LESÃO PERIANAL ATÍPICA EM DOENÇA DE CROHN
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 29 anos de idade, raça
negra, natural de Cabo Verde, residente em Portugal
desde há 2 anos e meio, que apresentava dermatose
do períneo e região perianal, acompanhada de astenia, anorexia não selectiva e emagrecimento de 20 Kg
(mais de 10% do peso corporal) com 5 meses de
evolução, quando recorreu ao seu Médico assistente,
tendo sido referenciada para internamento. Durante
o internamento, iniciou diarreia de fezes líquidas,
sem sangue, muco ou pús, com 4 a 6 dejecções/dia,
com dejecções nocturnas, dor abdominal difusa, tipo
cólica, que aliviava com a defecação e febre cada). A
doente negava vómitos, tosse, expectoração, aftas
bucais, artralgia, alterações oculares. Antecedentes
pessoais irrelevantes, negando tuberculose pulmonar.
Ao exame objectivo apresentava-se febril (38ºC),
descorada, emagrecida com um índice de massa corporal de 11 kg/m2 (peso de 28 kg), com abdómen
difusamente doloroso à palpação profunda, sem
reacção peritoneal, sem tumefacções ou organomegálias palpáveis. Tinha múltiplas úlceras no períneo e região perianal, extensas, profundas, de bordo
violáceo, fundo eritematoso e exsudado purulento,
com destruição tecidular perianal marcada e com
exposição do esfíncter anal externo (Figura 1).
Laboratorialmente apresentava anemia microcítica,
hipocrómica, com hemoglobina de 6,2 g/dl; aumento dos
parâmetros inflamatórios com leucocitose (14500x109/L
com 84% neutrófilos), trombocitose (1109000/L),
Proteína C Reactiva de 22,3 mg/dl e velocidade de sedimentação (V.S.) de 129 mm na 1ª hora; hipoalbuminémia (1,2 mg/dl); ferro sérico de 8 µg/dl, transferrina 64 mg/dl e ferritina de 1627 ng/dl. Serologias do vírus
da Imunodeficiência Humana tipo 1 e 2, VDRL/TPHA,
vírus da Hepatite C, vírus da Hepatite B, Citomegalovírus, vírus Herpes Simplex, amebíase e Huddleson negativas. Estudo das doenças autoimunes com
anticorpo antinucleares - 1/320 com padrão mosqueado;
antiDNAds, anticorpo anti-músculo liso, anticorpo
anticitoplasma dos neutrófilos - perinuclear e citoplasmático (p-ANCA e c-ANCA) negativos. β2 microglobulina com discreta elevação da IgM (6,7 U/ml para limite
superior do normal de 5,0 U/ml). No exsudado das
úlceras genitais isolaram-se Escherichia Coli e Streptococcus agalactae, sendo os restantes estudos microbiológicos negativos nomeadamente as hemoculturas em
aerobiose e em meios específicos para micobactérias, a
urocultura, as pesquisas de bacilo de Koch (B.K.) (directo e cultura), de Chlamydiae e de Neisseria gonorrhoae
na urina, as pesquisas de B.K. (directo e cultura) na
expectoração induzida, a cultura e protein chain reaction
para vírus Herpes simplex 1 e 2 das úlceras genitais, as
coproculturas e a pesquisa de ovos, quistos e parasitas
nas fezes. A prova tuberculínica (teste de Mantoux) evidenciou uma induração de 7 mm de diâmetro.
A biopsia da pele do períneo mostrou processo inflamatório com histiocitos multinucleados, sem necrose
nem formação de granulomas epitelióides bem definidos
(Figura 2), com pesquisa de fungos e de bacilos ácido e
álcool resistentes e cultura em meio de Lowenstein negativas, aspectos compatíveis com o diagnóstico de pioderma gangrenosum ou de doença de Crohn cutânea.
A tomografia axial computadorizada toraco-abdominopélvica revelou aspectos fibrocicatriciais no segmento
apical do lobo superior do pulmão direito; espessamento
parietal segmentar do cólon descendente e última ansa
ileal, e densificação perianal, com algumas bolhas
aéreas; não se observaram outras alterações significativas, nomeadamente adenopatias ou abcessos intraabdominais.
