Hemorragia Intracraniana Grave Secundária a Trombocitopenia Neonatal Aloimune
HPA-3ª
Introdução
A incidência de tombocitopenia no recém-nascido (RN) é de 1-4%, sendo
encontrado mecanismo imunológico em cerca de 0,3% dos RN. Apesar de rara,
atrombocitopenia neonatalalo imune (TNAI) é uma das causas mais frequentes de
trombocitopenia grave e hemorragia intracraniana (HIC) em fetos e RN de termo.2
As plaquetas humanas expressam na sua superfície antigénios do grupo de sangue
ABH, antigénios leucocitários classe I (HLA ' Human Leukocyte Antigen) e
antigénios plaquetários específicos (HPA ' Human Platelet Antigen).3A TNAI é o
equivalente plaquetário da doença hemolíticador N, podendo ocorrer na
primeira gravidez, em mais de 50% dos casos. Ocorre quando as plaquetas
mateRNas não expressam na sua superfície o antigénio plaquetar do feto que foi
herdado do pai. Na mãe existe então formação de anticorpos imunoglobulina g
(IgG ) contra o antigénio estranho das plaquetas fetais que atravessam a
placenta destruindo as plaquetas do feto.1,2Os antigénios plaquetares são
expressos a partir das 16 semanas podendo haver formação de anticorpos e
consequente destruição plaquetária a partir das 16-20 semanas de gestação.4As
plaquetas fetais opsonizadas são depois removidas pelo sistema reticulo-
endotelial.5A TNAI também pode ocorrer por destruição plaquetar por anticorpos
HLA isolados ou em combinação com anticorpos HPA. Os anticorpos HLA, apesar de
comuns, habitualmente não causam trombocitopenia significativa porque também
são absorvidos por outros tecidos, poupando as plaquetas.1
Estão descritos 24 HPA, mas cerca de 95% dos casos de TNAI são devidos a apenas
3 alelos HPA-1a, HPA-5b e HPA-15b. O HPA-1a é o mais frequente nos caucasianos
encontrado em cerca de 80% dos casos.1,2,4,5,6OHPA-3a está descrito em como
sendo responsável por menos de 1% dos casos documentados de TNAI.7Um estudo de
2001, descrevendo as características clínicas de 30 casos HPA-3a, concluiu que
a TNAI associada a este HPA é rara mas clinicamente grave, com 90% casos com
sintomas hemorrágicos e 24% com HIC.7Apesar da maioria dos casos de TNAI não
apresentarem clínica hemorrágica importante, trata-se de um processo
potencialmente grave. A HIC pode representar a complicação mais grave com
incidências descritas de 7-26%, mortalidade até 10% e relatos de até 20% dos
doentes com sequelas neurológicas irreversíveis.6O diagnóstico de TNAI é
sugerido pela existência de trombocitopenia neonatal sem evidência clínica de
outra etiologia (ex: sépsis, doença sistémica).8O diagnóstico laboratorial é
efectuado pela identificação dos aloanticorpos mateRNos contra os HPA pateRNos
ou pela demonstração da incompatibilidade mateRNo fetal. O estudo deve incluir
a detecção e identificação do aloanticorpo plaquetar específico no soro mateRNo
e do genótipo plaquetário de ambos os progenitores e do RN. A realização de uma
prova cruzada entre o soro mateRNo e as plaquetas pateRNas é fundamental para
excluir antigénios de baixa frequência, sobretudo quando se descartam os
aloanticorpos mais comuns.6Os testes devem ser efectuados em laboratórios de
referência com experiência na área.5,6
O tratamento consiste na transfusão de plaquetas HPA compatíveis6,9e
administração de imunoglobulina intravenosa (IGIV).4,9
O prognóstico da TNAI geralmente é favorável com recuperação do número de
plaquetas em 8-10 dias.5Contudo, dois terços dos RN com HIC evoluem para
alterações neurológicas permanentes (paralisia cerebral, hidrocefalia, quistos
porencefálicos e epilepsia).4,5,7
A probabilidade de recorrência de TNAI nas gravidezes seguintes é muito elevada
(superior a 90% na incompatibilidade HPA-1a), mas existe ainda pouco consenso
nas medidas a adoptar. O diagnóstico de trombocitopénia aloimune fetal passa
pela realização de cordocentese, técnica invasiva cujo risco de interrupção da
gravidez é de 1 a 3%. As opções terapêuticas incluem: transfusões de plaquetas
in útero por cordocentese ou administração de IGIV e/ou corticóides à mãe.3
Caso Clínico
RN transferido às 24horas de vida para a Unidadede Cuidados Intensivos
Neonatais (UCIN), por apresentar sufusões hemorrágicas dispersas no contexto de
trombocitopenia (plaquetas <20 000/ul).
