Desigualdades Socioeconómicas na Expressão de Sintomas Depressivos
1. Depressão e sintomas depressivos
Importa, inicialmente, descrever com o mais recente consenso a importância
motivacional e a quantificação relevante do que pretendemos estudar.
Assim a depressão1, nos dias que correm, é considerada um problema de saúde
pública global, quer devido à sua, relativamente alta, prevalência ao longo da
vida (variando entre 2 e 15%), quer por estar associada a incapacidade
substancial (1).
Segundo o DSM-IV-TR (2): Os estudos acerca da Perturbação Depressiva Major têm
descrito uma larga amplitude de valores para a proporção da população adulta
com esta perturbação. O risco ao longo da vida para a Perturbação Depressiva
Major em amostras comunitárias tem variado de 10% a 25% para as mulheres e de
5% a 12% para os homens. A prevalência pontual para a perturbação Depressiva
Major em adultos de amostras na comunidade tem variado de 5% a 9% para as
mulheres e de 2% a 3% para os homens. As taxas de prevalência para a
Perturbação Depressiva Major parecem não estar relacionadas com a raça,
educação, nível salarial ou estado civil.
Cotada como a quarta causa de carga associado a doença em 2000, a depressão
será responsável por 4,4% do total de anos de vida de incapacidade ajustados
(DALYs). É também responsável pela maior proporção de carga de doença
atribuível a efeitos de saúde não-fatais, contribuindo para quase 12% do total
de anos vividos com incapacidade em todo o mundo. Sem tratamento, a depressão
tende a assumir um curso crónico, recorrente e a associar-se com o aumento da
incapacidade ao longo do tempo. Existem projecções indicando que, depois da
doença cardíaca, a depressão tornar-se-á na segunda maior causa de carga
associado a doença em 2020 (3-5).
Seja sob a (psicodinâmica) forma de angústia existencial, ou verdadeira
melancolia, seja sob os conceitos mais somáticos e observáveis de perda e de
desespero, desde o seu início que a psicopatologia procura responder ao porquê
do desenvolvimento destes síndromes, sempre descrevendo histórias pessoais e
experiências (sócio-afectivas) características. Neste sentido, tentaremos em
seguida pincelar vários modelos teóricos propostos para a etiologia da
depressão. Cabe-nos clarificar a tendência assumida: embora
fenomenologicamente questionável, falamos de depressão e sintomas depressivos
de forma quase indiferenciada, e recaímos, sobretudo, nos textos,
aparentemente, mais contemporâneos e aceites pela comunidade. Esta opção
revela-se-nos ajustada ao paradigma epistemológico vigente, contudo ressalvamos
a probabilidade de erro, por pretendermos investigar um fenómeno sentido
idiossincraticamente pelo indivíduo, mas passível de ser observado no padrão
social e comunitário onde este se insere.
2. Etiologia da depressão
Os principais modelos etiológicos de explicação da depressão, centram-se no
papel do ambiente familiar e experiências adversas na infância, na história de
depressão ou perturbações ansiosas, nos contributos dos papéis sociais e normas
culturais, nos acontecimentos adversos ao longo da vida, na vulnerabilidade
individual para a depressão e estilos de coping, no suporte social, nos
factores genéticos, nas hormonas gonadais e no funcionamento dos eixos adrenal
e da tiróide e dos principais sistemas de neurotransmissão (6,7).
Assim exposto, parece-nos algo profundamente estudado, mas simultaneamente,
difuso e multifactorial na sua essência. Perante tal natureza, o contributo de
múltiplas é inevitável, e ao mesmo tempo, integrador.
Contudo, cremos existirem particularidades contextuais, que demandam um
primeiro olhar sobre a distribuição deste fenómeno, tal como ele ocorre na
população. Esta é, basicamente, a justificação para a perspectiva
Epidemiológica (do estudo da distribuição, dos factores determinantes e
consequentes), que será adoptada no decorrer deste estudo.
Mas primeiro, a incursão pelos obrigatórios estudos que trouxeram racionalidade
a cada factor individual potencialmente associado nesta etiologia.
Relativamente às experiências adversas na infância, a investigação tem
demonstrado que estas aumentam o risco de desenvolvimento de depressão por
diferentes vias, que incluem: mecanismos biológicos (prolongada desregulação do
eixo hipotalamo-pituitário-adrenal); vulnerabilidade pessoal (baixa auto-
estima, desespero, locus de controlo externo, estratégias de coping pobres);
factores ambientais adversos (falta de suporte social, baixo estatuto social,
dificuldades como a mono-parentalidade ou gravidez não planeada); e a presença
de um episódio depressivo durante a adolescência. As evidências existentes
sugerem que as experiências traumáticas precoces podem ser parcialmente
responsáveis pela preponderância das mulheres na taxa de depressão, uma vez que
estão em maior risco para certos eventos (tais como o abuso sexual) e parecem
ser mais sensíveis aos seus efeitos de pressogénicos (8).
Em relação aos papéis sociais e normas culturais, a identificação de
indivíduos em maior risco de desenvolverem depressão, com base nas variáveis
sócio-demográficas e nos dados recolhidos em diferentes países e grupos
culturais, indica que estes factores contribuem para uma preponderância
feminina nas taxas de depressão.
Certas revisões (9) sugerem que o casamento pode ter efeitos negativos nas
mulheres, possivelmente devido a exigências específicas de género, colocados
pelo casamento e resultando em um número limitado de papeis disponíveis para a
mulher. Razões similares podem explicar porque razão o cuidar de crianças
pequenas está associado com maior risco de depressão nas mulheres (10). Tanto o
trabalho doméstico como o cuidar de crianças reduzem a probabilidade das
mulheres terem empregos remunerados ou que lhes sejam atribuídas
responsabilidades adicionais no caso de estarem empregadas. Mulheres casadas,
cujos empregos não são remunerados, terão que contar com o seu papel de
domésticas para a construção das suas identidades e autoestima, e esse papel
acarreta muitos elementos frustrantes e um, cada vez menor, valor atribuído
pelas sociedades modernas. Por outro lado, mulheres que entram no mercado de
trabalho, deparam-se com discriminações económicas e desigualdades de trabalho
em conjunto com papéis sobrecarregados e conflituais, causados por
responsabilidades primárias relacionadas com a vida doméstica e de cuidado dos
filhos, que concorrem com os papéis profissionais (9). Apesar do facto de se
ter um emprego tender a revelar efeitos psicológicos benéficos, estes efeitos
podem ser reduzidos ou revertidos, onde exista conflito de papéis e sobrecarga
(11). Apesar de tudo o foi escrito, não parecem existir evidências robustas de
que estes mecanismos possam explicar as diferenças de género observadas na
depressão (7). O papel dos acontecimentos de vida adversos no desenvolvimento
de depressão é, sobretudo, mediado pela interacção com a vulnerabilidade
individual, expressa em termos de características de personalidade, estilos
atribucionais ecoping cognitivo. Na revisão das evidências sobre os efeitos
produzidos pelas expectativas e estilos atribucionais na depressão (12),
expectativas de resultados negativos e dedesamparo levam ao desespero
(helplessness and hopelesness), que pode progredir para depressão. A
experiência é moderada por atribuições causais dos eventos, pela avaliação das
suas consequências e pelas inferências sobre oEU que daí surgem. Indivíduos em
risco para a depressão, têm sido caracterizados como tendo globalidade (isto é,
o falhanço está relacionado com factores que se aplicam por uma variedade de
situações), estabilidade (nomeadamente, os factores responsáveis pelo fracasso
são improváveis demudar com o tempo) e internalização (onde o indivíduos e
percepciona como relativamente incompetente). De momento, não existe suporte
suficiente para a noção deque as características cognitivas observadas nas
mulheres, serem mais consistentes com um estilo atribucional depressivo, em
comparação com os homens (12), o que poderia explicar a maior prevalência,
consistentemente observada neste género.