A colonoscopia com progressão até ao cólon descendente (não se progredindo mais por lesões cólicas
graves) mostrou mucosa edemaciada, múltiplas ulce-
rações extensas, escavadas, com padrão em pedra de
calçada, inducto purulento e pseudopólipos, no cólon
sigmoide e descendente, com áreas focais de alterações
mais marcadas (Figura 3). A histologia revelou alterações focais com distorção arquitectural, diminuição do
número de células caliciformes, intenso infiltrado inflamatório misto com permeação epitelial focal e lesões de
criptite, envolvimento da submucosa, esboço de fissuras,
e alguns agregados de células histiocitárias, sem formação de granulomas (Figura 4), achados estes sugestivos de doença de Crohn. A pesquisa de bacilos ácido e
álcool resistentes e de outros microorganismos foi negativa. A cultura da biópsia cólica em meio de Lowenstein
foi negativa.
Efectuou endoscopia digestiva alta, com biópsias gástricas e duodenais, sem alterações significativas.
Iniciou terapêutica com metronidazol 500 mg t.i.d.,
ciprofloxacina 500 mg b.i.d., prednisolona 1 mg/Kg/dia,
azatioprina 2,5 mg/kg/dia, isoniazida 300 mg/dia, piridoxina 40 mg/dia, cálcio 1 g/dia, Vitamina D 800 U/dia,
vitamina K 5 mg/d, ácido fólico 5 mg/d, vitamina B12 1
mg/dia. Teve necessidade de transfusão de 3 unidades de
concentrado eritrocitário com estabilização dos valores
de hemoglobina em 10 g/dl. Sugeriu-se realização de
colostomia de protecção, que a doente recusou.
Actualmente no 9º mês de tratamento, encontra-se clinicamente bem, com 1 a 2 dejecções/dia, com continência
fecal, com vida sexual activa, sem dor abdominal, com
índice de massa corporal de 24 Kg/m2 (peso de 60 Kg).
Região perineal e perianal melhorada, com lesões
cutâneas cicatriciais, com recuperação parcial da zona
destruída entre o ânus e a vagina (Figura 5).
Analiticamente, apenas a referir aumento da V.S. (44
mm); melhoria dos restantes parâmetros, com hemoglobina de 11,7 g/dl, leucócitos -7200x109/L com 74,4%
neutrófilos, plaquetas- 302000/L, PCR- 0,2 mg/dl, albuminémia de 4,1 mg/dl. Está medicada com azatioprina
2,5 mg/kg/dia. Foi discutida com a Cirurgia Geral uma
eventual intervenção cirúrgica para correcção das alterações rectovaginais, mas a doente recusou esta opção.
DISCUSSÃO
Trata-se de uma doente jovem, imunocompetente, com
um quadro de lesões ulceradas perineais e perianais
atípicas, exuberantes, associadas a manifestações digestivas e sistémicas, com alterações focais inflamatórias
do ileon terminal e cólon e estudo microbiológico negativo. Surgem como principais hipóteses diagnósticas a
doença de Crohn com doença perianal altamente destrutiva. Neste caso com doença de Crohn cutânea ou associada a pyoderma gangrenosum, a tuberculose com
lesões intestinais e perianais e a doença de Beçhet.
No que respeita à doença de Beçhet, a ausência de ulcerações orais recorrentes, que é um critério necessário
para o diagnóstico (1), e de manifestações articulares ou
oftalmológicas, torna esta hipótese pouco provável.
Além disso, os achados histológicos não são sugestivos,
nomeadamente a ausência de vasculite.
O facto de a doente ser oriunda de um país com grande
prevalência de tuberculose, apresentar sintomas consumptivos e febre, VS muito elevada e alterações fibrocicatriciais pulmonares, faz considerar o diagnóstico de
tuberculose intestinal e perianal. No entanto, a tuberculose intestinal é predominantemente ileocecal e embora
qualquer porção do tudo digestivo possa ser atingida, de
forma descontínua (2), a doença anal é muito rara (3).
