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EuPTCVHe0872-81782010000600003

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variedadeEu
ano2010
fonteScielo

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Hepatite C aguda no profissional de saúde - revisão a propósito de um caso clínico

INTRODUÇÃO O virus da hepatite C (VHC) é uma das causas mais importantes de doença hepática, responsável nomeadamente por hepatite crónica, cirrose, descompensação hepática e carcinoma hepatocelular1. Estima-se que cerca de 3% da população mundial esteja infectada por este vírus1. A hepatite C aguda é habitualmente assintomática e de difícil diagnóstico, ocorrendo as formas sintomáticas em apenas 10 a 15% das pessoas infectadas2.

Na grande maioria dos casos (55 a 85%), a infecção evolui para formas crónicas2,3. O Profissional de Saúde (P.S.) é infectado por via parentérica e/ ou através da exposição mucosa4-5. Neste grupo populacional, a hepatite C, para além das repercussões clínicas descritas, pode ter consequências legais e sociais. O objectivo da vigilância destes profissionais é possibilitar o tratamento adequado no momento certo, evitando a evolução para formas crónicas.

A sua complexidade no que diz respeito aos aspectos epidemiológicos e a cofactores que modificam a evolução tem dificultado, de alguma forma, a sua prevenção e controlo. Os autores descrevem sucintamente um caso clínico ilustrativo deste problema.

CASO CLÍNICO MJMP, 22 anos, sexo feminino, aluna de enfermagem, sofreu uma picada acidental a nível do dedo da mão esquerda com agulha oca, utilizada em doente com hepatite C crónica. Este último, apesar de ter actividade vírica, não tinha indicações para tratamento.

Para além da retirada imediata das luvas, medidas de desinfecção locais e colheitas para anti-HBs (anticorpo de superfície do vírus da hepatite B) (vacinada), anti-VHC (anticorpo para o vírus da hepatite C) e anti-VIH (anticorpo para o vírus da imunodeficiência humana), a profissional de saúde foi aconselhada e orientada para consulta de Virologia, em Hospital de Dia de Doenças Infecciosas do Centro Hospitalar de Coimbra. Verificou-se imunidade para o VHB e ausência de anticorpos para VHC e VIH. Na avaliação da semana estava assintomática, tendo realizado colheitas que revelaram: AST 18 UI/ml e ALT 21 UI/ml, anti-VHC negativo e RNA-VHC positivo pela técnica de Polymerase Chain Reaction-Real Time (PCR-RT) 6 601 126 UI/ml (6,8 log), o que levou a testar a amostra sanguínea basal pela mesma técnica, que revelou RNA-VHC indetectável. Tratava-se de uma hepatite C aguda, demonstrada por técnica virológica. A aluna manteve-se assintomática, pelo que foi aconselhada vigilância clínica e controlo laboratorial, prevendo-se novos testes bioquímicos, serológico  (anti-VHC) e virológico (RNA-VHC) 4 semanas depois. Um pouco antes da semana iniciou um quadro de icterícia, astenia e colúria, apresentando nesta altura os seguintes valores bioquímicos: AST1250 UI/ml, ALT 2534 UI/ml, BT 67 μnol/L. O RNA-VHC da semana revelou um valor de 338 939 UI/ml (5,5 log). Nesta altura e por ter havido uma descida de 1,3 log em 4 semanas, optou-se mais uma vez por vigilância clínica e laboratorial semanais.

O genótipo do VHC não foi determinado por não se ter tomado qualquer decisão terapêutica. Houve uma boa evolução clínica e o controlo da 12ª semana mostrou uma descida nos valores das aminotransferases (ALT 75 UI/L, AST 38 UI/L) e um RNA-VHC de 97 UI/ml.

O controlo realizado 1 mês depois (à 16ª semana) revelou virémia indetectável e bioquímica sem alterações. O surgimento do quadro clínico acompanhado de icterícia e o baixo valor do RNA-VHC à 12ª semana, indiciavam possibilidade de resolução espontânea do VHC, o que aconteceu com esta profissional de saúde.

Esta desenvolveu hepatite C aguda, resultante de um procedimento invasivo, isto é picada acidental com agulha proveniente de colheita de sangue a fonte positiva para o VHC, o que ilustra a importância da hepatite C como doença ocupacional.

DISCUSSÃO Apesar das mudanças epidemiológicas que se têm vindo a assistir, este vírus continua a ser transmitido fundamentalmente por via parentérica, isto é, drogas injectáveis, equipamentos médicos contaminados (ex: unidades de diálise), tatuagens, etc, e mais raramente através de transfusão de sangue, via sexual ou perinatal1,6. Alguns procedimentos cosméticos, religiosos ou culturais continuam a levantar controvérsias7.