2.1. Perspectivas cognitivo-comportamentais
Segundo as perspectivas cognitivo-comportamentais da depressão, existem dois
construtos tradicionalmente citados como potenciais factores etiológicos da
depressão, o desamparo e a desesperança (helplessness and hopelessness). Neste
contexto, são considerados como factores-traço que elevam a vulnerabilidade da
pessoa para reagir a determinados estímulos ambientais, com depressão (13).
Uma das teorias mais entusiasmantes, surge nos anos 60, e foi estabelecida por
A.T. Beck. Este define a desesperança como a expectativa negativa em relação ao
futuro e o desamparo como as conceptualizações irrealisticamente baixas das
próprias capacidades.
Beck considera esta visão negativa do EU e do futuro como elementos centrais da
tríade cognitiva. A tríade cognitiva consiste nas atitudes negativas
relativamente ao EU, ao futuro e ao ambiente. A hipótese básica na explicação
da depressão, residiria na perturbação cognitiva precedente à alteração
afectiva, sendo responsável pela sua manutenção. Antes do desenvolvimento da
disforia e da depressão, a pessoa afectada fará através de um filtro (uma
interpretação errada da realidade screen, tela) cognitivo negativo (14).
Outro teórico pertinente para as teorias etiológicas da depressão é aprendido
Seligman, que propôs a teoria do desamparo. Segundo esta(observada a partir
de experiências com cães, onde lhes eram administrados choques eléctricos sem
relação com o seu comportamento, dificultando a fugaou o evitamento), seria a
experiência da incontrolabilidade dos eventos e, como consequência, a
expectativa de que nenhuma acção poderia controlar os resultados no futuro, que
conduziria à produção de sintomas de desamparo.
Outra teoria importante comummente referida, é a teoria da desesperança da
depressão, proposta por Abramsone colaboradores. Aqui, o estilo de atribuição
negativo é postulado como factor de risco importante para uma constelação
específica de sintomas depressivos (que de resto, se sobrepõem aos sintomas
para a depressão propostos no DSM-IV).
As teorias referidas, poderão ser consideradas clássicas já que sofreram poucas
reformulações ao longo dos tempos, desde a sua formulação e exploração.
Contudo, outros se têm vindo a dedicar ao fenómeno, propondo diferentes
mecanismos e racionalizações. Passaremos em seguida, a expor algumas destas
ideias, para nós, mais contemporâneas, como o são as ideias da Hierarquia
Social, proveniente de uma perspectiva evolucionária assumida.
2.2. Perspectiva evolucionária
( ) in any assymetrical society there are potentiallymore losers than winers
(15).
Algumas teorias evolucionárias sugeridas para a explicação da depressão
(enquanto desligar do afecto positivo),sugerem que esta perturbação emerge a
partir da activação de estratégias defensivas que evoluíram em períodos pré-
humanos (16). Os nossos cérebros parecem estar programados para desligar o
afecto positivo em contextos de vinculação e afiliação pobres. Adicionalmente,
as pessoas competem por recursos sociais e quando esta competição corre mal
(quando as pessoas pensam que falharam, e/ou que são inferiores, sentem
vergonha e derrota), especialmente em contextos de percepção de ambientes
sociais que não prestam apoio e o esquema construído acerca dos outros é
negativo, a depressão pode ser despoletada. Os stressores sociais, sobre a
forma de ataques sociais, inseguranças sociais e comportamento de elevada
competição, derrotas e falta de relações afiliativas, são fontes chave de
estados depressivos em roedores, macacos e humanos. O desligardefensivo do
afecto positivo nestes contextos, parece fazer parte de um design evoluído de
superação (16).
Existem, portanto várias teorias que consideram ser vantajoso desligar o
afecto positivo e aumentar os sentimentos negativos. A explicação evolucionária
emerge das tentativas de identificação da forma como as características de
situações improfícuas, nas quais o esforço da prossecução dos objectivos pode
resultar em perigo, perda, danificação corporal, ou esforço desperdiçado (17).
Em situações deste tipo, o pessimismo e a falta de motivação pode oferecer uma
vantagem adaptativa, pelo facto de inibir certas acções, especialmente desafios
fúteis ou perigosos contra figuras dominantes, acções sem que um recurso
crucial ou plano viável estejam presentes ou esforços que pudessem danificar o
corpo, por exemplo. Estas teorias podem ser agrupadas em teorias não sociais e
sociais (16).
De entre as teorias não-sociais, destacam-se a teoria de Seligman
anteriormente citada, sobre o desamparo aprendido. Na mesma linha, outros
autores consideram oencurralamento (entrapment) como a base da depressão:
associada à elevada motivação para escapar ao evento aversivo está um
sentimento de encurralamento, sem escape possível, o que despertaria o afecto
negativo, o baixar asarmas (18).
As teorias sociais da depressão admitem, por seu turno, que o controlo
constitui-se numa dimensão saliente do humor, contudo as pessoas não podem
equacionar quais serão os stressores sociais e não-sociais.
Algumas teorias sociais têm-se focado nos reguladores do humor em contexto de
conflito social e na forma como animais subordinados e dominantes regulam os
seus conflitos. Estas têm sido referidas como as teorias de hierarquia social
da depressão onde a subordinação involuntária está altamente relacionada com a
depressão (este modelo foi desenvolvido por Price, que denotou em observações
etológicas precoces, que os estados depressivos ocorrem em animais e humanos
que foram derrotados ou perderam o seu estatuto (rank), e em subordinados que
são regularmente atacados/molestados ou ameaçados por animais mais dominantes,
não podendo escapar. Isto foi igualmente observado através de medidas
fisiológicas de animais subordinados (medidas de cortisol onde se observou que
os subordinados estavam mais stressados e levavam mais tempo a recuperar,
fisiologicamente, comparados com dominantes). Tais dados,revelados a partir do
estudo de perfis de subordinados, podem espelhar trabalhos que demonstram que a
depressãoe o suicídio estão relacionados com o (baixo) estatuto sócioeconómico,
especialmente nos homens (19). As percepções de derrota e inferioridade podem
não estar directamente relacionadas com conflitos sociais interpessoais
(relacionais), mas antes com a percepção de falhanço na capacidade de
competir por recursos (sociais),tais como relações de suporte, sexuais, obter
empregos valorizados ou obter recursos materiais suficientes para reduzir o
stress das dificuldades de vida crónicas, como, por exemplo, a pobreza (16).
Observar a forma como os indivíduos estão espalhados por diferentes grupos
sociais passíveis de serem categorizados segundo uma hierarquia, ainda que
teórica, constituir-se-á no terreno primário ideal para verificar alguma não-
falsicabilidade destas teorias. Verificar se essa distribuição se associa com a
declaração de sinais e sintomas depressivos, segundo metodologias
suficientemente robustas (à luz do paradigma científico actual), que incluem
amostragens fiáveis, construtos e instrumentos válidos, colocará o nosso olhar
numa perspectiva epidemiológica necessária, reforça-se, primeira linha para
discussão e descrição de potenciais medidas interventivas e preventivas. Cabe-
nos então, referir como alguns destes (estudos epidemiológicos) estão
desenhados para avaliar o assunto do presente estudo, que metodologias
consideram adequadas e as evidências que encontram.
3. Estudos epidemiológicos de base populacional
Seguidamente, apresentaremos algumas notas acerca dos conceitos tratados e da
sua utilização em diferentes áreas de investigação. Referimo-nos à ideia de
estratificação social e às principais medidas utilizadas, sobretudo em estudos
de cariz epidemiológico, para quantificar possíveis níveis de estatuto
socioeconómico. Abordamos igualmente os modelos teóricos que uma recente
Epidemiologia Social disponibiliza e apresentamos algumas evidências
específicas, relevantes para o tema em estudo.
3.1. Metodologias utilizadas
As sociedades desenvolvem e mantêm sistemas de estratificação social através de
várias dimensões (20), uma das quais, a estratificação de acordo com as
condições socioeconómicas. Estes sistemas de estratificação determinam, em
parte, que recursos e bens são distribuídos e acumulados ao longo do tempo por
diferentes grupos sociais. Uma distribuição desigual de recursos e bens
sociais, levam a diferentes níveis de vantagens económicas, políticas, sociais
e culturais entre os grupos, o que pode, por sua vez, ser traduzido em
diferenças na saúde.
