Infecção pelo vírus da hepatite B em doentes sujeitos a terapêutica
imunossupressora ou quimioterapia citotóxica - a propósito de um caso clinico
Infecção pelo vírus da hepatite B em doentes sujeitos a terapêutica
imunossupressora ou quimioterapia citotóxica – a propósito de um caso clinico
INTRODUÇÃO
O curso natural da infecção crónica pelo vírus da hepatite B (VHB) é
determinado pela inter-relação entre a replicação vírica e a resposta
imunitária do hospedeiro.
O VHB pode persistir, mesmo após recuperação serológica de hepatite aguda.
Indivíduos expostos ao vírus da hepatite B estão em risco de reactivação da
infecção quando a resposta imune se encontra suprimida.
Nos doentes com hemopatias malignas e em particular com o diagnóstico de
linfoma, submetidos a terapêutica citotóxica ou imunomoduladora, este problema
é especialmente relevante. A prevalência da infecção pelo VHB parece ser
superior nestes doentes em relação à população em geral. Além disso, nos
últimos anos, a inclusão do anticorpo monoclonal anti-CD20 em vários regimes de
tratamento, ao potenciar e prolongar a imunossupressão, constitui um factor de
risco adicional.
Existe clara evidência da necessidade da avaliação dos marcadores do VHB em
todos os doentes hematológicos, prévia ao início do tratamento, e da
importância da profilaxia e monitorização adequada nos doentes de alto risco.
CASO CLINICO
Doente do sexo masculino, com 76 anos, de raça branca, internado no Serviço de
Gastrenterologia por icterícia, ascite e edema dos membros inferiores com 3
semanas de evolução.
Tratava-se de um doente com diagnóstico de linfoma não-Hodgkin B, difuso de
grandes células, com apresentação extraganglionar como massa da parede
torácica. Iniciou tratamento de quimioterapia com R-CHOP (rituximab,
ciclofosfamida, doxorubicina, vincristina e prednisolona), tendo completado 5
ciclos, sem toxicidade significativa. Concluíra tratamento 2 meses antes, após
documentação de remissão completa.
Dos antecedentes destacava-se hepatite aguda há 30 anos, cancro da próstata
diagnosticado há 5 anos, e medicado desde então com acetato de Leuprorrelina e
cloridrato de Tamsulosin. De referir ainda existência de hábitos etanólicos
moderados (cerca de 40g álcool /dia desde os 20 anos e até há 1 ano) e
automedicação esporádica com Nimesulide por queixas osteoarticulares.
À admissão apresentava-se vigil e orientado temporo-espacialmente, apirético,
ictérico, hemodinamicamente estável, eupneico, abdómen mole e depressível, com
ascite moderada, não tensa, bordo hepático liso, palpável 3 cm abaixo do
rebordo costal direito, sem reacção peritoneal, membros inferiores com edema
bilateral até à raiz da coxa.
Analiticamente apresentava padrão de colestase e citólise hepática (AST = 2466
U/L, ALT = 2096 U/L, FA = 237 U/L, GGT = 102 U/L, Bilirrubina total = 27,5 mg/
dL e Bilirrubina directa = 20,8 mg/dL). Apresentava ainda trombocitopenia (Plaq
= 84.000), coagulopatia (INR = 1,6), e insuficiência renal (creat. = 1,41mg/dL,
ureia = 76mg/dL). As séries vermelha e branca estavam dentro da normalidade.
A ecografia abdominal revelava “fígado dismórfico e ecoestrutura difusamente
heterogénea, vesícula e vias biliares sem alterações, veia porta e supra-
hepáticas normais, baço sem alterações, (…) ascite livre moderada, ausência de
colaterais porto-sistémicos.”
De entre a avaliação etiológica efectuada destacava-se: serologia IgG positiva
para CMV, EBV e HVS 1 e 2; AgHBs negativo com anti-HBs, anti-HBe e anti-HBc
positivos; anti-VHC e anti-Delta negativos; B2M aumentada (5,5 mg/dL);
ferritina aumentada (9533 mg/dL).
Foi realizada paracentese diagnóstica, sendo o líquido ascítico compatível com
um transudado e exame cultural negativo.
Dada a ausência de evidência de doença hepática prévia e, face ao quadro de
insuficiência hepática aguda apresentado, foram ponderadas hipóteses de
etiologia medicamentosa, infecciosa ou eventual envolvimento hepático
secundário ao linfoma.
