Claudicação e dor óssea: Três casos distintos
INTRODUÇÃO
Sinais ou sintomas músculo-esqueléticos podem surgir no decorrer de múltiplas
patologias, na maioria das vezes, doenças benignas. Contudo, podem ser a
primeira manifestação ou a manifestação predominante de uma neoplasia. Em
algumas ocasiões, ao serem inicialmente interpretadas como manifestações de
doença benigna (inflamatória/infecciosa, reumática ou ortopédica), pode ficar
comprometido o diagnóstico e o prognóstico de uma eventual neoplasia.(1)
As características da dor músculo-esquelética podem orientar para um
diagnóstico etiológico. A dor relacionada com as doenças reumáticas tem, na
maioria das vezes, uma intensidade ligeira a moderada, localização articular e
ocorre associada a rigidez, geralmente durante o período da manhã.(1) Em
contraste, nas doenças linfoproliferativas, no início, a dor óssea é geralmente
de carácter intermitente, localizada na zona das metáfises dos ossos longos,
progredindo posteriormente para uma dor persistente, intensa e de predomínio
nocturno, frequentemente desproporcional aos achados no exame físico.(1)A dor
localizada fora das articulações é preocupante, sendo imperativo fazer o
rastreio de doenças neoplásicas. Contudo, estas características devem ser
avaliadas com sentido crítico, pois uma dor nocturna pode ocorrer em situações
benignas (como nas dores de crescimento e no osteoma osteóide) e artrite ou
artralgia migratória pode surgir em alguns doentes com neoplasias.(1,2)
Entre as neoplasias, as leucemias e os linfomas têm sido os principais
responsáveis por queixas musculo-esqueléticas, que são devidas à infiltração das
articulações e músculos por células neoplásicas, à hemorragia intra ou peri-
articular ou a efeitos para-neoplásicos mediados por factores humorais.(2)
A associação de queixas musculo-esqueléticas a sintomas constitucionais e
elevação dos agentes da reacção de fase aguda, nomeadamente a velocidade de
sedimentação (VS), poderá sugerir uma etiologia infecciosa, nomeadamente,
osteomielite.(3,4)
Descrevem-se três casos, comuns na forma inicial de apresentação (claudicação
ou recusa na marcha e dor óssea), mas com particularidades clínicas,
laboratoriais e imagiológicas distintas e dois diagnósticos diferentes,
osteomielite e leucemia.
CASOS CLÍNICOS
Caso 1.Menina com vinte meses, previamente saudável, recorreu pela quinta vez
ao serviço de urgência (SU), por claudicação desde há vinte dias, com
agravamento progressivo. Desde há uma semana, havia noção de dor no calcâneo
direito, associada a despertares nocturnos, sem sinais inflamatórios locais. Sem
febre nem outros sintomas constitucionais. Sem história de traumatismo.
Dos exames laboratoriais previamente efectuados, destacava-se hemograma,
proteína C reactiva (PCR) e VS normais (Tabela I). A hemocultura tinha sido
negativa e o esfregaço sanguíneo normal. A serologia para infecção a Epstein
Barr Virus (EBV), realizada quatro dias antes, era compatível com infecção
activa (IgG 556 U/ml [positivo ≥ 20], IgM 69,8 U/ml [positivo ≥ 40]). A
ecografia dos tecidos moles da região do calcâneo direito e as radiografias do pé
direito e da bacia foram descritas como normais.
Tabela_I '
Exames laboratoriais dos três casos clínicos.
No exame objectivo, recusava caminhar, fazer carga e apresentava discreta
tumefacção, rubor e dor à palpação do calcâneo direito. O restante exame era
normal.
Colocaram-se as hipóteses de diagnóstico de osteomielite do calcâneo, artrite
reactiva (eventualmente a EBV) ou doença linfoproliferativa.
No vigésimo dia, repetiu os exames laboratoriais cujos resultados foram normais
(Tabela_I).
Realizou cintigrafia óssea que mostrou alterações compatíveis com patologia
inflamatória/infecciosa nos tecidos moles e cartilagem de conjugação do calcâneo
direito. As imagens da ressonância magnética (RM) sustentaram o diagnóstico de
osteomielite.
Iniciou terapêutica endovenosa com flucloxacilina e cefuroxime, que manteve
durante duas semanas, seguida de terapêutica com cefuroxime oral, durante mais
duas semanas, com excelente resposta clínica e laboratorial. Repetiu a
cintigrafia óssea três meses após terminar a antibioterapia, verificando-se
resolução das alterações imagiológicas iniciais.
