Hemorragia digestiva alta associada ao consumo de ácido acetilsalicílico e de
anti-inflamatórios não-esteróides em Portugal
Hemorragia digestiva alta associada ao consumo de ácido acetilsalicílico e de
anti-inflamatórios não-esteróides em Portugal
Upper gastrointestinal bleeding associated with acetylsalicylic acid and non-
steroidal antiinflammatory drugs in Portugal
Bento Albuquerque Charrua
Consultor de Gastrenterologia; E-mail: bento.charrua@gmail.com
A importância dos anti-inflamatórios não esferóides (AINE) e do ácido
acetilsalicílico (AAS) na patogénese das lesões gastroduodenais, percussoras
das hemorragias digestivas altas (HDA), tem sido demonstrado através de várias
publicações, quer nacionais quer estrangeiras.
Na génese desta complicação estão várias patologias, entre as quais as úlceras
pépticas, que são a sua causa mais frequente, e as erosões gástricas. Aliás,
entre 40% a 50% dos doentes, que tomam cronicamente AINES, terão erosões(1). No
que se refere ao AAS existem descrições do seu efeito, ao nível da mucosa
gástrica, desde há muitos anos(2).
Como em Portugal estes fármacos são dos mais consumidos
(3)
, é natural que surjam várias HDA associadas ao consumo destes
medicamentos. O impacto estimado, de determinada patologia, na saúde da uma
comunidade, pode ser obtido calculando a percentagem de risco atribuído à
população que representa e a proporção de indivíduos doentes que teriam ficado
de boa saúde, se nenhum deles tivesse sido exposto a um factor de risco
específico(4).
Este impacto foi descrito, numa meta-análise, publicada no fim da década de
noventa e tinha em conta as úlceras pépticas referentes à população dos Estados
Unidos da América. Neste estudo, acerca dos factores de risco das úlceras
pépticas associadas ao uso de AINES, infecção por Helicobacter pylori (Hp) e
consumo de tabaco, a taxa foi de 24%,48% e 23%,respectivamente(5).
Recentemente, foi publicado um trabalho onde se postulava que o risco de
complicações gastrointestinais, associado ao consumo de AINES seria quatro a
cinco vezes superior ao da população que não consome estes medicamentos. O
mesmo estudo, também afirmava que este risco era, ainda, mais elevado nos
idosos e doentes com antecedentes de úlcera péptica(6).
A patogenia da lesão da mucosa gástrica pelos AINES tem sido alvo de várias
teses publicadas na literatura médica mundial.
A tese mais difundida está relacionada com a redução da síntese gástrica das
prostaglandinas, através da supressão dos inibidores selectivos da
ciclooxigenase (COX 1 e COX 2) e, também, por causa da irritação tópica. Estes
factores levam ao decréscimo do fluxo sanguíneo, danos no epitélio e aumento do
número de neutrófilos aderentes ao endotélio vascular. Todos eles, no seu
conjunto, contribuem para a lesão da mucosa gástrica
(7)
.Torna-se, por isso, necessário ter cuidado com estes agentes, sobretudo nos
doentes que, comcumitantemente, tomam doses baixas de AAS.
Com a constatação dos efeitos adversos dos AINES e AAS sobre a mucosa
gastroduodenal, surgiram, como era de esperar, varias estratégias no sentido de
diminuir estes efeitos.
As mais actuais, indicam como prioridades, dado o elevado custo dos fármacos, a
intervenção junto dos grupos de indivíduos de maior risco: doentes com mais de
60 anos, indivíduos com antecedentes de queixas gastrointestinais prévias
especialmente se associadas a doença ulcerosa, hemorragia, perforação e
cirurgia gástrica prévia(8).
Assim sendo, a terapêutica preventiva deve ter em conta, além dos factores já
expostos, o uso de AINES selectivos na inibição da COX 2, protecção gástrica
com inibidores da bomba de protões (IBP) e erradicação do Hp(9). A respeito
desta última medida, convém salientar que, a relação entre Hp e AINES, na
etiopatogenia
da úlcera péptica ainda é controversa. Ficou bem estabelecido, na Reunião de
Consenso de Maastricht, que Hp e AINES são factores de risco independentes, na
patogenia da úlcera péptica e na hemorragia secundária da úlcera péptica (UP).
Os AINES devem ser considerados separadamente da aspirina neste tema(10).