O risco de transmissão do VHC é determinado pela infecciosidade do fluido orgânico e pela natureza dos tecidos expostos. Após exposição, a probabilidade de infecção depende fundamentalmente dos seguintes factores: a) via de transmissão, isto é, pele intacta, mucosa ou via percutânea, b) concentração das partículas virais no fluido implicado8, e c) volume de material infectante5. A profundidade da picada, a utilização de agulha oca e a co- infecção pelo VIH, são os três factores mais importantes associados a um maior risco de transmissão1,9.

No caso do Profissional de Saúde a infecção ocorre sobretudo por exposição ao sangue através das vias percutâneaou mucosa. Outros fluidos podem considerar-se potencialmente infecciosos (LCR, líquido sinovial, pleural, peritoneal e amniótico)5, não havendo, no entanto, qualquer registo de infecção após a exposição aos mesmos. Também e apesar de alguns casos relatados de exposição a grandes volumes de sangue a nível de pele intacta, nenhum caso foi identificado através desta via5. A transmissão através de exposição mucosa foi descrita em casos em que grande quantidade de sangue salpicou os olhos de um P.S.8 Segundo o Centers for Disease Control (CDC) o risco de transmissão do VHC após picada com agulha contaminada é cerca de 5 a 6 vezes superior ao do VIH (1,85 versus 0,36%)5,8, apesar de estudos mais recentes registarem taxas mais baixas (0,2 - 0,5%)10-13. Obviamente que ter em conta vários factores que podem modificar estas percentagens: os viriões penetram através da pele e este inóculo é significativamente mais infeccioso se a exposição resultar de uma picada com agulha oca ou caso se trate de uma fonte com altos níveis de RNA- VHC8. Após a transmissão do VHC a evolução está dependente de factores do hospedeiro e de factores virais. O modo de transmissão e a idade de aquisição também alteram o curso desta infecção1.

Apesar da detecção da hepatite C aguda ser difícil, visto ser na maioria dos casos assintomática, 15 a 20% do total das hepatites agudas diagnosticadas são da responsabilidade do VHC14-16. O quadro de hepatite aguda ocorre em geral, 2 a 12 semanas após a exposição (média 7 semanas) e dura 2 a 12 semanas17, 10 - 15% dos indivíduos com hepatite C aguda têmuma resolução espontânea18, sendo esta probabilidade maior nos casos sintomáticos comparativamente com as formas subclínicas ou assintomáticas1,15,19-22. Nas formas sintomáticas, a clearance viral ocorre em quase metade dos casos, tendo lugar por volta da 10ª - 12ª semana após o início dos sintomas15. Inversamente alguns estudos demonstraram que em nenhum dos indivíduos assintomáticos ocorreu a eliminação espontânea do VHC15. (Fig. 1)

Fig. 1. Exposição ao VHC.

O quadro clínico da hepatite aguda é geralmente precedido de fadiga, mialgias, náuseas, vómitos, dores abdominais ou febre baixa15,23. Este quadro é ligeiro na maioria dos casos, podendo raramente assumir formas mais severas e prolongadas ou evoluir para formas fulminantes1,15. Estas últimas ocorrem sobretudo na presença de alguns cofactores, nomeadamente em utilizadores de drogas endovenosas (UDEV) e na infecção concomitante pelo VIH24. em 10 a 20% dos casos ocorre icterícia19, embora alguns estudos revelem percentagens mais elevadas em UDEV e em idosos (69%)1. Parece que os doentes que desenvolvem icterícia tendem a ter taxas maiores de resolução espontânea do VHC, comparativamente com os que têm infecção assintomática1,25. A icterícia, bem como a presença de sintomas de um modo geral, parecem ser bons indicadores de resposta imune do hospedeiro, originando maior probabilidade de clearance viral25.

Outros factores têm sido descritos como estando associados a uma maior taxa de resolução espontânea, tais como sexo feminino15,25, raça branca 15,26 , genótipo 327, virémia baixa28 e um rápido declínio do valor do RNA-VHC nas primeiras 4 semanas20, facto verificado no caso acima descrito. Pelo contrário a raça negra e a co-infecção pelo VIH estão associadas a uma mais elevada taxa de persistência da infecção1.

No caso descrito, o sexo feminino, a idade e a raça branca constituíram factores favorecedores da resolução espontânea do VHC.

Vários mecanismos parecem contribuir para a persistência do vírus, tais como uma ineficácia da resposta das células T perante a infecção viral, elevada taxa de mutações, desenvolvimento de quasispécies29 e uma possível interacção entre as proteínas virais e variadas proteínas intracelulares do hospedeiro15,25.