Não serão aqui descritas de forma aprofundada as principais características
metodológicas que caracterizam os estudos epidemiológicos de base populacional
dedicados à exploração destes determinantes sociais da saúde. Contudo, revela-
se-nos pertinente clarificar alguns conceitos referentes às variáveis
habitualmente utilizadas neste tipo de investigação e às implicações
interpretativas que a descrição destes dados permite.
Existem várias formas de descrever e medir as condições socioeconómicas. Termos
como classe social, estratificação social ou estatuto social ou socioeconómico,
são muitas vezes usados como sinónimos, independentemente das diferentes bases
teóricas de onde provêm, com diferentes interpretações.
Muitos dos conceitos que subjazem à utilização da posição socioeconómica em
investigação epidemiológica, têm a sua origem nos trabalhos de Karl Marx e Max
Weber. De acordo com Marx, a posição socioeconómica seria inteiramente definida
pela classe social e, portanto, um indivíduo seria definido pela sua relação
com os meios de produção.
As classes sociais e as relações entre classes são caracterizadas pelo conflito
inerente entre trabalhadores explorados e os seus patrões exploradores que
controlam os meios de produção. Isto seria uma relação puramente estrutural,
exógena ao indivíduo, e estaria no cerne do sistema capitalista de apropriação
de lucros da produção, o que levaria à exploração e alienação dos trabalhadores
(21).
Em contraste com Marx, Weber sugeriu que a sociedade estaria hierarquicamente
estratificada de acordo com várias dimensões (entre as quais a classe social,
mas não apenas essa linha), que criariam grupos cujos membros partilhavam uma
posição comum com oportunidades de vida similares. Estas oportunidades de
vida seriam activamente criadas pelos indivíduos, através das suas capacidades
para beneficiar das trocas em termos das suas habilidades, atributos e
educação, colocando-os em vantagem no mercado de trabalho. As ideias de Weber
sobre a estratificação social estão por detrás da utilização de múltiplos
indicadores, tais como a escolaridade, ocupação e rendimento, enquanto medidas
destas dimensões. Este autor coloca uma maior ênfase na acção humana passível
de criar activamente oportunidades de vida, enquanto Marx tem uma abordagem
mais estrutural que sublinha a imposição das oportunidades de vida para aqueles
que, acidentalmente (porque já estavam à nascença ou por outro motivo maior),
se encontram em diferentes classes sociais (20).
Aqui, incluímos as abordagens de Marx e Weber para a compreensão da relação
entre circunstâncias socioeconómicas e saúde. De forma breve: as relações
sociais e estruturais entre os grupos de uma sociedade são largamente baseadas
nas circunstâncias materiais determinadas pelas relações que estes grupos
mantêm com os sistemas de produção económica. Grupos vantajosos controlam os
recursos (sejam eles materiais, económicos, políticos, sociais ou culturais) de
uma forma que exclui, domina e explora aqueles em posições menos vantajosas.
Esta relação com a produção económica é um determinante importante de estilos
de vida específicos e comportamentos observados dentro de cada grupo, que se
tornam a identidade da localização de cada grupo na estrutura social. Este
esquema de distribuição desigual e controlo sobre os recursos que pode resultar
em padrões sociais de exposição que, por sua vez, actuam em diferentes etapas
do ciclo de vida, é uma forma útil de compreender de que forma as exposições
resultam em distribuições desiguais de doença em diferentes grupos de uma
sociedade (20).
Pretendemos, portanto, usar o termo posição socioeconómica, referindo-nos aos
factores económicos socialmente derivados que influenciam qual a posição que os
indivíduos ou grupos ocupam numa estrutura de sociedade multi-estratificada.
Em Portugal, importa fazer referência ao ambicioso estudo de Estanque, Mendes e
colaboradores (1998) (21). Baseados e reproduzindo o modelo e métodos usados
por Erik Olin Wright, as classes sociais são definidas em linhas que tentam
alguma conciliação entre os velhos debates de categorização, consolidando-se
numa análise assumidamente neomarxista. Ainda que recorrendo a conceitos
clássicos de exploração e opressão existentes em sociedades capitalistas,
como explicativos das diferenças de classes, os autores, exploram de forma
empírica diferentes construtos das classes sociais portuguesas, revendo os
estudos sociológicos anteriormente feitos em Portugal e usando a metodologia
(que permitiu posterior comparação) proposta por Wright e adoptada em vários
países do mundo. Assim, após avaliarem 1101 participantes, da população activa
(entre os 18 e os 70 anos de idade) de todo o país em 1995, sobre várias
características que permitem a sua estruturação em estratos socioeconómicos (de
entre as quais se contam as variáveis preponderantes da situação profissional,
escolaridade e rendimentos), os autores concluem que a sociedade portuguesa,
assim perspectivada, parece confirmar o pressuposto marxista de que a posse da
propriedade privada dos meios de produção, bem como de poder e autoridade (de
que dispõem, por um lado, os detentores do capital e, por outro, os detentores
de recursos e qualificações escassas), ou seja, a posição de classe tem
implicações directas no acesso aos recursos e privilégios distribuídos na
sociedade. Seja através da extracção de mais-valia na esfera produtiva, seja
pelo acesso a oportunidades de vida diferenciadas que a dinâmica do mercado
ajuda a estruturar, o bem-estar de uns tem como consequência a exploração e
exclusão de outros (21). Esta aplicação afigura-se-nos como pertinente ao
presente estudo: não teria sentido perspectivar num prisma epidemiológico uma
comparação entre grupos, se nada indicasse que essa estratificação fosse válida
para a sua definição2. Mas resta a operacionalização e consequente associação
com o indicador de saúde mental que nos importa.
Não se afigura como útil ou teoricamente enriquecedor, procura do melhor
indicador de posição socioeconómica. Cada indicador enfatizará um aspecto
particular da estratificação social, que pode ser mais ou menos relevante para
diferentes medidas, neste caso, de saúde, e em diferentes fases do ciclo de
vida. Por outro lado, a maioria dos indicadores de posição socioeconómica
estão, a diferentes níveis, correlacionados uns com os outros, pois todos medem
aspectos da estratificação socioeconómica subjacente (20).
Tentamos seguidamente fazer uma breve descrição dos principais indicadores
utilizados e o que habitualmente descrevem.
A Educação, é frequentemente utilizada como indicador genérico da posição
socioeconómica em estudos epidemiológicos e pensa-se poder captar os recursos
relativos ao conhecimento dos indivíduos. Na perspectiva do curso de vida, a
educação mede a transição da posição socioeconómica da infância (medida de
acordo com a escolaridade dos pais) para aquela que será a do indivíduo. O
nível escolaridade de um indivíduo, capta os aspectos das oportunidades sociais
para a educação, as escolhas dos pais e os constrangimentos passíveis de
influenciar as circunstâncias socioeconómicas dos seus filhos, uma vez que a
educação será um forte determinante do futuro emprego e rendimentos do
indivíduo (20).
A ocupação, por seu turno, é largamente usada, sobretudo no Reino Unido, onde
vários esquemas conceptuais de criação de grupos profissionais foram criados,
para captar diferentes aspectos inerentes às ocupações. Exemplosdestes esquemas
são o Registrar General's Social Classes (baseado no prestígio das ocupações,
definindo 6 grupos hirarquicamente organizados), o Erikson and Goldthorpe class
Schema (baseado nas características relacionais dos empregos, tais como os
acordos contratuais, grau de independência das funções, delegação de
autoridade, etc, não sendo definida nenhuma hierarquia clara, apesar de
permitir correspondência com classificações hierárquicas), Wright's Social
Class Scheme (baseado no principio Marxista da relação com os meios de produção
' anteriormente citada pela sua utilização no estudo português de Estanque e
colaboradores), entre outras existentes (20).