Histologicamente observam-se, quer a nível cutâneo
quer cólico, histiocitos multinucleados, mas sem a formação de granulomas bem definidos com necrose central, como é característico, e as colorações de ZiehlNeelsen foram negativas. Os estudos microbiológicos
para este agente, incluindo a cultura das biópsias
cutâneas e intestinais, foram negativos, sendo de referir
que a combinação dos resultados da histologia e da cultura de biopsias intestinais estabelecem o diagnóstico
em até 80% dos doentes (4). A prova tuberculínica foi
negativa, embora seja pouco sensível e inespecífica, sem
valor diagnóstico nesta doente (5). Assim, apesar da dificuldade de exclusão absoluta de tuberculose, a conjunção do quadro clínico e dos exames complementares
de diagnóstico permitiu afastar esta hipótese.
O diagnóstico de doença de Crohn foi estabelecido,
tendo como aspectos típicos o atingimento intestinal
segmentar e a histologia com lesões focais características. O diagnóstico diferencial entre a doença perianal
altamente destrutiva, a doença de Crohn cutânea e o pyoderma gangrenosum como causa das lesões perianais e
perineais associadas é difícil, quer por as lesões da
doente serem atípicas quer por não haver alterações histológicas específicas.
Em relação à doença de Crohn cutânea, apesar de ser
frequente o envolvimento da região perineal, deve existir separação por tecido normal entre as lesões cutâneas
e a doença intestinal, o que não se pode afirmar nesta
doente. No pyoderma gangrenosum, a localização perineal é rara, com poucos casos reportados (6, 7), e as
lesões desta doente com envolvimento perianal grave
não são típicas desta patologia. A doença de Crohn perianal altamente destrutiva é o mais provável. Os casos
encontrados na literatura com esta denominação surgem
em idade pediátrica (8-10), mas na Classificação de
Cardiff de doença de Crohn anal existe o grupo de ulcerações cavitadas do canal anal com extensão à pele perineal com ulceração agressiva (11). O tratamento destas
entidades associadas à doença de Crohn é contudo similar. A terapêutica de primeira linha são os corticoides
sistémicos, que podem ser associados a dapsona, talidomida, sulfapiridina, minociclina ou clofazimina particularmente no pyoderma gangrenosum (12). Os imunossupressores devem ser introduzidos precocemente nos
casos mais graves ou nos doentes refractários, havendo
referência em diversas publicações às tiopurinas, aos
inibidores da calcineurina, ao metotrexato e ao
micofenolato de mofetil (8, 12). Nos doentes com má
resposta a esta terapêutica, há descrições de eficácia com
o infliximab (8, 13-17). A profilaxia secundária de
infecção com antibióticos e os cuidados tópicos das
lesões são importantes. Nas lesões refractárias, a
colostomia de derivação, o desbridamento cirúrgico e a
reconstrução plástica podem estar indicados. No entanto, por o pyoderma gangrenosum ter patergia, tem maior
risco de complicações nesta abordagem cirúrgica (18).
Há casos publicados com boa resposta a oxigénio hiperbárico (19, 20). O pyoderma gangrenosum é das manifestações cutâneas mais graves associadas à D.I.I. e, apesar de boa resposta à terapêutica médica, pode ter um
curso prolongado com uma demora média de 11,5 meses
para atingir remissão (21). Verifica-se recorrência das
lesões em 35% dos doentes (22). Na doença de Crohn
cutânea, a terapêutica médica é eficaz na maioria dos
casos, mas as lesões genitais são normalmente mais
resistentes ao tratamento (23). A doença de Crohn perianal altamente destrutiva tem má resposta à terapêutica
médica, sendo a colostomia para derivação fecal muitas
vezes necessária por falência de terapêutica médica, por
dor defecatória marcada, ou por incapacidade para
higiene perineal devida à incontinência (8). Contudo,
nesta doente, houve boa resposta à prednisolona e à azatioprina. Optou-se pelo tratamento de tuberculose latente
por a doente apresentar na prova tuberculínica 7 mm de
induração e ir ser submetida a corticoterapia, imunossupressão e, eventualmente, dependendo da evolução, a
terapêutica com anticorpos anti-TNFα.