Torcicolo Muscular Congénito: A Propósito de Um Caso Clínico
A palavra torcicolo vem do latim tortum collum e define a deformidade, congénita
ou adquirida, caracterizada pela inclinação lateral da cabeça para o ombro
homolateral e pela torção do pescoço e rotação do queixo para o lado
contralateral. O torcicolo muscular congénito é a deformidade do pescoço
envolvendo primariamente um encurtamento do músculo esternocleidomastoideu que
é detectada ao nascimento ou logo após o nascimento (1).
A sua incidência varia de 0,3% a 1,9% dos recémnascidos e a patogénese exacta é
ainda desconhecida, embora existam várias explicações etiológicas.Aposição do
pescoço podelevar a uma plagiocefalia posturale, com o crescimento esquelético,
a outras dismorfias craniofaciais. Está descrita uma associação entre a presença
de torcicolo muscular congénito e a existência de displasia congénita das ancas
com uma incidência que pode ir até aos 20% (2).
Macdonald (1) dividiu os torcicolos musculares congénitos em 2 grandes grupos:
os torcicolos com tumefacção do esternocleidomastoideu (inclui os torcicolos
com tumefacção palpável, móvel e de consistência dura) e os torcicolos
musculares (inclui os torcicolos com contractura do esternocleidomastoideu mas
sem tumefacção palpável). Os torcicolos posturais incluem os torcicolos sem
tumefacção ou contractura do esternocleidomastoideu. Na maioria das séries o
termo torcicolo muscular congénito engloba os 3 subgrupos.
Na avaliação de um recém-nascido deve constar uma história clínica exaustiva,
com particular ênfase para a existência de história de parto traumático ou de
apresentação pélvica, e um exame físico completo com especial atenção para a
palpação do esternocleidomastoideu e para o arco de movimento da cabeça e do
pescoço. A avaliação neurológica, assim como a avaliação da acuidade visual e
auditiva, são fundamentais para excluir outros diagnósticos diferenciais (2).
A ultrassonografia é a modalidade imagiológica de primeira escolha para a
avaliação radiológica do torcicolo muscular congénito. Esta modalidade também
pode ser utilizada para excluir a existência concomitante de displasia
congénita das ancas (3).
CASO CLÍNICO
Y.O., recém-nascido de 22 dias de idade, sexo mas-culino,internado por massa
cervicalesquerda em estudo. Gestação de 39 semanas, vigiada, sem
intercorrências. Pais saudáveis, não consanguíneos. Sem história de doenças
heredo-familiares conhecidas. Serologias maternas: VDRL, atgHBs e HIV
negativos, sem outras informações. Parto hospitalar por ventosa. Apgar ao
nascimento 9/10. Antropometria ao nascimento: 3050 g/48,5 cm/ 32,5 cm.
Icterícia neonatal sem critérios para fototerapia. Sem internamentos ou
cirurgias prévias. Sem alergias conhecidas. Aleitamento materno exclusivo.
Ainda não tinha iniciado o Plano Nacional de Vacinas.
À data da primeira observação por Medicina Física e de Reabilitação,
apresentava bom estado geral, mucosas coradas e hidratadas, escleróticas
ictéricas. Sem exantemas nem petéquias. Sinais meníngeos negativos. Fontanela
anterior normotensa e pulsátil. Apirético, sem síndrome de dificuldade
respiratória. Auscultação pulmonar e cardíaca sem alterações. Exame
oftalmológico e otoscópico normais. Exame neurológico sumário sem alterações.
Na região cervical esquerda apresentava tumefacção dura, móvel, não aderente
aos planos adjacentes, sem sinais inflamatórios. Apresentava postura em
inclinação cervical esquerda e rotação cervical direita com limitação da
inclinação cervical lateral direita e da rotação cervical para a esquerda quer
activamente, quer passivamente. Restante exame ortopédico de acordo com a
idade.
Efectuou Ecografia cervical que revelou massa intimamente ligada com o músculo
esternocleidomastoideu esquerdo, vascularizada, medindo 27x13 mm no plano axial
e 30 mm de diâmetro longitudinal. Efectuou também TC cervical que mostrou
processo expansivo na dependência ou em contiguidade com o
esternocleidomastoideu esquerdo, cuja origem e natureza não pode ser apreciada
de forma conclusiva (Figura 1). A citologia aspirativa obteve resultado
compatível com fibromatose do esternocleidomastoideu (Figura 2).