Foi iniciada terapêutica de suporte e, dadas as hipóteses etiológicas
consideradas, e a ausência de evidência de infecção, ao 6º dia de internamento
foi iniciada corticoterapia com prednisolona 40mg/dia, constatando-se melhoria
progressiva da citólise hepática (ALT = 379 U/L, AST = 193 U/L). Ao 11º dia de
internamento chegou a informação de DNA VHB positivo (1,2x105 UI/mL (5,11 Log).
Demonstrada a reactivação de vírus da hepatite B em doente com cicatriz
imunológica de infecção passada, iniciou Lamivudina 100 mg/dia, e desmame dos
corticóides, mantendo discreta melhoria analítica ao longo das 72h seguintes.
Ao 15º dia de internamento registou-se deterioração do estado clínico, com
entrada em choque séptico e morte em 24h, apesar de instituição de
antibioterapia de largo espectro e suporte vasoactivo. Isolando-se E.
Colimultirresistente no sangue e no líquido ascítico (cujo exame citoquímico se
mantinha compatível com transudado com escassas células).
DISCUSSÃO
O VHB é membro da familia dos hepadnaviridae, com genoma DNA circular de dupla
cadeia que replica através de intermediário RNA. Após entrada no hepatócito, o
DNA do VHB é transportado para o núcleo e convertido em DNA circular covalente
fechado (cccDNA) que persistirá no núcleo do hepatócito, cerca de 30-50 cópias/
cel, agindo como templatereplicativo estável para a transcripção viral. A
estabilidade e persistência do cccDNA, refractário mesmo aos fármacos
antivirais, e a longa sobrevida dos hepatócitos são os responsáveis pela
infecção persistente pelo VHB
1
.
O VHB é um vírus não citopático directo. Induz lesão tecidular de gravidade
variável pela estimulação de resposta imune protectora que por sua vez conduz à
destruição de células virais infectadas.
A resposta imunológica à entrada do VHB compreende uma resposta humoral e uma
resposta mediada por células. A primeira é um processo dependente dos
linfócitos B, com produção de anticorpos. A segunda está dependente, por um
lado, da activação da imunidade inata (macrófagos, linfócitos T e células NK)
levando à produção de citocinas e monocinas, como INF-gama e TNF-alfa, que
terão efeitos inibitórios directos na replicação de VHB. (clearencenão
citopático). Por outro lado, a resposta mediada por células resulta da
activação de linfócitos T citotóxicos (LTC), que induzem apoptose hepatocitária
via Fas (clearancecitopático).
A resposta vigorosa CD4+ CD8+ especifica para o vírus é induzida durante a
infecção e persiste décadas após clearenceviral. Há evidência de que o VHB
persiste em estado latente no figado e células periféricas MN, sendo a sua
replicação suprimida por células T antivirais (LTC). Portanto a resolução da
infecção não implica erradicação viral completa do VHB mas, provavelmente
reflecte um forte controlo imunológico pela resposta celular antiviral
CD4+CD8+1-2.
Está documentada a reactivação da infecção pelo VHB com flarese, raramente, com
descompensação hepática em 20 – 50% de portadores sob imunossupressão ou
quimioterapia, especialmente se corticóides incluídos.
Relativamente poucos estudos investigaram a associação entre infecção pelo VHB
e ocorrência de linfomas não-Hodgkin. No entanto, parece haver uma prevalência
significativamente maior da infecção nestes doentes em relação à população em
geral, quer se tratem de áreas endémicas quer não endémicas. A reactivação da
infecção VHB pode necessitar de interrupção da quimioterapia com consequências
adversas no prognóstico da doença hematológica2-3.
São factores de risco associados à reactivação do vírus da hepatite B: a
presença de Antigénio de superficie detectável (AgHBs), DNA VHB detectável,
Antigénio Hepatite B e (AgHBe), Anticorpos para Antigénio do core (anti-HBc),
idade jovem e sexo masculino. A corticoterapia é considerada factor de risco
para reactivação, estando identificado um receptor glucocorticóide que
reconhece uma sequência especifica de nucleótidos no DNA genómico do VHB
causando a sua activação3-4.
Nos últimos anos, o anticorpo monoclonal quimérico Rituximabdemonstrou a sua
eficácia no tratamento de linfomas não-Hogkin que expressam o antigénio CD20.
Ao actuar sinergisticamente com os fármacos citotóxicos e tendo poucos efeitos
secundários, passou a ser incluído com maior frequência nos regimes de
tratamento. No entanto, a terapêutica com Rituximabtem sido considerada um
factor de risco para reactivação do VHB, em particular nos doentes AgHBs
negativos e anti-HBc positivos, com múltiplos casos descritos de hepatite
fulminante
5
.