A eliminação espontânea do VHC tem sido observada nos primeiros meses desta interacção entre o vírus e o hospedeiro. Uma vez estabelecida a infecção crónica, a resolução espontânea é rara, daí este período inicial ser de crucial importância na evolução da doença15.

Em geral, em todos aqueles em que a infecção resolve espontaneamente, os níveis de RNA-VHC permanecem indetectáveis25.

Apesar de não serem comuns valores das aminotransferases superiores a 10 vezes o valor normal (VN), casos registados com valores acima de 20 VN15,23,o que se verificou no caso acima relatado.

Não teste serológico específico para a detecção da hepatite C aguda. A presença de anticorpos isolados não tem valor diagnóstico e muitas vezes aquela é suspeitada quando os indivíduos têm anti-VHC positivo. Num Profissional de Saúde torna-se mais fácil a documentação da infecção após a ocorrência de uma exposição acidental. A seroconversão num indivíduo previamente negativo é a forma de estabelecer o diagnóstico correcto.

Assim, é sugestivo de u ma hepatite C aguda, a presença de pelo menos um dos seguintes critérios: a) exposição conhecida ou suspeita ao VHC nos 4 meses precedentes, b) documentação de seroconversão recente (anti-VHC negativo para anti-VHC positivo), c) elevação da ALT (> 20 VN) e d) exclusão de outras causas de doença hepática1, 23.

O IgM anti-VHC não provou ser um bom marcador, visto que as suas concentrações permanecem mais ou menos constantes, quer nas formas agudas, quer crónicas1,30.

O IgG anti-VHC é detectável apenas por volta dos 2 a 3 meses após a exposição, embora técnicas mais recentes o detectem mais precocemente. São os testes qualitativos ou quantitativos para detecção do RNA-VHC, que nos permitem estabelecer o diagnóstico, sendo por vezes os únicos testes positivos na infecção aguda (ex: real-time (RT) PCR, branched DNA (bDNA), transcription- mediated amplification (TMA))1. A detecção do RNA-VHC sem a presença do anticorpo, sugere uma hepatite C aguda, especialmente quando seguida de seroconversão.

No momento do acidente o P.S. deve realizar os chamados testes baseline, nomeadamente bioquímica, Anti-VHC e RNAVHC5; a sua realização vai permitir conhecer o status do profissional.

Durante o seguimento, a bioquímica e um teste virológico devem ser repetidos entre as 2 e as 4 semanas; nesta altura, e devido à flutuação do RNA-VHC, recomenda-se também a realização do anti-VHC, para que o teste virológico não seja o único marcador nesta fase. Foi demonstrado no homem, a presença do RNA- VHC entre os 3 e os 14 dias após a exposição ao vírus8,31-32. Um teste virológico positivo entre a e a semana (pelo menos sem grande decréscimo em relação ao valor inicial) traduz uma baixa probabilidade de clearance viral23. A importância da repetição do RNA-VHC baseia-se, por um lado, na ocorrência de casos raros de falsos positivos e, por outro lado, nas flutuações que o RNA-VHC sofre no decurso de uma hepatite C aguda, o que reforça a necessidade da sua realização algumas semanas mais tarde em todos os indivíduos com resultado negativo mas com suspeita da infecção aguda8,30.

O controlo clínico e laboratorial depende da evolução, permitindo assim acompanhar a necessidade de tratamento.

Se por um lado pode não ser necessário tratar um Profissional de Saúde que poderá ter hipóteses de resolução espontânea, por outro lado, esta vigilância permite evitar a evolução para a cronicidade (ver Proposta de Controlo Laboratorial). (Quadro 1)

Quadro 1. Proposta de controlo laboratorial.

Todos os estudos realizados têm demonstrado que benefício em tratar a hepatite C aguda, ficando claramente reduzido o risco de evolução para a cronicidade1,23,25,33. Num artigo em que são analisados 17 estudos, envolvendo 369 doentes tratados, foi demonstrada uma Resposta Viral Sustentada (RVS RNA- VHC indetectável 24 semanas após final do tratamento) em 62% nos doentes tratados, comparativamente com 12% nos não tratados18. A possibilidade de cura pode atingir os 91% nos indivíduos sintomáticos7. Jeackel et al obteve com IFN alfa-2b em monoterapia, durante 24 semanas, uma RVS de 98%, independentemente do genótipo, utilizando uma dose de indução diária de 4 semanas33.

Apesar de não estar bem definido qual a terapêutica ideal, o tratamento com Interferão Peguilado (PEG-IFN) demonstrou melhores resultados comparativamente com o IFN convencional23,25,34-35.