Os rendimentos e a riqueza são os indicadores que mais directamente medem as
circunstâncias materiais. Apesar da posse de dinheiro, por si só, não parecer
afectar directamente a maioria dos estados de saúde. Contudo, a forma como o
dinheiro e os recursos são usados para fornecer ambientes promotores de saúde
(profissionais e residenciais), permitir o consumo de comodidades que melhoram
a saúde (alimentação, exercício) e facilitar o acesso a serviços de saúde, tem
um importante efeito na saúde. Na investigação em saúde, o rendimento é
interpretado como influenciando a saúde, primariamente, através do efeito
directo nos recursos materiais que influenciam factores mais proximais na
cadeia causal, tal como os comportamentos. Contudo, a associação entre
rendimentos e a saúde pode dever-se a causalidade inversa, em que as pessoas
com pior saúde poderão sofrer perdas de rendimento, o que parece ter algum
suporte proveniente de estudos descrevendo as desigualdades observadas em
doentes do foro mental (25,26).
A utilização de indicadores de posição socioeconómica ao nível da área é feita,
sobretudo, quando o objecto de análise não é o indivíduo, mas a posição
socioeconómica de uma área geográfica. Esta abordagem torna-se particularmente
útil para a avaliação da distribuição geográfica das desigualdades
socioeconómicas e para as políticas de saúde e fornecimento de serviços de
saúde específicos para diferentes locais. Ao tomar-se o local enquanto unidade
de análise, permite-se a descrição e consideração das pessoas que lá habitam, a
sua história, classe, a acumulação de capital do local e todos os factores que
podem influenciar a saúde. De igual forma, estes indicadores ao nível da área
têm sido usados para determinar, especificamente, o efeito que as
circunstâncias socioeconómicas da área têm na saúde mental, para além da
posição socioeconómica individual. Este é o caso de muitos estudos feitos nos
EUA (26) e noutros locais, onde se encontram pequenas contribuições
independentes das características dos bairros afectando a saúde dos
indivíduos, e seus comportamentos de saúde.
Será pertinente referir quais os principais mecanismos explicativos adiantados
pelas teorias oriundas duma recente Epidemiologia Social, na procura das causas
que sustentam as referidas desigualdades observadas ao nível dos grupos sociais
considerados. Fazemos, em seguida, uma breve incursão pelos modelos culturais e
comportamentais,psico-social, materialista e a abordagem do curso de vida.
3.2. Modelos etiológicos da Epidemiologia Social
De acordo com uma explicação directamente comportamental, suportada por várias
pesquisas no campo das desigualdades em saúde, estas existem, supostamente,
porque as pessoas com menor controlo sobre as suas circunstâncias laborais, com
menor estatuto e rendimentos, detêm reduzidas ou piores características
pessoais de determinado tipo. Implicitamente, estas características podem ser
lidas como versões de inteligência, estilos de coping ou resiliência
pessoal. As pessoas com baixos níveis destes atributos não foram bem sucedidas
o suficiente no seu percurso escolar de forma a adquirirem melhores empregos
que os levariam a outras vantagens. Outra assumpção tomada por estes modelos
explicativos encontra-se na premissa que as pessoas com menos dinheiro e
estatuto não conseguem decifrar as mensagens de educação para a saúde lançadas
pelos governos e pelos profissionais de saúde, ou não têm a auto-disciplina
para obedecer a estas recomendações (27).
As pessoas em desvantagem social podem também ser pensadas como tendo menor
auto-controlo (ou locus de controlo externo), ou podem ter uma perspectiva do
tempo reduzida que os levará a não perceber as consequências a longo prazo para
a saúde daquilo que lhes dá prazer a curto-prazo.
Muitos estudos realizados (28), demonstram que a escolaridade relaciona-se
fortemente com os comportamentos de saúde. Pessoas com maior escolaridade,
maiores qualificações, são as que têm melhores dietas, fumam menos e que
praticam mais exercício físico, na grande maioria dos estudos. Isto leva alguns
autores a considerar uma explicação comportamental/cultural para os
comportamentos: para as pessoas nas classes sociais mais vantajosas a
educação e a saúde são consideradas prioridades e é-lhes dada maior
importância.
Outro conceito que a investigação recente no campo da psicologia e neurologia
veio introduzir na tentativa de completar a explicação das desigualdades em
saúde e a relação encontrada entre a educação e os comportamentos, diz respeito
à auto-regulação. O preenchimento dos papéis sociais centrais (de
trabalhador, membro de uma família, cidadão activo) será responsável pela auto-
regulação pessoal (29). A auto-regulação incorpora a noção de feedback
positivo para o indivíduo em relação à sua aceitação e estima dentro do seu
contexto social imediato e pela sociedade, de uma forma mais abrangente. A
auto-regulação criaria um contacto estável entre o indivíduo e a sociedade que
lhe fornece sinais dos comportamentos desejáveis, recompensando acções
valorizadas. Estes sinais positivos parecem influenciar certos químicos
presentes no funcionamento cerebral. Na ausência destes, são experimentadas
tensões, que podem ser, até certo ponto, aliviadas com o recurso a substâncias,
como açucares e alimentos ricos em hidratos de carbono, álcool, nicotina e
certas drogas pesadas.
Quando um individuo é privado do acesso a papéis sociais centrais, (como
acontece quando um relação íntima termina ou se perde o emprego), é removida do
indivíduo uma fonte de auto-regulação (29). Esta análise poderia continuar,
investigando-se a forma como a posição socioeconómica e suas circunstâncias
estão relacionadas com o risco de tais eventos adversos. Pessoas em classes
menos vantajosas estão, por definição, em empregos menos seguros. Não seria
surpresa esperar que estas pessoas em classes menos vantajosas, sejam mais
propensas a fumar ou a ter dietas menos saudáveis. É sabido que casais com
baixos rendimentos ou vivendo com rendimentos sociais, estão mais propensos a
experimentar separação e divórcio, colocando-os em risco para esta perda de
papel social.
Uma versão recente e sofisticada da teoria comportamental/cultural emergiu na
sequência de um estudo comparativo das inequidades em saúde de nações Europeias
(27). O estudo foca-se nas diferenças encontradas para a prevalência de certos
tipos de comportamentos de risco para a saúde. Para surpresa de muitos, esta
comparação internacional encontrou inequidades semelhantes ou maiores
(dependendo da idade) entre as classes sociais, em relação à mortalidade em
nações Nórdicas, ricas e igualitárias, tais como a Noruega e Suécia, comparadas
com aquelas encontradas em Itália, Irlanda e Portugal. Para além disso, as
desigualdades na mortalidade encontradas durante os anos 80, eram maiores na
Suécia do que no Reino Unido para homens entre os 30 e os 44 anos de idade mas
não eram diferentes para homens entre os 45 e os 59 anos de idade. Esperava-se,
portanto, que os países com políticas mais igualitárias do ponto de vista
sócio-económico, tivessem reduções substanciais e duradouras em termos das
inequidades em saúde. No entanto, os dados comparativos não o suportam. Parecem
existirem factores culturais, que têm sido ignorados pela investigação, e que
podem estar na explicação de tais diferenças (27).
Um destes aspectos culturais que poderá trazer alguma luz a este puzzle, diz
respeito à dieta das populações. Nas nações do sul da Europa, com desigualdades
relativamente grandes em termos dos rendimentos das pessoas mas bons
indicadores de saúde, a dieta seguida pela maioria das pessoas é saudável. E
ter uma dieta saudável nestes locais não se trata de nenhum tipo de estilo de
vida especial. Comer fruta, saladas e azeite não é visto como nenhum tipo de
escolha de estilo de vida e portanto, não está associado a nenhuma vantagem ou
desvantagem social. De forma semelhante, nas nações onde existe um nível geral
de consumo de álcool mais baixo, as desigualdades nas mortes relacionadas com
álcool eram baixas (27).
A maioria dos estudos que investigam as iniquidades em saúde, procurando as
suas causas, incluem medidas de comportamentos como as anteriormente citadas.
No entanto, estes comportamentos de saúde, não explicam todas as diferenças
sociais encontradas.