Primeiro filho, de pais não consanguíneos, sem doenças de carácter heredo-
familiar. Gestação (G3P2A1) de 38 semanas, vigiada, com serologias do primeiro,
segundo e terceiro trimestre (Treponemapallidum, vírus da Hepatite B e C, vírus
da imuno deficiência humana tipo 1 e 2, Citomegalovírus e Toxoplasma gondii)
negativas. Parto por cesariana com ventosa (noção de
extracçãodíficil).ÍndicedeApgar:10/
10.Parâmetrossomatométricosnopercentil50paraaidadegestacional.
Ao exame objectivo à admissão na UCIN, apresentava-se com os olhos fechados,
hiporreactivo e choro débil, com equimoses dispersas (fronte, palpebra,
pavilhão auricular, tronco e região anterior do tórax à esquerda) e petéquias
generalizadas, incluindo na mucosa oral (Figura_1). Sem adenomegalias,
organomegalias ou outras alterações ao exame objectivo. estava apirético e
hemodinamicamente estável (TA: 74/56 mmHg; MAP 61 mmHg).
Analiticamente, confirmou-se a trombocitopenia (plaquetas estimadas por
esfregaço 6 000/ul). Ddímeros aumentados >4 300 ug/ml. Hemoglobina 14,7g/
dl,leucócitos e fórmula leucocitária, provas de coagulação, proteína C
reactiva, ionograma, ureia e creatinina, bilirrubina total e directa normais.
Iniciou tratamento com IGIV (1g/kg/dose) e efectuou transfusão de concentrado
de plaquetas (CP) isogrupal obtido a partir de aférese (20 ml/kg). O sangue do
RN, do pai e da mãe foi enviado para estudo da trombocitopenia imune em
laboratório de referência.
Após a admissão iniciou episódios de apneias com hipoxémia e bradicardias
repetidas necessitando de ventilação assistida. Iniciou fenobarbital,
ampicilina e gentamicina.
A ecografia transfontanelar revelou hematoma parenquimatoso cortico-
subcortical temporo-occipital direito, com 3,4 cm de maior diâmetro e outros
hematomas parenquimatosos menores, frontais esquerdos.
No segundo dia de internamento repetiu hemograma (plaquetas 149 000/ul) e foi
administrada segunda dose de IGIV (1 g/kg/dose). O electroencefalograma (EEG)
descreve: Actividade epileptiforme multifocal, em frontal direito e fronto-
centrotemporal esquerdo.
Verificou-se melhoria clínica ao longo de todo o internamento, o RN esteve em
ventilação espontânea desde D3. Sem novo registo de trombocitopenia (evolução
da contagem de plaquetas no gráfico_1). Do restante estudo efectuado, as
serologias para parvovírus e citomegalovírus excluíram infecção recente (Igm
negativo), e a pesquisa de citomegalovírus no plama e hemocultura foram
negativas. Neurologicamente apresentou períodos de hipoactividade e hipotonia
axial alternando com períodos de hiperalerta e hipertonia dos membros.
No décimo quinto dia de internamento realizou ressonância magnética Crânio-
encefálica: hematoma cortico-subcortical temporal esquerdo e temporo-parieto-
occipital direito, cortico-subcorticais, com cerca de 3,0 cm, e pequenos
hematomas corticais frontais esquerdos. Deformação do coRNo occipital do
ventrículo lateral e possível envolvimento da radiação óptica à direita
(Figura_2).
