas a
concentrações plasmáticas de nicotina (10 ng/ml) não
provocou alterações significativas no comportamento
celular, embora se tenha observado tendência para
antecipação do processo de mineralização. A presença
de níveis salivares ≤ 0,2 mg/ml resultou num efeito de
estimulação, que se reflectiu num aumento significativo
da proliferação celular e actividade de fosfatase alcalina,
e início mais precoce da mineralização da matriz. Em
concentrações superiores, a nicotina provocou um efeito
inibitório, que foi ligeiro na presença de 0,3 mg/ml
(diminuição inicial da taxa de crescimento celular e
deposição mineral lenta), mas significativo nas culturas
expostas a níveis superiores. Na presença de 0,5 e 1 mg/
ml, observou-se uma diminuição acentuada do número
de células em cultura e extensa vacuolização
citoplasmática que se manteve durante todo o tempo de
cultura. A nicotina é uma base fraca e o carácter lipofílico
da forma não ionizada permite uma travessia fácil das
membranas celulares. Acumula-se nos lisossomas,
devido ao ambiente ácido destes organelos; este processo
acompanha-se da entrada de água, convertendo os
lisossomas em vacúolos. O comportamento descrito é
característico de substâncias básicas e foi observado por
vários autores em diferentes tipos celulares (22,36,37).
Chamson e col (36) sugeriram que a acumulação de
nicotina nos lisossomas pode funcionar como um
mecanismo protector contra os efeitos desta substância.
A proliferação das células osteoblásticas está
funcionalmente associada com a síntese de uma matriz
extracelular colagenosa e a sua acumulação e maturação,
essenciais para o processo de mineralização, contribuem
para a interrupção da proliferação celular (38). Na
presença de iões fosfato (no presente trabalho,
provenientes da hidrólise do β-glicerofosfato pela fosfatase
alcalina), a mineralização ocorre quando se observa uma
relação apropriada entre a composição e quantidade da
matriz e a sua maturação (39,40). A presença de níveis
elevados de fosfatase alcalina parece ser necessária
para iniciar o processo de mineralização, pois providencia
um enriquecimento local de fosfato inorgânico para a
nucleação dos cristais de hidroxiapatite (39,40).
Subsequentemente, verifica-se a repressão da expressão
da enzima, e o aumento da deposição mineral constitui
um processo físico-químico que depende da
disponibilidade dos iões intervenientes (39,40). O
comportamento das culturas controlo observado neste
trabalho está de acordo com este modelo, como é
evidenciado pela ocorrência de deposição mineral nas
zonas da cultura celular que apresentam reacção
histoquímica mais intensa para a fosfatase alcalina e,
ainda, diminuição significativa da actividade da enzima
após o início do processo de mineralização. Os resultados
observados na presença de nicotina sugerem que o
efeito desta substância na proliferação celular e actividade
de fosfatase alcalina parece influenciar o início do processo
de mineralização. Nas culturas expostas a níveis de
nicotina ≤ 0,2 mg/ml, o efeito de estimulação do
crescimento celular foi acompanhado por um início mais
precoce da deposição mineral. Este facto pode estar
relacionado com uma maior taxa de acumulação de
matriz extracelular, devido ao maior número de células
viáveis e funcionais presentes em cultura. Também, a
presença de níveis aumentados de fosfatase alcalina
que se observou nesta situação providenciou uma maior
disponibilidade de fosfato inorgânico, factor essencial
para o início do processo de mineralização. Durante a
exposição a 0,3 mg/ml, o efeito inibitório que se verificou
nas duas primeiras semanas resultou, muito
provavelmente, num atraso na produção e acumulação
de matriz, aspecto que pode ter contribuído para um
processo de mineralização mais tardio. Na presença de
0,4 mg/ml, a diminuição na proliferação celular e o efeito
inibitório na actividade de fosfatase alcalina podem
explicar a ausência de mineralização da matriz.