Enquanto Kamal et al em 2004, com a utilização do IFN convencional conseguiu 85% de RVS36, um estudo alemão mais recente, demonstrou em 89 doentes tratados com PEG-IFN alfa-2b durante 24 semanas, uma percentagem global de cura de 71%, que atingiu 89% (70/89), nos doentes com boa adesão ao tratamento23. Tal como em outros estudos, o tratamento foi bem tolerado.

A questão mais importante é conhecer o timing apropriado. Os estudos até agora realizados não são muitos e os tamanhos das amostras nem sempre suficientemente demonstrativos. Não está bem definido se é melhor tratar imediatamente ou aguardar até que haja indícios de que o doente ou não desenvolver uma infecção crónica, não havendo infelizmente marcadores que nos façam predizer esta evolução.

O estudo de Kamal25 que envolveu uma amostra importante de doentes (n = 175), verificou uma RVS de 95,3%, 93,2%, 76,6%, respectivamente, consoante início da terapêutica à , 12ª ou 20ª semana. Quanto à relação RVS/genótipo os resultados foram: G1 - 72%, G2 - 100%, G3 - 93% e G4 - 84%. Nos indivíduos com genótipo 1, a melhor RVS foi conseguida quando o tratamento foi iniciado à semana, versus 12ª ou 20ª semana. No G4, não se verificaram diferenças entre a ou 12ª versus semana 20. O estudo sugere que, exceptuando no G1, iniciar o tratamento da fase aguda à ou 12ª semana, não altera a eficácia do tratamento.

Relativamente ao G4 e pelo facto da população portuguesa estar maioritariamente infectada pelo G4 c/d37 o seu comportamento em termos de sucesso terapêutico assemelha-se muito ao G1 38 , ao invés dos resultados apresentados por Kamal e outros autores39. Nesses países o genótipo predominante é o 4a, que tem uma resposta à terapêutica, que mais se aproxima do G2 e G3. Entre nós seria razoável, que a atitude perante o genótipo 4 fosse semelhante à do genótipo 1.

Independentemente do momento em que deve iniciar o tratamento da hepatite C aguda, parece que um período de 12 semanas permite uma RVS de 88,5%, com boa tolerância e poucas descontinuações terapêuticas ou necessidade de ajuste de dose25.

Segundo os dados de Kamal et al, no follow-up destes doentes tratados, verificou-se que a resposta viral se mantém para além de 48 semanas após o final do tratamento, sugerindo que o tratamento da infecção aguda reduz claramente a evolução para formas crónicas25,40.

Concluindo e esquematizando as questões mais frequentes: 1) Qual o momento certo para iniciar tratamento, considerando a possibilidade de resolução espontânea? Admitindo que 1) a presença de RNA-VHC à - semana, com valores sobreponíveis aos iniciais, traduz uma baixa probabilidade de resolução23 2) o sucesso terapêutico não difere muito, com o início do tratamento à ou 12ª (salvo no genótipo G1)25, uma estratégia  razoável seria uma vigilância apertada e iniciar tratamento à 12ª semana, nos casos sintomáticos, caso a virémia continue detectável18,25, admitindo-se um início mais precoce ( semana) nos indivíduos assintomáticos 7,35,41 e em indivíduos com G1 e virémias acima de 800 000 IU/mL42.

2) Qual o melhor esquema terapêutico? O uso do PEG-IFN é indiscutível, pelos melhores resultados obtidos, comparativamente com o Interferão convencional23,25.

A combinação de PEG-IFN + Ribavirina ainda não foi testada extensivamente de forma a que permita concluir que o seu uso combinado seja melhor que o PEG-IFN em monoterapia.

Os estudos realizados demonstraram que a terapêutica dupla não modifica muito os resultados35,36; no entanto, poder-se-á propor a terapêutica em associação nos casos de coinfecção pelo VIH e genótipo 1, isto é, reservar a Ribavirina para os casos mais difíceis de tratar1. (Quadro 2)

Quadro 2. Proposta de terapêutica.

3) Qual o tempo de tratamento? Uma estratégia adequada seria tratar durante 12 semanas42 e reservar um tempo mais prolongado de 24 semanas, se não se verificar resposta à semana e em outras situações: genótipo 1, cargas virais elevadas, co-infecção pelo VIH, Não Respondedor ou Relapser em esquema curto anterior. O tempo apropriado de follow-up destes doentes deve ser de 1 ano após o tratamento, no sentido de vigiar uma possível recaída18.

Como em tudo, a prevenção é a melhor estratégia para reduzir o risco e não havendo vacina nem profilaxia pós-exposição, as medidas devem assentar em princípios, tais como práticas/uso das precauções universais de forma correcta e sistemática.


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