Troponina: Estrutura, Fisiopatologia e Importância Clínica para Além da
Isquemia Miocárdica
1 - INTRODUÇÃO
A troponina I foi inicialmente considerada um biomarcador proteico de necrose
miocárdica, tendo nos últimos anos, sido encarada como a análise bioquímica
padrão para o diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio, designadamente do
enfarte sem supra desnivelamento do segmento ST (EMSST), a par dos critérios
clínicos e electrocardiográficos / angiográficos.
Pela cinética da libertação da troponina I a partir dos cardiócitos lesados,
doentes com enfarte agudo do miocárdio podem apresentar valores normais de TpI
no sangue, nas primeiras horas após o evento. De facto, os primeiros testes de
doseamento da troponina só mostravam subida da TpI 4h a 6h depois, com as
inerentes implicações no diagnóstico e prognóstico, dado o benefício do
diagnóstico e intervenção precoces.
Por este motivo, os fabricantes aperfeiçoaram os seus testes tornando-os cada
vez mais sensíveis, permitindo a detecção precoce de níveis extremamente baixos
de TpI no sangue, e portanto o diagnóstico mais atempado do enfarte agudo do
miocárdio. As vantagens são óbvias, mas existe um preço a pagar. De facto,
dispondo de testes com limiar de detecção de TpI mais baixo, indivíduos
previamente tidos como saudáveis por apresentarem valores encarados como
normais, serão agora considerados doentes ou pelo menos portadores de TpI
detectável, não sendo claro o seu significado patológico.
Ultimamente tem-se investigado amplamente esta questão, e os estudos são
unânimes em demonstrar que pequenas elevações da TpI plasmática, ainda que
abaixo do percentil 99 (usado actualmente como valor discriminativo para
diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio), têm significado prognóstico,
particularmente quanto à ocorrência de eventos cardiovasculares adversos e à
sobrevida. E isto verifica-se não só em doentes com doença cardíaca isquémica
estável como também numa série de outras situações patológicas, nomeadamente em
doentes críticos, na insuficiência cardíaca, no tromboembolismo pulmonar,
nainsuficiência renalcrónica, na endocardite infecciosa, na doença cardíaca
valvular e na doença pulmonar crónica obstrutiva (DPOC).
Se é consensual que níveis detectáveis de TpI têm implicações significativas no
prognóstico dos doentes, o mesmo não se passa relativamente à controvérsia
gerada pelas tentativas de explicação da sua etiologia.
2 - CORAÇÃO: BOMBA MUSCULAR
O coração é o operador central de todo o sistema cardiovascular, consistindo em
duas poderosas bombas musculares (coração direito e coração esquerdo), que em
cada ciclo cardíaco bombeiam o sangue e o distribuem por todo o organismo.
Cada fibra muscular cardíaca constitui-se por miofibrilas (1), células, em forma
de Y, que se encontram separadas umas das outras por comunicações altamente
permeáveis (as "gap-junctions"), de tal forma que, funcionalmente,
se podem considerar verdadeiros sincícios celulares (Figura 1). De facto,
existem dois sincícios celulares distintos - auricular e ventricular
- separados entre si por tecido fibroso. Em cada miofibrila, por sua vez,
encontram-se milhares de filamentos de actina (finos) e miosina (grossos), em
íntima relação uns com os outros.
Fig. 1 - Fibra muscular cardíaca - constituída por várias células em
forma de Y. O aspecto estriado deve-se à alternância de filamentos finos (mais
claros) e grossos (mais escuros). Os traços mais claros que separam as células
são os discos intercalados - folheto duplo de membrana celular, onde se
encontram as "gap-junctions".
Adaptado de http://www.visualhistology.com/products/atlas/
VisualHistology_Atlas_2-0-09_1.jpg)
Contrariamente ao músculo esquelético, o músculo cardíaco não se contrai em
resposta à estimulação nervosa (controlada pelo Sistema Nervoso Central),
dependendo da auto-excitabilidade e miogenicidade do nó sinusal, o pace-maker
cardíaco (regulado pelo Sistema Nervoso Autónomo).
Quando uma célula muscular é excitada, o potencial de acção difunde-se para as
outras células vizinhas (pelas "gap-junctions"), deslocando-se das
aurículas para os ventrículos, através de células especializadas na condução
nervosa (células de Purkinje), de forma a garantir a sua contracção ritmada e
harmoniosa, em cada ciclo cardíaco.
3 -CONTRACÇÃO DO MIOCÁRDIO: ACOPLAMENTO EXCITAÇÃO-CONTRACÇÃO
Após a excitação nervosa, o cálcio é estimulado a sair do retículo
sarcoplasmático, para o sarcoplasma, onde se encontram os miofilamentos, e é da
interacção do cálcio comlocais específicos desses miofilamentos, como veremos
adiante, que resulta o deslizar relativo da actina e miosina, e a subsequente
contracção muscular.
3.1 - Miofilamentos: estrutura, fisiologia e regulação pelo cálcio
No músculo cardíaco, como em todo o músculo estriado, a activação pelo cálcio é
regulada mormente ao nível dos miofilamentos finos.
Concretamente, os filamentos finos (2) são constituídos por dois polímeros
helicoidais de actina filamentosa, entrançados em duas cadeias de tropomiosina
(Figura 2), cada uma ligada a um complexo troponínico, que, por sua vez, é
formado por três subunidades - troponina C, troponina I e troponina T
- na razão molar de 1:1:1. As tropomiosinas de cada filamento comunicam
com as dos filamentos adjacentes, por interacções topo-a-topo, parecendo
fundamentais à difusão da onda de excitaçãocontracção, ao longo de toda a fibra
muscular (3). Além disso, são proteínas cruciais na regulação da interacção
entre os filamentos de actina e miosina. De facto, con-forme a posição dessas
proteínas relativamente à actina, os miofilamentos finos podem adoptar um de três
modos de estado (2,4):
• Modo B - Também designado por modo bloqueado, porque neste
modo de estado, os filamentos finos estão bloqueados ao estabelecimento
de qualquer ponte cruzada entre a actina e a miosina, não podendo
ocorrer contracção muscular. É um tipo de conformação espacial que
vigora em situações de baixa concentração de cálcio sarcoplasmático,
como é o caso das situações de repouso muscular.
• Modo C - Também designado por modo cálcioactivado. Decorre da
libertação do cálcio a partir do retículo sarcoplasmático para o
sarcoplasma, após excitação celular. Subsequentemente, esse cálcio
liga-se à troponina C, fazendo com que o efeito inibitório da
troponina I se atenue (ver adiante), e a tropomiosina (5) se desloque
a partir dos sulcos de actina, deixando a descoberto o domínio S1 da
actina, onde se vai ligar a miosina, culminando com o estabelecimento
de pontes cruzadas entre ambos os filamentos. Porém, e apesar da
formação destas pontes cruzadas, não se produz contracção muscular,
por serem, ainda, ligações fracas.
• Modo M - Também designado por modo aberto ou estado induzido
pela miosina. Neste modo estabel-ecem-se pontes altamente potentes
(na realidade trata-se apenas de uma (6) ponte cruzada potente) entre
os filamentos de actina e os de miosina, pelo efeito activador da
actina sobre a ATP-ase (adenosina trifosfatase) da miosina,
produzindo-se força muscular eficaz.
Fig. 2 - Miofilamentos de actina e miosina, e o papel do cálcio na sua
regulação.(adaptado de Pflugers Arch -Eur J Physiol (2008) 457:37-46)
O papel regulador do cálcio assenta, portanto, na alteração do equilíbrio entre
aqueles três modos de estado dos miofilamentos finos. No músculo cardíaco estima-
se que, na ausência de cálcio, cerca de 50% das unidades reguladoras dos
filamentos finos se encontrem no modo B e 40% no modo C, passando aproximadamente
75% ao modo C quando esse catião está presente (5,7).
O cálcio, porém, não actua de forma isolada, reconhecendo-se 2 factores
essenciais ao seu efeito regularizador da conformação dos miofilamentos e
contracção muscular: 1 - quantidade de cálcio libertada a partir do
retículo sarcoplasmático; e 2 - resposta (sensibilidade) dos miofilamentos
ao cálcio.
Por sua vez, o comprimento dos sarcómeros (relação de Frank-Starling) e a
modificação pós-translacional das proteínas sarcoméricas, designadamente a
fosforilação dependente da cínase, constituem os principais factores
moduladores da sensibilidade ao cálcio. Um exemplo concreto é a interacção
topo-a-topo das tropomiosinas, já referido atrás, que se descobriu recentemente
(2), ser controlado pela fosforilação do resíduo Ser-238 dessas proteínas.
3.2 - Troponinas
De acordo com o exposto anteriormente, as troponinas são proteínas reguladoras
que controlam a interacção Ca2+-dependente entre os filamentos de actina e
miosina, sendo responsáveis pelo ciclo dinâmico de contracção e relaxamento
muscular. Reconhecem-se três troponinas distintas (2), designadas pelas letras
C, T e I.
A troponina C (TpC) é, por excelência, a proteína de ligação (reversível) ao
cálcio, que, uma vez activada por ele, permite a mudança de conformação dos
miofilamentos finos em modo B para o modo C (ver atrás). A molécula da troponina
C é dotada de dois domínios fundamentais, unidos por um ligante central -
terminais N e C - dispondo de dois pontos de ligação ao cálcio, em cada
um desses domínios, denominados locais I e II no primeiro e III e IV no
segundo. Estes dois últimos locais mostram grande afinidade para o cálcio, pelo
que não podem controlar a contracção muscular dependente desse ião. Por este
motivo, houve (2) quem classificasse o domínio C como sendo estrutural. O local
I do domínio N, por seu turno, não se pode ligar ao cálcio, em condições
fisiológicas, devido à substituição de aminoácidos-chave. Assim, apenas o local
II deste mesmo domínio, constitui o ponto crucial de ligação ao cálcio.
Nesta sequência, percebe-se que a contracção do músculo cardíaco é regulada
apenas por um ponto de ligação ao cálcio, contrariamente ao músculo
esquelético, onde funcionam efectivamente dois pontos de ligação.
Não obstante, o cálcio só conduz à contracção muscular após ligação à troponina
C se esta estiver integrada num miofilamento fino, levando a supor que exista um
mecanismo de feedback positivo transmitido ao longo dos diversos filamentos,
realçando, uma vez mais, a importância da interacção entre os topos das
tropomiosinas.
A troponina I, um monómero com 23,5 kDa, corresponde à componente inibitória do
complexo troponínico, inibindo, portanto, a contracção muscular quando a
concentração do cálcio plasmático é baixa. Tal como a troponina C, ou qualquer
outra proteína, a troponina I tem um terminal N (domínio inibitório) e um
terminal C (domínio de ligação à actina). A ligação da actina ao domínio
inibitório, faz com que a troponina I iniba o efeito activador da actina sobre
a ATP-ase (adenosina trifosfatase) da miosina, conduzindo ao relaxamento
muscular. Pensa-se que o terminal C esteja intimamente envolvido na indução da
mobilização da tropomiosina para uma posição inibitória que bloqueie a
interacção entre a miosina e a actina.