Os estudos Whitehall3 realizados no Reino Unido, comparam a saúde e o risco
de mortalidade dos funcionários públicos de Londres em diferentes posições de
emprego. A função pública britânica, segue uma organização hierárquica e
considera-se que o nível (ou posto) no emprego, se constitui numa medida
relativamente precisa do prestígio, do rendimento e das relações no emprego. Os
padrões observados de comportamentos relacionados com saúde nestes estudos,
diferiam bastante, mas tais diferenças apenas explicavam cerca de um quarto das
diferenças no risco de morte, num período de sete anos (27).
Para além destes estudos indicarem que se deve olhar para outros factores que
não o fumar, a dieta e o exercício praticado, na explicação das diferenças em
saúde entre os grupos sociais mais e menos avantajados, estas diferenças
parecem ser demasiado grandes para serem explicadas apenas por factores
puramente materiais. Uma alternativa tomada e amplamente investigada diz
respeito aos modelos de risco psico-social, que defendem a inclusão de factores
psico-sociais na explicação das diferenças entre grupos sociais. Estes factores
incluem o suporte social, o controlo e autonomia no trabalho, o balanço entre o
lar e o trabalho e o balanço entre os esforços e as recompensas.
Outra razão apontada para a inclusão de outras variáveis para além das
materiais, reside no facto de se observar sistematicamente, de estudo para
estudo, de país para país, uma gradação constante dos grupos superiores na
hierarquia para os inferiores e não um grupo de pessoas muito pobres numa das
extremidades com má saúde e todos os restantes grupos com boa saúde.
As respostas clássicas de fuga ou luta a ameaças externas, comuns a animais e
humanos, estão por detrás de uma linha de investigação que incluímos nestes
modelos psico-sociais de explicação das desigualdades.
O corpo recebe mensagens de alarme provenientes do cérebro que podem ser
pensadas como activando um de dois circuitos de resposta: o simpático-
adrenomedular e o hipotálamo-pituitário-adrenocortical. Ambos os circuitos
envolvem a glândula adrenal, localizada próxima dos rins. O circuito
adrenomedular envolve uma estrutura dentro da medula adrenal, uma das camadas
internas da glândula, enquanto o circuito cortical envolve a camada exterior
do córtex.
É talvez o circuito simpático-adrenomedular aquele que se encontra mais próximo
das ideias populares que existem sobre as resposta de fuga ou luta. Esta
reacção envolve o sistema nervoso simpático que, balanceando com o sistema
nervoso parasimpático, é responsável por muito daquilo que se passa no corpo,
de uma forma rotineira, sem que exista consciência do seu funcionamento. Eles
governam a velocidade dos batimentos cardíacos, a resposta a mudanças na
temperatura exterior e o pH (acidez) do sangue, por exemplo. A estimulação
nervosa simpática, liberta adrenalina da medula adrenal e, ao mesmo tempo, as
próprias terminações dos nervos simpáticos libertam noradrenalina. Isto
estimula a libertação de fibrinogénio para a corrente sanguínea, uma substância
que facilita a coagulação do sangue. Ao mesmo tempo, a frequência cardíaca e a
pressão sanguínea aumentam, e os capilares estreitam. Isto preveniria a perda
sanguínea no caso de um ferimento, mas também tem o efeito de aumentar a
pressão sanguínea (27).
No passado evolucionário do homem, à actividade violenta seguir-se-ia a
activação da resposta de luta ou fuga. A adrenalina permanece no sangue apenas
por alguns minutos. A actividade física vigorosa que se seguiria (lutando ou
fugindo) queimaria o excesso. Assim que isto terminasse, se a pessoa
sobrevivesse, o sistema nervoso parasimpático rapidamente levaria o corpo a um
estado de funcionamento normal. Contudo, sob condições modernas, sentimentos de
medo ou raiva têm de ser suportados. Os exemplos comumente dados são ficar
preso num engarrafamento automobilístico ou ser maltratado por um superior no
trabalho. Não existem perspectivas de se poderem tomar acções físicas perante
eventos deste tipo. Mesmo quando o escape é possível, é muitas vezes, feito sem
esforço físico.
A exposição a níveis prolongados de stress é considerada, por muitos, como
restabelecendo a pressão sanguínea a níveis cronicamente elevados, o que trará
consequências nefastas (27).
O segundo circuito é o hipotalamo-pituitário-adrenocortical (eixo HPA). Um dos
mais importantes elos nesta cadeia de reacção diz respeito à libertação de
cortisol. As mensagens hormonais viajam do hipotalamo para a glândula
pituitária. Esta, segrega e liberta para a corrente sanguínea uma hormona que
estimula o córtex adrenal, que, por sua vez, faz libertar o cortisol para o
sangue. O cortisol e outras hormonas relacionadas, designadas glucocorticóides,
regulam vários aspectos do metabolismo humano, sob condições normais. Para a
presente explicação, a acção mais importante diz respeito ao aumento da energia
que podemos dispensar pela mobilização de açucares e gorduras na corrente
sanguínea. Se a situação stressante resultar em a ctividade violenta, estas
gorduras e açucares serão queimadas como terá sido no nosso passado
evolucionário. Mas no engarrafamento de trânsito, isto não acontecerá.
Como consequência, em pessoas susceptíveis, as gorduras e açucares acumular-se-
ão no sangue criando substâncias que tornarão os vasos sanguíneos mais
estreitos. O fibrinogénio presente, contribuirá para uma eventual criação de
pequenoscoágulos que poderão entupir os vasos sanguíneos, levando a ataque
cardíaco (27).
Pensa-se que os glucocorticóides também afectarão directamente o humor. Existe
uma doença rara, chamada Síndrome de Cushing, em que o corpo produz demasiado
cortisol e os doentes experimentam profundos sentimentos de ameaça e depressão,
independentemente dos seus ambientes sociais. Isto levou com que alguns
investigadores procurassem e encontrassem relações entre a depressão e
posteriores doenças cardíacas. Muitos estudos têm demonstrado que as pessoas em
grupos sociais menos vantajosos têm maior pressão sanguínea e maior
fibrinogénio (29).
A investigação até à data realizada, que tenta usar factores psico-sociais nas
suas explicações das desigualdades observadas em saúde, têm utilizado medidas
provenientes de três grandes esferas da vida: o lar, o local de trabalho e a
comunidade.
O suporte social é talvez o factor mais classicamente estudado, enquanto causa
social da doença. É muitas vezes acoplado a outros factores de stress e
interpretado enquanto um factor aliviador (29).
Na maioria dos estudos longitudinais, observa-se que as pessoas que têm boas
relações com membros da sua família e com amigos, e que participam em
actividades comunitárias (como ir à igreja regularmente, por exemplo), têm uma
maior esperança de vida do que aqueles sujeitos mais isolados. Não se trata
apenas de as pessoas mais alegres e sociáveis dizerem que se sentem melhores,
há, de facto, evidência de que isso tem impacto na sua vida e saúde,
melhorando-a. Outros estudos testaram se a combinação de elevadas exigências
sobre o trabalhador com pouco controlo sobre as tarefas levadas a cabo, as
competências utilizadas, ou o ritmo do trabalho, poderiam estar relacionadas
com o risco de doença cardíaca (27). A combinação de elevadas exigências e
pouco controlo sobre a situação de trabalho é também chamada de tensão
laboral (job strain). As reacções a esta tensão laboral, podem, muito bem
incluir alguma variedade das respostas de fuga, luta ou derrota anteriormente
descritas. Contudo, os resultados dos estudos realizados até ao momento com
estas variáveis têm sido inconsistentes, sobretudo devido a questões
metodológicas. Na Alemanha (29), foi desenvolvido o conceito de desiquilíbrio
esforço-recompensa (ERI ' effort-reward imbalance) em relação à saúde. Vários
estudos demonstraram que trabalhadores que experimentam elevados esforços em
combinação com reduzidas recompensas sob a forma de pagamentos, segurança,
aprovação pelos superiores e hipóteses de promoção, tendem a ter maior pressão
sanguínea e fibrinogénio e um tipo sanguíneo gordo mais adverso.
