Novos Caminhos para a Educação em Saúde
COMENTÁRIO
Novos Caminhos para a Educação em Saúde
Manuel Cardoso de Oliveira1, Filipa Carneiro2
1 Universidade Fernando Pessoa
2 Centro Hospitalar Tâmega-Sousa
Correspondência
A Saúde, como área de enorme complexidade e grande importância social e
política, está sujeita a constantes desafios. Nela as mudanças são
vertiginosas, os conceitos alteram-se a um ritmo impressionante, as
transformações demográficas e epidemiológicas são rápidas, o conhecimento
cresce de um modo exponencial, as doenças crónicas e as populações idosas
aumentam, os desperdícios são relevantes, os custos dos cuidados não param de
subir, a sua integração deve actualizar-se, a necessidade de equipas
multidisciplinares é manifesta e o envolvimento dos doentes e das famílias nos
cuidados de saúde é cada vez maior. Como se tudo isto não bastasse, os
contínuos progressos científicos e tecnológicos criam fragmentações e estas
favorecem o caos. As manifestações de tribalismo nas profissões, por seu lado,
dificultam muitas vezes a implementação de novos tipos organizacionais que
tenham em vista superar o caos.1Acresce que outras condicionantes devem ser
tidas em conta, como as agressões ao ambiente, os problemas nutricionais e os
hábitos de vida desregrados, devendo apostar-se na promoção da Saúde e na
prevenção das doenças. Estas considerações constituíram a introdução a um
trabalho que um de nós publicou recentemente.2
Por todas estas razões são indispensáveis lideranças esclarecidas aos mais
diversos níveis dos sistemas de Saúde, podendo dizer-se que para obter avanços
consideráveis necessitamos de uma revolução. Todas as questões relacionadas com
a liderança estão a crescer a um ritmo tão acelerado que o seu âmbito já foi
comparado à riqueza e variedade de uma floresta tropical, onde os perigos e as
mais-valias se entrelaçam inextrincavelmente3. Sabe-se também que na liderança
dispomos de um excesso de informação que não tem paralelo com a capacidade de a
entender. Assim sendo torna-se indispensável conhecer bem vários aspectos:
conceitos, características, contextos, desafios, capacidades e consequências3.
Serve esta realidade para demonstrar que as perspectivas do ensino na área da
Saúde são de uma enorme exigência apontando a necessidade de novos sistemas de
pensamento, intensa inter e multidisciplinaridade, tipos organizacionais
diferentes, e uma clara aposta na centralização dos cuidados nos doentes e na
indispensabilidade da mudança. Para que os cuidados de Saúde se transformem é
necessário fazer da segurança dos doentes uma prioridade, dadas as suas
implicações no funcionamento global dos sistemas de Saúde. Quando no final do
século XX o Instituto de Medicina revelou números alarmantes relativamente aos
erros em Saúde, logo se manifestaram esforços para melhorar a referida
segurança dos doentes, mas os progressos têm sido frustrantemente lentos. Em
trabalho recente sobre estes assuntos4cinco conceitos principais referidos
pelos autores são a transparência, a integração dos cuidados, um maior
envolvimento dos utentes, a restauração da alegria e do valor significativo do
trabalho e a reforma da educação médica. Necessitamos, efectivamente, de uma
visão estratégica para melhorar a segurança dos doentes criando uma cultura que
permita ultrapassar barreiras. É sabido que as escolas médicas dão escassa
atenção a estas questões conforme recentemente foi referido: Because of the
current lack of emphasis on patients afety education and training, today's
medical schools are producing square pegs for our caresystem's round
holes.5Elas têm de encarar como altas prioridades os conceitos acima referidos
e tratar a segurança dos doentes como uma ciência que aposta na sua melhoria,
engloba o conhecimento e as causas dos erros, as relações destes comos factores
humanos, e a análise e a teoria dos sistemas. Para isso devem alterar
substancialmente os seus planos de estudo, promovendo o desenvolvimento de
novas competências como foi sugerido pelo IOM [provisão de cuidados centrados
nos doentes, aumento da capacidade para trabalhar em equipas