O domínio inibitório tem uma sequência particular de aminoácidos que se tem
mantido preservada ao longo da evolução das espécies, sugerindo tratar-se de um
ponto crítico na regulação do ciclo contracção / relaxamento muscular cardíaco.
De facto, já foram documentadas alterações nessa sequência de aminoácidos,
conducentes a um defeito da acção inibitória da troponina I durante a diástole,
em certos tipos de insuficiência cardíaca (IC).
Entre os terminais C e N da troponina I, existe uma zona intermédia -
Switch zone- onde se liga a troponina C. Relembremos que após ligação do
cálcio à troponina C, esta seliga à zonaintermédia da troponina I, obrigando ao
deslizar dos seus domínios N e C, esmorecendo o seu efeito inibitório sobre a
actina.
O terminal N (T1) da troponina T (TpT) liga-se fortemente à tropomiosina (donde
deriva o seu nome), estando estrategicamente situado na zona de interface entre
os topos das tropomiosinas, pensando-se que regule, precisamente, as
interacções topo-a-topo, já mencionadas anteriormente neste texto. O terminal C
(T2) da troponina T liga-se às troponinas I e C, servindo de intermediário
entre ambas. Presentemente, supõe-se que a fosforilação da troponina T cardíaca
tenha um papel significativo na regulação do miofilamento fino cardíaco.
4 -TROPONINA I: ESPECIFICIDADES DA MOLÉCULA E IMPORTÂNCIA CLÍNICA
Conhecem-se trêsisoformas da troponina I -cardíaca, esquelética lenta e
esquelética rápida - cada uma codificada por um gene específico.
No coração embrionário dos mamíferos, as células musculares exprimem
predominantemente a forma esqueléticalenta da troponina I. Teoriza-se (8) que
esta forma seja fundamental para a robustez da bomba muscular cardíaca, quando
da adaptação à hipoxia associada ao parto, pelo facto de aumentar a
sensibilidade ao cálcio bem como o tempo de relaxamento e a resistência a
alterações do pH, e diminuir a sensibilidade à estimulação β-adrenérgica.
Todavia, após o parto, a expressão dessa isoforma é drasticamente reduzida, e
na idade adulta apenas ocorre a forma cardíaca, salvo em certas situações
patológicas como é o caso da IC.
Nos últimos anos, sobretudo após a redefinição dos critérios de diagnóstico do
enfarte agudo do miocárdio, em que se enalteceu o papel da troponina, esta
proteína tem sido alvo de estudo intenso, na expectativa de se compreender
melhor a sua estrutura e patofisiologia.
Efectivamente, existe já evidência (9, 10) que certas alterações estruturais da
isoforma cardíaca (sobretudo fosforilações do terminal amino) influem na
regulação da função cardíaca, e subjazem à patogenia de certas doenças como a
insuficiência cardíaca, a hipertrofia ventricular esquerda e a cardiomiopatia
diabética.
De seguida expõem-se algumas dessas alterações pela sua importância clínica:
• Os resíduos de serina Ser-23 e Ser-24 do terminal N da troponina I
cardíaca parecem ter importância na regulação da contractilidade
cardíaca, e a sua fosforilação (mediada pela fosfocínase A) afecta a
dinâmica e intensidade da frequência cardíaca (FC). Foi demonstrado,
ainda, que essa fosforilação diminui a sensibilidade ao cálcio e
aumenta a avidez daligação entre a TpI e o filamento fino.
• Os resíduos de serina Ser-42 e Ser-44 regulam a força das pontes
cruzadas entre actina e miosina, tendo já sido demonstrado que a sua
fosforilação (proteína cínase C) diminui a força de contracção
muscular, através da depressão da cinética e tensão máxima dessas
pontes.
• A fosforilação do resíduo de treonina Thr-143 aumenta a
sensibilidade ao cálcio e diminui a cinética das pontes cruzadas.
• A fosforilação dos resíduos de serina Ser-43 e Ser-45, e da
treonina Thr-144, conduz à inibição da contractilidade muscular, pela
estabilização dos miofilamentos finos no seu modo de estado inactivo
(11), contrariamente ao que se passa na cardiomiopatia hipertrófica,
em que ocorre aumento da contractilidade muscular, por estabilização
daqueles filamentos no modo de estado activo.
• Verificou-se que situações de isquemia / reperfusão moderadas
induzem proteólise dos aminoácidos do terminal C da troponina I.
Finalmente, Genaro et al(12) apontaram, num trabalho recente, que a troponina I
cardíaca (TpIc) é, certamente, a primadona dalusitropia (taxa de relaxamento
muscular) induzida pela estimulação β-adrenérgica, podendo vir a constituir
futuramente um alvo no tratamento específico da IC diastólica.
5 - DOSEAMENTO DA TROPONINA I
É possível distinguir a TpIc das suas isoformas esqueléticas, designadamente da
lenta, pela singularidade da sequência de aminoácidos do terminal N (10).
Os testes de doseamento da troponina I actualmente existentes, usam anticorpos
que se dirigem exclusivamente à isoforma cardíaca, pelo que se podem considerar
testes específicos para a detecção de disfunção cardíaca.
A sensibilidade do teste é tanto melhor quanto maior for o número de anticorpos
usados. De facto, num estudo de Estelle Le Moal et al(13), a combinação de
anticorpos que mostrou maior sensibilidade clínica, consistiu no agrupamento de
um anticorpo dirigido contra a porção central singular da troponina I, com dois
anticorpos dirigidos contra epítopos do terminal N. Não obstante, existe uma
grande diversidade de testes, nem sempre concordantes entre si, e com
sensibilidades distintas, pela falta de padronização (ver adiante). Acresce,
ainda, que na procura de maior sensibilidade se sacrifica a especificidade,
podendo os testes ficar mais susceptíveis a interferências.
Seguidamente, faz-se uma breve revisão dos testes de doseamento, enfatizando
aspectos relacionados com a sua padronização e cuidados a ter na interpretação
dos resultados.
5.1 - Peculiaridades da molécula
Uma condição necessária ao uso de qualquer teste de diagnóstico, é a definição
precisa do analito. Assim, antes de enveredar pela problemática dos testes de
doseamento da troponina I importa esclarecer o que se pretende medir quando se
aplicam esses testes, e o que se mede efectivamente.
Quando o analito é uma substância química bem definida (ex. colesterol,
creatinina) torna-se fácil definilo. Porém, tratando-se de analitos complexos
como é o caso dos biomarcadores proteicos, onde se inclui a TpIc, essa tarefa
revela-se complicada, pela heterogeneidade molecular, seja intrínseca ou
adquirida. Na realidade, a padronização dos testes é obviada, logo à partida,
por este problema, tal como será analisado, à frente.
Cerca de 3 a 8% da TpIc encontra-se livre no sarcoplasma dos cardiócitos, mas a
grande percentagem está incorporada nos miofilamentos finos. Após lesão
miocárdica, a troponina TpIc é detectada na corrente sanguínea, sobretudo, na
forma complexa de TpI-TpC (14).
Recentemente, Panteghini et al(15) propuseram que, para efeitos de doseamento,
se definisse TpIc como sendo apenas a porção central da molécula da troponina I,
uma vez que esta é a única região comum a todas as formas de troponina I,
passíveis de serem encontradas em circulação (TpIc isolada, complexada com a
TpC ou TpT, ou após certas modificações moleculares como a fosforilação ou
oxidação). Segundo os mesmos autores dever-se-iam usar anticorpos dirigidos
especificamente contra os epítopos dessa região da TpIc, permitindo
homogeneização da reactividade dos testes, e portanto, padronização dos
resultados. O problema é que, actualmente, os vários fabricantes continuam a
usar anticorpos diferentes dirigidos contra diversos epítopos.
5.2 - Testes existentes no Mercado
A troponina C não tem utilidade na prática clínica porque o músculo cardíaco
partilha a isoforma C da troponina com o músculo liso.
Efectivamente, apenas existem no mercado testes para determinação de duas
troponinas: TpT e TpI. Somente um laboratório (Roche) comercializa o teste de
determinação da troponina T. Contudo, actualmente, e tal como será abordado
adiante, a troponina I é o biomarcador de eleição para diagnóstico do enfarte
do miocárdio, sendo aquela que é mais frequentemente usada. Além disso, importa
relembrar que a presente tese se centra na troponina I e no seu potencial valor
prognóstico em doentes com agudização de DPOC. Deste modo, neste texto serão
analisados, mormente, os testes de doseamento da troponina I, constando-se que
existam pelo menos 18 testes diferentes no mercado (14, 16), divergindo entre
si quanto ao tipo de reagentes usados, performance clínica, anticorpos
monoclonais e tipo de epítopo da troponina reconhecido estes, bem como quais os
valores cutoff estimados para o diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio.
Há cerca de duas décadas atrás, quando surgiu o interesse pela troponina I, os
primeiros testes baseavam-se em anticorpos policlonais dirigidos contra a
troponina I, sendo bastante inespecíficos. Entretanto, começaramse a criar
numerosos anticorpos monoclonais dirigidos contra aquelas regiões da molécula
da troponina I, que se julgavam ser mais imunoreactivas. Seguidamente, usando
várias combinações desses anticorpos, desenvolveram-se os primeiros testes de
doseamento - Testes de 1ª geração. Estes testes caracterizavam-se por
usar apenas um anticorpo, dirigido contra epítopos do terminal C ou N.
Apesar do entusiasmo inicial, depressa surgiu um problema relativamente aos
testes de 1ª geração. De facto, a detecção da TpIc por imunoensaio pode ser
afectada pelas diversas modificações (fosforilação, oxidação, degradação) que a
molécula pode sofrer após ser libertada para a corrente sanguínea, pelo que,
muitas vezes, o que se encontra em circulação, são pequenos fragmentos ou
formas modificadas e não a TpIc original. Como os testes de 1ª geração apenas
usavam um anticorpo dirigido contra os epítopos C ou N, que são sequências
aminoacídicas susceptíveis de fosforilação ou oxidação (ver anteriormente),
facilmente se depreende que, caso essas alterações moleculares tenham ocorrido,
aqueles testes falham na detecção da TpI.
Assim, desenvolveram-se os testes de 2ª geração, que têm em conta, não só as
formas livres de TpI, como também as formas complexadas, e as modificações
póstranslacionais. São testes que usam conjuntos de dois ou três anticorpos,
combinando um anticorpo especificamente dirigido contra a região central comum
(ver acima) com um ou dois anticorpos dirigidos contra os epítopos dos
terminais N e/ou C.
Pela corrente relevância clínica e laboratorial (17) destacam-se três testes de
2ª geração:
• Beckman Coulter Access Accu TnI:
Teste que usa 2 casas decimais na definição dos valores relativos aos
limites de detecção (≤ 0,01 µg/L) e ao percentil 99 (0,04 µg/L, quer
se use plasma ou soro).