Fig. 1 - Imagens da TC cervical efectuada. A seta sinaliza a localização do
torcicolo.
Iniciou tratamento de reabilitação que incluiu exercícios de estiramento
activos e passivos, posicionamentos, estimulação auditiva, visual e cutânea. Os
pais foram incentivados a participar no processo terapêutico, nomeadamente no
que diz respeito aos cuidados posturais e à continuação da correcção activa.
Após 8 meses de tratamento de reabilitação, o lactente teve alta sem tumefacção
cervical palpável e sem limitação do arco de movimento do pescoço.
Fig. 2 - O exame citológico mostrou a presença de fibroblastos reactivos
isolados ou em grupo e células musculares multinucleadas, permitindo realizar o
diagnóstico de fibromatose colli.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Na maioria das séries publicadas o torcicolo muscular congénito é subdividido
em 3 subgrupos: os torcicolos com tumefacção do esternocleidomastoideu, os
torcicolos musculares e os torcicolos posturais. Talcomo foidescrito por Cheng
(4), os torcicolos com tumefacção do esternocleidomastoideu são o subgrupo mais
frequente, têm uma idade de apresentação mais precoce (geralmente até aos 3
meses de idade) e aparecem associados a maiores limitações da rotação passiva
do pescoço. Existe também uma maior associação deste subgrupo a histórias de
parto traumático, apresentação pélvica e displasia congénita da anca. O caso
clínico apresentado inclui-se no subgrupo dos torcicolos congénitos com
tumefacção e aparece associado a parto por ventosa, não apresentando displasia
da anca associada.
Amaioria dos torcicolos musculares congénitos resolve com tratamento
conservador (5). O tratamento conservador inclui protocolos de fisioterapia, que
variam segundo os autores, mas que na generalidade incluem exercícios de
estiramento activos e passivos, posicionamentos, estimulação auditiva, visual e
cutânea. A educação aos pais é fundamental, nomeadamente no que diz respeito
aos cuidados posturais e à continuação da correcção activa. No caso exposto, o
tratamento de reabilitação foi eficaz, apesar de implicar um período longo de
tratamento.
Nos trabalhos de Cheng (6), os torcicolos musculares congénitos com tumefacção
do esternocleidomastoideu aparecem associados a maiores períodos de tratamento.
Este autor descreveu como factores de mau prognóstico o subtipo de torcicolo
com tumefacção do esternocleidomastoideu, uma maiorlimitação da rotação passiva
do pescoço aquando do diagnóstico e uma idade de apresentação tardia. Quando
após 6 meses de tratamento conservador se mantém uma inclinação residual, um
défice da rotação pescoço maior que 15º e uma retracção muscular ou tumefacção,
o tratamento é considerado ineficaz, pelo que é proposto tratamento cirúrgico.
Este inclui as tenotomias unipolares, as tenotomias bipolares, a plastia em Z e
a excisão completa do músculo esternocleidomastoideu. Segundo os estudos de
Cheng (7), o subgrupo com tumefacção do esternoleidomastoideu surge como o
subgrupo com uma maior percentagem de situações em que foi necessário intervir
cirurgicamente.
O tratamento de reabilitação é, não só importante como primeira abordagem
terapêutica, como também como tratamento pós cirúrgico. O esquema de
reabilitação pós-cirúrgico pode incluir tracção cervical suave, o uso de
ortóteses, mobilização activa assistida, exercícios de reeducação postural e
facial, entre outros. Existem estudos recentes de Collins (8), onde este autor
utiliza toxina botulínica no tratamento dos torcicolos musculares congénitos
refractários ao tratamento conservador. Embora a toxina botulínica pareça ter
potencial promissor, são necessários mais estudos para avaliar o seu real valor
nesta patologia.
O caso clínico apresentado salienta a importância do diagnóstico e tratamento
precoce do torcicolo congénito, assim como coloca em lugar de relevo a
participação dos pais em todo o processo terapêutico, mostrando que o
tratamento de reabilitação é eficaz mesmo em torcicolos congénitos com
tumefacção e limitações importantes da mobilidade cervical.