Pneumopatias e doença de refluxo gastroesofágico
Siglas empregues neste artigo
DRGE = doença de refluxo gastroesofágico; DREE = doença de refluxo
extraesofágico; RGE = refluxo gastro esofágico; VEF1 = volume expiratório
forçado no primeiro segundo; CVF = capacidade vital forçada; DPOC= doença
pulmonar obstrutiva crónica; ATS = American Thoracic Society;ERS= European
Respiratory Society;FPI = fibrose pulmonar idiopática; ESP = esclerose
sistémica progressiva; BO = bronquiolite obliterante; SOB = síndroma da
bronquiolite obliterante; FC = fibrose quística; MNTB = micobactéria não
tuberculosa.
Introdução
O refluxo do conteúdo do estômago para o esófago, refluxo gastroesofágico, é um
processo fisiológico que ocorre praticamente em todas as pessoas, várias vezes
ao dia e de modo assintomático.
Quando este se torna patológico, é capaz de produzir sinais, sintomas e lesões
recorrentes no esófago, nesse caso denominada doença de refluxo gastro
esofágico (DRGE), ou em localizações extraesofágicas, como orofaringe e tracto
respiratório inferior, doença de refluxo extraesofágico (DREE)
1,2,3
.
A DRGE é uma condição comum e estima-se que cerca de 20% da população do mundo
ocidental apresente sintomatologia de refluxo
1
.
O refluxo é caracterizado por sintomas de pirose e ou regurgitação ácida,
interferindo com a qualidade de vida dos doentes
1,3
.
A associação entre sintomas pulmonares e refluxo foi bem documentada, apesar de
permanecerem dúvidas sobre se a função pulmonar anormal provoca o refluxo ou se
o refluxo provoca os sintomas pulmonares
4
.
Ravelli et alconsideram o refluxo gastroesofágico como possível factor
desencadeante numa variedade de manifestações respiratórias recorrentes, como
pneumonias, tosse crónica, laringite, asma e sibilância
5
.
Rothemberg et alobservaram a relação entre doença grave reactiva das vias
aéreas e refluxo gastro esofágico em portadores de doença pulmonar, fazendo uso
de corticóide sistémico que melhoraram os sintomas respiratórios, após cirurgia
para RGE, fundoplicatura de Nissen por via laparoscópica
6
.
Poelmans e Tack sugeriram que os diversos sintomas pulmonares e
otorrinolaringológicos seriam considerados manifestações extraesofágicas do
refluxo
3
.
Gonzáles et alobservaram sintomatologia respiratória entre 10 a 60% dos doentes
com RGE e hérnia hiatal
7
.
Gaynor referiu que, apesar de a exacta incidência do refluxo ser ainda
desconhecida, seria estimado que 25% dos doentes com DRGE apresentarem sintomas
otorrinolaringológicos
8
.
As manifestações otorrinolaringológicas associadas ao refluxo são: tosse
crónica, laringites, sinusite e otite média crónica, rouquidão, gotejamento
pós-nasal, faringite, laringoespasmo paroxístico, disfonia, bolo histriónico,
otalgia, dor de garganta e, numa fase mais avançada, estenose subglótica e
neoplasia de laringe
8,9,10,11,12,13
.
Os sintomas pulmonares variam de uma tosse persistente, com quadro de
sibilância, a presença de roncos, dispneia grave e asfixia
14
.
É mister recordar que na grande maioria das vezes os sintomas
otorrinolaringológicos e pulmonares se sobrepõem às queixas esofágicas, de tal
modo que a pirose e a disfagia podem ser incomuns e ausentes
10,11,14,15
.
A seguir, serão discutidas as doenças pulmonares envolvidas com a DRGE. Serão
abordados a prevalência do refluxo em cada doença, os mecanismos específicos e
o impacto do tratamento do refluxo sobre a pneumopatia.
Asma
A asma é uma doença inflamatória crónica das vias aéreas com manifestações de
hipersensibilidade brônquica e limitação variável ao fluxo aéreo,
espontaneamente reversível com tratamento medicamentoso, à base de
corticosteróides e broncodilatadores. Uma série de factores genéticos e
ambientais favorecem o desenvolvimento e a manutenção dos sintomas. O seu
diagnóstico baseia'se nos achados clínicos e funcionais (redução do VEF1 e da
relação VEF1/CVF) e o tratamento é realizado com anti'inflamatórios esteróides,
durante a fase de manutenção, e broncodilatadores nas crises
16
.
Prevalência do RGE na asma
De todas as pneumopatias associadas ao RGE, a asma é a mais conhecida e,
consequentemente, a mais divulgada e estudada.
Essa associação foi inclusive inicialmente descrita por Sir William Osler, em
1892. A frequência do refluxo entre asmáticos oscilou de 34 a 89% em diferentes
estudos
17
.
Mecanismos
Wong et alreferiram que mais da metade dos doentes com asma de difícil controlo
foram diagnosticados com RGE associado
18
.
Entretanto, conceitos sobre que condição se desenvolveria inicialmente e sobre
uma relação causa efeito entre as duas doenças não foram totalmente elucidados
19,20,21,22,23
.
Kiljander e Cibella referiram o RGE como possível triggerou desencadeante para
a broncoconstrição e exacerbações na asma
20,24,25
.
Harding relatou a interacção esofagopulmonar através de uma variedade de
mecanismos, nos quais uma doença desencadearia a outra, e vice versa
26
.
Muitos dos mecanismos esclarecidos e usados para entender a interacção entre
asma e refluxo poderiam ser empregues para explicar a associação refluxo e
pneumopatias em geral.
Na asma, o refluxo actuaria como provável desencadeante, indiretamente pelos
reflexo vagal, reflexos do sistema nervoso central e via reflexa axonal. Quando
activados, os nociceptores das vias aéreas e do esófago responderiam com
manobras de tosse, broncoespasmo, produção de muco e hipersecreção ácida,
respectivamente. As vias nervosas sensoriais do tracto respiratório e do
esófago terminariam nas mesmas regiões do SNC e consequentemente haveria uma
interação sinérgica entre nociceptores esofágicos e inervação das vias
respiratórias, precipitando sintomatologia da asma associada ao refluxo
25
.
Directamente, o outro mecanismo seria através da microaspiração de pequenas
quantidades de ácido no esófago proximal que neutralizariam as defesas das vias
aéreas, expondo o epitélio e produzindo aumento das respostas inflamatórias
26,27
. A microaspiração também libertaria neurotransmissores pró-inflamatórios, como
a substância P, que actuariam como mediadores na vasodilatação e no
recrutamento das células inflamatórias
26,27
.