Estudos recentes (18) mostraram ter acuidade semelhante à do
Architect da Abbott, evidenciando sensibilidade de 85%, especificidade
de 24%, e valores preditivos positivo e negativo de 10% e 95%,
respectivamente, para morte nos primeiros 30 dias, e uma
sensibilidade de 92%, especificidade de 25%, valor preditivo positivo
de 9% e negativo de 98% para a ocorrência de enfarte do miocárdio aos
30 dias (usando o percentil 99 como valor cutoff). O valor para o
qual se verificou um coeficiente de variação (CV) = 10% ficou
estabelecido pelos 0,014 µg/L.
• Abbott Diagnostics Architect STAT Troponin-I:
Este teste era bilaminado, mas recentemente foi melhorado (19),
através da adição de um novo anticorpo, sendo actualmente
trillaminado (tal como o TnI-Ultra ADVIA Centaur, da Siemens). Assim,
usa dois anticorpos dirigidos contra epítopos na região específica da
forma cardíaca da troponina I (aminoácidos 27 - 40 e 41 -
49), e um anticorpo dirigido contra o epítopo 87 - 90.
Actualmente, graças aos aperfeiçoamentos de que tem sido alvo, é
considerado um teste altamente sensível para determinação da
troponina I.
Usa 3 casas decimais, com limites de detecção que variam (17, 20)
entre valores ≤ 0,009 e ≤ 0,010 µg/L. Contrariamente aoAccu TnI, os
percentis 99 no plasma e no soro, correspondem a valores de troponina
I distintos, respectivamente 0,012 µg/L e 0,025 µg/L.
Todavia, com a versão mais recente, estas diferenças não são
estatisticamente significativas (21).
• ADVIA / Centaur CP TnI-Ultra, Siemens Medical Solutions
Diagnostics:
É um método de quimioluminescência, trilaminado, porque usa dois
anticorpos monoclonais dirigidos contra epítopos existentes nos
aminoácidos 41 - 49 e 87 - 91, bem como um marcador
anticorpo policlonal intestinal (marcado com Ester de Acridínio)
dirigido contra as sequências 27 - 40. Também usa três casas
decimais, e o limite de detecção situa-se nos 0,006 µg/L, mostrando
um coeficiente de variação de 10% para valores de TpIc = 0,03 ng/ml.
Num estudo de Fred et al. (22), este teste mostrou sensibilidade de 94% e
especificidade de 84% para diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio, nas
primeiras 6h a 24h, para um percentil 99 ≤ 0,04 µg/L. Não obstante, a
literatura é contraditória nos estudos de comparabilidade da acuidade
diagnóstica. Casals et al. (23) alegaram ter acuidade semelhante á do Accu TnI,
mas recentemente, Venge et al(17) mostraram que este último tem maior
sensibilidade diagnóstica.
Como nota final importa referir que o TnI-Ultra não é afectado pelas diluições
da troponina I com plasma rico em triglicerídeos ou proveniente de doentes com
artrite reumatóide (24). Mas parece ser influenciado por anticorpos
heterofílicos (25).
Com os testes de 2ª geração,identificaram-se pessoas com valores detectáveis de
TpIc, ainda que inferiores ao percentil99 da população de referência. E
foidemonstrado que esses níveis baixos de troponina I em circulação, tinham
implicações prognósticas.
Posto isto, os investigadores questionaram-se, quão baixo poderiam descer até
desaparecer o valor preditivo da troponina I?
No sentido de esclarecer esta hipótese, foram-se aperfeiçoando os testes de
doseamento da troponina, criando-se testes ultrasensíveis, como o Erenna
Immunoassay System(26), previamente designado Zeptx System. Neste sistema, a
técnica de imunoensaio por fluxo está acoplada a um instrumento digital de
contagem de moléculas. John et al. (26) testaram este sistema em indivíduos
saudáveis tendo mostrado limites de detecção para valores de 0,2 ng/L com
coeficiente de variação de 10% para valores entre 0,78 e 1,6 ng/L. As vantagens
(27) deste tipo de teste incluem a necessidade de menor quantidade de amostra,
e um tempo de incubação mais curto. Todavia, mostrou sensibilidade inferior
quando comparado com os sistemas convencionais.
Recentemente, Reichlin e colegas (28) testaram a acuidade diagnóstica de quatro
testes ultrasensíveis (dois para troponina I e dois para a troponina T) em
comparação com o ADVIA Centaur TnI-Ultra, e verificaram que a acuidade
diagnóstica daqueles quatro era significativamente superior à deste último, com
um valor preditivo negativo entre 97 - 99%. Importa referir, a título de
curiosidade, que esses quatro testes ultrasensíveis foram: 1 - Abbot-
Architect TnI(já referido acima), com limite de detecção de 0,01 ng/ml, um
percentil 99 de 0,028 ng/ml, e um CV < 10% para valores de 0,032 ng/ml; 2
- Elecsys 2010 system da Roche TnT(teste de 4ª geração) com limite de
detecção de 0,01 ng/ml, percentil 99 de 0,01 ng/ml, e um CV < 10% para valores
de 0,035 ng/ml; 3 - Elecsys 2010 system da Roche High Sensitive TnTcom
limite de detecção de 0,002 ng/ml, percentil 99 de 0,014 ng/ml e um CV < 10%
para valores de 0,013 ng/ml; e 4 - Elecsys 2010 system da Roche TnIcom
limite de detecção de 0,10 ng/ml, percentil 99 de 0,16 ng/ml e CV < 10% para
valores de 0,30 ng/ml.
5.3 - O problema da padronização dos testes
Tal como mencionado anteriormente, a troponina é o principal biomarcador
utilizado no diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio. Convém, portanto, que
os testes em comercialização sejam padronizados. Contrariamente ao que se passa
com a TpT, cujos testes são comercializados apenas por um fabricante (Roche),
no caso da troponina I existem diversas companhias a comercializar diferentes
testes de doseamento, e na literatura (15) existem relatos de coeficientes de
variação superiores a 10% quando confrontados resultados dos diferentes
laboratórios, o que constitui um entrave à investigação científica, pela
impossibilidade de fazer comparações.
A falta de padronização dos testes de TpI é uma realidade porque cada
fabricante usa materiais "padrão" diferentes e anticorpos dirigidos
contra epítopos distintos. Alguns autores (29) recomendam o uso de materiais
padrão reconhecidos internacionalmente ou pelo menos, materiais de referência
universal, tendo em conta determinantes específicos da molécula da troponina I,
bem como sistemas de medição padrão. A introdução do sistema ADV, em 2005, nos
analisadores AxSym e Architect da Abbott, permitiram uma redução dos CV para
8,2% e 4,3%, respectivamente.
Condizente com esta problemática, recentemente foram publicados (15) alguns
preceitos a cumprir quando da padronização dos testes de doseamento da
troponina I. Esse documento dá ênfase ao sistema de medição de referência, que
dizem envolver três componentes: procedimento de referência, definição padrão do
analito e materiais de referência para calibração.
O procedimento de referência consiste na acção de certificar o valor dum
material de referência secundário (analito presente numa matriz complexa (ex.
soro dos doentes com enfarte agudo do miocárdio, que dispõem de valores
elevados de TpI) comparável àquela existente na amostra a dosear), calibrado
através do uso de um material de referência primário. Actualmente, o
procedimento de referência universalmente advogado faz-se por imunoensaio,
usando anticorpos monoclonais específicos contra os epítopos centrais da
molécula da TpI, apesar de, como qualquer procedimento de medição indirecta,
ser muito técnico-dependente. Isto porque, os métodos não imunoquímicos (como a
espectrometria de massa) que seriam de preferir para efeitos de padronização,
ainda não têm sensibilidade suficiente para a medição directa da TpI, sobretudo
naquelas situações em que aquela se encontre em níveis muito baixos.
A ambiguidade na definição do analito TpI, já explorada, anteriormente, neste
texto, obsta a padronização. Todavia, tem-se vindo a fazer um esforço no
sentido de promover o conceito da TpI interessar apenas a zona central da sua
molécula (15), por ser a única estável do ponto de vista estereoquímico.
Katrukha et al. (30) sugeriram que o material de referência primária, para o
calibrador, deveria ser constituído por concentrações equimolares de troponinas
I, T e C, de modo a representar a maior e mais natural forma antigénica de
troponina encontrada no sangue - o complexo troponínico. O SRM 2921
(desenvolvido por American Association for Clinical Chemistry, National
Institute of Standards and Technologye o IFCC) aspirou a material de referência
secundária universal (MRSU). Porém, verificou-se que a suaintrodução no mercado
não melhorava a comparabilidade dos valores de troponina I sérica, de amostras
humanas, fazendo suspeitar que o uso de um MRSU, só por si, não chega para
padronizar os testes. De facto, apesar do SRM 2921 pretender mimetizar a
principal forma molecular da TpI encontrada nas amostras biológicas, os
analitos presentes no material de referência e aqueles presentes na amostra,
são, definitivamente diferentes.Acresce, ainda, que apesar da remoção da matriz
estrutural, o processo de purificação pode conduzir a modificações parciais da
molécula da troponina, afectando a reacção imunológica (pelo menos em alguns
testes). Além disso, verificou-se que o SRM 2921 não tem estabilidade ao longo
do tempo, pelo que, actualmente, se considera que o melhor material e
referência secundária (31) é uma amostra de sangue oriunda de doentes com
elevação da TpI.
Além do problema da padronização dos testes de determinação da troponina I,
existe o problema da ambiguidade na definição dos valores cutoff considerados no
diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio. De facto, enquanto alguns
laboratórios usam o valor associado a um coeficiente de variação inferior a 10%,
outros usam o valor equivalente ao percentil 99 duma população de referência.
Em 2008 foi publicado (32) o resultado duma auditoria efectuada no âmbito do
estudo piloto CARMAGUE, onde consta que apesar da maioria dos laboratórios usar
a troponina (T ou I) como principal biomarcador de necrose miocárdica, não
detêm frequentemente protocolos de actuação, e os limites de decisão utilizados
são bastante variáveis (em 39% dos casos usavam o valor com cv 10% e em 35% dos
casos, o percentil 99; os restantes 26% usavam outros valores cutoff
perfeitamente arbitrários). Não há razão para que isto se continue a verificar,
uma vez que estudos recentes (33) corroboraram a hipótese que o percentil 99
deve ser o único valor cutoff usado. No entanto, nada obsta a que o valor
absoluto deste percentil seja diferente conforme a população estudada.
5.4 - Interferência com doseamento
Reconhecem-se, hoje, vários parâmetros que podem influenciar os resultados
laboratoriais quando se trata do doseamento da TpI. Por uma questão didáctica,
far-se-á uma exposição em separado, conforme se tratem de factores pré-
analíticos, analíticos ou pós-analíticos.
Os erros pré-analíticos abrangem desde a simples identificação errada dos tubos
de colheita, com subsequente troca de amostras, e o manuseio inadequado do
sangue, até situações mais complexas como aquelas relacionadas com o fabrico do
próprio teste de doseamento. Erros envolvendo o procedimento de diluição da
TpI, encaixam neste último grupo. Tze-Kiong e colegas (34) defenderam que a
diluição com soro fisiológico ou água bi-destilada (usados por vários
fabricantes) pode conduzir à leitura errada dos valores plasmáticos da
troponina I, sendo de preferir o uso de um diluente específico, diluente A da
Access, por ter sido o único que demonstrou ter, simultaneamente, menor risco
de ligação inespecífica dos anticorpos, e o meio iónico mais adequado e com pH
ideal para a ocorrência da interacção anticorpo-antigénio troponínico.