multidisciplinares, recurso a práticas baseadas na evidência (quando possível,
direi eu),aplicação de conceitos para a melhoria da qualidade e utilização da
informática].6Sendo estas competências mais viradas para comportamentos e
aptidões do que para o conhecimento, foi natural que alguns organismos
altamente prestigiados (ACGME e ABMS) promulgassem um outro grupo de
competências, claramente mais abrangente e, por isso, mais recomendável '
medical knowledge, patient care, practice based learning and
improvement,interpersonal and communnicacion skills, professionalism, systems '
based practice. É tal a importância destes novos conceitos que muitos autores e
instituições de enorme prestígio aconselham que este tipo de ensino deva
começar precocemente, aconselhando métodos que se adequem a estas novas
exigências. As estratégias para a mudança obrigam a novos métodos de
acreditação, devendo reconhecer-se que para criar uma massa crítica pode
demorar anos. Inicialmente o conceito de competência centrou-se na resolução de
problemas relativos ao diagnóstico, mas com o crescer das expectativas sociais
sobre os desempenhos dos profissionais da saúde algumas instituições apontaram
novas dimensões para aquele conceito. Não surpreende, por isso, que nestes
últimos anos as competências começassem ater importância crescente nos
processos de acreditação, notandose mesmo muitas sobreposições entre as
diversas propostas apresentadas. É, pois, indispensável que haja nesta área um
esforço de coordenação para que os requisitos de acreditação fora de moda não
sufoquem os educadores que sensatamente apostam na inovação. É claro que
ninguém pode ser considerado competente em determinadas áreas da sua profissão,
e muito menos na globalidade delas, senão forem usadas as ferramentas adequadas
para a sua avaliação.
Por vezes há ideia de que a atribuição de competências pode ser um processo
burocrático inquinado pelos mais diversos enviesamentos, alguns muito pouco
recomendáveis. Será então possível que o ensino na área da Saúde possa ficar
indiferente a este novo mundo de interdependências, globalização e áreas
emergentes cuja importância salientámos? Poderá a Educação em Saúde manter-se
com projectos desactualizados longe das necessidades dos doentes e das
populações? Claro que as respostas são óbvias, pelo que a Educação dos
profissionais de Saúde para o século XXI começou a merecer a atenção destacada
de grupos e instituições internacionais altamente credenciados.7A reforma que
Flexner implementou em 1910 constituiu um valioso contributo para demonstrar o
poder da ciência na transformação da Educação em Saúde. A sua importância fez-
se sentir durante dezenas de anos e espantosamente só em meados do século XX se
começou a falar num ensino baseado na resolução de problemas. E mesmo esta
reforma, cuja pertinência parecia evidente, entre nós tardou em ser
implementada. E assim chegamos a um novo século em que foi necessário repensar
as reformas para revitalizar a educação dos profissionais de Saúde, melhorando
os respectivos sistemas neste nosso mundo crescentemente interdependente.
Estamos, então, a assistir, na área da Educação, à emergência de uma outra
geração de reformas, esta última baseada em conceitos e organizações para
melhorar o desempenho dos sistemas de Saúde, adaptando e/ou criando
competências profissionais de enorme importância para contextos diferentes. As
novas tecnologias têm demonstrado enormes potencialidades para a desejável
transformação do modo de ensinar e de aprender. A maneira diferente de encarar
o mundo e as recentes perspectivas da vida do dia-a-dia criaram uma nova
realidade que necessariamente exige uma interpretação adequada. Quando falamos
numa 3ª geração de reformas na Educação para a Saúde não queremos significar
que nada das anteriores gerações (a de Flexner e a da resolução de problemas)
pode ser aproveitado. Bem pelo contrário, devemos ser todos mobilizados para
uma gestão moderna dos conhecimentos, comprometendo-nos com o raciocínio
crítico e as condutas éticas e assim sermos competentes para participar em
sistemas de Saúde, especialmente voltados para os doentes e para as populações.