A asma poderia propiciar o surgimento do refluxo através:
' da disfunção autonómica;
' da obstrução respiratória que resultaria em pressão pleural mais negativa que
aumentaria o gradiente de pressão entre o tórax e o abdómen, favorecendo o
refluxo;
' da maior prevalência de hérnia hiatal;
' das alterações a contractilidade diafragmática crural;
' do uso de broncodilatadores.
Os beta-agonistas agiriam reduzindo a pressão basal do esfíncter esofágico
inferior, relaxando-o. Doses sequenciais de albuterol e corticóides orais
estimulariam o refluxo de ácido no esófago em doentes susceptíveis
27
.
Impacto da terapia medicamentosa
A terapia medicamentosa com bloqueador H2 e inibidores da bomba de protões
associados ou não a fundoplicatura de Nissen reflectiram de certo modo sobre a
sintomatologia da asma, reduzindo a necessidade do uso de medicamentos e até na
melhoria da função pulmonar
20,28,29,30,31,32
.
Harding observou a regressão dos sintomas em cerca de 30% dos doentes asmáticos
tratados com inibidor da bomba de protões, duas vezes por dia, durante 30 dias
29
.
Sontag et alcompararam os efeitos do tratamento médico e cirúrgico para DRGE e
seus efeitos sobre a asma e constataram melhoria da asma em 74,9% no grupo de
doentes tratados com fundoplicatura de Nissen e melhoria de apenas 9,1% no
grupo tratado apenas com terapêutica oral
31
.
Gibson et alrefutaram a efectividade do tratamento antirrefluxo e o seu
benefício na asma. A metanálise de estudos controlados e randomizados concluiu
que as terapêuticas clínicas e cirúrgicas não melhoraram o controlo sintomático
na asma. Certos subgrupos de asmáticos beneficiaram, sendo difícil predizer
quais os que responderam
33
.
Legget et alanalisaram os efeitos do RGE em doentes diagnosticados como asma de
difícil controlo (sintomas refractários e persistentes, manutenção com
corticóide inalatório e uso de beta-agonistas de longa duração e de corticóide
sistémico nos 12 meses que antecederam o estudo). Os autores concluíram que a
identificação e o tratamento do refluxo não melhorou o controlo da asma nesses
doentes, apesar da redução dos sintomas de refluxo
34
.
Littner et altambém estudaram a associação entre asma de difícil controlo e
refluxo. Os critérios da asma de difícil controlo considerados por esses
autores foram diferentes dos expostos por Legget et al. Littner considerou
entre outros critérios os doentes asmáticos com mais de 18 anos, com queixas de
pirose, asma moderada a severa, valores do VEF1 superior a 50% e inferior a 85%
do predito, melhoria de 12% do VEF1 basal após inalação com 180 microgramas de
albuterol, tratamento com corticóides inalatórios, relato de 5 ou mais crises
de dispneia e sibilância durante 4 semanas que antecederam o estudo, uso de
doses estáveis de medicação para asma e pelo menos 4 semanas anterior ao
estudo. Os autores concluíram que a administração de 30mg de lansoprazole por
dia não resultou na melhoria dos sintomas da asma, não houve redução do
albuterol inalatório e também não representou efeitos sobre função pulmonar e
dos sintomas de refluxo. Entretanto, essa dose foi capaz de reduzir a
exacerbação da asma e melhorou em alguns aspectos a qualidade de vida desses
doentes
35
.
Tosse crónica
A tosse crónica é um dos sintomas cardinais na pneumologia. Está associada a
diversas situações, inclusive ao refluxo gastroesofágico assintomático
36,37,38
.
Prevalência
Após a asma e sinusopatias, a DRGE é considerada actualmente como a terceira
causa de tosse crónica em cerca de 20% dos doentes
39,40
.
Mecanismos
Os mecanismos propostos para o RGE desencadear a tosse crónica seriam o reflexo
broncoesofágico, a micro e macroaspiração de ácido e o aumento de pressão
abdominal
2,41
.
A presença de ácido clorídrico no esófago distal ou esófago inferior seria
capaz de estimular a capsaicina a libertar taquicinina das terminações
nervosas, taquicininas como a substância P que, por sua vez, estimulariam as
fibras C e induziriam o mecanismo da tosse. Seriam também descritos aumentos da
susceptibilidade das fibras C mediadas pelo vago
42,43, 44,45,46
.
Wu et almostraram um aumento significativo da resposta da tosse após perfusão
ácida no esófago distal em doentes com asma leve.
Foram realizados endoscopia digestiva alta, monitorização do pH esofágico,
espirometria e teste de indução de tosse com capsaicina inalatória em doentes
com sintomas de asma leve e de esofagite
42
.
Foi demonstrado que a perfusão ácida no esófago distal exacerbaria a resposta
da tosse, porém sem induzir o surgimento da tosse espontânea.
Seria importante recordar que isso também seria passível de ocorrer em doentes
com asma leve, sem sintomatologia de disfagia, regurgitação e pirose
retroesternal
42
.
Impacto do tratamento
Apesar do tratamento empírico com a supressão ácida e outras medidas, como
dieta anti refluxo e terapêutica procinética para diagnosticar tosse induzida
pelo refluxo fossem alternativas razoáveis, como estratégia diagnóstica, houve
poucos estudos que validaram este tipo de terapêutica para a tosse provocada
pelo refluxo
44,45,46
.
O tempo necessário e a posologia empregue para o tratamento e resolução da
tosse ocasionada pelo refluxo foram variados nos diferentes trabalhos. Ocorreu
em alguns casos recidiva da tosse, quando a terapêutica terminou, sendo
necessário posterior retratamento.
Ours et alconcluíram que tratamento com omeprazole seria mais apropriado para
terapêutica empírica e método diagnóstico para tratamento da tosse induzida
pelo refluxo.
O tratamento indicado com supressão antiácida a longo prazo, aproximadamente um
ano, tornou-se necessário para evitar recidiva da tosse
44
.
Poe RH et alsugeriram que dose única matinal de bloqueador de bomba de protões
e fármacos procinéticos seriam indicadas, quando houvesse sintomas de disfunção
esofágica e tosse. Em poucos doentes, um período de 8 semanas de terapêutica
foram necessárias para remissão completa dos sintomas
47
.