A reacção anticorpo - antigénio troponínico pode ser afectada por vários
factores como a presença de lípidos na amostra, ou de certos fármacos / drogas,
e a ocorrência de hemólise.
Na literatura, foi também descrito que a presença de vestígios de fibrina nas
amostras de sangue, podia conduzir a resultados falsos positivos, e,
recentemente, Carine e colegas (35) propuseram um procedimento com intuito de
prevenir este tipo de erro, através da ultracentrifugação (6700xg durante 5
minutos) das amostras.
Nos últimos anos têm-se vindo a fazer várias alterações nos tubos de colheita
de amostras biológicas, designadamente substituição do vidro por plástico, e a
introdução de gel polimérico e activador de coágulos. Alguns autores (36)
sugeriram que o doseamento da troponina I poderia ser afectado pelo material
dos tubos de colheita (particularmente pela heparina e gel separador). Não
obstante, foi demonstrado que a troponina I, contrariamente à mioglobina e CK-
MB, não éinfluenciada por estes factores.
A procura de testes cada vez mais sensíveis, através da incorporação de maior
nº de anticorpos, condicionou um maior potencial para a interferência com
anticorpos heterofílicos, presentes no soro humano. Foidemonstrado que estes se
podem ligar quer aos anticorpos de captura (aqueles que reagem em primeiro
lugar com a TpIc) quer aos de marcação (aqueles que vão marcar os complexos
anticorpo-TpIc previamente formados), mimetizando a troponina I, através da
formação de complexos anticorpoantigénio artefactuais, e produzindo resultados
errados. Este mecanismo de interferência analítica foi descrito, pela primeira
vez na década de 70 por Prince e colegas (37), a propósito de testes
serológicos da hepatite B, e no ano 2000, Yeo e colegas (38) alertaram para a
sua ocorrência também em testes de doseamento da TpI, concretamente, testes de
2ª geração.
A maioria dos testes comercializados em 2008 era bifaseada, isto é, processava-
se em 2 etapas, usando dois anticorpos dirigidos contra dois epítopos
diferentes da troponina I. Yussheng Zhu e colegas (25) relataram, em 2008, numa
carta ao editor, o primeiro caso de interferência de um teste ultra-sensível
(ADVIA Centaur System da Siemens, denominado Ultra-TnI) por anticorpos
heterofílicos, num doente admitido por pneumonia de aspiração. De facto, os
imunoensaios ditos de ultrasensíveis são trifaseados (incorporando 3 anticorpos
diferentes dirigidos contra certos epítopos da troponina I), e parecem ser
cerca de duas vezes (25) mais propensos à interacção com anticorpos
heterofílicos que os seus congéneres bilaminados.
Ainda relativamente à usurpação dos resultados dos testes da TpI, importa fazer
referência aos doentes em programa regular de hemodiálise, pela potencial
interferência da membrana do dialisador na depuração e consequente doseamento
da troponina I, em circulação. Giuseppe e colegas (39), num estudo caso-
controlo, comparando valores de TpIc antes e após sessão de hemodiálise,
verificaram que havia uma descida estatisticamente significativa, apenas nos
casos em que se usaram membranas de alto fluxo.
5.5 -Consequências do uso de testes ultrasensíveis
As primeiras horas após o início dos sintomas de enfarte do miocárdio, são
cruciais, pela possibilidade de intervenção terapêutica precoce, interessando,
por isso, usar marcadores passíveis de serem detectados em concentrações
mínimas, o mais cedo possível. Porém, com os testes contemporâneos, de 2ª e 3ª
geração, os biomarcadores de subida precoce (mioglobina,isoformas da CK-MB),
clinicamente sensíveis mas não específicos, deixaram de ter utilidade
diagnóstica (20), uma vez que, mesmo nestas circunstâncias, a troponina I
mostrou maior sensibilidade e especificidade.
Com a introdução de testes altamente sensíveis no mercado, temeu-se um
incremento no número de testes solicitados aos laboratórios, e a submissão
abusiva de indivíduos saudáveis a terapêuticasinvasivas. Conquanto,
recentemente, num estudo de Melanson et al. (40), constatou-se um aumento do
número de testes positivos, como seria de esperar, sem acréscimo da quantidade
de testes solicitados.
Acresce ainda, que a par do desenvolvimento de testes altamente sensíveis, os
critérios de diagnóstico de enfarte agudo do miocárdio foram actualizados (ver
abaixo) e estudos recentes mostraram que estes novos critérios são factores
preditivos significativos de mortalidade aos 3 anos (41). Deste modo, o
acréscimo no nº de enfartes diagnosticados não é de todo supérfluo.
Com limites de detecção cada vez mais baixos, os investigadores e clínicos
deparam-se, actualmente, com outro problema - variabilidade inter e
intra-individual, bem como ligações inespecíficas de baixo nível -
factores até agora descurados, por ocorrem abaixo do limite de detecção dos
testes. Ulteriormente, Wu et al. (42) mostraram que a variabilidade intra-
individual (VIntra) em indivíduos saudáveis é pequena quando comparada com a
inter-individual (VInter), e o índice de individualidade (VIntra/VInter)
encontrado foimínimo, sugerindo que para interpretação de valores tão baixos de
TpI, é mais útil fazer doseamentos seriados e monitorizar as alterações da TpI
em cada indivíduo, do que compará-los com os valores duma população de
referência.
5.6 - Breve referência aos testes rápidos
Ultimamente têm sido descritos alguns testes rápidos para doseamento da
troponina I, úteis como primeiro teste de diagnóstico, em contexto de
emergência pré-hospitalar. A título de exemplo, descrevem-se os seguintes:
• Pathfast: Sistema de imunoensaio enzimático por quimioluminescência
altamente sensível, que usa cartuchos descartáveis de reagente, para
utilização única, permitindo medição da TpI, em contexto de
emergência pré-hospitalar. Usa material de referên
cia padrão, o SRM 2921. É um sistema fácil de usar, rápido e sensível, tendo-se
constatado (43) que a sua performance analítica é semelhante à dos testes
laboratoriais convencionais.
• Biosensor EOC: Sistema que combina a quimioluminescência por ELISA com um
detector de imagem equipado com uma câmara CCD, para detecção de sinal
quimioluminométrico, mostrou ter alta sensibilidade, quando comparado com os
testes rápidos convencionais (44).
• I-STAT point-of-care troponin I test, Abbott: teste rápido recentemente
introduzido em alguns hospitais (em contexto de emergência) que mostrou elevado
coeficiente de correlação (r=0,97) com o teste convencional (ARCHITECT STAT
troponin-I), em termos de resultados positivos, mas exibiu menor sensibilidade,
sobretudo para pequenas elevações da troponina I, nas primeiras horas após
enfarte (45).
6 -DETECÇÃO DA TROPONINA I E SIGNIFICADO CLÍNICO
6.1- Libertação, degradação e depuração da troponina I
A libertação da troponina cardíaca para a corrente sanguínea pode dar-se quer
após lesão irreversível dos miocardiócitos (necrose miocárdica) quer após dano
reversível (lesão cardíaca isquémica como na angina instável ou outro tipo de
lesão reversível) por alterações na permeabilidade da membrana celular.
No caso do enfarte do miocárdio, inicialmente (nas primeiras 4h - 6h)
ocorre a libertação de uma pequena quantidade de troponina, que provém do
reservatório citosólico (ver atrás), verificando-se, depois, um pico por volta
das 48h - 72h, correspondendo à troponina do reservatório estrutural, que
começa a ser libertada para o plasma graças à destruição das miofibrilas, quando
da necrose dos miocardiócitos. Seguidamente observa-se uma fase caracterizada
pela presença de valores elevados de troponina, ainda que em evolução
decrescente, que pode persistir por 5 - 10 dias (16, 46).
Noutras situações que não o enfarte do miocárdio, pode suceder uma das
seguintes alterações: uma subida e descida rápidas (em 24h - 48h) da
troponina plasmática (em casos de isquemia do miocárdio, sem enfarte), com um
pico tendencialmente inferior ao que acontece no caso de enfarte, ou então a
presença de valores baixos de troponinemia, razoavelmente constantes ao longo
de algum tempo (doenças cardíacas não isquémicas e patologias não cardíacas,
como especificado abaixo), reflectindo lesão reversível do miocardiócito, somente
com libertação da troponina citosólica.
Tal como explorado anteriormente neste texto, a maior parte da troponina
libertada para o plasma encontra-se sob a forma de complexos moleculares
(maioritariamente TpI-TpC, mas também TpI-TpC-TpT) ou então como produtos
resultantes da sua degradação intra ou extrace
lular (16), sendo libertada na forma livre e intacta apenas numa pequena
percentagem (cerca de 3-10%).
Relativamente à depuração da troponina sabe-se pouco (16), antevendo-se,
contudo, que possa ser eliminada mormente pelo sistema reticuloendotelial,
atendendo às grandes dimensões da molécula/complexos moleculares. Conquanto, os
produtos de degradação da troponina são passíveis de serem excretados por via
renal, embora ainda não tenha sido confirmado por estudos clínicos.
6.1.1Significado clínico de valores detectáveis de troponina I
Já na década de 1990 se vislumbrou que a troponina I, apesar de ser um marcador
específico de mionecrose cardíaca, poderia ser detectada em níveis variáveis
noutras situações que não os síndromes coronários agudos (47), designadamente
em doenças pulmonares, na sépsis, em doenças cardíacas não isquémicas como a
cardiomiopatia dilatada e a insuficiência cardíaca não isquémica, nainsuficiência
renal, nainfecção pelo VIH (vírus da imunodeficiência humana), no
hipotiroidismo, lúpus eritematoso sistémico e em certas doenças musculares e do
sistema nervoso central. Nessa altura especularam quanto à etiologia desta
troponinemia, presumindo que resultasse de necrose miocárdica à escala das
miofibrilas, sem que ocorresse enfarte do miocárdio.
Desde então, vários autores (48, 49, 50) têm vindo a investigar a etiologia da
troponina I detectada em doentes com coronárias angiograficamente normais,
tendo-se descortinado, um pouco melhor, a vastidão de patologias e mecanismos
patofisiológicos potencialmente conducentes à lesão miocárdica que subjaz à
libertação de pequenas quantidades de TpI para o plasma.
Por uma questão didáctica e servindo-me da estruturação efectuada por Mahajan
et al. (49), podemos organizar as causas de troponinemia, na ausência de
síndromes coronários agudos (ou mais correctamente, na ausência de doença
coronária angiograficamente significativa), em cinco grandes grupos, conforme
especificado abaixo:
1.Lesão directa dos miocardiócitos:
Pode ocorrer lesão directa dos miocardiócitos em situações de
inflamação do miocárdio (51) (sobretudo na miocardite, mas também
pericardite), estimulação eléctrica excessiva do coração
(electrocussão, descargas do CDI (cardiodesfibrilador implantável),
desfibrilação ou cardioversão eléctrica, ablação auriculoventricular),
lesão mecânica directa (como a que acontece no contexto de cirurgia
valvular ou cirurgia de revascularização coronária, ou em caso de
contusão do miocárdio) ou agressão química, como acontece com o uso
de quimioterapia cardiotóxica (particularmente das antraciclinas).
