O PREÇO DA SAÚDE
INTRODUÇÃO
A discussão do tema “O preço da saúde” obriga desde
logo a realizar algumas distinções. A primeira distinção é
entre saúde e cuidados de saúde (nos quais se incluem os
cuidados médicos).
Embora seja admissível que se possa retirar satisfação da
utilização de cuidados de saúde, a principal valorização
dos mesmos está na contribuição que dão para a melhoria do estado de saúde. Logo “preço de cuidados de
saúde”, que é o que habitualmente se observa, e “preço
da saúde” são aspectos distintos.
Tipicamente, a “produção” de saúde não tem um preço
observável. A saúde é resultado da combinação das características de cada pessoa, do tipo e montante de cuidados de saúde que recebe e do tempo que é usado pela pessoa na “produção” dessa saúde. Inclui-se nesse conceito
aspectos como o tempo de internamento necessário para
receber cuidados de saúde e recuperar o nível de saúde
inicial, ou o tempo de exercício físico para evitar uma
deterioração do estado de saúde.
O segundo aspecto a clarificar é a diferença entre “preço”
e “valor”. Estes são conceitos distintos, embora relacionados. O “preço” designa normalmente o valor da
última unidade utilizada ou consumida de um recurso que
seja transaccionada num mercado. O termo “valor” é normalmente usado para designar a valorização de todas as
unidades consumidas. O preço encontra-se ligado a uma
noção de escassez.
Esta diferença entre valor de todo o consumo realizado e
valor da unidade marginal consumida é facilmente
ilustrada pelo paradoxo da água e do diamante. É geralmente aceite que a água é essencial à vida. É geralmente
aceite que o diamante não é essencial à vida. Contudo, o
preço de um diamante é equivalente ao preço de muitos
litros de água. O que explica este paradoxo?
O elemento crucial é o valor da escassez – o diamante é
mais raro, logo tem um preço maior mas se tivéssemos
que escolher entre deixar de ter água ou deixar de ter diamantes no planeta, não haveria grande dúvida quanto ao
que seria escolhido.
Aplicado ao campo dos cuidados de saúde, quanto mais
escasso for um recurso maior será o seu preço. Tem também uma outra implicação – o valor da saúde é um conceito (levando a questões de quanto vale uma vida
humana) e o preço de alterações marginais no estado de
saúde é outro conceito.
A terceira distinção a fazer é entre preço explícito e preço
sombra. Por preço explícito, entende-se o preço através
do qual um bem ou serviço é transaccionado no mercado.
Contudo, determinados produtos, como a saúde, não são
transaccionados no mercado. Não se consegue transferir
saúde de uma pessoa para outra. Não há, por isso, um
preço explícito para a saúde. Mas aumentar o stock de
saúde de uma pessoa implica a utilização de recursos.
Esses recursos têm um custo de oportunidade na medida
em que poderiam ser usados noutras aplicações. Há,
então, um preço implícito para incrementos no estado de
saúde de uma população.
A distinção entre variações marginais do estado de saúde
e o seu valor, na margem, ajudam a perceber o preço da
saúde, que é diferente do preço dos cuidados médicos,
como previamente se argumentou.
A análise económica desenvolveu ao longo dos anos
metodologias de avaliação do valor da vida, em termos
monetários, e do “preço” de alterações marginais da
saúde.
O VALOR DE UMA VIDA ESTATÍSTICA
No que respeita ao valor da vida, há dois conceitos a
reter: vida estatística e “anos de vida ajustados da qualidade” (QALY – quality adjusted life years). No primeiro
caso, vida estatística, olha-se para o valor de uma vida no
contexto estatístico de uma população. É um valor
médio. Há diversas formas de procurar estabelecer este
valor. Uma delas envolve avaliar as escolhas das pessoas
quanto aos seus empregos: para o mesmo nível de qualificação profissional, trabalhos com maior risco de doença
(ou mortalidade) associado tendem a pagar salários mais
elevados. A comparação do acréscimo de salário com o
acréscimo de risco permite inferir o valor implícito de
uma vida estatística.
Também situações de risco de outra natureza permitem
inferência similar. Por exemplo, a aquisição, ou não, de
dispositivos de segurança em viaturas automóveis que
diminuam o risco de mortalidade em caso de acidente. As
questões colocadas são então transformadas em valor
monetário.