A terapêutica cirúrgica anti rrefluxo pôde eliminar efectivamente a tosse ou
significativamente melhorá-la, sendo indicada nos casos de tosse relacionada
com o refluxo e sem resposta à terapêutica medicamentosa agressiva
42,46
.
DPOC
A doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) é uma doença tratável com
comprometimento pulmonar e sistémico, caracterizada pela obstrução das vias
aéreas não totalmente reversível, com curso geralmente progressivo associado a
uma resposta inflamatória pulmonar, após exposição ao tabagismo, gases tóxicos
e outras partículas
48
.
Prevalência
A prevalência da DRGE na DPOC oscilou entre 0 a 62% e ainda não foi bem
estabelecida, ao contrário do que ocorre na asma
49,50,51
.
Serag e Sonnemberg demonstraram, retrospectivamente, um risco aumentado de
doenças pulmonares, inclusive DPOC, em casos de esofagite de refluxo, comparado
com o grupo-controlo
52
.
Andersen e Jensen observaram uma prevalência aumentada de doenças esofágicas
benignas, como refluxo, insuficiência do esfíncter esofágico inferior, hérnia
hiatal e esofagites em doentes com DPOC
53
.
Mokhelesi et alrelataram que 20% dos doen tes portadores de DPOC apresentaram
disfagia, referida ao refluxo
54
.
Dent et alencontraram prevalência de RGE proximal em DPOC avançada,
aproximadamente cinco vezes mais do que na população em geral
55
.
Stein et alreferiram disfunção cricofaríngea em 17 de 25 doentes com DPOC que
apresentaram exacerbações frequentes
55
.
Mecanismos
Prováveis mecanismos relacionados nos doen tes com DPOC que favoreceriam o
refluxo seriam: aumento da pressão intratorácica, hiperinsuflação pulmonar com
consequente abaixamento da cúpula diafragmática, tosse frequente e uso de
broncodilatadores
56
.
O refluxo induziria também a microaspiração e a broncoconstrição reflexa na
DPOC. A hiperinsuflação pulmonar severa e consequente rebaixamento da cúpula
diafragmática, broncoespasmo e tosse vigorosa, contribuiriam para o aumento da
pressão intratorácica e intraabdominal, exacerbando o refluxo. Os medicamentos
beta 2 agonistas, os anticolinérgicos e a teofilina reduziriam a pressão do
esfíncter esofágico inferior, possibilitando o refluxo
56,57
.
Uma outra situação peculiar na DPOC e RGE seria uma alteração ou défice da
coordenação entre deglutição e respiração. Consequentemente, doentes portadores
de DPOC com alterações de coordenação deglutiriam mais comummente pela
interrupção da fase inspiratória e resumiriam o seu ciclo respiratório,
significativamente mais, durante a inspiração
57
.
Impacto do tratamento
Na comorbilidade DPOC e RGE foi possível considerar que a doença pulmonar
obstrutiva crónica predispôs ao refluxo, assim como foi plausível aceitar a
hipótese de que o RGE assintomático e sintomático fossem eventos deflagradores
da DPOC grave e de um aumento da frequência das exacerbações, provando que nos
doentes portadores de RGE e DPOC houve uma pior qualidade de vida, quando
comparados com os portadores apenas de DPOC
58,59,60,61,62
.
Embora a terapêutica anti rrefluxo não tivesse conseguido êxito em modificar o
curso inexorável da DPOC avançada e nem minimizar o número das exacerbações,
foi possível, com a supressão ácida do refluxo, reduzir a sintomatologia geral
de ambas as doenças, contribuindo de certo modo para melhorar a qualidade de
vida nesses doentes
58,63
.
Doenças pulmonares intersticiais
As pneumonias intersticiais difusas pertencem a um grupo distinto de doenças
que comprometem o interstício, à custa de células inflamatórias, às vezes
fibrose, ou proliferação fibroblástica. Na classificação da ATS e da ERS foram
incluídas sete doenças distintas: fibrose pulmonar idiopática (FPI), pneumonia
intersticial não específica, bronquiolite obliterante com pneumonia em
organização, bronquiolite respiratória com doença pulmonar intersticial,
pneumonia descamativa, pneumonia intersticial aguda e pneumonia intersticial
linfóide. Um outro tipo, a pneumonia intersticial bronquiolocêntrica, poderá
ser futuramente incorporada nessa classificação. Para o diagnóstico das doenças
pulmonares intersticiais é mister a associação do quadro clínico, radiológico e
histopatológico64.
Prevalência
Houve maior prevalência de refluxo na FPI, quando comparado com os casos-
controlo e outras causas de doença intersticial, porém nenhuma relação causal
foi estabelecida apropriadamente
65
.
Patti et alsugeriram que o RGE esteve relacionado com a causa e a progressão de
FPI e pelo menos 2/3 dos doentes com fibrose tiveram refluxo, sendo este
relacionado com baixas pressões no esfíncter esofágico inferior, a peristalse
esofágica anormal e permanência de refluxo, tanto na posição de decúbito
supino, como de pé
65
.
Raghu, num estudo prospectivo de 65 doentes com FPI, observou que em 87% houve
uma prevalência de refluxo ácido anormal e em 76% foi demonstrado exposição
ácida no esófago distal. Apenas 47% destes doentes tiveram sintomatologia
clássica de refluxo (pirose e regurgitação). A presença de refluxo anormal foi
altamente prevalente, porém clinicamente oculta, em portadores de FPI
66
.
Tobin et alreferiram que em mais de 90% dos doentes com FPI foi observado
refluxo, sendo este um importante factor de risco para o desenvolvimento e
progressão da fibrose
67
; inclusive, o consenso internacional para pneumopatias intersticiais listou o
refluxo como um dos cinco factores de risco para a fibrose pulmonar
68
.
Sweet et al,num trabalho com 30 doentes portadores de FPI, mostrou a
confirmação de RGE sintomático em 67% dos casos. Foi também observado que o
refluxo estava associado à diminuição da pressão no esfíncter esofágico
inferior e que a presença da peristalse anormal no esófago se estendeu ao
esófago proximal
69
.
Mecanismos
Trabalhos datados da década de 50 do século xx mostraram que a presença
contínua e recorrente de ácido nas vias aéreas inferiores provocou espectros de
lesões que variaram de uma resposta inflamatória com edema associado a dano
epitelial e alterações de permeabilidade microvascular, até ao extremo de
proliferação fibroblástica, aderência de septo, espessamento alveolar e fibrose
70,71,72,73,74,75,76
.