2. Diminuição no fornecimento de oxigénio:
O espasmo das artérias coronárias é uma causa importante de
troponinemia, potencialmente fatal (morte súbita cardíaca), que cursa
com isquemia transitória dos miocardiócitos por vasoconstrição
secundária à hiper-estimulação α-adrenérgica (49, 50,52). Uma outra
causa (menos frequente) de vasoconstrição coronária transitória
relaciona-se com uma variação anatómica da descendente anterior, que
faz parte do seu trajecto dentro do miocárdio, e, portanto, é
comprimida por este durante a sístole.
As situações de choque (49), quer pela hipotensão arterialquer pela
taquicardia, condicionam diminuição da perfusão coronária, e o seu
tratamento, usando vasopressores, pode contribuir, também, para a
lesão dos miocardiócitos, pela hiper-estimulação α-adrenérgica (ver
acima).
A anemia, por diminuição do aporte de oxigénio ao tecido cardíaco,
pode causar mionecrose e originar troponinemia, sobretudo nos idosos.
As hemorragias, pela diminuição do volume de sangue circulante e pela
anemia, também comprometem o fornecimento de oxigénio e nutrientes ao
miocárdio.
Os estados de hipercoagulabilidade (como nas doenças auto-imunes e
neoplásicas) podem cursar com micro-oclusão vascular e micro-
enfartes. De igual modo, em casos de dissecção das coronárias ou da
artéria aorta, o fluxo coronário fica comprometido, podendo resultar em
lesão miocárdica hipóxica.
3. Aumento das necessidades de oxigénio:
A hipertrofia ventricular esquerda, por aumento da massa miocárdica,
implica um aumento no consumo de oxigénio e nutrientes, podendo
ocasionar lesão miocárdica caso essas necessidades não sejam
satisfeitas.
A taquicardia, supra-ventricular (53) ou ventricular, pode lesar os
miocardiócitos pelo efeito conjunto do aumento do consumo de O2aliado
à diminuição da perfusão coronária pela redução do tempo de diástole
(49,52,54).
Vários autores (49,52,54,55) verificaram níveis detectáveis de
troponina I em doentes com insuficiência cardíaca (IC) crónica
estável, reflectindo, provavelmente, uma perda progressiva de
miocardiócitos viáveis, por isquemia/necrose subendocárdica ou
apoptoseinduzida pelo estiramento miocárdico (56, 57, 58) (definido
como a alteração percentual da estrutura do miocárdio após aplicação
de tensão, relativamente ao seu comprimento inicial (59)) ou por
citocinas tóxicas (56), elevadas no contexto da IC. A tensão sobre a
parede ventricular, resultante de pressões tele-diastólicas elevadas,
parece induzir a entrada de cálcio nos miocardiócitos, com activação
subsequente das µ-calpaínas, produzindo proteólise da troponina I
(60), independentemente da ocorrência ou não de isquemia, com
libertação dos seus fragmentos para o plasma. Todavia, também já foi
demonstrado, experimentalmente, que os miocardiócitos respondem ao
estiramento através das integrinas (receptores transmembranares
glicoproteicos), com libertação da troponina I na formaintacta (61).
Um outro mecanismo que pode contribuir para o aumento da troponina
plasmática em doentes com IC é a estimulação simpática e do sistema
renina-angiotensina (50).
No caso da embolia pulmonar aguda, qualquer que seja a extensão, o
aumento súbito de pressão ao nível do ventrículo direito, implica um
aumento marcado no consumo de O2 e nutrientes, podendo causar lesão
miocárdica nesse contexto (49), agravada pela hipoxia resultante do
desequilíbrio entre a ventilação e a perfusão. Além disso, é provável
que a isquemia subendocárdica e a tensão mecânicaintramuralcausadas
pelo aumento da pós-carga ao nível do ventrículo direito (62),
contribuam, também, para a libertação da troponina cardíaca para o
plasma.
Outra entidade que se pode acompanhar de troponinemia é a hipertensão
arterial (49,50,56), sobretudo se associada a hipertrofia ventricular
esquerda e proteinúria, reflectindo, provavelmente, lesão miocárdica
subsequente ao estiramento da parede ventricular. Do mesmo modo, a
detecção de troponina I plasmática pós pericardiocentese descrita por
Nunes et al. (63) pode dever-se ao estiramento da parede ventricular,
subsequente ao aumento súbito do raio ventricular e, de acordo com a
lei de Laplace, da tensão sobre a parede ventricular, pós drenagem do
líquido pericárdico.
A doença cardíaca valvular, particularmente da válvula aórtica
(estenose ou regurgitação), implica um aumento no consumo de O2 pelo
miocárdio (maior tensão na parede), agravado por uma limitação
importante do fluxo coronário, com lesão miocárdica subsequente.
As situações de hiper-estimulação simpática (hemorragia
subaracnoideia, acidente vascular cerebral, feocromocitoma, consumo
de drogas simpaticomiméticas como a cocaína), por desequilíbrio ao
nível do sistema nervoso autónomo (49,50), causam lesão miocárdica
por vasoconstrição α-adrenérgica.
4.Diminuição do fornecimento de oxigénio a par de um aumento na sua
necessidade:
A sépsis (16,49,50,56) é o paradigma da condição que conjuga um
aumento do consumo de O2 por parte do miocárdio (pelo estado
inflamatório agudo, por exemplo) com uma diminuição no seu
fornecimento (pelas alterações hemodinâmicas associadas, pela hipoxia
e pela formação de trombos microvasculares decorrentes do estado pró-
trombótico). Pensa-se que a lesão miocárdica neste caso possa
resultar também de lesão directa pelas toxinas bacterianas
(particularmente do Streptococcus pneumoniae(16)) e pelas citocinas
inflamatórias. As taquiarritmias (49,50), referidas acima, também
obrigam a um aumento do consumo de O2 por parte do miocárdio, ao
mesmo tempo que diminuem a sua perfusão, pelo inerente encurtamento
da diástole, principal fase do ciclo cardíaco em que ocorre perfusão
do miocárdio. A hipertrofia ventricular esquerda por aumento da massa
miocárdica obriga a um aumento no consumo de O2, comprometendo, além
disso, a perfusão miocárdica através da redução da reserva do fluxo
coronário, subsequente à necessária remodelação coronária, e
conduzindo àisquemia subendocárdica, e à libertação da troponina
(50).
O exercício físico extremo ou de resistência (16,50) pode levar a
aumentos significativos da troponina plasmática, não só pelo aumento
do consumo do O2 por parte do miocárdio, como também por uma
potencialdiminuição da perfusão coronária por vasospasmo induzido
pelas catecolaminas endógenas libertadas quando do exercício.
5.Outras causas:
Nas doenças infiltrativas do miocárdio (como a amiloidose e a
sarcoidose) pode ocorrer lesão da célula muscular cardíaca por
compressão directa (graças à acumulação extracelular de material),
estimulando a libertação da Tp (16,49,50).
A cetoacidose diabética, também pode lesar os miocardiócitos, por
agressão metabólica (metabolismo anaeróbio) directa.
Os níveis mais elevados de Tp em doentes com insuficiência renal
crónica (49,50,56) podem dever-se a uma diminuição na sua excreção
(pensa-se que o principal mecanismo de eliminação da troponina seja
pelo sistema reticuloendotelial, dadas as grandes dimensões da
molécula; contudojá foidescrito que a troponina T se pode fragmentar
em pequenas moléculas passíveis de serem eliminadas via renal).
Conquanto, o aumento da massa ventricular esquerda e a ocorrência de
pequenas áreas de necrose miocárdica à escala das miofibrilas, podem
contribuir também para essas elevações da troponina. Uma outra
explicação possível é a ocorrência de "inflamação" do
músculo cardíaco por agressão directa das toxinas urémicas (16,51).
Alguns autores (64) encontraram, ainda, níveis elevados de troponina
I em certos doentes com cirrose hepática, mostrando uma associação
significativa com a diminuição do índice do volume de ejecção e da
massa ventricular esquerda, mas não com a gravidade da cirrose.
Outros autores, estudaram doentes com rabdomiólise, e verificaram que
a troponina cardíaca se encontra muitas vezes elevada nesses doentes,
mas que esse aumento não se correlaciona com a lesão muscular,
insuficiência renal ou com factores de risco cardiovascular, parecendo
mais provável que resulte da patologia conducente à rabdomiólise,
designadamente a hipotensão arterial, o uso de drogas ilícitas e a
sépsis (51).
Por último, mas não menos importante, não se pode desprezar uma
potencial subida falsa da troponina cardíaca, pela interacção dos
reagentes do teste com anticorpos heterofílicos, tal como exposto
anteriormente, tendo sido já descrita em doentes com artrite
reumatóide (49,54) e exacerbação aguda de DPOC por infecção
respiratória (65). Acresce, ainda, a possibilidade de ocorrerem
resultados falsamente positivos por interferência com a bilirrubina,
e em casos de hemólise (16).
Após esta pequena exposição percebe-se a diversidade de causas e mecanismos
fisiopatológicos subjacentes a pequenas subidas de troponina cardíaca
plasmática. Numa tentativa de uniformização, recentemente, houve (66) quem
sugerisse a criação de uma nova entidade nosológica - Troponinemia
ligeira de origem indeterminada (TLOI) - onde se deveriam incluir todos
aqueles doentes que apesar de apresentarem níveis detectáveis de Tp, não
cumprissem os critérios de diagnóstico de enfarte do miocárdio.
Todavia, a nova definição de enfarte agudo do miocárdio (EAM) trouxe,
seguramente, maior dificuldade na procura de uma interpretação para pequenas
elevações da troponina cardíaca, nomeadamente no que se refere ao chamado
enfarte do miocárdio tipo II (ver abaixo). De facto, muitas doenças em que se
têm vindo a detectar pequenas subidas plasmáticas de Tp, como ainsuficiência
cardíaca, as exacerbações da DPOC, a sépsis, o tromboembolismo pulmonar, a
fibrilação auricular, etc, cursam com hipotensão arterial e/ou hipoxemia, os
mecanismos fisiopatológicos do enfarte do miocárdio tipo II.
Efectivamente, no momento actual, embora aclarada a etiologia de pequenas
elevações de troponina plasmática, a sua abordagem na prática clínica continua
polémica. De facto, Blich et al. verificaram que a grandeza do aumento da
troponina nestas circunstâncias não é discriminativa (52), não se podendo
definir com precisão quem tem ou não síndrome coronário agudo (área abaixo da
curva ROC =0,63). De qualquer forma, alguns estudos mostraram que doentes com
níveis detectáveis de troponina I plasmática, sem síndrome coronário agudo, têm
pior prognóstico que os doentes com enfarte agudo do miocárdio (52),
provavelmente, por carência terapêutica atempada e eficaz, dirigida às
potenciais patologias subjacentes, tal como descrito acima. É, portanto,
crucial identificar sempre que possível essas causas subjacentes.
