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EuPTCVHe0872-07542011000300004

EuPTCVHe0872-07542011000300004

variedadeEu
ano2011
fonteScielo

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Claudicação e dor óssea: Três casos distintos

INTRODUÇÃO Sinais ou sintomas músculo-esqueléticos podem surgir no decorrer de múltiplas patologias, na maioria das vezes, doenças benignas. Contudo, podem ser a primeira manifestação ou a ma­nifestação predominante de uma neoplasia. Em algumas ocasi­ões, ao serem inicialmente interpretadas como manifestações de doença benigna (inflamatória/infecciosa, reumática ou ortopédica), pode ficar comprometido o diagnóstico e o prognóstico de uma eventual neoplasia.(1) As características da dor músculo-esquelética podem orientar para um diagnóstico etiológico. A dor relacionada com as doenças reumáticas tem, na maioria das vezes, uma intensidade ligeira a moderada, localização articular e ocorre associada a rigidez, geralmente durante o período da manhã.(1) Em contraste, nas doenças linfoproliferativas, no início, a dor óssea é geralmente de carácter intermitente, localizada na zona das metáfi­ses dos ossos longos, progredindo posteriormente para uma dor persistente, intensa e de predomínio nocturno, frequentemente desproporcional aos achados no exame físico.(1)A dor localizada fora das articulações é preocupante, sendo imperativo fazer o rastreio de doenças neoplásicas. Contudo, estas características devem ser avaliadas com sentido crítico, pois uma dor nocturna pode ocorrer em situações benignas (como nas dores de cres­cimento e no osteoma osteóide) e artrite ou artralgia migratória pode surgir em alguns doentes com neoplasias.(1,2) Entre as neoplasias, as leucemias e os linfomas têm sido os principais responsáveis por queixas musculo-esqueléticas, que são devidas à infiltração das articulações e músculos por células neoplásicas, à hemorragia intra ou peri- articular ou a efeitos para-neoplásicos mediados por factores humorais.(2) A associação de queixas musculo-esqueléticas a sintomas constitucionais e elevação dos agentes da reacção de fase aguda, nomeadamente a velocidade de sedimentação (VS), poderá sugerir uma etiologia infecciosa, nomeadamente, osteomielite.(3,4) Descrevem-se três casos, comuns na forma inicial de apresentação (claudicação ou recusa na marcha e dor óssea), mas com particularidades clínicas, laboratoriais e imagiológicas distintas e dois diagnósticos diferentes, osteomielite e leucemia.

CASOS CLÍNICOS Caso 1.Menina com vinte meses, previamente saudável, recorreu pela quinta vez ao serviço de urgência (SU), por claudicação desde vinte dias, com agravamento progressivo. Des­de uma semana, havia noção de dor no calcâneo direito, associada a despertares nocturnos, sem sinais inflamatórios locais. Sem febre nem outros sintomas constitucionais. Sem história de traumatismo.

Dos exames laboratoriais previamente efectuados, destacava-se hemograma, proteína C reactiva (PCR) e VS normais (Tabela I). A hemocultura tinha sido negativa e o esfregaço sanguíneo normal. A serologia para infecção a Epstein Barr Virus (EBV), realizada quatro dias antes, era compatível com infecção activa (IgG 556 U/ml [positivo 20], IgM 69,8 U/ml [positivo 40]). A ecografia dos tecidos moles da região do calcâneo direito e as radiografias do direito e da bacia foram descritas como normais.

Tabela_I ' Exames laboratoriais dos três casos clínicos.

No exame objectivo, recusava caminhar, fazer carga e apresentava discreta tumefacção, rubor e dor à palpação do calcâneo direito. O restante exame era normal.

Colocaram-se as hipóteses de diagnóstico de osteomielite do calcâneo, artrite reactiva (eventualmente a EBV) ou doença linfoproliferativa.

No vigésimo dia, repetiu os exames laboratoriais cujos resultados foram normais (Tabela_I).

Realizou cintigrafia óssea que mostrou alterações compatíveis com patologia inflamatória/infecciosa nos tecidos moles e cartilagem de conjugação do calcâneo direito. As imagens da ressonância magnética (RM) sustentaram o diagnóstico de osteomielite.

Iniciou terapêutica endovenosa com flucloxacilina e cefuroxime, que manteve durante duas semanas, seguida de terapêutica com cefuroxime oral, durante mais duas semanas, com excelente resposta clínica e laboratorial. Repetiu a cintigrafia óssea três meses após terminar a antibioterapia, verificando-se resolução das alterações imagiológicas iniciais.

