Hemorragia digestiva alta associada ao consumo de AAS e AINEs em Portugal.
Relembrem-se da profilaxia!
Hemorragia digestiva alta associada ao consumo de AAS e AINEs em
Portugal.Relembrem-se da profilaxia!
Upper bleeding associated to acetilsalicilic acid and NSAIDs in Portugal.
Remember prophylaxis!
J. Alexandre Sarmento
Assistente Hospitalar Graduado de Gastrenterologia do HSJ (Porto)
Correspondência
O estudo PARAINES publicado no GE
1
levanta várias questões importantes sobre os problemas relacionados com as
hemorragias digestivas associadas ao uso de AINEs e acido acetilsalicílico
(AAS), assunto de grande actualidade, dada a prescrição cada vez mais frequente
destas medicações sobretudo em doentes mais idosos e com mais co-morbilidades.
O trabalho, multicêntrico, reúne um número apreciável de doentes todos com
hemorragia digestiva alta, com uso à data de inclusão, de AINEs e/ou de AAS,
correspondendo a 20% do total de admissões por hemorragias digestivas altas, em
seis dos nove centros envolvidos.
É de realçar nos resultados, o facto de 68,7% dos doentes terem mais do que 65
anos e terem falecido no hospital 10 doentes (3,6%). Significativamente, a
média de idades foi de 71 ±16 anos (16 - 98 anos) apresentando a maioria co-
morbilidades importantes sobretudo hipertensão arterial, diabetes e doenças
cardiovasculares e cerebro-vasculares; os episódios hemorrágicos foram
acompanhados de instabilidade hemodinâmica em 43, 1% dos casos, com hemoglobina
média à admissão de 9,2 g/dl e necessidade de suporte transfusional em 62,7%,
com uso em média de 3,1 ±2,7 unidades de sangue. No total da amostra, 10
doentes (3,6%), foram enviados para cirurgia apesar de tratamento endoscópico,
por vezes repetido e terapêutica concomitante com IBPs. A estadia no hospital
demorou 8,4 ±7,8 dias em média.
Trataram-se portanto de quadros hemorrágicos com mortalidade não despiciente,
gravidade clínica significativa e prolongados internamentos.
Como é apontado nas conclusões deste provocativo trabalho, levanta-se a questão
se muitas destas situações não poderiam ter sido evitadas e se há ou não margem
para melhorar a hemostase endoscópica e a terapêutica concomitante. De facto,
havia história prévia de úlcera péptica (UP) em 24,1% dos doentes, com
episódios de hemorragia em 61% destes; foi feito diagnóstico de UP em cerca de
50% dos doentes na admissão (na maioria com estigmas de alto risco) havendo
apenas 15% dos doentes, a fazer algum tipo de profilaxia, coma particularidade
de fazerem protecção com sucralfate, antiácidos e/ou ranitidina, 25% destes.
Independentemente do número de doentes com complicações hemorrágicas pelo uso
de AINEs, aparentemente, ser menor que o observado noutros países, importa,
face aos resultados observados neste trabalho em que a maioria dos doentes
fazia AAS e uma grande percentagem outros AINEs, com os coxibes em franca
minoria, tirar algumas conclusões, para melhorar o panorama observado. Também
alguns doentes e provavelmente cada vez mais, fazem clopidogrel e/ou estão
hipocoagulados com varfarina, o que agrava ainda mais a situação.
Parece entretanto pequeno, o número de apenas 20% dos doentes com hemorragias
em 6 dos 9 centros tomarem AINEs, o que pode ser devido ao formato
retrospectivo do estudo, atendendo, como sabemos, à dificuldade de colheita e
registo correcto de informações, nestas circunstâncias. As questões mais
pertinentes que este artigo levanta e a que há que responder são:
A que doentes se deve prescrever profilaxia e qual?
Deverá também fazer-se profilaxia aos doentes a tomar só AAS em baixas doses?