Caso 2. Menino com cinco anos, previamente saudável, observado no SU por febre
desde há três dias. Queixava-se de gonalgia direita, que o acordava durante a
noite, e apresentava claudicação. Sem outros sintomas constitucionais. Uma
semana antes, teria tido uma faringite, que resolveu com anti-inflamatórios não
esteróides (AINEs). Sem história de traumatismo.
No exame físico, além da claudicação, apresentava dor à mobilização do joelho e
à palpação da tuberosidade anterior da tíbia direita, sem edema, rubor ou calor
local.
Colocaram-se as hipóteses de osteomielite da tuberosidade anterior da tíbia,
artrite do joelho (reactiva/séptica?), febre reumática e doença
linfoproliferativa.
Realizou os exames laboratoriais apresentados na Tabela_I, dos quais se destaca
a elevação da PCR e da DHL. O esfregaço sanguíneo, a ecografia articular da anca
e do joelho direito foram normais.
Perante a forte suspeita de osteomielite, foi internado sob terapêutica
endovenosa com cefuroxime e flucloxacilina.
Ao 10.º dia de doença (7.º dia de antibioterapia), repetiu os exames
laboratoriais que mostraram redução da PCR e da DHL Tabela_I.
Realizou uma cintigrafia óssea cujas imagens sugeriam a existência de lesão
osteoblástica na tuberosidade anterior da tíbia direita (Figura 1). Por este
motivo, realizou RM do joelho direito, que revelou imagens compatíveis com
lesão infiltrativa da tíbia (tumoral/infecciosa?) (Figura 2).
Figura 1. Caso 2. Cintigrafia óssea: Aumento da vascularização no terço superior
da tíbia direita, que, na fase óssea, se traduz por hipercaptação do
radiofármaco na tuberosidade da tíbia; sugerindo lesão osteoblástica em
actividade.
Figura 2. Caso 2. RMN do joelho direito: Visualiza-se área com cerca de 5 cm de
maior diâmetro, de hipossinal em T1 e hipersinal em T2, localizada na porção
proximal da diáfise tibial, de limites imprecisos, sem componente de partes
moles adjacente, sem sinais de periosteíte e acompanhada de uma pequena bolsa
de líquido junto à inserção tibial do tendão rotuliano.
Entretanto, na hemocultura isolou-se Streptococcus pyogenessusceptível à
flucloxacilina. Mas perante a possibilidade, evocada pelos exames imagiológicos,
de se poder tratar de uma doença linfoproliferativa, realizou medulograma que
se revelou normal.
Assumiu-se o diagnóstico de osteomielite a Streptococcus pyogenes. Completou
seis semanas de tratamento endovenoso com flucloxacilina, com excelente resposta
clínica, normalização da VS e PCR e normalização das imagens da cintigrafia
óssea.
Caso 3.Menino com cinco anos, enviado pelo médico assistente ao SU por marcha
claudicante e queixas álgicas inespecíficas em ambos os membros inferiores.
Desde há quatro meses que apresentava episódios recorrentes de claudicação,
dificuldade em caminhar, artralgias e mialgias inespecíficas nos membros
inferiores, algumas vezes consideradas dores de crescimento. Nos últimos
quinze dias, tinha iniciado novo episódio, sem melhoria com AINEs e de
agravamento progressivo. Na semana anterior à admissão, tinha realizado os
exames laboratoriais apresentados na Tabela_I e radiografia dos pés e bacia,
que foram interpretados como normais.
No exame objectivo, apresentava um estado geral conservado, palidez cutânea
generalizada, claudicava, apresentava discreto edema da articulação
tibiotársica esquerda e dor à palpação do dorso do pé esquerdo. O restante
exame foi descrito como normal.
Perante as hipóteses de artrite séptica da articulação tibiotársica esquerda,
artrite reactiva, osteomielite ou doença linfoproliferativa, ficou internado
para investigação etiológica. Os exames laboratoriais efectuados nesse dia
mostraram leucocitose e elevação da DHL (Tabela_I). A repetição do hemograma no
terceiro dia de internamento revelou anemia, leucocitose e trombocitopenia
(Tabela_I). O esfregaço sanguíneo inicial foi interpretado como normal, mas ao
terceiro dia revelou a presença de 27% de blastos. O diagnóstico de leucemia
linfóide aguda foi confirmado por medulograma.
DISCUSSÃO
A dor músculo-esquelética é uma queixa comum, ocorrendo em cerca de 10-20% das
crianças em idade escolar.(2) Na maioria dos casos, tem uma etiologia benigna,
no entanto, outras causas devem ser investigadas, nomeadamente, as neoplasias.