Caso 2. Menino com cinco anos, previamente saudável, observado no SU por febre desde três dias. Queixava-se de gonalgia direita, que o acordava durante a noite, e apresentava claudicação. Sem outros sintomas constitucionais. Uma semana antes, teria tido uma faringite, que resolveu com anti-inflamatórios não esteróides (AINEs). Sem história de traumatismo.

No exame físico, além da claudicação, apresentava dor à mobilização do joelho e à palpação da tuberosidade anterior da tíbia direita, sem edema, rubor ou calor local.

Colocaram-se as hipóteses de osteomielite da tuberosidade anterior da tíbia, artrite do joelho (reactiva/séptica?), febre reumática e doença linfoproliferativa.

Realizou os exames laboratoriais apresentados na Tabela_I, dos quais se destaca a elevação da PCR e da DHL. O esfregaço sanguíneo, a ecografia articular da anca e do joelho direito foram normais.

Perante a forte suspeita de osteomielite, foi internado sob terapêutica endovenosa com cefuroxime e flucloxacilina.

Ao 10.º dia de doença (7.º dia de antibioterapia), repetiu os exames laboratoriais que mostraram redução da PCR e da DHL Tabela_I.

Realizou uma cintigrafia óssea cujas imagens sugeriam a existência de lesão osteoblástica na tuberosidade anterior da tíbia direita (Figura 1). Por este motivo, realizou RM do joelho direito, que revelou imagens compatíveis com lesão infiltrativa da tíbia (tumoral/infecciosa?) (Figura 2).

Figura 1. Caso 2. Cintigrafia óssea: Aumento da vascularização no terço superior da tíbia direita, que, na fase óssea, se traduz por hipercaptação do radiofármaco na tuberosidade da tíbia; sugerindo lesão osteoblástica em actividade.

Figura 2. Caso 2. RMN do joelho direito: Visualiza-se área com cerca de 5 cm de maior diâmetro, de hipossinal em T1 e hiper­sinal em T2, localizada na porção proximal da diáfise tibial, de limites imprecisos, sem componente de partes moles adjacente, sem sinais de periosteíte e acompanhada de uma pequena bolsa de líquido junto à inserção tibial do tendão rotuliano.

Entretanto, na hemocultura isolou-se Streptococcus pyogenessusceptível à flucloxacilina. Mas perante a possibilidade, evocada pelos exames imagiológicos, de se poder tratar de uma doença linfoproliferativa, realizou medulograma que se revelou normal.

Assumiu-se o diagnóstico de osteomielite a Streptococcus pyogenes. Completou seis semanas de tratamento endovenoso com flucloxacilina, com excelente resposta clínica, normalização da VS e PCR e normalização das imagens da cintigrafia óssea.

Caso 3.Menino com cinco anos, enviado pelo médico assistente ao SU por marcha claudicante e queixas álgicas inespecíficas em ambos os membros inferiores.

Desde quatro meses que apresentava episódios re­correntes de claudicação, dificuldade em caminhar, artralgias e mialgias inespecíficas nos membros inferiores, algumas vezes consideradas dores de crescimento. Nos últimos quinze dias, tinha iniciado novo episódio, sem melhoria com AINEs e de agravamento progressivo. Na semana anterior à admissão, tinha realizado os exames laboratoriais apresentados na Tabela_I e radio­grafia dos pés e bacia, que foram interpretados como normais.

No exame objectivo, apresentava um estado geral conservado, palidez cutânea generalizada, claudicava, apresentava discreto edema da articulação tibiotársica esquerda e dor à palpação do dorso do esquerdo. O restante exame foi descrito como normal.

Perante as hipóteses de artrite séptica da articulação ti­biotársica esquerda, artrite reactiva, osteomielite ou doença linfoproliferativa, ficou internado para investigação etiológica. Os exames laboratoriais efectuados nesse dia mostraram leucocitose e elevação da DHL (Tabela_I). A repetição do hemograma no terceiro dia de internamento revelou anemia, leucocitose e trombocitopenia (Tabela_I). O esfregaço sanguíneo inicial foi interpretado como normal, mas ao terceiro dia revelou a presença de 27% de blastos. O diagnóstico de leucemia linfóide aguda foi confirmado por medulograma.

DISCUSSÃO A dor músculo-esquelética é uma queixa comum, ocorrendo em cerca de 10-20% das crianças em idade escolar.(2) Na maioria dos casos, tem uma etiologia benigna, no entanto, outras causas devem ser investigadas, nomeadamente, as neoplasias.