Existem várias tentativas de estimar o valor da vida por
esta abordagem. Johanesson, Johansson e O’Connot
(1996) colocam a fasquia nos 7,4 a 8,9 milhões de
dólares. Viscusi e Aldi (2003), numa revisão de vários
estudos, apontam para 6,6 milhões de dólares. Hakes e
Viscusi (2004) usando informação sobre utilização de
cintos de segurança, obtêm uma estimativa entre 2,2 e 7,9
milhões de dólares. Na União Europeia, em 2000, a DG
Environment usava como valor de vida estatística um
valor médio de 1,4 milhões de euros, e um valor máximo
de 3,5 milhões de euros.
Realizou-se uma “experiência em aula”, onde se pediu
aos alunos que respondessem de forma anónima a uma
pergunta simples:
“Os acidentes de viação são uma das principais causas
de morte em Portugal. Uma medida possível para
reduzir o risco de mortalidade em acidentes de viação
consiste em equipar o veículo com sistemas de segurança, como airbags.
Suponha que foi criado um novo equipamento de segurança. O equipamento permite a redução do risco de
morte em 5 vidas por 100 000 habitantes. O novo equipamento exige um plano de manutenção anual por forma a
garantir o seu perfeito funcionamento.
Qual o valor de manutenção anual pelo qual está disposto a adquirir o equipamento (de 0 a 5000 euros):
As respostas tiveram o seguinte padrão:
Mais importante que o valor exacto, é a ordem de
grandeza, que mesmo num contexto específico não está
muito longe dos valores encontrados em estudos com
maior detalhe e profundidade.
O conceito de vida estatística concentra a atenção numa
entidade abstracta, tornando anónima a “vida” de que se
está a falar, e como tal evita o dilema de valorização de
cada vida em concreto. Contudo, em cada caso clínico, o
médico defronta-se com decisões que envolvem essa
valorização da vida. Frequentemente, são decisões de
vida ou morte, com diferença no estado de saúde da pessoa envolvida. Mas muitas vezes, os médicos têm pela
frente situações de ganhos marginais no estado de saúde.
Em qualquer dos casos, uma característica comum é a
presença de incerteza quanto ao resultado final (numas
situações mais do que noutras, naturalmente).
Em todas estas decisões é cada vez mais obrigação ética
do médico pensar em termos globais – os recursos que
utiliza num doente deixam de estar disponíveis para outro
doente. Há um custo de oportunidade que é incorporado
no processo de decisão. Esse custo de oportunidade é, do
ponto de vista económico, um “preço”.
Na verdade, há muito tempo que os médicos estão habituados a tomar este tipo de decisões. Quando gerem o seu
tempo, e decidem atender mais rapidamente um doente,
por ser um caso de menor gravidade, para dedicarem
mais tempo ao caso de maior gravidade, estão implicitamente a atribuir um “preço” ao tempo dedicado a cada
um, tendo em conta as melhorias potenciais no estado de
saúde. Esse “preço” encontra-se expresso em unidades de
tempo. Este exemplo revela a principal característica do
“preço” – reflectir o custo de oportunidade de um recurso escasso.
O outro conceito relevante é o de anos de vida ajustados
pela sua qualidade. Nesse conceito reconhece-se que os
diferentes estados de saúde têm distinta valorização e
procura-se reflectir numa escala essa valorização. A escala definida funciona então como forma de comparar
diferentes estados de saúde entre si. A comparação do
“valor”, ainda que numa escala subjectiva de satisfação,
permite comparar intervenções alternativas em termos
dos benefícios gerados. Estes ganhos de benefícios
podem então ser confrontados com os custos, e dessa
forma ajudar o processo de decisão. Onde encontramos a
utilização destes conceitos é na denominada avaliação
económica, tradicionalmente aplicada a medicamentos e
a tecnologias pesadas.
A noção de QALY pondera cada ano remanescente da
vida de uma pessoa pela qualidade de vida esperada no
ano em questão. O seu cálculo de uma forma expedita
baseia-se na utilização de instrumentos testados, como o
EuroQoL (EQ-5D), havendo a transposição das respostas
para uma escala que representa valorizações obtidas num
grupo representativo da população. As perguntas
abrangem os aspectos de mobilidade, autonomia, capacidade de desenvolver actividades do dia a dia, dor e
ansiedade. A escala é construída inquirindo às pessoas
qual o número de anos de perfeita saúde que consideram
equivalentes a uma esperança de vida com determinada
condição.