No estudo serológico a pesquisa de anticorpos antiplaquetários no plasma da mãe
foi positiva; com identificação da especificidade dos anticorpos anti-HLA
classe I e anti-HPA-3a; o cross match plaquetario entre plaquetas do pai e
plasma da mãe foi positivo (4+). A genotipagem HPA (pai: HPA 1a1a -HPA 3a3b;
mãe:HPA1a1b-HPA3b3b;RN:HPA1a1b-HPA 3a3b) confirmou o diagnóstico de TNAI
causada por anticorpos HLA-3a.
Alta no décimo sexto dia de internamento. Apresentava ao exame objectivo
hipotonia axial ligeira sem outras alterações. medicado com fenobarbital e
orientado para a consulta exteRNa de Neonatologia, medicina Física e
reabilitaçãoe Neuropediatria.
Actualmente com 6 meses, apresenta um síndrome piramidal direito ligeiro e
mantém fenobarbital.
Conclusões
Os autores reportam o presente caso clínico pela gravidade da apresentação com
HIC extensa associada. O diagnóstico de TNAI, suspeito pela trombocitopenia
grave isolada, foi confirmado por estudos serológicos dos anticorpos
plaquetários maternosepelapositividade do crossmatchentre as plaquetas dopai e
o soro da mãe. Neste caso clínico, foram detectados anticorpos HLA e HPA. No
entanto, os anticorpos HLA ligam se a outros tecidos com receptores HLA,
nomeadamente na placenta e por isso usualmente não causam trombocitopenia
significativa,1,3enquanto que os anticorposHPA-3a estão geralmente associados a
trombocitopenias graves.6,7Na TNAI as manifestações clínicas ocorrem, na
maioria dos casos, nos primeiros dias de vida. O quadro clínico é dominado por
petéquias ou equimoses, e habitualmente o RN apresenta bom estado geral. No
entanto, podem ocorrer outras manifestações hemorrágicas como hemorragia
digestiva (30%), HIC (10-20%), hemoptises (8%), hemorragia retiniana (7%) e
hematúria (3%). A complicação mais grave é a HIC, que em 50% dos casos ocorre
in utero, com risco de sequelas neurológicas irreversíveis e de morte.3O
tratamento neonatal, como aconteceu no presente caso clínico deve iniciar-se
perante a mínima suspeita clínica, sobretudos e existem hemorragias major e
trombocitopenia grave.6A transfusão de CP está indicada nos casos graves
(hemorragia ou plaquetas <30000/ul) e, se disponíveis, devem ser transfundidas
plaquetas HPA compatíveis.6Isto não foi possível no presente caso clínico uma
vez que se tratou de uma situação de urgência e não estavam disponíveis no
hospital em tempo útil os meios para afenotipagema largada entredador/receptor.
Contudo o tratamento efectuado manteve contagem de plaquetas>100000/ul durante
todo o internamento.
Não existe consenso acerca do rastreio pré-natal sistemático com fenotipagem
das plaquetas maternas ou obtenção por rotina de contagens plaquetárias fetais.
O custo do rastreio de todos os antigénios plaquetares maternos descarta a
hipótese de um rastreio sistemático. Pelo contrário, a procura apenas do HPA
mais frequente (HPA-1ª nos caucasianos) deixaria escapar outros HPA menos
comuns, alguns dos quais causa dores de doença severa.4 Sabe-se que a
probabilidade de recorrência de TNAI nas gestações seguintes é muito elevada
sobretudo se existir como neste caso HIC associada3,4,7e por isso actualmente
são estes os casos que merecem especial atenção. A recorrência é superior a 90%
na incompatibilidade HPA-1ª, mas não existem dados publicados acerca da
probabilidade de recorrência da incompatibilidade HPA-3ª.3,7 Assim, se o
presente casal desejar ter mais filhos deve ter seguimento apertado durante a
gestação tendo particular atenção para a grande probabilidade de recorrência da
TNAI. As opções vão desde o tratamento cego com IGIV materna que começa pelas
12-20 semanas de gestação, tratamento combinado IGIV e terooides ou transfusão
intra-uterina de plaquetas por cordocentese.3,4O tratamento in teropode reduzir
a incidência de HIC em 25-50% dos casos.7O parto deverá ser por
cesariana.3,4,5,6,7
Torna-se extremamente importante a abordagem multidisciplinar de obstetras,
hematologistas e neonatologistas em próxima gestação para diminuir a
morbimortalidade da TNAI.