Raghu et allevantaram a hipótese de a presença de ácido oriundo do refluxo ter
actuado no desenvolvimento e na progressão da FPI e, consequentemente, a sua
supressão nesses doentes ter acarretado uma oportunidade para que os alvéolos
se recuperassem da fibrose. Além disso, o tratamento com a supressão ácida
impediu a microaspiração crónica de gotículas de ácido e a inflamação contínua
77
.
Impacto do tratamento
O tratamento da supressão ácida para o refluxo na fibrose pulmonar idiopática
resultou na estabilização ou melhoria da função pulmonar, às custas da CVF e da
difusão de monóxido de carbono, além de diminuir o número das exacerbações na
fibrose idiopática.
Ao inibir a produção do ácido, especulou-se que foi dada aos pulmões uma
oportunidade de recuperação, ao invés da progressão para fibrose, que talvez
fosse perpetuada pela injúria recorrente do ácido, devido a aspiração crónica,
e pela inflamação consequente a esses processos
77
.
Esclerose sistémica progressiva
A esclerose sistémica progressiva (ESP) é uma doença caracterizada pelo
espessamento cutâneo e variado grau de comprometimento orgânico, inclusive
esofágico e pulmonar. O compromisso esofágico na ESP refere-se à disfagia e à
disfunção da motilidade esofágica, resultando inclusive em fibrose, numa fase
mais avançada. As manifestações esofágicas mais comummente observadas foram:
RGE, esófago de Barrett, adenocarcinoma, esofagite infecciosa e induzida por
fármacos
78,79,80
. A nível pulmonar, são observadas hipertensão pulmonar e fibrose difusa
78,79
.
Prevalência
Cerca de 90% dos doentes com esclerodermia apresentam sintomas de doença
esofágica
81
e em 70 a 80% destes são descritas alterações sugestivas de fibrose pulmonar
na autópsia
81,82
.
O padrão de fibrose pulmonar encontrado na ESP é semelhante ao das doenças
pulmonares intersticiais ou, mais especificamente, fibrose pulmonar idiopática.
Geralmente, é mister relembrar que os portadores de esclerodermia apresentam
doença pulmonar intersticial co existindo com refluxo gastroesofágico
82
.
Mecanismos
A doença pulmonar intersticial na ESP não seria apenas consequência do RGE, mas
também, possivelmente, de uma resposta autoimune inflamatória mediada e
autoimune vascular
82
.
Outro mecanismo provavelmente associado foi a diminuição da motilidade
esofágica. Lock et al,ao investigarem a relação entre disfunção esofágica e
lesão pulmonar na ESP, corroboraram essa associação, ao verificarem que, quanto
mais intensa a disfunção da motilidade esofágica, maior a redução do volume
pulmonar
83
.
Impacto do tratamento
Johnson et alestudaram o papel do refluxo na doença pulmonar associada a
esclerodermia e verificaram que a terapêutica anti refluxo agressiva, com
inibidores da bomba de protões e antiácidos, pode ser útil em reduzir o dano
pulmonar, consequente a aspiração nesses doentes, havendo evidência clínica e
radiológica de melhoria da pneumonia aspirativa após usar medicação anti
rrefluxo
84
.
Por outro lado, Troshinski et alrefutaram a ideia da associação DPI na ESP e
RGE, pois não foi encontrada diferença significativa na capacidade pulmonar
total e na capacidade vital forçada entre os grupos de doentes sintomáticos
pulmonares
85
, portadores de esclerodermia com presença ou ausência de refluxo proximal ou
distal e presença ou ausência de peristalse esofágica distal, tratados com
teraêutica anti rrefluxo
85
.
Os tratamentos clínicos e cirúrgicos apropriados para o refluxo foram capazes
de minimizar os seus sintomas e as suas complicações, porém a longo prazo esse
não foi capaz de influenciar o curso progressivo da fibrose pulmonar na
esclerodermia
83,84
.
Pós-transplante pulmonar, bronquiolite obliterante (BO) e síndroma de
bronquiolite obliterante (SBO)
As doenças pulmonares avançadas referem-se àquelas em estádio adiantado de
evolução, sendo passíveis de transplante pulmonar, como opção terapêutica,
sendo destacadas: deficiência de alfa 1 anti tripsina, fibrose quística,
fibrose pulmonar idiopática, sarcoidose, hipertensão pulmonar primária ou
secundária, linfangioleiomiomatose, histiocitose de células de Langerhans, DPOC
e bronquiectasias difusas. O objectivo do transplante pulmonar é restaurar a
função pulmonar avançada e as opções cirúrgicas nesses doentes são o
transplante pulmonar simples, duplo, transplante coração pulmão e transplante
lobar de um dador vivo compatível.
Prevalência
Foi descrita alta prevalência de RGE nos portadores de doença pulmonar em fase
avançada, com indicação para transplante de pulmão
86,87,88,89,90
.
D'Ovídio observou que, em 78 doentes com doença pulmonar avançada e com
indicação de transplante pulmonar, 63% referiram sintomatologia de refluxo e
quase 80% destes apresentaram dismotilidade esofágica com hipotonia do
esfíncter esofágico inferior e, em 44% destes, houve esvaziamento gástrico
retardado e prolongado
87
.
Hartwig et alverificaram, num estudo retrospectivo de 458 doentes candidatos a
transplante pulmonar, que em 74 destes houve 56,8% de estudos anormais da
avaliação ambulatória do pH de 24 horas, antes do transplante, e que, em 158
doentes, 74,9% apresentaram estudos anormais de avaliação do pH de 24 horas
pós-transplante
89
.
A presença de refluxo antes do transplante pulmonar nos doentes com doença
avançada foi fortemente associado ao refluxo no pós-transplante, sendo uma
situação bastante peculiar a ser considerada e questionada.
A maioria dos trabalhos de revisão não citou este antecedente de refluxo
gastroesofágico. O mesmo pode ser dito em relação às outras doenças pulmonares
87
.
Mecanismos
Os factores relacionados com as doenças pulmonares avançadas, numa fase pré-
transplante, foram os mecanismos de defesa pulmonar, como a tosse, clearancee
transporte mucociliar, que uma vez diminuídos facilitaram o refluxo
87,89,91
.