A maioria destes casos corresponderão a infecção B oculta, definida como a
presença de DNA VHB no fígado (com DNA VHB detectável ou indetectável no soro)
de indivíduos AgHBs negativos. A base molecular desta complexa entidade está
relacionada com a persistência de cccDNA VHB no núcleo dos hepatócitos. Nestes
casos, se DNA HBV detectável, o seu valor é muito baixo (< 200 UI/mL) e a
determinação de DNA VHB pela técnica de PCR em tempo real constitui o
goldstandard
6-8
.
Os mecanismos envolvidos na reactivação da infecção pelo VHB envolvem a
supressão da resposta imunológica específica do vírus, causada pela
imunossupressão, favorecendo o aparecimento de alta carga viral. Por sua vez a
viremia elevada e a baixa resposta imune facilitam o desenvolvimento de
mutantes. A reconstituição imune, que se segue semanas a meses após retirada da
imunossupressão e recuperação da neutropenia pode estar associada a lesão
hepatocelular de gravidade variável.
A Lamivudina é o fármaco antiviral mais estudado. A Lamivudina reduz a
frequência e a gravidade dos flares, e melhora a sobrevida comparativamente a
controles históricos
4-5
,
8
.Foi demonstrado que a profilaxia com Lamivudina é superior a terapêutica
deferida em doentes com hepatite B sujeitos a quimioterapia, reduzindo o risco
de reactivação e hepatite pelo VHB em cerca 79%3,
9-12
.
Está recomendado o tratamento com análogos dos nucleós(t)idos dos doentes com
infecção activa, e a profilaxia com anti-retrovirais dos portadores inactivos.
A profilaxia deve-se iniciar, pelo menos, 1 semana antes de iniciar a
quimioterapia. A escolha do fármaco pode depender da história antiviral prévia,
e se está ou não programado tratamento prolongado. Está actualmente recomendado
que os doentes, especialmente aqueles com níveis elevados de DNA VHB, estejam
protegidos com análogos com alta potência antivírica e elevada barreira de
resistências (Quadro 1)
13-14
.
Quadro 1. Sumário das recomendações da American Association for the Study of
Liver Diseases para monitorização e tratamento dos doentes com infecção pelo
vírus da hepatite B sob imunossupressão ou quimioterapia citotóxica .
Modificado de Lok at al13.
Habitualmente propõe-se continuar tratamento profilático com anti-retroviral
por 6 a 12 meses após o final da quimioterapia. O risco de reactivação após
paragem Lamivudina é de 25%
11
,
12
. Para prevenir a reactivação tardia é importante conhecer a carga viral no
inicio e, se DNA VHB > 2000 UI/mL deve-se fazer terapêutica a longo prazo com
os endpointshabituais da terapêutica para a hepatite B crónica13-14.
Todos os doentes sujeitos a quimio ou imunoterapia devem ser testados para VHB
antes de iniciar tratamento e monitorizados, serológica e bioquimicamente
(ALT), periodicamente. Não estando nestes doentes indicado tratamento
profiláctico antiviral, mas sim a determinação inicial dos níveis de DNA VHB e
posterior monitorização cada 2-4 semanas; e tratar com análogos dos nucleós
(t)idos logo que confirmada reactivação e antes da elevação de ALT. A vacinação
dos seronegativos para o VHB está recomendada13-14.
Após paragem do tratamento com imunossupressor ou quimioterapia deve-se
continuar a monitorizar no mínimo por 6 meses. No caso de doentes inseridos em
protocolos terapêuticos com Rituximabrecomenda-se fazer tratamento até 52
semanas após paragem de quimioterapia5.
Neste caso, tratando-se de um doente com marcadores de infecção passada, a
monitorização do statusDNA VHB poderia ter permitido antecipar a possivel
reactivação da infecção pelo VHB e teria indicado a necessidade da introdução
de terapêutica profiláctica.
Apesar dos factores desencadeantes da reactivação espontânea e da recaída
clínica da infecção pelo virus da hepatite B serem mal compreendidos, o
conhecimento de que se comporta como uma doença imunológica em que a gravidade
da doença e a frequência e amplitude da resposta virulógica são influenciados
pela capacidade da resposta imune do hospedeiro vão-nos permitir avançar para
atitudes terapêuticas que se começam a revelar eficazes na prevenção dos
flarese da doença hepática sintomática em portadores inactivos ou com infecção
oculta.