O efeito da nicotina em células osteoblásticas tem
sido pouco estudado. Resumem-se, seguidamente, os
resultados descritos na literatura (24-26, 28,29). Fang e
col (24) observaram um efeito inibitório na proliferação
celular e estimulação da actividade de fosfatase alcalina,
em culturas celulares de osteosarcoma de rato (UMR10601) expostas a níveis de nicotina de 0,17 ng/ml a 0,17 mg/
ml. Inversamente, a exposição de células derivadas de
calvária de embrião de galinha à nicotina (0,05 a 0,6 mg/
ml), provocou estimulação da proliferação celular e
diminuição da actividade de fosfatase alcalina (25). Yahura
e col (26) compararam o efeito da nicotina (0,01 a 0,25
mg/ml) em duas linhas celulares, ROB-C26 e MC3T3-E1,
expostas por um período de 12 dias. As células ROB-C26
responderam com uma estimulação da actividade de
fosfatase alcalina e aumento da deposição de cálcio. No
entanto, nas células MC3T3-E1 observou-se diminuição
da actividade de fosfatase alcalina e inibição da
capacidade de formação de áreas mineralizadas em
culturas expostas a 0,2 mg/ml. Walker e col, em culturas
de células de osso trabecular humano expostas à nicotina,
observaram estimulação da proliferação para níveis
inferiores a 0,2 mg/ml e inibição na presença de
concentrações mais elevadas (28). Na linha celular
derivada de osteosarcoma humano Saos-2, a exposição
a 0,001 M de nicotina causou uma diminuição na
expressão de colagénio tipo I, fosfatase alcalina e
osteopontina e, ainda, um efeito inibitório na deposição
de cálcio (29). De salientar que os trabalhos descritos
utilizam vários modelos celulares e condições de
exposição diversas, designadamente no que diz respeito
ao tempo e tipo de exposição, gama de concentrações,
fase da cultura em que a exposição ocorre e parâmetros
celulares avaliados. Estes aspectos explicam, pelo menos
parcialmente, a diversidade de resultados descritos
relativamente ao efeito da nicotina no comportamento
celular e dificultam a comparação dos vários estudos.
Os mecanismos moleculares envolvidos no efeito da
nicotina na proliferação e actividade funcional de células
osteoblásticas não estão esclarecidos e têm sido pouco
estudados. É interessante referir que Walker e col (28)
mostraram que o efeito de estimulação da proliferação de
células osteoblásticas derivadas de osso trabecular
humano observado na presença de 0,1 a 1 µM de nicotina
é acompanhado por um aumento na expressão do gene
c-fos (responsável, juntamente com o gene c-jun, pela
expressão do factor de transcrição AP-1). Estes autores
mostraram ainda a presença da subunidade α4 dos
receptores nicotínicos e sugeriram o envolvimento destes
receptores no efeito da nicotina, ao mostrar que o aumento
da proliferação celular é inibido de modo dependente da
dose pela D-tubocurarina, um antagonista dos receptores
nicotínicos. Estes receptores estão directamente
acoplados a canais de cálcio e a sua estimulação resulta
na entrada de iões cálcio para a célula. Assim, alguns
autores têm sugerido, de forma indirecta, o envolvimento
deste ião na acção da nicotina (28). O ião cálcio parece
ter um papel importante nos mecanismos de regulação
do metabolismo ósseo, nomeadamente o acoplamento
entre a formação óssea e a reabsorção óssea (41). Há
também estudos que mostram que as células
osteoblásticas respondem ao ião cálcio de modo
dependente do tempo e da dose, em termos de
proliferação celular e expressão de marcadores de
diferenciação (42).
Em conclusão, os resultados deste estudo mostraram
que a exposição de células osteoblásticas de medula
óssea humana a 10 ng/ml de nicotina, concentração
representativa dos níveis plasmáticos do fumador médio,
não provocou alterações significativas na proliferação e
actividade funcional. No entanto, a presença de níveis
superiores, 0,01 mg -1 mg/ml, na gama dos presentes na
saliva dos utilizadores de tabaco, afectou o
comportamento celular, de modo dependente da dose.
Estes resultados sugerem a possibilidade de modulação
local da actividade osteoblástica pela nicotina a nível da
cavidade oral.