Os casos descritos, semelhantes na sua forma de apresen­tação inicial, condicionaram algumas dificuldades no estabeleci­mento do diagnóstico definitivo.

No caso 1 (osteomielite do calcâneo), houve uma evolu­ção insidiosa que motivou cinco idas ao SU, uma sintomatolo­gia frustre e exames laboratoriais e imagiológicos iniciais sem alterações. Existem poucos casos descritos de osteomielite do calcâneo, pois é uma entidade pouco frequente, mas parece ser comum a evolução subaguda, muitas vezes sem sinais clínicos e com sintomas constitucionais discretos.(3)Analiticamente, o he­mograma pode revelar anemia, leucocitose e trombocitopenia e pode haver aumento da VS e da PCR, mas os reagentes directos e indirectos da reacção de fase aguda podem ser normais.(4) A hemocultura pode ser negativa, o que poderá estar relaciona­do com o facto de a bacteriémia ocorrer nos primeiros dias de doença, antes de se efectuarem as colheitas de sangue, que geralmente são realizadas após a focalização. As alterações radiográficas (edema das partes moles adjacentes, reabsorção óssea, osteopenia, erosão cortical) se tornam evidentes cerca de três semanas após o início da sintomatologia.(3,4) Todos estes aspectos poderão condicionar atraso no diagnóstico que é reali­zado com base na clínica, exames laboratoriais e imagiológicos. O recurso à cintigrafia óssea com Tc 99m metildifosfonato pode revelar hipercaptação do radionuclídeo na zona da infecção ós­sea e é um exame mais sensível que a radiografia.(4) O trata­mento deve incluir antibióticos, inicialmente administrados por via endovenosa e, posteriormente, por via oral, durante quatro a seis semanas.(4) No caso 2 (osteomielite da tuberosidade anterior da tíbia), o agente responsável pela infecção óssea foi o Streptococcus pyogenes. Neste caso, clinicamente, a presença de sintomas constitucionais, a dor óssea com localização extra-articular, por vezes nocturna, e a elevação da DHL poderiam fazer suspeitar de neoplasia. Os exames de imagem realizados, por suspeita inicial de osteomielite, também sugeriram a existência de lesão tumoral (infiltração leucémica). Estes motivos obrigaram à realização de um medulograma, que excluiu doença linfoproliferativa. E de facto, a favor de uma etiologia infecciosa estava presente uma VS elevada acompanhada de trombocitose, elevação da PCR, esfregaços sanguíneos seriados normais, hemocultura positiva, bem como a redução gradual dos reagentes de fase aguda, após instituição de antibioterapia.

No caso 3 (leucemia linfóide aguda), as queixas musculo­-esqueléticas não foram inicialmente valorizadas (foram conside­radas dores de crescimento), os exames laboratoriais iniciais não mostraram alterações relevantes e o primeiro esfregaço sanguíneo foi interpretado como normal, o que contribuiu para o atraso no diagnóstico de leucemia. A repetição do hemograma veio mostrar alterações sugestivas de um processo neoplásico (anemia, leucocitose e trombocitopenia) e a insistência na repe­tição do esfregaço sanguíneo permitiu a identificação de blastos, o que conduziu ao diagnóstico final.

outros casos de leucemia aguda com esfregaços iniciais descritos como normais(5), nos quais a manutenção da suspeita inicial e a insistência na repetição/observação cuidada do esfregaço permitiram o diagnóstico. Por este motivo, se houver forte suspeita de doença linfoproliferativa, mesmo que o esfregaço de sangue periférico inicial seja normal, deve-se insistir na sua repetição.

A leucemia linfóide aguda é a neoplasia mais frequente em crianças com menos de quinze anos, tem uma prevalência de 30% e constitui 85% das leucemias infantis.

(5) As manifestações clínicas e a duração dos sintomas são variáveis, dependendo do grau de infiltração dos linfoblastos na medula óssea e da extensão do comprometimento extra-medular. Além de queixas musculo-esqueléticas (presentes em 25-40% dos casos), podem ocorrer sintomas constitucionais, nomeadamente, astenia, perda ponderal e febre (cerca de 53% dos casos), hepatoesplenomegalia e linfadenopatia.(6)As leucemias com apresentação clínica mais insidiosa apresentam, mais frequentemente, manifestações musculo- esqueléticas (dor óssea difusa, artrite, artralgias e mialgias). A artrite é a queixa mais frequente, atingindo sobretudo as grandes articulações.(2,7)A dor óssea ocorre em 27-33% dos casos, atingindo sobretudo os ossos longos.(8,9) As alterações clínicas e laboratoriais de doença infecciosa ou linfoproliferatia podem confundir-se com os de uma doença linfoproliferativa.