No que tange à situação pós-transplante, a cirurgia poderia de forma
iatrogénica lesar o nervo vago e, consequentemente, acarretar esvaziamento
gástrico prolongado e retardado, hipomotilidade esofágica e refluxo. Foi também
descrito um efeito do transplante pulmonar sobre a mecânica do diafragma e
sobre a competência dos esfíncteres esofágicos distal e proximal
87,89,91
e modificações relativas nas pressões intratorácicas e intraabdominal
89,90,91,92
, assim como o uso de imunossupressores e corticóides, que prolongariam o
esvaziamento gástrico
87,89,92
. Foi aceitável e concebível que quanto maior o tempo de contacto e o volume de
ácido do refluxo na árvore respiratória maior a probabilidade da lesão directa
do parênquima. A presença do conteúdo do refluxo estimulou, indirectamente, uma
resposta imunológica contra o enxerto e contra o pulmão transplantado
87,89,91
.
Bronquiolite obliterante e síndroma da bronquiolite obliterante
Os doentes transplantados alogénicos ou autólogos de pulmão podem desenvolver
bronquiolite obliterante e sua correlata clínica, síndroma da bronquiolite
obliterante, como factor limitante do sucesso cirúrgico, levando à deterioração
progressiva da função pulmonar, não explicada por estenose da anastomose
brônquica, infecção ou rejeição aguda
86,92
.
A bronquiolite obliterante (BO) ou bronquiolite constritiva relaciona-se com o
achado histopatológico de fibrose da submucosa ou peribronquiolar, resultando
no estreitamento extrínseco e obliteração de lúmen bronquiolar
86,93
. Neste processo de obliteração e fibrose de lúmen das pequenas vias aéreas, há
obstrução progressiva e facilitação das infecções pulmonares
86,89,93
.
A síndroma de bronquiolite obliterante (SOB) é caracterizada clinicamente pela
obstrução também progressiva das vias aéreas e, fisiologicamente, pelo
decréscimo do valor do VEF1 em 20% ou mais, quando comparado com os valores
basais nos doentes pós-transplante
85
, e afecta cerca de 50 a 60% dos doentes em cinco anos após transplantes
87,89
.
O RGE seria um dos factores causais associados à BO e à SOB93.
Mecanismos
A aspiração retrógrada, secundária ao refluxo, provocaria uma reacção aloimune
contra o endotélio e o epitélio das vias aéreas, potenciando lesão de alo
enxerto pulmonar e desenvolvendo a bronquiolite obliterante e a síndroma de
bronquiolite obliterante
89
.
As secreções ácidas e biliares do refluxo contribuíram para que as lesões de
enxerto pulmonar fossem mediadas pela IL8, IL15 e neutrófilos alveolares.
Elevados níveis de ácidos biliares, de IL8, e aumento de neutrófilos no lavado
bronco alveolar destes doentes no pós-transplante de pulmão, foram considerados
como marcadores clínicos putativos do desenvolvimento e da progressão da
síndroma de bronquiolite obliterante
87
.
Impacto do tratamento
A repercussão do tratamento do refluxo gastro esofágico sobre a função pulmonar
nos doentes com doença pulmonar avançada, que se submeteram ou não ao
transplante, mostrou que em relação ao tratamento clínico do refluxo com
inibidores de bomba de protões, anti ácidos e antagonistas de receptores de
histamina, não foram eficazes, quando comparado com a fundoplicatura de Nissen
92
. A fundoplicatura laparoscópica de Nissen apresentou êxito na melhoria da
função de alo enxerto nos doentes, durante a fase inicial da SOB. Apesar de não
haver mudanças imunológicas e patológicas da fibrose peribrônquica na SOB,
foram descritas melhoras consistentes do VEF1, considerado como indicador de
sucesso nesses casos e maior sobrevida
92,93
.
Essa cirurgia foi bem tolerada nos doentes com doença pulmonar avançada, apesar
de haver mais episódios de rejeição, sendo essa mais grave e com maior
incidência da SOB
92
.
Portanto, doentes candidatos ao transplante ou já transplantados que evoluíram
com declínio dos valores de VEF1, somando-se a rejeição aguda e complicações
infecciosas, deveriam ser avaliados quanto ao refluxo e à possível indicação
para fundoplicatura de Nissen
92
.
Síndroma da apneia/hipopneia obstrutiva do sono
A síndroma da apneia obstrutiva do sono é definida como obstrução das vias
aéreas superiores recorrentes, durante o período do sono, provocando
consequente dessaturação da oxiemoglobina e despertar nocturno, associado a
hipersonolência diurna. Esta obstrução leva à cessação da respiração e
consequente hipóxia e hipercapnia. Os eventos respiratórios anormais durante o
sono são diagnosticados pela polissonografia
94,95
.
Prevalência
Doentes com SAHOS tiveram alta prevalência de refluxo sintomático e confirmado,
quando comparados com os doentes roncadores, sem apneia e com a população em
geral
96
.
Penzel et al,ao estudarem 15 doentes com apneia do sono, verificaram que todos
tinham refluxo confirmado pela avaliação de estudos de monitorização de pH, e
destes apenas cinco apresentaram sintomatologia para refluxo
97
. Este mesmo autor, num outro estudo, mostrou que, em 52 doentes com refluxo,
37 apresentaram refluxo durante o sono, associado a apneia e a hipopneia
98
.
Graft et alobservaram que, em 17 doentes com apneia obstrutiva do sono, apenas
11 tiveram refluxo anormal
99
.
Kerr et al,em seis doentes com apneia obstrutiva do sono, encontraram cinco que
apresentaram RGE nocturno anormal corroborado por métodos de monitorização de
pH
100
.
Mecanismos
Durante o sono fisiológico normal, existiriam muitas modificações no esófago e
na junção gastroesofágica que contribuiriam para a patogénese do RGE
101,102
.
O sono pode alterar os mecanismos fisiológicos que actuam na
clearanceesofágica, como: diminuição da deglutição, aumento da exposição ácida,
diminuição da produção da saliva, redução da libertação da saliva no esófago
distal, declínio da pressão basal do esfíncter esofágico superior, atraso do
esvaziamento gástrico e aumento da produção ácida. Todas estas alterações
contribuem para a exposição ácida prolongada, durante o período do sono
nocturno, resultando em séria injúria da mucosa e consequente refluxo
101
.
Além destes mecanismos fisiológicos normais de defesa do esófago, os doentes
com SAHOS apresentaram modificações acentuadas da pressão intrapleural,
tornando'a mais negativa, e também da pressão transdiafragmática, durante a
apneia, contribuindo para a ocorrência do refluxo
101
.
Seria questionável se a hipóxia contribuiria para refluxo.
