Tuberculose testicular: Caso clínico
Introdução
A incidência da tuberculose extrapulmonar tem vindo a aumentar nas últimas
décadas, principalmente devido a epidemia do VIH
1
,
2
. O tracto genitourinario é o local mais frequentemente afectado e clinicamente
representam 2,34% dos casos; no entanto, o seu envolvimento é observado em 7%
dos doentes com tuberculose no momento da autopsia1,2,
3
.
A tuberculose do testículo pode resultar de uma extensão retrograda da infecção
a partir da próstata e vesículas seminais, assim como de propagação
hematogenea1,2,3. Também foram postuladas a disseminação através do sistema
linfático pélvico e a transmissão venerea3,
4
.
A infecção habitualmente afecta primeiro o epididimo, sendo que a orquite
ocorre como resultado da extensão contígua e reflecte um estádio tardio no
processo da doença1,2,3. A orquite tuberculosa isolada, por disseminação
hematogenea e sem envolvimento do epididimo, é rara1,3. Assim sendo, a
tuberculose testicular é uma entidade clínica rara que ocorre em
aproximadamente 3% dos doentes com tuberculose genital2,3.
Clinicamente, não pode ser distinguida de lesões como o tumor testicular,
infecção aguda (bacteriana ou virica), infecção granulomatosa (como a
sarcoidose) ou enfarte, podendo até, em alguns casos, mimetizar uma torção
testicular1,2,3. A sua cuidadosa distinção é importante para um tratamento
apropriado1.
Os homens sexualmente activos, com idades compreendidas entre os 20 e os 50
anos, são os mais frequentemente afectados e queixam-se habitualmente de dor ou
aumento de tamanho do testiculo1,2,3,4. A presença de sintomas urinários e
piuria estéril sugerem fortemente uma associação ao envolvimento renal3.
A ecografia do testículo é actualmente a melhor técnica para a visualização e
orientação diagnóstica das lesões testiculares1,2,3.
Caso clínico
AJP, sexo masculino, 58 anos, fumador de 57 UMA, com clínica de bronquite
crónica tabágica, reformado de operário em fábrica de fundição e minas de
volfrâmio com resultante silicose. Seguido em consulta de Pneumologia por
tuberculose pulmonar (Fig. 1), confirmada em exame directo e cultural de
expectoração (> 36 bacilos por campo), e cujo antibiograma apresentava
sensibilidade a todos os fármacos de primeira linha.
Fig. 1
A serologia para o vírus de imunodeficiência humana era negativa. Iniciou
tratamento antibacilar com boa evolução clinicorradiologica e conversão das
baciloscopias ao 1.o mês de tratamento. Ao 2.o mês inicia dor em moedeira e
aumento do testículo direito, sendo orientado para a consulta de Urologia. O
doente negava história prévia de traumatismo ou orquite. Ao exame físico
apresentava uma volumosa massa palpável a nível do saco escrotal direito,
ocupando todo o volume do saco e alterando a forma das estruturas
intraescrotais.
O toque rectal revelou uma próstata com aproximadamente 50g e nódulo palpável a
nível do terço médio do lobo direito.
Do estudo efectuado será de salientar um antigénio específico da próstata (PSA)
aumentado (10,88), com relação PSA livre/total diminuída (13,5%); os
doseamentos da beta-gonadotrofina corionica humana (β-HCG), alfa-fetoproteina
(α-FP) e DHL foram normais.
Realizou posteriormente ecografia testicular e vesicoprostática que demonstrou
um testículo direito com múltiplas formações nodulares, pericentimétricas,
sugestivas de processo neoplásico (Fig. 2). Salientava-se a existência de
múltiplas adenopatias da cadeia inguinal direita. Perante a avaliação inicial
sugestiva de lesão neoplásica, o doente foi submetido a cirurgia com
orquidectomia radical direita (Fig. 3).
Fig. 2 – Ecografia testicular
Fig. 3– Testículo com lesão heterogénea branco-amarelada, com necrose que
envolve a quase totalidade da polpa testicular. Hidrocelo de pequeno volume
O resultado histológico revelou um processo granulomatoso necrosante Ziehl-
Neelsen positivo, compatível com o diagnostico de orquite granulomatosa
necrosante de etiologia tuberculosa (Fig. 4).
Fig. 4 – C – Parênquima testicular (à esquerda) e processo inflamatório
granulomatoso necrosante (à direita). A – Granulomas epitelióides com necrose.
B – Bacilos álcool ácido-resistentes, observados após coloração pelo método de
Ziehl-Neelsen
Comentário
As manifestações de tuberculose extrapulmonar podem surgir já no decurso do
tratamento da tuberculose pulmonar, mesmo com tratamento correctamente
orientado e em indivíduos imunocompetentes. Os doentes com orquite bacilar têm
habitualmente uma boa resposta a terapêutica antibacilar.
Preconiza-se um tempo de tratamento antibacilar com o esquema habitual
(isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol – 2HRZE + 4HR) de 6 meses de
duração; no entanto, em algumas situações, pode ser necessária intervenção
cirúrgica2,4.
A cirurgia está indicada em casos graves, ou perante a falta de resposta
clínica ao tratamento, com aumento no tamanho e edema do testículo ou formação
de abcesso2,4. É importante o diagnóstico diferencial com outras entidades
clínicas; nomeadamente quando os achados clínicos mimetizam os de um tumor
testicular. O diagnóstico de infecção tuberculosa é facilmente perdido, pelo
facto de os tumores serem a causa mais comum de massa testicular1.
A nível ecográfico, a presença de um aumento do epididimo em conjunto com lesão
testicular é mais sugestivo de infecção do que de etiologia neoplásica2,3. Os
padrões ecográficos associados com a orquite tuberculosa são vários e incluem:
um aumento difuso, heterogéneo e hipoecoico do testículo; um aumento difuso e
homogéneo do testículo; um aumento nodular e heterogéneo e a presença de
múltiplos e pequenos nódulos hipoecoicos num testículo aumentado1,2,3.
Este último, também conhecido como padrão miliar, é característico da
tuberculose do testiculo1,2. Outros achados ecograficos associados são o
espessamento da pele escrotal, o hidrocelo, as calcificações intraescrotais
extratesticulares, o abcesso escrotal e o tracto sinuoso escrotal1,2,3. A
adição do ecodoppler, para avaliação do fluxo sanguíneo, pode ajudar a
diferenciar entre a presença de enfarte, tumor ou inflamação do testiculo1,2.
A epididimorquite tuberculosa deve ser considerada no diagnóstico diferencial
de edema escrotal por tumor, infecção aguda ou orquite inflamatória. A
evidência de tuberculose fora do tracto genitourinario, a falência da
terapêutica antibiótica convencional, a presença de calcificações no escroto, o
abcesso, os tractos sinuosos do testículo e a imunodepressão ajudam no
diagnóstico de tuberculose do testiculo1,2,3.