Esta visão, como é definido no documento Education of health professionals for
the 21st century: a global independentcommission,7requer uma série de reformas
instrucionais e institucionais que devem ser orientadas por 2 outcomes:
aprendizagem transformativa e interdependência da educação. No fundo temos um
processo global movendo-se do informativo para o formativo e finalmente o
transformativo. O nível informativo tem como finalidade a aquisição de
conhecimentos e de aptidões e a sua finalidade é produzir experts. O nível
formativo tende a concentrar os estudantes ao redor de valores e a sua
finalidade é criar profissionais. E, finalmente, o nível transformativo tem a
intenção de desenvolver atributos de liderança e como finalidade produzir
agentes de mudança, esclarecidos e instruídos para que possam ganhar os
importantes desafios com que se defrontam. Isto é, em linhas gerais, aquilo que
vem consagrado no já referido documento. Nele se reconhece que os níveis estão
interligados e que a aprendizagem transformativa envolve 3 mudanças ' da
memorização dos factos até à pesquisa, análise e síntese de informação para a
tomada de decisões; do procurar competências profissionais essenciais a um
profícuo trabalho de equipa nos sistemas de saúde; da adopção de modelos
educacionais até à adaptação criativa de recursos globais para tratar as
prioridades locais. A aprendizagem transformativa implica pressupostos
diferentes e é caracterizada por influências diversas. Segundo o modelo de
aprendizagem transformativa, o indivíduo cria significados a partir de
estruturas já existentes. Quando reconhecemos a inadequação dos nossos quadros
de referência estamos a introduzir a necessidade de uma aprendizagem
transformativa, o que envolve uma sequência de actividades de aprendizagem
constituída por várias fases. Para o processo de transformação de perspectivas
é muito importante o discurso racional, devendo destacar-se que a auto-reflexão
crítica contribui para a emancipação do conhecimento. Em qualquer processo
educativo, nomeadamente no dirigido especialmente aos adultos, a aprendizagem
transformativa tem uma importância reconhecida mas não pode ser entendida
isoladamente nem significa que consiga só por si trazer a excelência.
Reconhece-se a importância da criação e aplicação do conhecimento médico para
resolver os problemas dos doentes, sendo fundamental organizar planos mais
efectivos e eficientes para a tarefa de criar um melhor sistema de prestação de
cuidados. Como é sabido, um sistema de Saúde integra vários componentes:
conhecimentos, processos, profissionais e organizações, nos quais, nestes
últimos anos, ocorreram importantes alterações, umas resultantes de decisões
deliberadas, outras de acontecimentos fortuitos. A prática clínica é a
operacionalização dos conhecimentos médicos, e a influência destes nos outros
componentes do sistema é muito marcada.8A criação de novos conhecimentos tem,
pois, um papel central nos sistemas operativos. Na área da Saúde cada vez mais
se destaca a existência do conhecimento científico, do organizacional, e do
ligado à experiência individual (este último encarado como tácito).A conversão
do conhecimento tácito para conhecimento explícito ajuda a explicar a relação
entre conhecimento científico, organizacional e experiencial e explica a
conexão dinâmica entre processos iterativos e sequenciais. Nos processos
iterativos aprende-se fazendo, testando múltiplos ciclos de hipóteses, cada
ciclo apoiando-se num ciclo anterior. Em problemas altamente estruturados
empregamos testes pré especificados com clara sequência. Estes conceitos têm
importantes implicações na gestão das unidades de Saúde mas, para que tudo
fique mais complexo num mesmo doente pode ter de recorrer-se a processos
iterativos e sequenciais. Digamos em linguagem simples que os processos
iterativos são da área da arte da medicina, e os sequenciais da ciência da
medicina. Subjacente a todos estes conceitos está a necessidade de
investigação. Não é esta a oportunidade de tratar pormenorizadamente toda a
problemática da investigação em Saúde.
Mas é oportuno lembrar a importância dela quando orientada para o doente bem
como a dirigida para os sectores sócio-profissionais e económicos, devendo as
pessoas mais directamente ligadas à Saúde ter uma participação muito activa
nesses processos. Muitas destas investigações sutilizam ferramentas adoptadas
pela ciência pragmática e têm uma importância social e a organizacional,
esperando-se que as revistas médicas adeqúem os seus níveis de exigência a
estas novas realidades.
Como se salientou no trabalho que foi base importante para a apresentação
destes conceitos2pode dizer 'se que uma nova geração de profissionais vem a
caminho , o que obriga aos indispensáveis ajustamentos na área da Educação. E
voltaremos a citar: as revoluções ocorrem quando os velhos paradigmas se
tornam insustentáveis.