Um novo conceito introduzido recentemente é o da estratificação do risco
cardiovascular em doentes com subidas mínimas de troponina plasmática (abaixo
do percentil 99), parecendo haver particular interesse no uso da CK-MB e da PCR
(67).
Finalmente, é importante referir que, contrariamente ao que se passa num
contexto de síndrome coronário agudo, não existem ainda ensaios clínicos
randomizados e controlados que permitam avaliar a pertinência da instituição de
terapêuticas (como antiagregantes plaquetários, estatinas, IECAs e bloqueadores
β) visando redução do risco cardiovascular traduzido por estas pequenas
elevações plasmáticas da troponina cardíaca (50).
6.2 -Uso da troponina I como exame auxiliar de diagnóstico
É do conhecimento actual (68,69) que o mecanismo subjacente aos síndromes
coronários agudos (SCA) envolve ruptura e/ou erosão de uma ou várias placas
ateroscleróticas, conduzindo ou não à necrose dos miocardiócitos. De igual
forma, sabe-se que o evento final da necrose miocárdica/disfunção cardíaca passa
por uma série de fases - formação da placa aterosclerótica —› ruptura /
erosão da placa —› trombose arterial —› isquemia —› necrose —› remodelação /
reparação do miocárdio - para as quais existem hoje marcadores
específicos.
Clinicamente interessariam os biomarcadores de isquemia (68) (ex. ischemia
modified albumin, unbound free fatty acids, choline), uma vez que permitiriam
tomar, oportunamente, medidas de prevenção do enfarte do miocárdio. Mas,
problemas relacionados com a instabilidade das moléculas, a imperfeição de
alguns testes e os custos elevados de outros, tornam impraticável, por
enquanto, o seu uso na prática clínica (69).
Assim, os biomarcadores presentemente usados no diagnóstico de doença cardíaca
isquémica são marcadores de necrose miocárdica, e relativamente a estes importa
que identifiquem o mais rapidamente possível o enfarte agudo do miocárdio para a
implementação eficaz duma medicina baseada na evidência.
A troponina cardíaca consiste num marcador específico de lesão dos
miocardiócitos e, graças aos testes de doseamento ultrasensíveis actualmente
disponíveis, dispõe de uma razão sinal/"ruído de fundo" muito alta.
Acresce ainda o facto de ter mostrado elevada sensibilidade e especificidade no
diagnóstico de necrose miocárdica. Graças a estas características, a troponina
cardíaca (I ou T) tornou-se no biomarcador padrão para o diagnóstico do enfarte
do miocárdio (68-70), preterindo a Ck-MB, e mesmo novos marcadores precoces de
necrose miocárdica, como o H-FABP (heart-type fatty acid binding protein) (71).
No caso do enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST
(EMCSST), a troponina serve apenas para confirmar o diagnóstico inicial (porque
na prática clínica as alterações electrocardiográficas não têm especificidade de
100%) (72). De resto é usada, maioritariamente, como factor de prognóstico
(73,74) (extensão do enfarte), tal como será desenvolvido na próxima secção.
Caso não se observe elevação do segmento ST e os doentes apresentem baixo risco
de doença coronária, a troponina é útil sobretudo como marcador de exclusão,
isto é, se vier negativa nas 12 - 14h seguintes ao início dos sintomas é
pouco provável que se trate dum EAM (68). De qualquer forma, o facto de ser
negativa não excluia possibilidade duma estenose coronária hemodinamicamente
significativa, pelo que é forçoso fazer prova de esforço convencional ou
cintigrafia de perfusão do miocárdio. Se, porém, a troponina for positiva, faz-
se o diagnóstico de EAM (ver abaixo), identificando doentes que beneficiarão de
medidas como o uso de heparina de baixo peso molecular, inibidores da
glicoproteína IIb/IIIa e/ou revascularização coronária.
Quando, na ausência de alterações electrocardiográficas (ECG) sugestivas de
isquemia (alterações do ST -T ou bloqueio completo de ramo esquerdo de
novo), a probabilidade pré-teste para enfarte do miocárdio é baixa, a troponina
é amplamente útil como factor de exclusão se vier negativa após duas
determinações (à admissão e 6 - 9h após). Se vier positiva, importa,
sobretudo, analisar a curva dinâmica e a percentagem de variação entre os
diversos doseamentos, antes de fazer o diagnóstico de EAM (68).
Em 2007 foi publicada uma actualização dos critérios de diagnóstico de enfarte
agudo do miocárdio (75) que refere o percentil 99 do limite superior do valor
de referência, preferencialmente, da troponina como condição necessária para o
diagnóstico, mas não suficiente, uma vez que obriga à existência de pelo menos
outro critério (sintomas deisquemia cardíaca, alterações ECG sugestivas
deisquemia, desenvolvimento de ondas Q patológicas no ECG, ou evidência
imagiológica de novode perda de miocárdio viável ou alterações da motilidade da
parede). Um novo conceito trazido por esta redefinição é o da classificação do
EAM mediante a causa da isquemia. De facto, a necrose miocárdica nem sempre
resulta de isquemia decorrente da ruptura de placas ateroscleróticas e oclusão
coronária subsequente (EAM tipo I), podendo advir dum desequilíbrio entre o
fornecimento / consumo de O2 e nutrientes (anemia, hipo ou hipertensão
arterial, arritmia, vasoconstrição ou espasmo arterial), o chamado EAM tipo II.
Além disso, uma subida da Tp (se 3x o limite superior do valor de referência)
apósintervenção coronária percutânea é, presentemente, diagnóstica do EAM tipo
IV, e após cirurgia de revascularização coronária (se subida de 5x acima do
limite superior do valor de referência), do EAM tipo V.
O EAM tipo III distingue-se dos outros tipos por não depender da troponina
cardíaca. De facto, designa-se assim quando o indivíduo morre subitamente antes
de ter sido possível colher sangue para doseamento dos marcadores bioquímicos
de lesão miocárdica ou de ter decorrido o tempo necessário para que fossem
detectados no plasma, mas em que previamente se tenham documentado sintomas
isquémicos ou alterações electrocardiográficas sugestivas, ou então, haja
evidência angiográfica ou necropsica de oclusão coronária.
Atendendo à cinética quer da troponina I quer da troponina T plasmáticas, que
podem permanecer em circulação durante 5 e 10 dias, respectivamente, o
diagnóstico de re-enfarte pode ser um desafio. Na mais recente redefinição de
EAM, os autores (75) sugerem o uso duma percentagem de 20% no aumento da
troponina relativamente ao valor prévio para se considerar re-enfarte.
Outro desafio diagnóstico potencial é a identificação de um síndrome coronário
agudo na presença de outras doenças (cardíacas ou não) que possam contribuir
também para a elevação da troponina I plasmática, à luz do que se discutiu no
ponto 6.1. Na situação particular da insuficiência renal crónica, os doentes
apresentam frequentemente (em percentagens á volta dos 53%) níveis
persistentemente elevados (mas estáveis) de troponina plasmática, tendo sido
sugerido o uso de um valor cutoff mais alto nestes doentes, para diagnóstico de
enfarte agudo do miocárdio (76). Até porque, mesmo nestas circunstâncias, a
troponina I mostrou ter maior sensibilidade e especificidade que a CK-MB (77).
Por tudo isto, importa lembrar que a troponina cardíaca (I ou T) é um marcador
necessário para o diagnóstico de enfarte do miocárdio, mas não suficiente.
Como nota final, importa esclarecer que, no caso particular da troponina I,
nenhum dos testes actualmente presentes no mercado, cumpre os critérios do
consenso (75, 78, 79) da ACC/ESC (em termos de precisão) para diagnóstico de
enfarte agudo do miocárdio, uma vez que apresentam coeficientes de variação
superiores a 10% para valores equivalentes ao percentil 99 duma população de
referência. Todavia, com o Architect STAT da Abbott, a TpI mostrou ter
sensibilidade, especificidade e valor preditivo negativo elevados, no contexto
de enfarte agudo do miocárdio, sobressaindo relativamente aos seus congéneres.
6.3 - Uso da troponina I como factor de prognóstico
6.3.1- No contexto de síndromes coronários agudos e doença cardíaca isquémica
estável
Tal como referido acima relativamente ao diagnóstico de enfarte agudo do
miocárdio, o prognóstico de doentes com síndromes coronários agudos depende
sobretudo da troponina, preterindo os antigos marcadores bioquímicos de necrose
miocárdica. De facto, Newby e colegas (80) mostraram que, em doentes com EAM
sem supradesnivelamento do segmento ST, um valor elevado de troponina cardíaca
se associava a um elevado risco de morte intra-hospitalar, independentemente do
valor da Ck-MB.
De uma forma geral, a literatura é razoavelmente condizente quanto ao valor
prognóstico da troponina I em doentes com síndromes coronários agudos, quer em
termos de risco de eventos cardiovasculares quer em termos de mortalidade.
Dokainish et al. (81) num subestudo do TIMI-18 demonstraram que as elevações da
TpI em doentes com síndromes coronários agudos se associavam a maior risco de
morte e re-enfarte, mesmo naqueles doentes sem doença coronária significativa. E
num estudo recente (82), Eggers et al. mostraram que uma troponina I
persistentemente elevada (> 0,01 ng/ml) após síndromes coronários agudos
identificava um grupo de doentes com elevado risco cardiovascular,
caracterizados por uma doença coronária mais grave e complexa, bem como por
maior disfunção ventricular esquerda.
No caso particular do enfarte agudo com supra-desnivelamento do segmento ST
alguns autores (83) mostraram que níveis elevados de troponina I à admissão se
correlacionavam de forma significativa e independente com o risco de falência da
trombólise e mortalidade aos 30 dias, podendo reflectir a presença de um trombo
mais resistente à fibrinólise ou à angioplastia coronária primária, não se
podendo excluir uma maior disfunção ou lesão microvascular, que pudessem
contribuir secundariamente para uma falência da trombólise e aumento da
mortalidade a curto prazo. Outros autores, porém, verificaram que os
biomarcadores bioquímicos à admissão tinham poucoimpacto na predição de eventos
cardiovasculares a longo prazo (84), e que a troponina I poderia ter interesse
prognóstico, apenas se medida às 42h após o evento (85), sendo nesse caso um
marcador preciso da extensão do enfarte (à semelhança da Ck-MB máxima) e um
indicador da presença de obstrução microvascular.
Relativamente aos restantes síndromes coronários agudos, os estudos são um
pouco mais conformes, embora versem mormente no impacto prognóstico a curto
prazo. Há mais de uma década atrás Antman et al. (86) constataram que o aumento
da troponina I no contexto de enfarte do miocárdio (então designado por enfarte
sem ondas Q) ou angina instável identificava um grupo de doentes com elevado
risco cardiovascular, predizendo a mortalidade aos 42 dias após o evento.
