Genes, crianças e pediatras
Criança, do sexo masculino, com 14 meses de idade, internado no primeiro ano de
vida por má evolução ponderal e proteinúria nefrótica.
Trata-se de um primeiro filho de um casal jovem, não consanguíneo. Sem doenças
heredofamiliares conhecidas.
Dos antecedentes fisiológicos: gravidez vigiada, sem intercorrências. Parto
distócico por cesariana às 37 semanas de gestação, com índice de Apgar 6/8.
Somatometria ao nascimento adequada à idade gestacional (peso 2610 g, P5;
comprimento 47 cm, P10; perímetro cefálico 34,5 cm, P25). Leite adaptado desde
o nascimento. Realizou rastreio endócrino-metabólico ao quinto dia de vida que
foi normal.
Admitido na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) ao nascimento por gemido,
necessidade de reanimação e edemas acentuados dos membros inferiores.
Ao exame físico: fácies particular com olhos pequenos, micrognatia, aumento da
distância intermamilar e curvatura medial da falange distal do 5º dedo das
mãos. Hipotonia axial marcada (Figura 1).
FIGURA 1
Teve alta da UCI com diagnóstico de síndrome dismorfico em estudo, sepsis
clínica sem atingimento meníngeo. Completou 14 dias de antibiótico endovenoso
(penicilina e gentamicina).
Do estudo realizado: cariotipo 46, XY; amónia, lactato e piruvato sem
alterações; cromatografia dos aminoácidos sericos e urinários sem alterações,
cromatografia dos ácidos orgânicos sem alterações, 7 dehidrocolesterol sem
alterações, ácidos gordos de cadeia muito longa sem alterações, pesquisa de
mutação para síndrome Prader Willi negativa.
Novo internamento aos 4 meses de vida por desnutrição grave, diarreia crónica e
ITU por E.coli. Cumpriu 10 dias de cefuroxime e gentamicina. Ao exame físico
foi constatada má evolução estaturo-ponderal com peso <<P5; comprimento <<P5 e
perímetro cefálico <<P5; assim como atraso do desenvolvimento psico motor.
Analiticamente foi detectada proteinúria nefrótica com função renal conservada
mas com atenuação da diferenciação parenquimosinusal bilateral e
hiperecogenicidade parenquimatosa; cardiomiopatia hipertrofica com derrame
pericárdio de moderado volume; elevação das transaminases, sem colestase e sem
alteração da função de síntese hepática.
Qual o seu diagnóstico?
COMENTÁRIOS
Perante um lactente com síndrome dismorfico e manifestações clínicas
multissistémicas, podemos pensar em várias doenças genéticas. As malformações
múltiplas podem ser decorrentes de cromossomopatias (6,1% dos casos), de
mutações génicas (7,5% dos pacientes), de origem ambiental (6,5%) ou de origem
multifactorial (20%). Perante a suspeita de doença hereditária do metabolismo,
o atingimento sistémico obriga a pensar no diagnóstico de um defeito congénito
da glicosilação (CDG) ou em citopatia mitocondrial.
Os CDG, anteriormente conhecidos como síndrome de glicoproteínas deficientes em
carbohidratos, são um grupo de doenças autossómicas recessivas que afectam a
síntese das glicoproteínas.(1) Estas patologias (com uma frequência estimada
entre 1/50.000 e 1/100.000) são caracterizadas pelo envolvimento neurológico e/
ou multi-orgânico.
Os síndromes CDG estão associados a diferentes deficiências enzimáticas, das
quais a mais comum é a deficiência de fosfomanomutase (correspondendo ao CDG
tipo Ia e que representa 70% dos casos).
O atraso psicomotor é o sinal clínico mais comum.(2) Outros sinais
frequentemente associados de forma variável são: anomalias lipocutâneas (pele
tipo casca de laranja, distribuição anormal da gordura), atrofia olivo-ponto-
cerebelosa, anomalias ósseas, mamilos invertidos, anomalias da coagulação e
citólise/fibrose hepática. Pode surgir estrabismo, proteinúria nefrótica,
hipotonia e distúrbios cerebelares e também cardiomiopatia e derrame
pericárdico.(3)
O rastreio bioquímico é baseado na demonstração de anomalias na glicosilação
das glicoproteínas séricas através da focagem isoelétrica da transferrina
(Figura 2). A determinação das actividades leucocitárias das enzimas
responsáveis e a pesquisa de mutações nos genes correspondentes confirma o
diagnóstico.
FIGURA 2
Nesta criança o perfil de focagem isoeléctrica da transferrina foi compatível
com CDG tipo 1. O diagnóstico foi confirmado pela presença de duas mutações em
heterozigotia (p.R114H; p.D65Y) no gene PMM2, que codifica a enzima
fosfomanomutase, CDG tipo 1 a. Actualmente com 14 meses de idade apresenta
dismorfia já descrita, má evolução estaturo ponderal grave (peso e comprimento
abaixo do percentil 5). Apresenta microcefalia com atraso do desenvolvimento
psicomotor; cardiomiopatia hipertrófica com derrame pericardico de médio
volume; proteinuria nefrotica; elevação das transaminases hepáticas e defeito
funcional de proteínas da coagulação (anti trombina III e proteína C).
Apresenta também alterações inespecíficas da pigmentação da retina, sem
contacto ocular.
A ressonância magnética nuclear revelou atrofia cerebelar (Figura 3).
FIGURA 3
O tratamento farmacológico só é possível para CDG tipo 1b. Nesta criança, pela
presença de diarreia crónica, foi inicialmente instituído tratamento com manose
por se suspeitar de um CDG tipo 1 b. Após o diagnóstico molecular e falta de
resposta clínica a manose foi retirada. O tratamento é essencialmente
sintomático sendo importante a orientação dietética com aumento do aporte
energético total.
Esta criança encontra-se medicada com furosemida; espironolactona; prednisolona
e fenobarbital; assim como terapêutica anti refluxo. Faz suplementação calórica
com MCT oil e necessita de sonda nasogástrica para alimentação. Faz
fisioterapia duas vezes por semana.
As principais causas de mortalidade são as alterações hemorrágicas (trombose ou
hemorragia) e as infecções. A cardiomiopatia hipertrofica pode determinar mau
prognóstico.(4)
O diagnóstico pré-natal é possível sempre que seja identificada a mutação.