Para além do valor de uma vida estatística e da qualidade
de vida, medida pelos “Anos de vida ajustados da qualidade” (QALY), é ainda possível obter estimativas do
valor de melhorias do estado de saúde, avaliadas pelo
consumo proporcionado pela maior esperança de vida e
pela maior taxa de sobrevivência.
Essa valorização assenta em diversas hipóteses e
parâmetros, encontrando-se a metodologia descrita em
Becker, Philipson e Soares (2005), mas tem como fundamento a valorização do consumo possibilitado pelo
rendimento médio do país, ponderado pela probabilidade
de sobrevivência em cada idade. Procura-se encontrar o
valor monetário que é equivalente a ter maior longevidade em termos de mais possibilidades de consumo hoje.
Nas contas realizadas, os autores incluem também Portugal.
Este valor indica que os ganhos de longevidade em 30
anos foram responsáveis por sensivelmente um terço do
“crescimento económico em conceito alargado”. Ilustra
também a forma como a análise económica procura
quantificar “ganhos em saúde”, neste caso associados
com ganhos de mortalidade ao nível da população.
O “PREÇO” DA SAÚDE
A distinção entre “cuidados de saúde” e “saúde” é crucial
para se conseguir penar no que seja uma definição
económica do preço da saúde. Para esse efeito, é
necessário explicitar um pouco mais o enquadramento
dentro do qual se define o “preço” da saúde.
Admite-se que o indivíduo retira satisfação do consumo
de bens e serviços (alimentação, viagens, filmes, etc...) e
de ter um bom estado de saúde. Além disso, quanto maior
saúde tiver, maior satisfação retira dos restantes consumos. Reconhece-se que a caracterização do estado de
saúde num indivíduo é multidimensional, No entanto,
para efeitos de exposição, admite-se que se pode reduzir
essa caracterização a um índice, que se designa genericamente por “saúde”.
A saúde do indivíduo é determinada por dois factores
essenciais: tempo dedicado à “produção” de saúde e consumo de cuidados de saúde. A relação desse consumo de
cuidados de saúde e do tempo dedicado à “produção” de
saúde com o nível de saúde alcançado depende de diversos factores, entre os quais a idade e a educação. Garantir
um mesmo nível de saúde tem custos mais elevados,
implica utilização de maior volume de recursos em pessoas mais idosas. Maior educação leva a uma maior
capacidade de, para o mesmo nível de recursos usados
(tempo e cuidados de saúde), alcançar um melhor estado
de saúde.
Nas suas escolhas sobre o nível de consumo, nível de
cuidados de saúde e tempo dedicado à “produção” de
saúde, o indivíduo tem que respeitar uma restrição: o
valor dos cuidados de saúde e dos bens de consumo
adquiridos não pode exceder o rendimento disponível do
indivíduo. O rendimento disponível é determinado pelo
tempo de trabalho e pela taxa de salário por unidade de
tempo. O tempo de trabalho é igual ao tempo disponível,
depois de descontado o tempo dispendido em outras
actividades (dormir, comer, lazer), líquido do tempo dedicado à “produção” de saúde. Este tempo disponível é
tanto mais elevado quanto maior for o stock de saúde.
Este conceito significa que não existe um preço único, de
mercado, para a saúde, uma vez que não se “compra”
saúde. O facto de não haver um mercado onde se possa
comprar “saúde” significa que não existe um “preço de
mercado” para a saúde. É necessário usar então um conceito ligeiramente distinto – sendo o preço um conceito
de escassez, pode-se definir o valor em termos dos recursos consumidos, de uma unidade adicional de saúde.
Existe, por isso, um “preço” diferente para a saúde de
cada um, consoante as suas características.
O preço da saúde é definido como o custo de oportunidade de ter que abandonar outros consumos para obter
mais uma unidade de saúde. Esse custo de oportunidade
contém diversos elementos: a aquisição de cuidados
médicos, valorizada ao preço respectivo, e o tempo dedicado à “produção” de saúde, valorizado à taxa de salário
por unidade de tempo.
Este preço será tanto maior quanto maior for o preço dos
cuidados médicos utilizados e quanto menor for a capacidade de produção de “saúde” (uma vez que se exige mais
recursos nesse caso). Salários mais elevados significam
também um maior custo de oportunidade do tempo, e
logo custos mais elevados, em termos de rendimento
sacrificado.
