Angioedema hereditário com complemento normal: A importância do estudo genético
na família
CASO CLÍNICO
INTRODUÇÃO
O angioedema hereditário (AEH) é uma doença genética rara que se carateriza por
episódios recorrentes de edema não pruriginoso localizado ao tecido subcutâneo
ou submucoso e que pode estar associado a risco de vida, nomeadamente quando
existe envolvimento das vias aéreas1,2.
Consensos recentes defendem que o AEH deve ser classificado em duas
subcategorias: com base nos níveis e atividade do C1INH: 1‑AEH com complemento
normal (normal C1‑INH); 2‑AEH com défice de C1INH. Sendo esta última categoria
subdividida em défice quantitativo (AEH tipo 1) ou qualitativo (AEH tipo 2) de
C1INH3.
A primeira descrição de AEH com C1 INH normal data de 1986 por Warin et al.4.
Uma das primeiras séries de doentes é apresentada, cerca de 14 anos mais tarde,
em 2000, por Bork K et al.5, e as bases moleculares do AEH com C1 INH normal
são descritas em 2006 por Dewald e Bork6 e por Cichon et al.7.
Várias têm sido, ao longo do tempo, as designações para esta patologia: novo
AEH, AEH tipo 3, AEH estrogenio‑dependente3. Atualmente, defende‑se a
denominação de AEH com C1INH normal, já que o termo tipo 3 não permite uma
distinção clara entre este e o AEH tipos 1 e 2, nem é suficiente classificar os
diferentes subtipos de doentes com AEH com C1INH normal. Para além disto, a
designação estrogenio‑dependente não deve ser utilizada porque, apesar dos
estrogénios poderem ser um fator desencadeante de crises em muitos doentes, tal
não se verifica em todos os doentes com AEH com C1INH normal3.
A maior coortede doentes com AEH com C1INH normal foi relatada por Bork et
al.que, em 2009, descreveu 53 famílias com esta patologia8. Do ponto de vista
clínico, o AEH com C1INH normal carateriza‑se, à semelhança das formas de AEH
com défice de C1INH, por episódios de angioedema recorrentes sem urticária
associada.
O edema pode atingir qualquer órgão ou sistema havendo contudo um envolvimento
da face, língua e vias aéreas, é mais frequentemente descrito do que nos casos
de AEH com défice de C1INH. Por esta razão, o risco de asfixia fatal não deve
ser ignorado9,10.
Os mecanismos fisiopatológicos que estão na base do AEH com C1INH normal não
estão ainda totalmente esclarecidos, embora se pense que a bradicinina seja o
mediador envolvido neste processo3.
Trata‑se de uma patologia autossómica dominante com penetrância incompleta1,3
em que mutações no gene F12 que codifica o fator XII da coagulação (fator de
Ha‑geman), isto é, um fator cuja ativação desencadeia a cascata produtora de
cininas, parecem estar na base das alterações clinico‑patologicas que ocorrem
no AEH com C1INH normal6. Em 2006 foram identificadas duas mutações
missensediferentes associadas ao AEH com C1INH normal. Estas localizam‑se ambas
no exão 9 e no mesmo locus(5q33‑qter) do gene F12 (Online Mendelian Inheritance
in Man#610619), sendo que ambas se traduzem numa substituição aminoacídica ' a
mutação c.1032C> A que origina uma substituição do aminoácido treonina por
lisina (Thr309Lys) e a mutação c.1032C> G que leva a uma substituição do
aminoácido treonina por arginina (Thr309Arg) 6,7,10,11. Não foram encontradas
diferenças nos doentes com as mutações Thr309Lys e Thr309Arg3; no entanto,
enquanto a última mutação é pouco frequente, a primeira surge em cerca de 25%
dos europeus com AEH com C1INH normal3,6. Ambas as mutações parecem ser raras
na população americana3. Uma outra mutação no gene F12 foi recentemente
encontrada numa única família turca com AEH com C1INH normal (deleção 72‑bp '
c.971_1018; 24del72) 11,13.
CASO CLÍNICO
Mulher de 40 anos, natural de Espanha, residente em Faro, com antecedentes de
hipotiroidismo, com uma primeira crise de angioedema facial aos 18 anos, após a
realização de um procedimento estomatológico invasivo.
Aos 27 anos, na sequência da toma de contracetivos orais (CO), apresenta várias
crises recorrentes de AE da face e membros que conduziram à suspensão dos CO
cerca de três meses mais tarde, com resolução das crises.
Aos 30 anos tem uma nova crise de AE facial com urticária associada à toma de
metamizol prescrito por odinofagia. Nesta data, ainda a residir em Espanha,
e‑lhe feito o diagnóstico de hipersensibilidade ao metamizol (tolera ibuprofeno
e paracetamol).
Aos 35 anos, após colocação de anel vaginal, reinicia crises de AE frequentes,
com envolvimento facial e abdominal, pelo que recorre várias vezes à urgência.
Na investigação das crises abdominais fez endoscopia alta e baixa, num único
tempo, e que se complicou de AE facial.