Em termos teóricos, o conceito de ERI pode estar relacionado com os conceitos
de prestígio e estatuto assim como à classe social. A segurança laboral é uma
das maiores formas de recompensa cuja ausência actua como factor de risco no
modelo de Siegrist. Nestes estudos, é mostrado explicitamente queumdos aspectos
mais stressantes acercado desequilíbrio é o sentimento de que a progressão na
carreira não coincide com a quantidade de esforço colocado no trabalho. Não é
tanto o controlo sobre o que se passa no ambiente de trabalho que importa a
esta abordagem, mas antes a falta de reconhecimento dos próprios esforços.
Portanto, o modelo ERI pode ser visto como levando-nos para além do modelo das
respostas de luta ou fuga, para o território do estatuto. As recompensas pelo
trabalho feito quer sob a forma de rendimentos ou promoção, podem ser
significativas para o indivíduo devido ao que permitem que este sinta acerca do
seu lugar na hierarquia social. A questão de qual será mais importante, se os
bens materiais, as relações e condições de emprego ou o estatuto numa
hierarquia social, é importante mas ainda se mantêm por responder na
investigação das desigualdades na saúde.
Outro modelo, o materialista, apesar de ser um dos mais antigos (os primeiro
dados acerca da interpretação materialista para as desigualdades em saúde
datam do primeiro Black Report, no Reino Unido editado em 1980), não existem
muitos estudos realizados. Aqueles que o fazem, usualmente mostram que a saúde
é pior e a esperança de vida inferior, para pessoas que têm, ou para as quais
se pode assumir razoavelmente que tenham, baixos rendimentos.
Um aspecto importante demonstrado por estes estudos é a presença do já
referido, gradiente: por cada ponto menos no rendimento medido
individualmente (ou como rendimento médio de uma área de residência), resulta
um ponto a menos em termos de saúde, desde as categorias mais altas às mais
baixas (31).
A quantidade de dinheiro que alguém ganha numa determinada altura, pode ser
analisada de duas formas. O dinheiro compra coisas, algumas das quais podem ser
importantes para a sua saúde. Mas o dinheiro também funciona como indicador da
posição onde alguém está na estrutura de poder e, com isso, de oportunidades de
vida na sua sociedade. Poderá ser o poder de controlar o que acontece no dia-a-
dia aquilo que se terá de observar com maior atenção. Existem grandes
diferenças nas capacidades que as pessoas possuem estando em diferentes
posições na estrutura social, para evitar uma grande variedade de potenciais
mazelas. Isto varia em coisas como ter de aceitar um emprego perigoso a ter de
viver numa área poluída. E a capacidade para a pessoa se proteger destes
perigos pode surgir de várias formas, desde ter pais que estavam confortáveis
durante a sua juventude até ter uma boa reforma. A resposta para o gradiente
observado pode residir na compreensão de como diferentes combinações destes
tipos de vantagens se arranjam ao longo do curso de vida de um indivíduo (27).
Finalmente, falta-nos referir a abordagem do curso de vida, que surge nos anos
80, à medida que novos estudos longitudinais foram mostrando resultados e novas
ideias foram surgindo. Por muitos dos estudos terem demonstrado um gradiente
fino na saúde dos diferentes grupos socioeconómicos, alguns autores
desenvolveram a ideia da saúde observada na idade adulta dos indivíduos, se
dever a uma complexa combinação de circunstâncias que têm lugar ao longo do
tempo (32). Em vez de se falar em selecção, os investigadores começam a falar
em acumulação de desvantagens. Se as pessoas provenientes de meios sociais
menos privilegiados não têm grande sucesso na sua educação, e se estão menos
equipados para o futuro sucesso social, será que isto deve ser visto apenas
como resultante de características pessoais com as quais nasceram? É
igualmente plausível pensar-se nestes processos como uma tendência para a
desvantagem, incluindo a desvantagem envolvida no facto de se desenvolver
determinado tipo de respostas psicológicas, que se acumulam ao longo do tempo.
Outra mais-valia deste tipo de abordagem reside no facto de considerar mais do
que uma causa ou caminho para as diferenças sociais encontradas em termos de
saúde.
Na sua primeira forma, esta linha de investigação tentou perceber se as
diferenças na saúde entre pessoas pertencentes a diferentes grupos sociais,
poderiam ter sido devidas a algo que acontecera anteriormente nas suas vidas,
tem em conta o seu trajecto de vida. Por exemplo, se as pessoas dos grupos
sociais mais vantajosos têm uma esperança média de vida de 5 anos superior
comparados com pessoas de grupos sociais menos vantajosos, será que isto se
deve ao facto dos dois grupos terem diferentes níveis de escolaridade? A
diferença para as outras abordagens reside no facto de medir de forma efectiva
o curso de vida do sujeito, medindo, por exemplo se os pais dos indivíduos de
grupos mais vantajosos, com mais escolaridade, tinham melhores rendimentos
financeiros que os pais dos sujeitos de grupos menos vantajosos.
Outros investigadores procuram períodos críticos, isto é, se algum evento
adverso ocorre numa determinada idade,o seu efeito na saúde, mais tarde, será
maior. Outros ainda procuram a acumulação de factores adversos, ou até a sua
interacção (alguns eventos só serão adversos a determinados grupos de pessoas
que tiveram uma qualquer exposição no passado que os fizera vulneráveis,
enquanto outros não o serão), ou ainda diferentes vias de desenvolvimento de
vulnerabilidades (27), alguns estudos mostram que mulheres com altos níveis de
educação têm maior risco de desenvolver cancro da mama ' será pouco provável
que a educação cause o cancro, mas antes que a sua vida educacional as tenha
levado a ter filhos mais tarde, se algum, o que, hormonalmente, se relaciona
com o desenvolvimento do cancro da mama).
Outra ideia resultante destes estudos, é a da selecção indirecta. As diferenças
na saúde entre adultos de diferentes grupos sociais seriam devidas a
características psicológicas presentes na infância que tendem a favorecer as
posições sociais mais vantajosas e uma melhor saúde.
No fundo, o que os autores testam, são os efeitos em termos de comportamento
que diferentes grupos têm, e que são benéficos ou não para a saúde. Estes
comportamentos são mais ou menos característicos de determinados tipos de
personalidades. E estes tipos de personalidade, desenvolvem-se mais comummente
em determinados tiposde ambientes sociais (a hipótese seria que uma infância
socialmente desvantajosa leva a uma personalidade que se traduz em
comportamentos que colocam a saúde em risco, contrariamente a personalidades
criadas em ambientes sociais mais ricos que levam a comportamentos mais
saudáveis).
Um dos únicos estudos existentes testando estas hipóteses foi realizado por uma
equipa holandesa. Os autores demonstraram que a desvantagem observada na
infância, relaciona-se com o locus de controlo, neuroticismo, piores
estratégias de coping e outros atributos personalísticos desfavoráveis. Cerca
de metade da relação entre a posição social na infância e a saúde auto-
declarada na adultez, pôde ser explicada pelo facto das pessoas com infâncias
desvantajosas não serem tão boas em termos de coping. Serem mais neuróticas e
mais propensas a não se sentirem com controlo sobre as situações (locus de
controlo externo (33).
Outra investigação importante, foi aquela realizada com os dados de 2600 homens
Finlandeses (32). Aqui, os rendimentos foram usados como medida da posição
socioeconómica. Observaram que os homens que sofreram pobreza na infância e
na idade adulta tinham pior saúde do que aqueles que eram pobres durante a
infância mas mais afluentes na idade adulta (houve mobilidade em termos da
posição socioeconómica).
Da mesma forma, o facto de ter passado por uma infância pobre, só fazia
diferença para aqueles que permaneciam em desvantagem na idade adulta. Isto
leva alguns autores a pensar em factores de risco cumulativos para a saúde dos
adultos, sendo um deles, uma infância desvantajosa e o tempo que esta
desvantagem permanece na vida do indivíduo.