Os casos descritos, semelhantes na sua forma de apresentação inicial,
condicionaram algumas dificuldades no estabelecimento do diagnóstico definitivo.
No caso 1 (osteomielite do calcâneo), houve uma evolução insidiosa que motivou
cinco idas ao SU, uma sintomatologia frustre e exames laboratoriais e
imagiológicos iniciais sem alterações. Existem poucos casos descritos de
osteomielite do calcâneo, pois é uma entidade pouco frequente, mas parece ser
comum a evolução subaguda, muitas vezes sem sinais clínicos e com sintomas
constitucionais discretos.(3)Analiticamente, o hemograma pode revelar anemia,
leucocitose e trombocitopenia e pode haver aumento da VS e da PCR, mas os
reagentes directos e indirectos da reacção de fase aguda podem ser normais.(4)
A hemocultura pode ser negativa, o que poderá estar relacionado com o facto de
a bacteriémia ocorrer nos primeiros dias de doença, antes de se efectuarem as
colheitas de sangue, que geralmente só são realizadas após a focalização. As
alterações radiográficas (edema das partes moles adjacentes, reabsorção óssea,
osteopenia, erosão cortical) só se tornam evidentes cerca de três semanas após
o início da sintomatologia.(3,4) Todos estes aspectos poderão condicionar
atraso no diagnóstico que é realizado com base na clínica, exames
laboratoriais e imagiológicos. O recurso à cintigrafia óssea com Tc 99m
metildifosfonato pode revelar hipercaptação do radionuclídeo na zona da
infecção óssea e é um exame mais sensível que a radiografia.(4) O tratamento
deve incluir antibióticos, inicialmente administrados por via endovenosa e,
posteriormente, por via oral, durante quatro a seis semanas.(4)
No caso 2 (osteomielite da tuberosidade anterior da tíbia), o agente
responsável pela infecção óssea foi o Streptococcus pyogenes. Neste caso,
clinicamente, a presença de sintomas constitucionais, a dor óssea com
localização extra-articular, por vezes nocturna, e a elevação da DHL poderiam
fazer suspeitar de neoplasia. Os exames de imagem realizados, por suspeita
inicial de osteomielite, também sugeriram a existência de lesão tumoral
(infiltração leucémica). Estes motivos obrigaram à realização de um medulograma,
que excluiu doença linfoproliferativa. E de facto, a favor de uma etiologia
infecciosa estava presente uma VS elevada acompanhada de trombocitose, elevação
da PCR, esfregaços sanguíneos seriados normais, hemocultura positiva, bem como
a redução gradual dos reagentes de fase aguda, após instituição de
antibioterapia.
No caso 3 (leucemia linfóide aguda), as queixas musculo-esqueléticas não foram
inicialmente valorizadas (foram consideradas dores de crescimento), os
exames laboratoriais iniciais não mostraram alterações relevantes e o primeiro
esfregaço sanguíneo foi interpretado como normal, o que contribuiu para o
atraso no diagnóstico de leucemia. A repetição do hemograma veio mostrar
alterações sugestivas de um processo neoplásico (anemia, leucocitose e
trombocitopenia) e a insistência na repetição do esfregaço sanguíneo permitiu
a identificação de blastos, o que conduziu ao diagnóstico final.
Há outros casos de leucemia aguda com esfregaços iniciais descritos como
normais(5), nos quais a manutenção da suspeita inicial e a insistência na
repetição/observação cuidada do esfregaço permitiram o diagnóstico. Por este
motivo, se houver forte suspeita de doença linfoproliferativa, mesmo que o
esfregaço de sangue periférico inicial seja normal, deve-se insistir na sua
repetição.
A leucemia linfóide aguda é a neoplasia mais frequente em crianças com menos de
quinze anos, tem uma prevalência de 30% e constitui 85% das leucemias infantis.
(5) As manifestações clínicas e a duração dos sintomas são variáveis,
dependendo do grau de infiltração dos linfoblastos na medula óssea e da extensão
do comprometimento extra-medular. Além de queixas musculo-esqueléticas
(presentes em 25-40% dos casos), podem ocorrer sintomas constitucionais,
nomeadamente, astenia, perda ponderal e febre (cerca de 53% dos casos),
hepatoesplenomegalia e linfadenopatia.(6)As leucemias com apresentação clínica
mais insidiosa apresentam, mais frequentemente, manifestações musculo-
esqueléticas (dor óssea difusa, artrite, artralgias e mialgias). A artrite é a
queixa mais frequente, atingindo sobretudo as grandes articulações.(2,7)A dor
óssea ocorre em 27-33% dos casos, atingindo sobretudo os ossos longos.(8,9)
As alterações clínicas e laboratoriais de doença infecciosa ou
linfoproliferatia podem confundir-se com os de uma doença linfoproliferativa.