Qual o papel e que atitude ter em relação ao Helicobacter pylori(Hp)?
Prescrever sempre um coxibe se o doente necessita de AINEs?
No tratamento endoscópico quais as melhores técnicas de hemostase?
No seguimento da hemostase endoscópica que medicação fazer?
As respostas a estas questões vêm muito bem fundamentadas e actualizadas, nas
Guidelines for prevention of NSAID related ulcer complicationsdo
AmericanCollege of Gastroenterology
2
. Refere-se no texto que 25% dos consumidores de AINEs, podem desenvolver
úlcera péptica, com perfuração ou hemorragia em 2-4%, havendo nos EUA 100.000
internamentos por ano e 7.000 a 10.000 mortes neste contexto, especialmente nos
chamados doentes de alto risco.
Enfatiza-se com muita propriedade que quando há necessidade de prescrever
AINEs, existem dois pontos sempre a considerar: primeiro a estratificação dos
doentes de acordo com os seus factores de risco gastrenterológicos e
cardiovasculares e em segundo lugar, a selecção adequada das estratégias para
prevenção da úlcera péptica e suas complicações2.
Ultimamente, tem-se observado com alguma frequência, complicações
cardiovasculares com os inibidores da ciclooxigenas e tipo COX-2 e outros
AINEs, a juntar aos problemas da prevenção de hemorragia digestiva. Em alguns
ensaios, mesmo fora dos que levaram à retirada do mercado de dois coxibes, os
acidentes vasculares foram maiores com os COX-2 do que nos doentes que tomaram
placebo e dos AINEs não selectivos, só o naproxeno pode ser recomendado nestes
casos, por não estar associado a aumento de acidentes cardiovasculares
3
.
Vários trabalhos mostraram que doentes com mais de 65 anos, tomas de doses
altas de AINEs, história curta de uso dos AINEs (menos de um mês, ou noutros
menos de três meses), assim como a toma concomitante de corticóides ou
anticoagulantes, aumentava significativamente o risco de complicações
hemorrágicas.
Em grandes séries de doentes com artrite reumatóide, foi observado maior risco
em doentes com mais de 75 anos, com história anterior de úlcera ou de
hemorragia gastrointestinal
4
,5.
Também, numerosa literatura, tem mostrado aumento do risco de hemorragia em
doentes a tomar AAS em baixas doses, apresentando-se um risco relativo de 2,07
de sangramento significativo, em doentes a fazer doses de 75 - 325 mg, numa
meta-análise de 14 trabalhos que incluíram 57.000 doentes
6
.
Confere também a estes doentes, alto risco, o facto da grande maioria serem
idosos com numerosas co-morbilidades especialmente cardiovasculares, muitos
serem hipocoagulados e a tomar concomitantemente AINEs tradicionais e
corticóides. Em relação ao Helicobacter pylori(HP), embora haja informações
contraditórias, várias meta-análises revelaram maior risco hemorrágico em
doentes a tomar AINEs na presença de Hp
7
,
8
; embora a erradicação do Hp não seja suficiente por si só, como prevenção
secundária de hemorragia por UP, parece ser recomendável, especialmente antes
de um doente começar tratamento longo com AINEs, fazer a tentativa de
erradicação do Hp. Serão necessários mais trabalhos de longa duração, para
avaliar se há também benefício de erradicar o Hp, em doentes a fazer baixas
doses de aspirina.
Em estudos comparativos entre o misopostrol versus IBP versus ranitidina, os
inibidores da bomba de protões mostraram mais eficácia na prevenção de úlceras
e complicações potencialmente hemorrágicas, sendo indiscutivelmente os fármacos
de eleição para este efeito.
Num trabalho recente, doentes a tomar AINEs ou COX-2, foram randomizados para
tomarem 20 mg ou 40 mg de esomeprazol versusplacebo; 20,4% dos doentes sem
profilaxia tiveram UP, contra 5,3% no grupo de terapia combinada com 20 mg de
esomeprazol e 4,7% com 40 mg
9
.