Resta-nos ensaiar uma síntese da evidência encontrada nos mais recentes estudos
publicados, nas revistas científicas disponíveis. Organizamos o ponto seguinte
de acordo com os principais estudos consultados, que incidem sobre o assunto em
estudo, excluídos aqueles cujas características metodológicas, amostrais,
culturais ou linguísticas, foram considerados pouco relevantes. Desta forma,
citamos investigações epidemiológicas de tipo transversal, seguidos dos estudos
longitudinais, meta-análise, para finalizar com referência aos estudos que
evidenciam as desigualdades procuradas ao nível da área, de cariz ecológico
mais marcado, sempre centrados na associação entre factores socioeconómicos e
sintomas depressivos.
3.3. Evidências do gradiente socioeconómico (desigualdades socioeconómicas e
sintomas depressivos)
O modo pelo qual as variáveis sócio-demográficas condicionam a prevalência de
doença mental em cada sexo, aparenta ser de cariz cultural, devendo ser
interpretada sob a luz das idiossincrasias comunitárias (34).
Existem três importantes documentos, que, nos últimos anos, contribuíram para a
renovação da preocupação da saúde mental enquanto problema de saúde pública
global. São eles o Global Burden of Disease, o World Mental Health Report e o
World Health Report de 2001 (35). Para além destes, as World Mental Health
Surveys têm produzido numerosos dados, através da utilização de entrevistas
estandardizadas, acerca da prevalência das perturbações mentais e dos
comportamentos de procura de cuidados em países debaixo e médio baixo
rendimento. As evidências provenientesdestas pesquisas mostram que, apesar das
perturbações mentais serem comuns em todos os países, elas variam
consideravelmente quanto à sua prevalência. Para além dos factores de cariz
metodológico, a explicação mais plausível para estas variações parece ser o
facto dos factores sociais serem grandes determinantes de perturbações mentais
e estes variarem consideravelmente nas várias sociedades.
Como tal, são três os factores de risco-chave, identificados como principais
determinantes sociais das perturbações mentais: 1) A pobreza e exclusão social
- pessoas que vivem em grupos de baixos rendimentos económicos, que são menos
escolarizadas, que enfrentam grandes dificuldades económicas (consequentes, por
exemplo, do desemprego), estão em muito maior risco de sofrer de uma
perturbação mental4; 2) O género influencia o controlo que os homens e as
mulheres têm sobre os seus determinantes de saúde, incluindo a sua posição
económica e estatuto social, acesso a tratamento e recursos na sociedade - um
indicador importante pode ser observado na questão da violência doméstica, que
ocorre em países ricos e pobres5; 3) A perda, o trauma e a deslocação como
consequências da guerra ou de desastres (naturais), também frequentemente
encontrados em países de baixo e médio baixo rendimento, constituem outro
factor de risco para as perturbações mentais (35).
Na generalidade, um baixo estatuto socioeconómico está associado com uma maior
morbilidade psiquiátrica e baixo acesso a cuidados de saúde. De igual forma, os
grupos menos escolarizados da população, têm uma maior prevalência de
perturbação psiquiátrica. Contudo, ainda há alguma controvérsia quando esta
associação procura analisar a depressão, dentro das perturbações psiquiátricas
mais prevalentes em grupos socioeconómicos mais baixos (36).
Para além disso, a grande maioria dos estudos epidemiológicos de referência que
analisam as perturbações psiquiátricas anteriores a 1980, partilham de algumas
limitações comuns: a) muitos destes estudos incluem apenas doentes nas suas
amostras; b) a conceptualização da perturbação psiquiátrica nem sempre é bem
definida, em termos dos critérios de diagnóstico em estudo; c) usam
instrumentos de despiste de sintomas que, muitas vezes, carecem da
especificidade necessária para a correcta avaliação pretendida (37).
Num estudo representativo da população do Reino Unido, onde foi analisada a
relação entre o estatuto sócio-económico (medido através da classificação
profissional e nível educacional), o nível de vida (considerado tendo em conta
o acesso a viatura própria e a casa própria dos participantes) e perturbações
neuróticas (ansiedade e depressão, medidos com a Revised Clinical Interview
Schedule ' CIS-R), tanto nos homens, como nas mulheres que tinham casa própria
(e não arrendada), observou-se uma menor prevalência de perturbações
neuróticas, assim como naqueles de classes sociais superiores (medidas segundo
as suas profissões) e naqueles mais escolarizados. Também verificaram uma
relação linear entre a frequência das perturbações neuróticas e o acesso a
automóvel: a frequência era maior entre as pessoas sem acesso a automóvel,
intermédia para aqueles com acesso a um automóvel e mais baixa para quem tinha
acesso a dois ou mais automóveis (36).
3.3.1. Estudos longitudinais
O estatuto socioeconómico (medido através dos rendimentos) pode reflectir ao
longo do tempo, o bem-estar psicológico das pessoas, como é demonstrado num
estudo prospectivo (29 anos) (38). Estes autores avaliaram 1127 sujeitos com
idades entre os 50 e os 102 anos, em quatro momentos (1965, 1974, 1983 e 1994)
no que concerne aos seus rendimentos e ao bem-estar psicológico ou qualidade de
vida medidos em termos das dimensões propostas por Ryff: Propósito de vida,
Auto-aceitação, Crescimento Pessoal, Mestria ambientale Autonomia. Mais
recentemente, um estudo na Nova Zelândia (39), onde foram utilizadas três vagas
do projecto Neo Zelandês- Survey of Families, Income and Employment (SoFIE), de
2002 a 2004/05 incluindo 15340 participantes, e medida a disrupção
psicológica através da escala Kessler-10,onde mostram que a probabilidade de
sentir alta disrupção psicológica é maior no quintil mais baixo da riqueza6
(OR= 3,06; IC 95%: 2,68-3,50), mantendo-se a significância estatística da
associação mesmo após ajuste para a idade e sexo. Contudo, o ajuste para o
rendimento e para um índice de privação da área, atenuou esta associação (OR=
1,73; IC 95%: 1,48-2,04) apesar de manter a significância estatística, assim
como o ajuste para o estado de saúde de base, dos participantes.
Importa igualmente referir outro estudo longitudinal com 11909 participantes
belgas, (Belgium Household Panel Survey 1992-1999), onde o estatuto
socioeconómico foi medido com recurso ao nível de vida material à
escolaridade, estatuto profissional e relações sociais (40). Também aqui, à
medida que as condições socioeconómicas pioraram ,também as medidas relativas à
depressão se revelaram piores (40).
Por fim, outro estudo longitudinal realizado no Reino Unido, encontrou
resultados inconclusivos para a associação anteriormente referida (41). Com um
intervalo temporal de 18 meses, 2406 participantes foram avaliados com a
Revised Clinical Interview Schedule e divididos em dois grupos consoante o seu
estado de saúde mental de base. Nenhum dos indicadores socioeconómicos
estudados (ocupação classificada segundo o UK Registrar General's
classification; escolaridade; nível de vida medido através do rendimento bruto
do agregado, dos valores de arrendamento e capacidade para pagar as
necessidades diárias), foi significativamente associado com a presença de um
episódio de perturbação mental comum no segundo momento, após ajuste para a
morbilidade psiquiátrica de base. Apesar de não encontrar em associações que
permanecessem fortes no sentido da predição de desenvolvimento de perturbações
mentais para aqueles nos mais desvantajosos níveis socioeconómicos definidos,
ao fazerem uma análise separada pelas perturbações, os autores encontraram uma
associação com a depressão, que permanecia após ajuste para os sintomas
psiquiátricos observados no momento inicial.
3.3.2. Meta-análises
Numa meta-análise (42), que reviu os estudos sobre prevalência, incidência e
persistência de depressão major em amostras da população geral, os autores
observam que sujeitos de grupos socioeconómicos mais baixos7 têm uma
probabilidade de odds para estarem deprimidos de 1,81,comparados com os grupos
de estatuto socioeconómico mais elevado (42).