Em ambas as situações poderão estar presentes queixas musculo-esqueléticas e constitucionais, além de alterações analíticas (leucocitose/leucopenia e elevação da VS). As informações colhidas na história clínica, as características das queixas, os resultados dos exames laboratoriais e imagiológicos poderão indicar o diagnóstico final, embora, muitas vezes, numa fase inicial, possam ser normais ou apresentarem alterações inespecíficas.

Na suspeita de neoplasia, a realização de hemogramas se­riados é fundamental, pois um hemograma inicialmente normal poderá alterar-se no sentido de sugerir um processo neoplásico. Estas alterações hematológicas são consequentes à infiltração medular e da sinovial. No hemograma, a principal alteração é a anemia, geralmente ligeira, mas progressiva. A alteração do número de glóbulos brancos ou plaquetas é menos frequente(2), podendo ocorrer linfocitose e/ou leucopenia e trombocitopenia. Em 80% dos doentes estão presentes níveis de hemoglobina inferiores a 10 g/dl, em 50% leucócitos superiores a 10 000 / mm3 e em 75% plaquetas inferiores a 100 000.(6) Nas doenças linfoproliferativas, a contagem de células sanguíneas no sangue periférico pode ser normal durante semanas ou meses após o início dos sintomas.(10) A identificação de blastos no sangue peri­férico pode ocorrer num terço dos doentes, sendo necessária a observação cuidadosa por profissionais treinados.(11) Marcadores de inflamação (PCR e VS), embora inespecífi­cos, estão geralmente aumentados nas neoplasias.(2,12) Um valor isolado de VS não diferencia estas entidades da doença reumatológica, mas se esta estiver aumentada conjuntamente com trombocitopenia deve colocar-se a hipótese de neoplasia.(1) A DHL é um marcador de renovação celular e está, normalmente, elevada nas neoplasias, estando recomendado como teste de rastreio na idade pediátrica. No entanto, e de acordo com estudos realizados em crianças com neoplasias e dor articular, um valor normal de DHL sérico não afasta a etiologia maligna como hipótese de diagnóstico.(12) Os achados radiológicos em crianças com doenças linfo­proliferativas e queixas musculo-esqueléticas estão presentes, no início da doença, em 47-69% dos casos e, no decorrer da doença, em 70-90%.(8) Estes, geralmente inespecíficos, incluem a osteopenia generalizada, lesões osteolíticas corticais e no periósteo, lesões de esclerose óssea, bandas radiolucentes metafisá­rias (ou linha leucémica) e linhas de paragem de crescimento.(13) A realização de procedimentos diagnósticos mais invasi­vos, como medulograma e biópsia óssea, torna-se fundamental se existir a hipótese de doença neoplásica.

A inespecificidade dos sintomas e as alterações laborato­riais tardias podem condicionar o atraso no diagnóstico de uma neoplasia, em períodos de duas semanas a treze meses, com uma média de cinco meses.(2) É necessária uma elevada suspei­ção clínica para o estabelecimento de um diagnóstico precoce e não comprometimento do prognóstico.

COMENTÁRIOS FINAIS A apresentação clínica da osteomielite pode ser frustre e insidiosa. Pode não haver sintomas constitucionais. No início da doença podem não estar presentes leucocitose e elevação dos reagentes de fase aguda. O diagnóstico presuntivo pode ser feito num doente com sintomas, exames laboratoriais e imagiológicos consistentes com infecção óssea, com identificação na hemocultura de um microorganismo responsável por osteomielite.

As doenças malignas devem fazer parte do diagnóstico diferencial das doenças infecciosas em crianças com manifestações musculo-esqueléticas. Alguns sinais são sugestivos de malignidade (febre prolongada, hepatoesplenomegalia, linfadenopatia, dor óssea desproporcional aos achados clínicos). Mesmo perante hemogramas ou exames imagiológicos iniciais normais, a doença linfoproliferativa deve ser considerada em doentes com dor óssea. É importante a realização de hemogramas seriados. Para um diagnóstico atempado e um tratamento adequado é necessário um elevado índice de suspeição clínica.


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