Posteriormente, Agewall et al. (87) demonstraram que níveis detectáveis de TpI
(ainda que abaixo do valor considerado cutoff para diagnóstico de enfarte agudo
do miocárdio), em doentes admitidos numa unidade coronária, prediziam
significativamente a mortalidade aos 40 dias. Finalmente, no estudo de Apple et
al. (22) referido anteriormente neste texto, foi demonstrado que pequenas
subidas de TpIc tinham implicações prognósticas, tendo-se documentado um maior
risco de eventos adversos no grupo de doentes que tinham TpIc detectável (ainda
que abaixo do percentil 99), em comparação com aqueles com valores
indetectáveis.
Quando da revascularização coronária, quer cirúrgica quer percutânea, ocorre
sempre libertação de pequenas quantidades de troponina cardíaca, mesmo que o
procedimento decorra conforme protocolado e na ausência de enfarte do miocárdio
tipo IV ou tipo V. Esta troponinemia relacionada com a intervenção coronária
pode ser usada peri-procedimento para elucidar acerca da agressão miocárdica
concomitante. De facto, Onorati (88) mostrou que a TpI in tra-operatória podia
permitir a quantificação do grau de lesão miocárdica, ainda melhor que o
lactado, usado até então como marcador metabólico da perfusão coronária. Para
obviar o problema da pequena amplitude na elevação da troponina I, o grupo de
Burnetti (89) criou um novo marcador - a razão entre a troponina I máxima
e a troponina I basal - tendo-se verificado que valores elevados desta
razão (> 1) prediziam significativamente a ocorrência de eventos
cardiovasculares adversos major, 6 meses após o procedimento, mesmo após ajuste
para idade, sexo, factores de risco cardiovasculares, tipo de síndrome
coronário e troponina I máxima.
Não obstante, e à semelhança do que passa com os síndromes coronários agudos,
as pequenas elevações da troponina I relacionadas com os procedimentos de
revascularização coronária, não parecem ter qualquer impacto no prognóstico a
longo prazo (1 ano após), em termos de mortalidade ou ocorrência de eventos
cardiovasculares major (90).
Recentemente, Omland et al. estudaram 3593 doentes com doença coronária
estável, utilizando um um novo método de medição da Troponina T, altamente
sensível (91). As concentrações crescentes de troponina T associaram-se à
incidência de mortalidade cardiovascular e à incidência de insuficiência
cardíaca mas não à incidência de enfarte do miocárdio (91).
6.3.2- No contexto de outras situações patológicas
A par do que acontece nos doentes com síndromes coronários agudos ou com doença
cardíaca isquémica estável, pequenas subidas da TpI também acarretam significado
prognóstico noutros estados patológicos e mesmo em indivíduos ditos saudáveis.
Far-se-á de seguida uma breve revisão do conhecimento actual relativo a este
assunto.
6.3.2.1- Em doentes críticos
A presença de níveis detectáveis de troponina cardíaca (entre 0,4 - 3,6
µg/L) em doentes críticos (sem síndromes coronários agudos) admitidos em
Unidades de cuidados intensivos (UCI) é relativamente frequente (variando entre
15,3% e 25%, conforme os estudos (92)), sobremaneira no contexto de sépsis/SRIS
(síndrome de resposta inflamatória sistémica), trauma, insuficiência respiratória
aguda e choque, tendo sido demonstrado, por diversos autores (51,93,94), que
constitui um factor de mau prognóstico, independentemente da causa.
King et al. (95) verificaram, numa pequena coorte (n = 128) prospectiva de
doentes consecutivamente admitidos numa UCI médica que aqueles que tinham
troponina I positiva (> 0,7 ng/ml) apresentavam maior mortalidade (odds ratio
(OR) = 7,0, p < 0,001) aos 28 dias, maior pontuação no APACHE (Acute Physiology
and Chronic Health Evaluation) II e uma maior taxa de falência multiorgânica e
sépsis. Todavia, quando ajustado para oAPACHE II, a positividade da TpI não
acrescentava valor preditivo para a mortalidade, relativamente àquele fornecido
pelo APACHE II.
Mais recentemente, no estudo de Stein et al. (96) demonstrou-se que
valoresintermédios (0,1-1,49 ng/ml) de TpI (ADVIA Centaur da Bayer, com
limiar de detecção de 0,09 ng/ml), constituíam factor preditivo independente
(tal como o SAPS-II) para a mortalidade intra-hospitalar de doentes críticos
não cirúrgicos.Aexistência de doença coronária prévia não alterou
significativamente o valor da TpI, e os autores especularam que esta subida da
TpI reflectia provavelmente a maior gravidade da condição clínica subjacente. De
facto os doentes com valores intermédios de TpI eram mais velhos e pontuavam
mais no SAPS-II quando comparados com aqueles que tinham TpI < 0,1 ng/ml.
O pior prognóstico dos doentes críticos sem SCA que apresentem troponinemia
detectável pode deverse também a uma maior resposta inflamatória sistémica e /
ou a complicações cardiovasculares. De facto, já Ammann et al. (97), num
pequeno estudo prospectivo, tinham verificado que doentes com valores
detectáveis de troponina tinham maior probabilidade de morrer aos 30 dias,
mostrando menor fracção de ejecção do ventrículo esquerdo (feVE) e níveis mais
elevados de marcadores inflamatórios (TNF-α, IL-6).
Srivathsan et al. (98) estudaram oimpacto cardiovascular de pequenas elevações
da TpI (na presença de CK-MB normal) em indivíduos gravemente doentes
internados, e verificaram que aqueles que possuíam TpI detectável apresentavam
maior taxa de mortalidade e maior risco de enfarte do miocárdio ou re-admissão
hospitalar por motivos cardiovasculares, independentemente do motivo de
internamento inicial.
6.3.2.2- Sépsis
A sépsis e o choque séptico são as principais causas de morbi-mortalidade dos
doentes críticos internados em UCIs médicas, presumivelmente pelas complicações
cardiovasculares inerentes, tal como já explorado previamente neste texto.
Alguns autores (95) mostraram que doentes com sépsis que mostravam valores
positivos de troponina cardíaca tinham tendência a ter uma fracção de ejecção
ventricular esquerda menor, que aqueles com troponina negativa, podendo este
ser um dos factores pelos quais os doentes sépticos com troponina positiva têm
apresentado pior prognóstico que aqueles com troponina negativa.
Em conformidade com o exposto, Mehta et al. (99) constataram que níveis
elevados de TpI em doentes com sépsis ou choque séptico constituíam um marcador
independente de mau prognóstico, predizendo maior gravidade da sépsis bem como
maior mortalidade (56% vs. 24%, p = 0,04), comparativamente com os doentes
negativos para TpI.
6.3.2.3- Endocardite infecciosa
Na literatura encontram-se várias descrições relativas ao aumento da troponina
I plasmática no contexto da endocardite infecciosa, mas ainda se sabe pouco
quanto às implicações prognósticas da detecção desse biomarcador neste tipo
particular de doentes.
Recentemente, Purcell et al. (100), estudando uma coorte de 83 doentes com
endocarditeinfecciosa, demonstraram que aqueles que possuíam níveis elevados de
TpI, tinham maior tendência a desenvolver disfunção sistólica do ventrículo
esquerdo e insuficiência renal, bem como uma maior prevalência de complicações
por formação de abcessos. Nesta sequência, especulou-se que o aumento da TpI em
doentes com endocardite infecciosa podia servir como um marcador de infecção
mais grave, envolvendo o próprio miocárdio.
6.3.2.4.- Tromboembolismo pulmonar (TEP) agudo
Tal como analisado previamente neste texto, é frequente encontrar pequenas
elevações da troponina I plasmática em doentes com TEP agudo, tendo sido já
descrito um aumento da mortalidade intra-hospitalar em doentes com embolia
pulmonar e níveis elevados de troponina I (101).
Recentemente, Kline et al. (62) comparando 8 potenciais marcadores bioquímicos
de disfunção ventricular direita no âmbito do TEP agudo, demonstraram que, em
doentes com tromboembolismo pulmonar sub-massivo, apenas a troponina I e o BNP
constituem factores de prognóstico significativos, ainda que pouco robustos
(área abaixo da curva ROC de 0,71). Usando os cutoffs de 100 pg/ml e 0,1 ng/ml,
respectivamente para o BNP e TpI, aqueles autores verificaram que níveis
superiores a estes valores prediziam significativamente a hipocinésia
ventricular direita, com discreta supremacia do BNP por também predizer a
mortalidade.
6.3.2.5.- Insuficiência cardíaca congestiva
Horwich et al. (102) verificaram que níveis elevados de troponina I cardíaca em
doentes com IC crónica constituíam um marcador de mau prognóstico. E, mais
recentemente, o grupo de Fonarow (103), numa subanálise do estudo ADHERE,
avaliando a performance de vários marcadores bioquímicos, verificou que níveis
elevados de troponina I (≥ 1,0 ng/ml) e BNP (≥ 840 pg/ ml), em doentes
hospitalizados por IC agudizada, eram factores preditivos independentes de
mortalidade intrahospitalar (OR = 2,09 e 2,41, respectivamente, com p <
0,0001). Importa ainda acrescentar, que o uso de vários marcadores de risco
cardiovascular em simultâneo aumenta significativamente a acuidade na
estratificação do risco cardiovascular de doentes com IC crónica. De facto, numa
coorte de 152 doentes com IC grave, Yin et al. (104) mostraram que aqueles
doentes com três marcadores [troponina I, BNP e proteína C reactiva de alta
sensibilidade (PCRas)]positivos tinham 23,4 vezes maior risco de sofrer eventos
cardiovasculares que aqueles que os tinham negativos, enquanto aqueles que
mostrassem apenas um marcador positivo tinham um risco apenas 2,7 vezes
superior aos negativos.
À semelhança do que se passa com a IC crónica, também na IC aguda foi
demonstrado o valor prognóstico da troponina cardíaca (105). You e
colaboradores (106), no âmbito do estudo EFFECT, investigando a associação
entre a troponina I e a mortalidade global (independentemente da causa),
verificaram que a troponina I se correlacionava linearmente com a mortalidade, e
que um valor superior a 0,5 µg/L era factor preditivo independente de
mortalidade (Hazard Ratio (HR) = 1,49 com Intervalo de Confiança a 95% (IC95%)
1,25 - 1,77).
6.3.2.6- Hemorragia subaracnoideia
A hemorragia subaracnoideia (HSA) aneurismática associa-se a uma série de
complicações cardíacas (particularmente alterações da motilidade da parede),
ainda que transitórias, pensando-se que o principal mecanismo seja uma descarga
catecolaminérgica quando da ruptura do aneurisma, com subsequente lesão
miocárdica.
Naidech et al. (107) investigaram a troponina I como método de rastreio de
complicações cardiopulmonares em doentes com HSA. Para isso, estudaram uma
coorte de 441 doentes com HSA, procedendo a doseamentos seriados da troponina I
naqueles que apresentassem alterações electrocardiográficas (prolongamento do
QT, ondas Q, alterações do segmento ST ou inversão das ondas T) ou clínica
sugestiva de disfunção cardíaca (hipotensão ou hipertensão arterial, edema
agudo do pulmão, disritmias cardíacas ou dor torácica). Verificaram que os
valores máximos de TpI eram factores preditivos de risco elevado de hipotensão
severa (com necessidade de tratamento vasopressor), edema pulmonar, disfunção
sistólica do ventrículo esquerdo (VE) e isquemia cerebral prolongada por
vasospasmo. Além disso, a TpI máxima também mostrou uma associação significativa
com risco elevado de morte ou incapacidade severa à data da alta. Todavia, este
efeito perdia significância aos 3 meses após alta hospitalar.