Kiatchoosakun etcols sugeriram que a hipóxia induziu um mecanismo protector
contra o refluxo, aumentando o tónus do esfíncter esofágico inferior
103
.
Teramoto et alobservaram que durante a hipoxia ocorreu défice de deglutição,
favorecendo o refluxo104. Algumas características associadas a SAHOS, incluindo
obesidade, ingestão de álcool, tabagismo, foram também factores de risco para o
refluxo
105
.
Impacto do tratamento
O emprego de inibidores da bomba de protões demonstrou um bom controlo da
pirose durante o período nocturno, sendo neste período mais responsivo do que
no período diurno.
Orr et alobservaram que em 42 doentes houve redução da sintomatologia de
refluxo após uso de rabeprozole, porém não houve nenhuma diferença ao usar
fármaco e placebo nas medidas objectivas da polissonografia.
Entretanto, os doentes referiram melhor qualidade de sono e reduzido número de
despertar nocturno. Neste trabalho, os autores concluíram que o tratamento
antirrefluxo melhorou as medidas subjectivas relacionadas com o sono, porém não
houve qualquer impacto sobre as medidas objectivas referentes ao sono
106
.
Johnson et alobservaram que 635 doentes, com RGE e qualidade de sono e de vida
prejudicadas, foram tratados com esomeprazole (20 a 40mg ao dia) e houve
importante melhoria da qualidade do sono, pela redução do número de dias de
distúrbio do sono associados ao RGE
107
.
Dimarino et aldemonstraram que nos doentes com refluxo, confirmado por métodos
endoscópicos e testes de pH, e portadores de distúrbios do sono, doses
padronizadas de omeprazole reduziram, além dos sintomas de refluxo, os
despertares nocturnos, e houve melhoria da eficiência do sono, aumentaram o
sono REM e o tempo total do sono. Ocorreu regressão dos sintomas respiratórios
associados aos distúrbios do sono
108
.
O uso contínuo de CPAP para a apneia foi capaz de minimizar e mesmo reverter,
quase que completamente, a sintomatologia nocturna de refluxo relacionado com a
apneia do sono
109,110
.
Teramoto et alrelataram que sintomas de RGE nos doentes com apneia foram
revertidos pelo uso de CPAP nasal
111
.
Kerr et altambém referiram que o tratamento com CPAP nasal à noite corrigiu o
refluxo gastroesofágico relacionado com a apneia do sono
112
.
Fibrose quística
A fibrose quística é uma doença crónica autossómica recessiva que acomete mais
os recém-nascidos, crianças e adolescentes da raça branca, na sua forma
clássica, pulmonar.
A média de sobrevida encontra-se acima dos 30 anos e as formas não clássicas,
mais suaves comprometem os adultos. É causada por mutações qualitativas e
quantitativas da proteína transmembrana reguladora de transporte iónico (CFTR)
de cloro e sódio, levando à diminuição na secreção de fluidos, aumentando a
viscosidade, espessando as secreções e favorecendo a obstrução das vias
respiratórias, que se acompanha de inflamação e fibrose, posteriormente.
Acomete, além dos pulmões, o pâncreas, os intestinos, o fígado, os testículos e
também o esófago, entre outros órgãos
113,114
.
A DRGE pode ser tanto uma das manifestações clínicas da fibrose quística no
esófago, quanto um dos factores agravantes da evolução da doença e declínio da
função pulmonar
113,114
.
Prevalência
Foi descrita alta prevalência de refluxo nos doentes portadores de fibrose
quística. Brodzicki et alverificaram que, numa amostra de 40 crianças com FC e
idades variando entre 1 a 20 anos, houve o diagnóstico de DRGE em 22 doentes
(55%), confirmado por métodos de medição de pH
115
.
Ledson et alrealizaram questionário estruturado em 50 doentes adultos com FQ e
aferição do pH durante 24 horas e manometria esofágica em 10 doentes e
observaram que em 47 houve sintomas de refluxo e 6 destes 10 apresentaram
manometria anormal, sugerindo diminuição da pressão do esfíncter esofágico
inferior. Os resultados deste trabalho mostraram que os adultos com FQ tiveram
altas taxas de sintomas de RGE, com diminuição da pressão do esfíncter
esofágico inferior e permanência do refluxo ácido
116,117
.
Mecanismos
Nos portadores de FQ, as alterações da função pancreática e duodenal aumentaram
níveis de enteroglucagon, resultando no esvaziamento gástrico retardado e na
secreção excessiva de ácido
118
.
Os sintomas pulmonares, como tosse e sibilância, contribuíram para aumentos da
pressão trans diafragmática e intraabdominal, facilitando o refluxo esofágico.
Outros factores, como alterações da forma da parede torácica e o rebaixamento
da cúpula diafragmática, contribuíram para interrupção parcial a total do
esfíncter esofágico inferior, colaborando para o refluxo
116,117,118,119
.
Impacto do tratamento
O RGE silencioso ou assintomático contribuiu para o agravamento dos sintomas
respiratórios e do declínio da função pulmonar nos portadores de FQ, candidatos
ou não a cirurgia de transplante pulmonar
116
.
O impacto do RGE sobre as crianças com FQ e gastrostomizadas foi avaliado pelo
statusnutricional, função respiratória e sobrevida dessas crianças. Foi
corroborado que as crianças do sexo feminino apresentaram refluxo sintomático e
silencioso, diagnosticado pela clínica e por métodos endoscópicos, ganharam
pouco peso e houve decréscimo do VEF1, sendo que nesses casos o prognóstico foi
muito reservado e com menor sobrevida
120
.
O refluxo gastroesofágico silencioso e ou sintomático contribuiu para o
declínio da função pulmonar e VEF1, antes e após a cirurgia de transplante de
pulmão, nos casos de fibrose quística
118,119,121
.
Ainda é discutível a eficácia do tratamento antirrefluxo e a sua consequência
sobre a função pulmonar na FQ. Pouco foi divulgado sobre o assunto, sendo
necessários estudos mais aprofundados sobre o tema. Sugeriu-se que o tratamento
do refluxo fosse instituído o mais precoce e agressivo possível, inclusive
devendo ser considerada cirurgia de correção do refluxo, caso houvesse
persistência do quadro, indicações e condições para realizá-la
116,120,121
.