Há abundante literatura comparando AINEs COX-2 e anti-inflamatórios não
selectivos, com indiscutível benefício dos primeiros, em relação a minorar o
risco hemorrágico. Em três ensaios randomizados com 34 doentes 8,11 com artrite
a tomar etoricoxib ou diclofnac, verificou-se significativa redução de
hemorragias pouco graves no grupo a tomar coxib, embora não houvesse diferenças
em relação a episódios mais graves de hemorragia, perfuração ou obstrução
10
. Uma revisão sistemática Cochranerevê a segurança gastrointestinal dos
inibidores da COX-2 demonstrando diferenças significativas na incidência de
úlceras e suas complicações. Em relação aos AINEs não selectivos
11
.
No entanto, está demonstrado que não é suficiente mudar para AINEs tipo COX-2,
pois ainda há lesões hemorrágicas, embora em menor percentagem que com os AINEs
não selectivos. Em resumo, as recomendações do AmericanCollege of
Gastroenterologyindicam que:
1. Um doente que necessite de iniciar AINEs mas que tenha alto risco (úlcera
péptica anterior, história de hemorragia, idade avançada, etc.) deve fazer um
inibidor COX-2 em conjunto com IBP em dose alta.
2. Um doente de risco moderado pode ser tratado com um COX-2 isoladamente ou
com um AINEs não selectivo ao qual se junte um IBP.
3. Doentes de baixo risco poderão tomar AINEs não selectivos, sem protecção.
4. Em doentes que necessitem de anti-inflamatório/analgésico que também tenham
que tomar AAS em baixas doses por doença cardiovascular, pode-se prescrever
naproxeno com IBP.
5. Doentes com risco moderado em termos gastrointestinais, mas alto risco
cardiovascular devem ser tratados com naproxeno mais IBP. Doentes com alto
risco gastrointestinal e cardiovascular não devem fazer AINEs nem coxibes.
6. Todos os doentes independentemente dos factores de risco que vão iniciar
AINEs tradicionais, devem fazer pesquisa de Hp e tratados, se positivos.
Como se vê não há recomendações para os doentes a tomar só baixas doses de AAS,
mas atendendo ao risco demonstrado de hemorragia, poderão ser tratados como os
que necessitam de AINEs, embora, provavelmente seja necessário aguardar dados
mais definitivos. A junção de clopidogrel tem também que ser equacionada.
De qualquer modo, observando-se a pequena quantidade de doentes a tomar
medicação adjuvante eficaz no estudo que comentamos (realizado em 2006), há
seguramente um longo caminho a percorrer para estes doentes serem
convenientemente protegidos, embora esta problemática tenha sido muito
discutida nos últimos 4 anos e possa a situação estar diferente actualmente.
A abordagem endoscópica das lesões também está seguramente diferente, pois ao
contrário do que era feito em 2006 com injecção de adrenalina e esclerosante,
mudou-se de atitude, quando foi verificado que a adição de eslerosante à
injecção de adrenalina não acrescentava eficácia nem à hemostase, nem às
recidivas hemorrágicas das úlceras.
Por outro lado a generalização do uso de clipshemostáticos, de árgon plasma e
outros métodos térmicos, mudou seguramente o prognóstico das hemorragias agudas
por úlceras relacionadas com os AINEs, esperando-se uma oportuna actualização
deste interessante trabalho, especialmente no que concerne ao impacto destas
técnicas nos prognósticos das hemorragias. Por último, foi bem demonstrado que
há vantagens em fazer IBPs em perfusão, depois da hemostase endoscópica
12
.
Dado, como se viu, haver profundas modificações introduzidas nos últimos anos
neste contexto, seria altamente recomendável que este estudo fosse repetido,
particularmente num modelo prospectivo, quem sabe por exemplo em 2011, cinco
anos depois do trabalho em discussão !