O diagnóstico de AEH com C1 INH normal foi feito em Espanha quando a doente se
encontrava grávida (1.º trimestre da 1.ª gravidez). Foi feito estudo seriado do
complemento, nomeadamente com doseamento de C1 inibidor e avaliação da função
C1 inibidor, que se encontravam os sempre dentro dos limites da normalidade e,
ainda, pesquisa de mutações do gene F12 com identificação de uma mutação
c.1032C> A (Thr328Lys). Esta gravidez decorreu com crises abdominais e faciais.
Concomitantemente, foi feito o estudo genético da mãe da doente que,
aparentemente, tinha história de angioedema facial recorrente nunca investigado
e que confirmou a existência de uma mutação genética idêntica à da filha.
Aos 39 anos, já em Portugal (Faro), no 1.º trimestre da sua segunda gravidez, a
doente desenvolve uma crise de AE facial exuberante com necessidade de
terapêutica com plasma fresco congelado. Foi efetuado plasma fresco, uma vez
que o Hospital de Faro dispunha apenas de icatibant, fármaco que não é
recomendado nem na gravidez nem em crianças. Por controlo clínico incompleto
foi contatado o Hospital de Santa Maria que providenciou o envio de concentrado
de C1 inibidor para administração.
O parto foi eutócico sem intercorrências, tendo a doente feito concentrado de
C1 inibidor antes do parto.
Em 2014 realizou‑se, no Centro do Sangue e da Transplantação de Coimbra, o
estudo genético das duas filhas da doente, ambas do sexo feminino. Após
sequenciação direta do exão 9 do gene F12, foram encontradas duas mutações na
2.ª descendente: uma mutação missense c.1302C> A (Thr328Lys) igual à da sua mãe
e avó e uma mutação frameshiftno gene F12 ainda não descrita e cujas
consequências a nível dos transcritos alternativos do gene F12 não são ainda
conhecidas (Figuras 1 e 2).
A doente tem dois irmãos, homens, sem clínica de angioedema. As sobrinhas da
doente, filhas dum dos irmãos da doente, e sem clínica de angioedema, aguardam
realização de estudo genético em Espanha.
DISCUSSÃO
O AEH com C1INH normal apresenta clínica semelhante ao AEH tipos 1 e 2 apesar
de laboratorialmente se caracterizar por níveis normais de concentrado de C1
inibidor.
Deve‑se suspeitar desta patologia em doentes com angioedema recorrente sem
urticária associada, com história familiar de angioedema recorrente sem fator
desencadeante identificado ou associado a condições associadas a elevados
níveis de estrogénios (gravidez, contracetivos orais, terapêutica hormonal de
substituição). Mutações no gene F12 são as únicas mutações conhecidas, até ao
momento, associadas a esta patologia e que, apesar de estarem presentes apenas
numa minoria dos doentes, confirmam o diagnóstico.
O caso clínico descrito é ilustrativo duma família onde se encontra uma mutação
missensec.1032C> A no gene do F12. Atualmente, defende‑se que devem ser
pesquisadas mutações no gene F12 em indivíduos pertencentes a famílias onde
existem mais do que dois doentes com o diagnóstico de AEH com C1INH normal3,8.
Com base neste pressuposto e, tendo em conta que na família descrita no caso
clínico apresentado existiam dois elementos com o diagnóstico de AEH com C1INH
normal e confirmação genética da existência de mutação c.1032 C> A (a doente e
a sua mãe), procedeu‑se à pesquisa de mutações no gene F12 nas duas
descendentes. Bork et al.(2013) 13 defende que é importante confirmar-se o
diagnóstico de AEH com C1INH normal por três razões: a primeira porque esta
patologia pode associar‑se a crises de angioedema potencialmente fatais (risco
de asfixia); a segunda porque o AEH com mutação no gene F12 é uma doença
autossómica dominante e, como tal, a mutação pode ser transmitida aos
descendentes; e, a terceira, porque a mutação pode estar presente em membros
não afetados de famílias de doentes com AEH com C1INH normal e que, como tal,
estão em risco de desenvolver crises de AE na presença de determinados fatores
desencadeantes de crise, como por exemplo CO, terapêutica hormonal de
substituição, gravidez e toma de inibidores da enzima conversão da angiotensina
(IECA).
Assim, nesta família, a pesquisa de mutações no gene F12 nas descendentes
permite não só identificar o diagnóstico a tempo de desenvolver medidas
terapêuticas preventivas adequadas, nomeadamente profilaxia de crise de
angioedema nos procedimentos medico‑cirurgicos, como também identificar a
necessidade de evicção de terapêutica estrogénica e IECA.
Outro aspeto importante neste caso clínico consiste na identificação de uma
mutação frameshiftno gene F12 que até ao momento ainda não foi descrita e cujas
repercussões, a nível da doença, não são conhecidas. Assim, apesar desta
mutação não se traduzir em termos proteicos, as suas repercussões na doença são
ainda desconhecidas, podendo este trabalho ser o ponto de partida para estudos
futuros.
CONCLUSÃO
A pesquisa de mutações do gene F12 em familiares de doentes com AEH com C1INH
normal com mutação identificada é importante não só para estabelecimento de um
diagnóstico como também para a adoção de medidas preventivas e terapêuticas
adequadas.