Pneumonia aspirativa
A pneumonia aspirativa é decorrente da aspiração do conteúdo da orofaringe ou
do estômago para o interior do tracto respiratório, causando um processo
infeccioso. O conteúdo da substância aspirada varia de bactérias gram negativas
e anaeróbias, a substâncias não usuais, como corpos estranhos e óleo diesel,
por exemplo. Uma doença à parte que merece ser citada é a síndroma de
Mendelson, causada pela aspiração de material gástrico não colonizado que
provoca uma pneumonite gástrica
122,123
.
Prevalência
Os dados existentes sobre a prevalência do RGE na pneumonia aspirativa variaram
nos diversos estudos. Tanto em crianças, quanto em adultos, o RGE representou
um dos factores de risco para pneumonia aspirativa. O RGE assintomático ou
sintomático foi registrado em cerca de 25 a 80% das crianças com doenças
respiratórias crónicas recorrentes. Num estudo na Índia, Eluvathingal 2003, com
312 crianças com infecção respiratória crónica recorrente, de provável causa
aspirativa, 34,6%, ou cerca de 108 doentes, tiveram RGE confirmado através da
cintigrafia gastroesofágica.
Esse mesmo trabalho observou que a prevalência de RGE no grupo de crianças
menores de 18 meses foi de 41,7% e a prevalência do RGE nas crianças com idade
superior a 18 meses correspondeu a 24,6%. A diferença obtida pôde ser explicada
pelas modificações fisiológicas no esófago, fazendo com que o RGE diminuísse ou
mesmo desaparecesse a partir do décimo oitavo mês de vida
124
.
Cerca de 50% dos indivíduos adultos normais fazem microaspirações durante o
sono. Algumas condições, como idade avançada, doença neurológica, alterações do
statusmental, como ingestão alcoólica, crises convulsivas, higiene oral
precária e, inclusive, DRGE actuariam como factores de risco para pneumonia.
Episódios de refluxo e de aspiração que ocorreram durante ou pouco tempo após
as refeições foram confirmados inclusive pela cintigrafia, sendo encontrados em
52% dos doentes adultos com laringite posterior e em 15% daqueles com aspiração
pulmonar
125
.
Ravelli et aldetectaram microaspiração em aproximadamente 50% dos doentes com
manifestações respiratórias refractárias
5
.
Pneumonia associada à ventilação mecânica
Prevalência do RGE nas pneumonias associadas à ventilação mecânica
O RGE foi referido em aproximadamente 50% dos doentes a receber ventilação
mecânica, sendo o conteúdo gástrico e biliar contaminado um dos factores de
risco para pneumonia associada à ventilação mecânica
126,127,128,129
.
Metheny et al,num estudo com 360 doentes com pneumonia internados no CTI,
encontraram níveis elevados de pepsina positiva na secreção traqueal,
relacionados com DRGE em 42% desses casos. Isto corroborou que a incidência de
pneumonia estava associada ao refluxo
130
.
Mecanismos do RGE nas penumonias aspirativas sem necessidade de ventilação
mecânica
Foram descritos basicamente dois mecanismos: pela microaspiração contínua do
conteúdo gástrico ou biliar para as vias aéreas e pelo reflexo vagal a nível da
laringe e do pulmão deflagrado pela passagem do conteúdo gástrico do esófago
para as vias respiratórias
5, 131
.
Mecanismos do refluxo nos casos associados a ventilação mecânica
Foram descritos vários factores que em potencial estivessem implicados na
presença de RGE, durante a ventilação mecânica:
' A presença da sonda nasogástrica e nasoentérica provocou irritação mecânica e
dificultou a deglutição, possibilitando o acúmulo de secreções na orofaringe e
interferiu com a motilidade esofágica e com a função do tónus do esfíncter
esofágico inferior
129,130,131,132
;
' A permanência do cuffinflado do tubo orotraqueal foi responsável pelo
prejuízo do funcionamento do esfíncter inferior
133
;
' O volume gástrico aumentado, estase e atraso do esvaziamento do estômago
favoreceram o refluxo, diminuindo o tónus do esfíncter esofágico inferior
129,131,134
;
' A posição em decúbito supino, associada à deterioração do clearancemucociliar
e salivar, contribuíram também para o aumento da incidência de refluxo nos
doentes com ventilação mecânica
129,131
;
' O uso de tiopental, de fármacos anticolinérgicos e agonistas adrenérgicos
reduziram a pressão do esfíncter esofágico inferior
129,135
.
Impacto do tratamento
Em doentes hígidos com hipóteses de apresentarem broncoaspiração e pneumonia
aspirativa, as medidas terapêuticas e profilácticas para refluxo associadas a
higiene adequada da cavidade oral e o afastamento do alcoolismo constituíram
condições para minimizar a probabilidade de pneumonia aspirativa. Nos doentes
mais graves dependentes de ventilação mecânica, algumas situações mereceram
destaque, como:
' A terapêutica medicamentosa com agentes procinéticos (cisaprida,
metoclopramina e domperidona) que favoreceu a motilidade e o esvaziamento
gástrico
130,136
;
' A posição semi-inclinada da cebeceira do leito, cerca de 45 graus, para
profilaxia do refluxo
130,136
;
' O uso parcimonioso de sondas nasogástricas ou entéricas, assim como cuidados
durante a sedação do doente
130,136
;
' Cautela referente à insuflação e à desinsuflação parcial do cuffdo tubo
orotraqueal, no momento adequado
130,136
.
É mister relembrar que todos estes factores fossem considerados em conjunto,
como medidas auxiliares na prevenção do refluxo e consequente pneumonia.
Bronquiectasia e RGE
As bronquiectasias são dilatações permanentes de um ou mais brônquios e
resultam na tríade de tosse crónica, expectoração abundante e infecção
recorrente. Embora fosse rotulada como uma doença órfã nos países
desenvolvidos, ela apresenta-se com frequência nos países subdesenvolvidos e em
desenvolvimento. É considerada via final de muitas doenças respiratórias, tendo
inclusive múltiplas causas e, entre elas, o RGE
136,137,138
.
Prevalência do refluxo nas bronquiectasias
Pasteur et al,num trabalho para determinar os factores causais de
bronquiectasia em 150 doentes, observou que o refluxo, anterior ao
estabelecimento da infecção, foi relevante em três doentes e o RGE associado a
aspiração correspondeu a 4% de toda amostra
139
.
Estudos sobre a prevalência de refluxo nas bronquiectasias e na associação
entre DRGE e esta doença foram e são raros, sendo necessárias mais pesquisas
sobre o assunto.