3.3.3. Estudos geográficos e classificações utilizadas
Há mais de 60 anos, os investigadores da escola de Chicago, Faris e Dunham (43)
examinaram a localizaçãodos bairros de pré-admissão de mais de 30,000 doentes
psiquiátricos tratados nos hospitais públicos e privados de Chicago. Faris e
Dunham encontraram taxas elevadas de esquizofrenia e de abuso de substâncias
nas regiões deterioradas dentro e ao redor do centro da cidade,
independentemente da raça ou nacionalidade dos habitantes dessa região, mas
não encontraram um padrão distinto nos bairros, da distribuição das
perturbações afectivas (incluindo a depressão, mania e perturbação bipolar). Os
autores, argumentaram que a falta de integração social nas comunidades
socialmente desorganizadas ' para além das características de nível individual
e das patologias ' contribuíam para os comportamentos confusos, frustrados e
caóticos que caracterizavam as perturbações mentais. Disseram também que os
residentes em comunidades desorganizadas tinham dificuldades em desenvolver
emanter afiliações positivas com membros familiares, vizinhos e instituições
locais, aumentando assim, o sentimento de isolamento social ' uma variável que
Faris e Dunham afirmaram ser importante para o aparecimento e curso da
perturbação mental. Contudo, os seus dados eram limitados, na medida em que só
tinham acesso a dados agregados, sem controlar as variáveis individuais na
estimativa dos efeitos das condições dos bairros. Contudo, foram pioneiros
nesta análise, estimulando o interesse na relação entre a classe social e as
perturbações mentais, crescendo para o modelo analítico que, actualmente,
domina na sociologiadas perturbações mentais: o modelo do stress social (43).O
modelo do stress social, explica que os eventos devida stressantes e as
dificuldades crónicas de vida, causamdesconforto psicológico e este, por sua
vez, contribui paraproblemas de saúde mental, particularmente entre os
indivíduos que não têm acesso a suporte social adequado, como anteriormente
referido. Apesar do estatuto socioeconómico individual e do estatuto
socioeconómico dos bairros estar correlacionado, as investigações sobre as
áreas residenciais sugerem que as condições sociais dos bairros dos indivíduos,
não podem ser determinadas unicamente pelo seu estatuto socioeconómico.
Perceber os efeitos das condições dos bairros no bemestar psicológico dos
indivíduos é, talvez, mais pertinente na actualidade do que no início do
século, quando Faris e Dunham fizeram o seu trabalho. Antes dos anos 60, os
indivíduos com problemas de saúde mental tinham acesso e eram provavelmente
tratados em instituições totais que os retirava das comunidades. Desde então,
as politicas de desinstitucionalização reduziram significativamente o número de
pessoas que podiam ser admitidas em hospitais psiquiátricos estatais e
regionais, de forma prolongada (sobretudo nos Estados Unidos da América). Como
resultado disso, os indivíduos com problemas de saúde mental residem em
comunidades onde os cuidados psiquiátricos são fornecidos por instituições
baseadas na comunidade de saúde mental (43). Assim, perceber os efeitos que as
condições dos bairros têm, especificamente, no aparecimento, desenvolvimento e
manutenção da depressão, poderá contribuir, não apenas na perspectiva da saúde
pública para a sugestão de uma distribuição dos serviços de saúde mental, mais
correcta (ou ajustada às necessidades efectivas da comunidade), como poderá
adicionar alguns dados à pesquisa (científica) dos factores etiológicos desta
perturbação, numa linha de investigação que se tem vindo a revelar promissora.
Na generalidade, assume-se que viver num meio urbano constitui, por si só, um
factor de risco para o desenvolvimento de perturbação psiquiátrica,
particularmente, para o desenvolvimento de depressão e ansiedade, que são
afectadas pelo stress. No entanto, numa revisão de estudos (44),onde os maiores
estudos epidemiológicos foram analisados, sugere-se a existência de dados
limitados, suportando a ideia de que estas perturbações são mais prevalentes em
meio urbano, comparativamente aos meios rurais. São, sobretudo, outros
factores, que parecem melhor explicar as diferenças na prevalência rural/
urbano, tais como: pobreza, desemprego, sexo, estado civil, baixo estatuto
socioeconómico, problemas relacionados com o consumo de álcool, história de
abuso sexual na infância, rede social pobre, acontecimento traumático nos
últimos 12 meses, tamanho do grupo de suporte primário e percepção deste (44).
As análises intra-urbanas, tipicamente ao nível do bairro, apresentam-se como
uma oportunidade para verificar se algumas características específicas de um
meio urbano estão associadas com estados psicopatológicos. Alguns estudos
recentes, recorrerem a técnicas multinível de análise para testar esta
associação na saúde mental dos indivíduos. Contudo, até à data, os estudos têm
demonstrado resultados inconsistentes. Num estudo prospectivo realizado em Nova
Iorque, após o 11 de Setembro e após classificar os bairros de residência de
acordo com o nível socioeconómico dos habitantes (com recurso aos seus
rendimentos médios), demonstrou que a incidência de depressão (observada
numperíodo de 18 meses, foi de 14,6 por 100 pessoas), estava associada com o
facto de residirem num bairro de baixo estatuto socioeconómico e ser do sexo
feminino (para além da história de PTSD e viver a mais de duas milhas do World
Trade Center em 11 de Setembro de 2001) (45).
No essencial, os autores demonstraram que as odds de incidência de depressão
major, eram maiores para as pessoas que viviam em bairros pobres,
independentemente das suas características individuais. Segundo os mesmos, as
pessoas que viviam em bairros urbanos pobres poderão estar expostos a um maior
número de stressores e ter menor acesso a recursos salutares, quando comparadas
com pessoas que vivem em bairros mais ricos. O mecanismo de explicação
proposto, designado de hipótese da vulnerabilidade diferencial, sugeriria que
indíviduos que vivem em bairros de maior privação, estão mais susceptíveis de
experimentar eventos traumáticos intermitentes e stressores, sendo mais
vulneráveis para estes (como violações, violência, desemprego) (45).
Finalmente, uma revisão efectuada sobre os estudos que procuram os factores
etiológicos relativos aos bairros, associados com a depressão, (46) as
evidências, parecem sugerir que as características negativas dos bairros
(incluíram os estudos que consideraram o estatuto socioeconómico dos bairros,
condições físicas dos edifícios, presença de serviços específicos, capital
social e desordem social), afectam o desenvolvimento de depressão. Contudo,
encontram alguns estudos demonstrando efeitos mistos, nulos e apenas um com
efeitos opostos à direcção esperada dos resultados. Os autores atribuem os
resultados encontrados que não suportam a hipótese esperada (da influência das
características negativas dos bairros no desenvolvimento de depressão), à falta
de representatividade dos estudos entre e dentro das sociedades, ou a falhas
metodológicas, incluindo a falta de controlo para outras exposições ao nível do
bairro e individual, assim como à falta de implementação de abordagens
metodológicas mais rigorosas (46,47).
Conclusão
As sociedades ocidentais actuais enfrentam determinados desafios muito
específicos no que concerne à saúde mental dos seus cidadãos. Para além da
consistente identificação de determinadas perturbações psiquiátricas enquanto
fenómenos muito prevalentes, os resultados das várias descrições
epidemiológicas evidenciam a crescente preocupação com a carga associada à
psicopatologia e incentivam à urgente contextualização e aprofundamento na
procura das causas e determinantes da doença mental, único caminho responsável,
para um correcto planeamento de todos os cuidados e recursos necessários (35).
A existência de desigualdades socioeconómicas na distribuição da doença mental
e das perturbações depressivas em particular, sejam estas desigualdades medidas
a nível individual ou adicionadas do efeito das características ambientais,
mais do que reflectirem causasexternas, parecem afigurar-se num gradiente
conhecido, mas que pode revelar se característico, se ajustado ao contexto
comunitário em que é observado. À parte das vicissitudes metodológicas
apontadas, que dificultam a interpretação das evidências existentes, muito
poucos estudos abordam as desigualdades socioeconómicas de sintomas
depressivos, tendo em conta estes dois níveis de análise: individual e
ambiental.