No presente número do GE é publicado, por Gilberto Couto etal., um estudo
retrospectivo e multicêntrico, onde os autores avaliam expressão e
consequências da HDA associada ao consumo de AAS/AINE, no nosso país, durante o
ano de 2006.
Para o efeito, escolheram nove Centros Hospitalares, que reflectem o que se
passa numa população de cerca de 2,5 milhões de habitantes. Como método de
trabalho, usaram a recolha de dados através da consulta dos processos clínicos,
dos doentes internados por HDA. Nos Centros Hospitalares, escolhidos, foram
englobados hospitais centrais e hospitais distritais, incluindo a Região
Autónoma dos Açores, o que, a meu ver, valoriza bastante a amostra, pois,
abrange grande parte do território nacional.
Na discussão e análise dos resultados, relativos à HDA associada ao consumo de
AAS/AINES observa-se e uma incidência e mortalidade estimadas por número de
consumidores/ano, inferior a outras series, inclusivamente às series oriundas
de Espanha, país que tem uma população semelhante à nossa. Este facto não deixa
de ser curioso, atendendo à idade, ao número de patologias associadas dos
nossos doentes que consomem AINES, e, ainda, à elevada incidência de HP na
população portuguesa. Pese embora o facto de a relação entre Hp e AINES, na
etiopatogenia da UP, ser ainda controversa.
Esta aparente contradição, no que se refere à baixa incidência e mortalidade,
pode estar relacionada com a forma utilizada na recolha dos dados.
Por outro lado, no que respeita à gastroprotecção, os dados referidos, apontam
para uma taxa de quinze por cento de doentes que faziam protecção gástrica,
inclusive naqueles que eram considerados de risco (idade superior a 65 anos e/
ou história de úlcera péptica). Estes números são parecidos com os de outras
séries
(11)
e, de acordo com o inquérito efectuado junto dos médicos de Medicina Geral e
Familiar, fica a ideia de que existe conhecimento, junto da população, no que
se refere à necessidade de fazer gastroprotecção. Aqui chegados, poderão pôr-se
algumas questões: se assim é, então porque é que são tão poucos a faze-la? Será
que este facto se deve, únicamente, ao elevado custo dos medicamentos? Ou, por
outro lado, terá que ver com argumentos pouco convincentes no sentido de
demonstrar ao doente os verdadeiros benefícios da terapêutica de protecção?
Os autores referem, ainda, que o Hp foi raramente testado, na endoscopia
inicial. Como a grande maioria das HDA corresponderam a UP, tudo leva a crer
que dada a elevada prevalência do Hp, nestas situações, e a baixa sensibilidade
da biopsia na UP sangrante(12), a erradicação foi feita, de acordo com o
estabelecido na Reunião de Consenso de Maastricht. Acresce, ainda, que, do
ponto de vista clínico, não é possível distinguir entre as lesões associadas ao
Hp ou aos AINE. Por isso, parece prudente, nestes casos, erradicar o Hp e
suspender os AINE. Caso o doente tenha necessidade de voltar a tomar este tipo
de medicamentos, deve ser usado um inibidor específico da COX2.
Finalmente, no que respeita à terapêutica endoscópica e à utilização dos IBP,
parece claro que a terapêutica injectável, usada na hemostase local, associada
à perfusão de IBP, em altas doses, é altamente eficaz. Aliás como tem sido
descrito na maioria das publicações, sobre este tema. Merecem, ainda, realce os
resultados conseguidos com o esomeprazol
(13)
, tanto mais que foram obtidos num ensaio randomizado.
Concluindo, parece-me que o trabalho apresentado demonstra que é possível fazer
estudos que incluam vários Centros Hospitalares e revela a importância do
consumo de AAS/AINE na patologia das complicações, de algumas lesões
gastroduodenais. O facto da prevalência, da HDA e da mortalidade, ser inferior
aos números relativos a outros países ocidentais, não me parece relevante e,
poderá ter outra expressão se forem utilizados métodos distintos, na colheita
de dados.
Passados cerca de quatro anos desde que começou o estudo PARAINES, haverá,
certamente, algumas modificações, sobretudo no que se refere ao custo dos
medicamentos e funcionamento dos Centros Hospitalares. Seria, por isso, muito
interessante, a realização de mais ensaios, multicêntricos, que pudessem
validar, ou não, os resultados obtidos neste estudo.