Mecanismos
Foram citados alguns mecanismos referentes à associação DRGE e bronquiectasias:
' A presença de aspiração contínua e silenciosa do material ácido, para o
interior da árvore brônquica, causou inflamação crónica e permanente das vias
aéreas
137,140
;
' Os níveis aumentados de anticorpos IgG para Helicobacter pyloriforam
encontrados no aspirado traqueal e brônquios de portadores de bronquiectasia,
corroborando uma possível associação entre essa bactéria e a bronquiectasia
137,141
.
A presença de Helicobacter pylorino material gástrico broncoaspirado fez com
que a urease libertada pela bactéria catalisasse a ureia em amónia, causando
erosão na barreira mucosa, levando ao dano epitelial das vias respiratórias
137,141
. Além disso, as citocinas da bactéria causaram danos no epitélio alveolar do
hospedeiro, produzindo também resposta inflamatória no epitélio respiratório
141
.
Considerações do tratamento
As medidas e o tratamento anti rrefluxo foram simples e eficazes em reduzir a
sintomatologia de refluxo, na maioria dos casos, e, consequentemente, nos
doentes com coassociação bronquiectasias e refluxo houve importante regressão
dos sintomas, após uso contínuo e regular de inibidores de bomba de protões.
Foi também observado que terapêutica para Helicobacter pylorimelhorou a
sintomatologia respiratória nos casos de bronquiectasias
137,140
.
Micobacteriose atípica e refluxo
As micobactérias atípicas pertencem à espécie de micobactéria que não a
Mycobacterium tuberculosis. Nem todas são patogénicas para a espécie humana,
sendo destacadas como causadoras de doenças: Mycobacterium avium complex, M
fortuitum, M kansasii, M intracellulare, M abscessus,entre outras. Acometem com
considerável frequência os doentes imunocomprometidos. Podem provocar lesões
cutâneas, infecções de partes moles e mesmo doença disseminada
142
.
A doença pulmonar causada pelas micobacterioses atípicas, apresenta-se
comummente como uma de três formas: padrão clássico de tuberculose,
bronquiectasia nodular e pneumonite de hipersensibildade. O diagnóstico é
baseado na suspeita clínica, nos achados radiológicos e na confirmação
microbiológica.
O tratamento é feito com antibioticoterapia específica. A doença pulmonar
causada pela micobacteriose atípica pode coexistir, facilitar ou ser facilitada
por algumas comorbidades, entre as quais o refluxo, principalmente em doentes
jovens
142
.
Prevalência
A relação entre RGE e a doença pulmonar causada pelas micobasterioses não
tuberculosas (MNTB) ainda não foi completamente estudada, carecendo de dados
sobre o assunto.
Os trabalhos existentes relacionaram a bronquiectasia nodular, uma das formas
de apresentação pulmonar da MNTB, com o refluxo gastroesofágico, e este como um
dos factores predisponentes para a MNTB
143,144,145,146,147
.
Houve alta prevalência de RGE nos portadores de MNTB, independente de esse
refluxo ser sintomático ou não. As principais micobactérias não tuberculosas
descritas associadas ao refluxo foram: M fortuitum, M chelonaee menos
comummente M abscessus
144,146,147
.
Griffith et alrelataram que num universo de 154 doentes com doença pulmonar
causada pelas micobactérias atípicas como M fortuitume M abscessushouve
prevalência de 6%, cerca de 10 casos, de doenças gastroesofágicas, incluindo
refluxo
148
.
Hadjiliadis et alobservaram que em 20 doentes com quadro pulmonar de
micobacteriose atípica, foram detectados 15 casos de acalasia e infecção
pulmonar provocadas pelas micobactérias de crescimento rápido, como a M
fortuitume M abscessus
144
.
Mecanismos
O RGE seria um factor desencadeante ou contribuinte para o desenvolvimento ou
progressão das formas pulmonares das MNTB, graças à exposição recorrente do
parênquima e à acidez do suco gástrico. Por outro lado, as infecções pulmonares
causadas pelas micobacterioses atípicas poderiam desencadear o refluxo, em
virtude do aumento do gradiente de pressão do diafragma durante manobras da
tosse e modificações da mecânica pulmonar
149
.
A supressão ácida exacerbada devido ao uso de inibidores de bomba de protões e
bloqueadores H2 provocaria uma relativa e consequente aspiração de material
alcalino gastroesofágico para os pulmões, propiciando uma potencial porta de
entrada para infecções das vias aéreas. Esta relativa alcalinização do pH
gástrico serviria como provável meio de cultura para as micobacterioses
atípicas, promovendo melhor sobrevida e proliferação dessas bactérias no
próprio estômago, sendo o pH ideal para crescimento destas entre 5,0 e 6,5.
A aspiração de material gástrico lipídico ou de óleo fornecido com os
medicamentos provocaria uma pneumonia lipóide propícia a infecção pelas MNTB
149,150
.
Considerações sobre tratamento
O tratamento de ambas as situações deveria ser feito concomitantemente. A
terapêutica antirrefluxo poderia, de certo modo, prevenir a ocorrência e
facilitar a recuperação desses doentes. Entretanto, os cuidados deveriam ser
reservados para o risco de utilizar doses exacerbadas de medicamento para
refluxo que alterariam o pH gástrico e favoreceriam as infecções pela MNTB
150
.
Mais estudos serão necessários, para fins de avaliação futura, não apenas da
associação causal entre DRGE e micobacterioses atípicas, mas dos seus
tratamentos.
Conclusão
Não se pode negar a existência de uma conexão entre RGE e pneumopatias. Algumas
doenças respiratórias, como asma, pneumonia aspirativa e mesmo fibrose pulmonar
idiopática, são reconhecidamente condições associadas ao refluxo. Outras
doenças, como DPOC, fibrose quística, bronquiectasias, entre outras, são menos
comummente citadas.
Esta relação DRGE e doenças pulmonares deve ser sempre cogitada, diante de um
quadro respiratório crónico persistente, recidivante e resistente ao
tratamento, no qual a história sugira, fortemente, essa ligação e exista alguma
confirmação através dos resultados dos exames complementares.
Uma observação importante é que nem sempre o refluxo é sintomático, e o seu
reconhecimento precoce e tratamento podem melhorar, na maioria dessas doenças,
os sintomas pulmonares e a consequente qualidade de vida dos doentes. Uma
investigação mais aprofundada é desejável e necessária, para corroborar os
mecanismos e o efeito do tratamento antirefluxo sobre as doenças pulmonares.