Em ambas as situações poderão estar presentes queixas musculo-esqueléticas e
constitucionais, além de alterações analíticas (leucocitose/leucopenia e
elevação da VS). As informações colhidas na história clínica, as
características das queixas, os resultados dos exames laboratoriais e
imagiológicos poderão indicar o diagnóstico final, embora, muitas vezes, numa
fase inicial, possam ser normais ou apresentarem alterações inespecíficas.
Na suspeita de neoplasia, a realização de hemogramas seriados é fundamental,
pois um hemograma inicialmente normal poderá alterar-se no sentido de sugerir
um processo neoplásico. Estas alterações hematológicas são consequentes à
infiltração medular e da sinovial. No hemograma, a principal alteração é a
anemia, geralmente ligeira, mas progressiva. A alteração do número de glóbulos
brancos ou plaquetas é menos frequente(2), podendo ocorrer linfocitose e/ou
leucopenia e trombocitopenia. Em 80% dos doentes estão presentes níveis de
hemoglobina inferiores a 10 g/dl, em 50% leucócitos superiores a 10 000 / mm3 e
em 75% plaquetas inferiores a 100 000.(6) Nas doenças linfoproliferativas, a
contagem de células sanguíneas no sangue periférico pode ser normal durante
semanas ou meses após o início dos sintomas.(10) A identificação de blastos no
sangue periférico pode ocorrer num terço dos doentes, sendo necessária a
observação cuidadosa por profissionais treinados.(11)
Marcadores de inflamação (PCR e VS), embora inespecíficos, estão geralmente
aumentados nas neoplasias.(2,12) Um valor isolado de VS não diferencia estas
entidades da doença reumatológica, mas se esta estiver aumentada conjuntamente
com trombocitopenia deve colocar-se a hipótese de neoplasia.(1)
A DHL é um marcador de renovação celular e está, normalmente, elevada nas
neoplasias, estando recomendado como teste de rastreio na idade pediátrica. No
entanto, e de acordo com estudos realizados em crianças com neoplasias e dor
articular, um valor normal de DHL sérico não afasta a etiologia maligna como
hipótese de diagnóstico.(12)
Os achados radiológicos em crianças com doenças linfoproliferativas e queixas
musculo-esqueléticas estão presentes, no início da doença, em 47-69% dos casos
e, no decorrer da doença, em 70-90%.(8) Estes, geralmente inespecíficos, incluem
a osteopenia generalizada, lesões osteolíticas corticais e no periósteo, lesões
de esclerose óssea, bandas radiolucentes metafisárias (ou linha leucémica) e
linhas de paragem de crescimento.(13)
A realização de procedimentos diagnósticos mais invasivos, como medulograma e
biópsia óssea, torna-se fundamental se existir a hipótese de doença neoplásica.
A inespecificidade dos sintomas e as alterações laboratoriais tardias podem
condicionar o atraso no diagnóstico de uma neoplasia, em períodos de duas
semanas a treze meses, com uma média de cinco meses.(2) É necessária uma
elevada suspeição clínica para o estabelecimento de um diagnóstico precoce e
não comprometimento do prognóstico.
COMENTÁRIOS FINAIS
A apresentação clínica da osteomielite pode ser frustre e insidiosa. Pode não
haver sintomas constitucionais. No início da doença podem não estar presentes
leucocitose e elevação dos reagentes de fase aguda. O diagnóstico presuntivo
pode ser feito num doente com sintomas, exames laboratoriais e imagiológicos
consistentes com infecção óssea, com identificação na hemocultura de um
microorganismo responsável por osteomielite.
As doenças malignas devem fazer parte do diagnóstico diferencial das doenças
infecciosas em crianças com manifestações musculo-esqueléticas. Alguns sinais
são sugestivos de malignidade (febre prolongada, hepatoesplenomegalia,
linfadenopatia, dor óssea desproporcional aos achados clínicos). Mesmo perante
hemogramas ou exames imagiológicos iniciais normais, a doença
linfoproliferativa deve ser considerada em doentes com dor óssea. É importante
a realização de hemogramas seriados. Para um diagnóstico atempado e um
tratamento adequado é necessário um elevado índice de suspeição clínica.