Tanabe et al. (108) estudaram prospectivamente 103 doentes com HSA tendo
constatado que aqueles que apresentavam valores elevados de troponina I (≥ 1,0
ng/ml) exibiam lesões neurológicas mais graves, tinham tempos de internamento
em UCI mais longos, e mostravam maior disfunção cardíaca sistólica e
diastólica, bem como um maior grau de congestão pulmonar. E mesmo naqueles
doentes com pequenas elevações de TpI ( 0,1 - 1,0 ng/ml) verificaram um
aumento significativo de disfunção ventricular diastólica e congestão pulmonar.
Não obstante, estas alterações eram transitórias resolvendo em 5 a 10 dias após
a HSA. De forma similar, o grupo de Sandhu (109), usando uma coorte mais
heterogénea (acidente vascular cerebral isquémico, hemorragia intracerebral e
hemorragia subaracnoideia) mostrou que os doentes com HSA e níveis elevados de
TpI (≥ 0,4ng/ml) tinham uma mortalidade intra-hospitalar 3,6 vezes maior que
aqueles com TpI normal (< 0,4 ng/ml).
A troponina cardíaca parece, portanto, ser um marcador significativo do
prognóstico intra-hospitalar de doentes com HSA, faltando estudar qual o seu
impacto em termos de prognóstico a longo prazo, bem como a exequibilidade da
implementação de uma estratégia de estratificação de risco cardiovascular usando
a TpI.
6.3.2.7- Estenose aórtica
Em doentes com estenose aórtica (EA), a existência de disfunção sistólica do
ventrículo esquerdo (VE) e insuficiência cardíaca prediz um mau prognóstico,
incluindo o eventual insucesso após cirurgia de substituição valvular (110).
Nunes et al. (58) estudaram 25 doentes com doença valvular aórtica estável,
testemunhando neste grupo, valores médios de troponina I significativamente
superiores àqueles dos indivíduos controlo, e verificaram que pequenos aumentos
na troponina I plasmática se associavam significativamente a uma parede
ventricular esquerda mais espessada e uma pressão arterial pulmonar mais
elevada. Dois anos depois, Kupari et al.(111) tentaram analisar se o doseamento
seriado de troponina I plasmática em doentes com estenose aórtica permitia
identificar a destruição silenciosa dos miocardiócitos que antecede a IC
associada à EA, e notaram que grande parte dos doentes com EA tinham níveis
detectáveis de TpI, e que pelo menos 1/5 tinha níveis elevados (> 14 ng/L),
correlacionando-se significativamente com disfunção sistólica do VE. Face a
estes resultados os autores especularam a utilidade de medições seriadas da TpI
plasmática como marcador de disfunção ventricular, permitindo a implementação
de medidas terapêuticas mais agressivas com o objectivo de prevenir o
desenvolvimento de IC franca.
6.3.2.8-No pós-operatório de cirurgias cardíaca e não cardíaca
É frequente encontrar subidas da troponina plasmática após qualquer cirurgia
cardíaca, reflectindo provavelmente lesão cardíaca peri-operatória. Adabag et
al. (112) estudaram o significado prognóstico da troponina I pós-operatória em
doentes submetidos a cirurgia de revascularização coronária (CRC) (n = 696) ou
substituição valvular (CSV) (n = 490), tendo encontrado um aumento de 40% e 30%
na probabilidade de morrer durante a CRC e CSV, respectivamente, por cada
aumento de 50 ng/ml da troponina I plasmática. Alguns autores (113), estudaram
especificamente uma coorte de mulheres pós-menopausicas, chegando às mesmas
conclusões: níveis elevados de troponina I, no 1º dia pós-operatório, são
preditivos de eventos cardiovasculares major. De forma similar, Nesher et al.
(114) investigaram a correlação entre a troponina T pós cirurgia cardíaca e a
ocorrência de eventos cardiovasculares major (ECM), concluindo que valores de
troponina T superiores a 0,8 µg/L se correlacionavam significativamente com uma
maior frequência de ECM nos 30 dias seguintes à cirurgia cardíaca, em doentes
sem história pré-operatória de enfarte do miocárdio.
Relativamente à cirurgia vascular major (ex. correcção de aneurisma da aorta
abdominal), Bolliger et al. (115) mostraram que o doseamento da troponina I
pós-cirurgia em conjunto com a medição do BNP pré-cirurgia, fornecia informação
prognóstica adicional e significativa em termos de eventos cardiovasculares
major e mortalidade. Por sua vez, Mantha et al. (116) comprovaram a relação
custo-eficácia da implementação de uma estratégia de vigilância intensiva pós-
operatória (com determinações diárias de TpI nos primeiros 4 dias) em doentes
submetidos a cirurgia electiva da aorta abdominal.
6.3.2.9- Insuficiência renal crónica
Os doentes cominsuficiência renalcrónica apresentam frequentemente níveis
detectáveis de troponina, tendo já sido demonstrado que estes constituem um
factor preditivo robusto da mortalidade a médio - prazo (117) naqueles
doentes cominsuficiência renalcrónica estável, sobretudo se associado à proteína
C reactiva (118). Não obstante, o valor prognóstico da troponina deve ser
sempre considerado no contexto da gravidade da insuficiência renal. De facto,
Melloni e colaboradores (119) mostraram que em doentes com SCA sem supra-
desnivelamento do segmento ST, e função renal normal ou com insuficiência renal
ligeira, a mortalidade era baixa independentemente do valor da troponina, mas
naqueles com insuficiência renal moderada, a mortalidade já aumentava
gradualmente conforme o acréscimo da troponina I ou T, e no caso dos doentes
com insuficiência renal grave, apenas a troponina T adicionava valor preditivo
da mortalidade relativamente à severidade da falência renal.
6.3.2.10-No contexto de quimioterapia com antraciclinas
De todos os citostáticos conhecidos as antraciclinas constituem o grupo de
fármacos com maior risco de cardiotoxicidade (120), tendo-se vindo a investigar
qual o melhor método de monitorização cardiovascular a implementar nos doentes
oncológicos sob este tipo de terapêutica.
Horacek et al. (121) pesquisaram a utilidade da troponina cardíaca na
vigilância da toxicidade cardiovascular das antraciclinas, e observaram que
apenas a troponina I era detectável no dia seguinte à primeira e à última
sessão de quimioterapia, mostrando, portanto, superioridade relativamente à
troponina T na detecção precoce da lesão cardíaca induzida por aquela classe de
medicamentos. Os doentes que apresentavam troponina I positiva durante o
tratamento com antraciclinas, sofriam, à posteriori, um decréscimo
significativamente maior na fracção de ejecção do ventrículo esquerdo, quando
comparados com os doentes negativos para esse biomarcador. Perante estes
resultados, os autores admitiram que a troponina I poderia vir a ser usada na
identificação daqueles doentes com maior risco de desenvolver futuramente
cardiomiopatia induzida pelas antraciclinas, permitindo intervenção precoce.
Pelo que aqui se descreveu fica claro que a troponina I além de ser um
importante marcador bioquímico usado no diagnóstico do enfarte agudo do
miocárdio, constitui, de forma similar, um factor de prognóstico bastante
significativo, quer em doentes com síndromes coronários agudos, quer naqueles
com doenças cardíacas não isquémicas ou outros estados patológicos, predizendo
mormente a mortalidade e eventos cardiovasculares major.
Acresce, ainda, um potencial papel imunomodelador da troponina I, podendo
contribuir para a patofisiologia inflamatória das doenças cardiovasculares, com
desestabilização quer do doente quer da placa aterosclerótica.
Efectivamente, no estudo experimental de Göser et al. (122), verificou-se que a
troponina I (mas não a T) induzia uma resposta auto-imune (com produção de
anticorpos anti-TpI) e agravava a extensão de um subsequente enfarte do
miocárdio, bem como a reacção inflamatória e a disfunção ventricular dele
procedentes.
6.3.2.11- Doença pulmonar obstrutiva crónica
A literatura é unânime em revelar que os doentes com doença pulmonar obstrutiva
crónica (DPOC) apresentam frequentemente níveis detectáveis de troponina
cardíaca. Contudo, escasseiam estudos quanto ao significado prognóstico desses
aumentos da troponina no contexto das agudizações da DPOC, tendo-se encontrado
apenas 3 trabalhos, conforme exposto de seguida.
Baillard et al. (123) investigaram a incidência e o valor prognóstico de
elevações da troponina I (TpI) em 71 doentes admitidos em unidades de cuidados
intensivos (UCI) por agudização severa da DPOC, tendo constatado positividade
para TpI (definida como > 0,5ng/ml) em 18%. Os doentes com níveis de TpI
superiores a 0,5 ng/ml, pontuavam mais no SAPS II, tinham PaO2 mais alta à
admissão e apresentavam uma probabilidade de mortalidade intra-hospitalar
significativamente maior (p = 0,002) que os que não tinham troponina detectável.
Harvey et al. (124) estudaram retrospectivamente 235 doentes admitidos no
hospital por agudização da DPOC que tivessem determinação da troponina cardíaca
à admissão, tendo verificado que cerca de 25% apresentavam níveis elevados de
troponina cardíaca, sendo tendencialmente mais velhos, com SatO2 mais baixas,
valores mais baixos de pH e PaCO2 mais elevada à admissão, bem como um tempo de
internamento mais prolongado. Em face dos resultados, os autores postularam que
a detecção da troponina cardíaca em doentes com DPOC agudizada pode reflectir
uma maior gravidade da agudização.
Mais recentemente, Brekke et al. (125), estudando retrospectivamente uma coorte
de 396 doentes admitidos no hospital por agudização da DPOC, verificaram um
discreto mas significativo aumento da mortalidade extrahospitalar naqueles com
níveis elevados de Troponina T (> 0,04 ng/ml).
Martins et al. estudaram 173 doentes com agudizações de DPOC e com medição de
troponina I (126). Cerca de 70% dos casos tinham um valor de troponina I
superior ao percentil 99. A troponina I correlacionou-se com a necessidade de
ventilação não-invasiva, bem como com a sobrevida aos 18 meses.
7 - CONCLUSÕES
As troponinas cardíacas, e em especial a troponina I, são proteínas que
funcionam como marcadores de lesão miocárdica, sendo altamente específicas e
selectivas, e apesar do seu interesse inicial se ter prendido com o diagnóstico
do enfarte agudo do miocárdio, actualmente esse seu papel não é tão linear,
tendo havido mesmo quem sugerisse revisão dos conceitos de enfarte e pseudo-
enfarte do miocárdio. Efectivamente, são muitas as situações em que se pode
detectar troponina no plasma, sendo importante que se mantenha um juízo crítico
em cada circunstância.