Resulta desta discussão que as despesas com cuidados de
saúde são apenas uma das componentes do “preço” da
saúde, faltando incluir o valor do tempo dispendido pelas
pessoas.
A este respeito, é bem conhecido que Portugal tem vindo
a ter despesas em saúde, face à riqueza gerada, que são
cada vez maiores. O crescimento das despesas com saúde
ficou-se a dever sobretudo ao ritmo de crescimento das
despesas públicas em saúde.
Os dois últimos anos, de quase estagnação da despesa
pública em saúde em termos nominais, foram uma
excepção à tendência histórica. Ainda é cedo para saber
se ocorreu uma alteração estrutural na dinâmica de
crescimento ou se foi apenas uma situação conjuntural de
eliminação de ineficiências (desperdício de recursos) que
permitiu esse menor crescimento, e uma vez esgotada a
capacidade de reduzir ineficiências se regressa ao ritmo
histórico.
Por outro lado, não se tem qualquer informação sobre o
maior ou menor tempo dedicado pelas pessoas a cuidados
médicos. É possível unicamente construir algumas visões
parcelares. Da evolução das actividades hospitalares,
observa-se uma redução do tempo médio de internamento, o que para um mesmo resultado final em termos de
saúde, se traduz num menor “preço” da saúde.
Em termos agregados, para um cidadão médio representativo, este factor pode ser visto como a probabilidade de
um internamento, multiplicada pela demora média e pelo
salário médio.
Os cálculos realizados com os valores referentes aos dias
de internamento revelam que este é ainda um factor
menor no crescimento das despesas com saúde, não excedendo os 3,5% das despesas com cuidados de saúde.
Os dias de internamento não são a única fonte de dias perdidos por doença. No entanto, não se encontra informação
sobre este tempo dispendido em tratamento de saúde facilmente disponível, como série cronológica. O Inquérito
Nacional de Saúde 2005/2006 permite, para esse ano, ter
uma aproximação maior, já que é explicitamente inquirido quantos dias um trabalhador faltou por motivo de
doença. Na amostra, 4,5% dos trabalhadores inquiridos
declararam ter faltado pelo menos um dia nas duas últimas semanas. A média de dias de falta, dado que faltou
pelo menos um, para este conjunto de observações foi de
5,65. Sabendo que em 2004 a população empregada foi
de 5,075 milhões e sendo a estimativa da população portuguesa total de 10,536 milhões, um individuo representativo faltou ao trabalho 3,2 dias por ano por motivo de
doença. Valorizando ao salário médio diário, o custo correspondeu a cerca de 143 por ano. Este valor equivale a
cerca de 15% do total das despesas em cuidados de
saúde. O valor encontrado desta forma é substancialmente mais elevado que o determinado através dos dias
de internamento, sugerindo que estes últimos dão apenas
uma visão parcelar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretendeu-se clarificar que valor e preço da saúde são
conceitos distintos. Distinguiram-se igualmente os conceitos de preço de cuidados de saúde e preço da saúde. Os
diferentes conceitos são quantificáveis do ponto de vista
económico, sendo que o valor da saúde pode ser decomposto em valor da vida e em valor da qualidade de vida.
A quantificação do valor da vida é feito recorrendo ao
conceito de vida estatística.
O preço da saúde, por seu lado, tem que ser definido
apropriadamente. Um preço é definido, em termos
económicos, pela escassez. No caso da saúde, corresponderá ao valor marginal da saúde, qual o esforço
necessário para se acrescentar mais uma unidade de
saúde.
O “preço” da saúde tem que reconhecer que, para aumentar o stock de saúde, é necessário usar cuidados de saúde
(tempo médico e de enfermagem, equipamento, meios de
diagnóstico, medicamentos, etc...) mas também tempo da
pessoa para que possa transformar esses cuidados de
saúde em saúde propriamente dita.
O preço é definido então, do ponto de vista económico,
como o custo de obter uma unidade adicional de saúde.
Esta definição implica que o preço é potencialmente não
linear (será diferente consoante a capacidade de beneficiar de cuidados de saúde, por exemplo) e é potencialmente distinto de pessoa para pessoa, já que aspectos
como o valor do tempo utilizado e a capacidade de transformar cuidados de saúde e tempo em saúde são distintos
para diferentes pessoas.