Síndroma da veia cava superior como apresentação de neoplasia
Introdução
A síndroma da veia cava superior (SVCS) resulta da obstrução do fluxo sanguíneo
ao longo da veia cava superior (VCS). Tal obstrução pode ser causada por
invasão ou compressão extrínseca da VCS por processos patológicos contíguos que
envolvem o pulmão direito, gânglios linfáticos e outras estruturas
mediastínicas, ou por trombose intraluminal. Ocasionalmente ambos os fenómenos,
compressão extrínseca e trombose, coexistem1-2.
Na era pré-antibiótica, as causas mais frequentes de SVCS eram aneurismas
sifilíticos da artéria aorta torácica, mediastinite fibrosante e outras
complicações devido a infecções não tratadas2,
3
. Actualmente, a patologia infecciosa tem um papel reduzido na etiologia da
doença e as neoplasias são a causa mais comum, sendo responsáveis por 60 a 95%
do total de casos
4-6
. O quadro sintomático clássico é composto por fácies pletórica, edema e
ingurgitamento vascular do pescoço e parte superior do tronco, com dificuldade
de retorno venoso dos membros superiores em elevação de 90 graus. Estes
sintomas são frequentemente acompanhados por sintomas respiratórios, como
dispneia ou tosse e, mais raramente, por sintomas neurológicos, como cefaleias,
vertigens, alterações da visão e acufenos, que atestam a perturbação da
irrigação do sistema nervoso central3,5. Este quadro clínico instala-se em
semanas ou meses devido ao rápido crescimento tumoral, o que impede a formação
adequada de fluxo colateral venoso
1
.
O cancro do pulmão é o diagnóstico mais comum no SVCS associado a neoplasia,
seguido do linfoma não Hodgkin, sendo estas duas entidades responsáveis por 95-
99% dos casos neste contexto5,
7
. Calcula-se que 2 a 4% dos doentes com neoplasia do pulmão irão apresentar
SVCS ao longo da evolução da doença. Em relação ao SVCS como manifestação
inicial de neoplasia, estudos revelam uma maior incidência em doentes com
carcinoma pulmonar de pequenas células (CPPC), nos quais 10% tem esta forma de
apresentação, presumivelmente devido ao rápido crescimento tumoral nas vias
aéras centrais. No carcinoma pulmonar de não pequenas células (CPNPC), a
incidência de SVCS como apresentação de neoplasia é inferior a 2%8-13, havendo
no entanto alguns autores que apontam para valores mais elevados14.
Este estudo pretende analisar a população de doentes internados no Hospital de
S. João por SVCS ainda sem diagnóstico etiológico, de modo a caracterizá-los
clinicamente, para além da análise da terapêutica instituída e da
sobrevivência. Pretendeu-se igualmente avaliar os factores de prognóstico
associados aos doentes com SVCS como apresentação da doença.
Material e métodos
Foi feita uma análise retrospectiva dos doentes internados no Hospital de S.
João entre Janeiro de 1995 e Dezembro de 2006 por SVCS de etiologia a
esclarecer. Foram seleccionados através do departamento de estatística do
hospital 167 doentes com diagnóstico de SVCS. Destes, encontravam-se
disponíveis para consulta 134 processos clínicos, tendo sido seleccionados 60
doentes que à data de admissão não tinham etiologia estabelecida para o SVCS.
Em quatro doentes não foi possível ter acesso ao seguimento posterior ao
diagnóstico. Foram avaliados, entre outros, a idade, o sexo, a exposição e
carga tabágica, a etiologia do SVCS, o tratamento e a sobrevivência global.
Todos os dados obtidos por consulta dos processos clínicos dos doentes foram
organizados numa base de dados informatizada, tendo a análise estatística sido
realizada pelo programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences) versão
15.0.
Os 60 doentes seleccionados obtiveram em regime de internamento hospitalar o
diagnóstico histológico de neoplasia, tendo feito estudo analítico e
imagiológico direccionado, de modo a caracterizar a doença e a fazer o
estadiamento associado. Foram de seguida sujeitos a regime terapêutico adequado
ao tipo histológico do tumor e ao estado geral apresentado, tendo sido seguidos
de modo regular em regime de ambulatório.
Resultados
Os doentes incluídos apresentavam uma idade mediana de 56,5 anos e 83,3%
pertenciam ao sexo masculino. Quanto aos hábitos tabágicos, 42 (70%) eram
fumadores, 5 (8,3%) ex-fumadores e 13 (21,7%) não fumadores – Quadro 1. Os
fumadores tinham uma carga tabágica elevada, com 75% a apresentarem uma carga ≥
40 UMA.
Quadro I – Características dos doentes (n=60)
Os sintomas/sinais mais descritos no processo clínico aquando do diagnóstico
foram os seguintes: dispneia (95,5%), edema do pescoço (86,4%), edema da face
(72,7%), ingurgitamento venoso (63,8%) e sintomas constitucionais (52,3%) –
Fig. 1. Outros sintomas e sinais, como tosse, disfagia, ortopneia, disfonia/
estridor, face pletórica, hemoptises, dor torácica, cefaleias, vertigens e
sonolência foram menos frequentes (entre 5-40% dos casos).
Fig. 1 – Edema e ingurgitamento vascular do pescoço associado a circulação
colateral superficial torácica (face anterior e posterior) em doente com SVCS
A maioria dos doentes apresentou sintomas e sinais clínicos referentes ao SVCS
com menos de duas semanas de evolução (68,2%), enquanto 27,3% apresentava
evolução da sintomatologia entre duas semanas e dois meses e os restantes 4,5%
tinham sintomas/sinais há mais de dois meses.
O principal tipo histológico diagnosticado foi o carcinoma pulmonar de pequenas
células (CPPC), com 41,7% dos casos (25 doen tes), seguido de carcinoma
epidermóide com 28,3% (17 doentes) e adenocarcinoma em 16,7% dos casos (10
doentes). O linfoma não Hodgkin foi observado em 10% dos doentes observados (6
casos), tendo os restantes 2 doentes (3,3%) teratomas do mediastino posterior –
Fig. 2. Vinte e três doentes (38,3%) estavam no estádio IV na altura do
diagnóstico. Os locais de metastização eram: cérebro (9 doentes), ossos (6),
fígado, rim e suprarrenal (2 doentes cada). Dois doentes apresentavam vários
órgãos metastizados.
Fig. 2 – Diagnóstico histológico dos doentes com SVCS
O tratamento passou maioritariamente por QT, associada ou não a RT, sendo a
associação nongencitabina/carboplatino o esquema mais usado no caso do
carcinoma pulmonar de não pequenas células; no CPPC, a associação etoposido/
carboplatino teve uma taxa de utilização elevada. Dos doentes que realizaram
QT+RT, 52,4% fizeram -no de forma concomitante e 47,6% de forma sequencial –
Fig. 3.
Fig. 3 – Tratamento efectuado aos doentes (por tipo histológico)
A sobrevivência global mediana foi de 8 meses. Considerando apenas os casos com
o diagnóstico de cancro do pulmão, obteve–se uma sobrevivência global mediana
no carcinoma de não pequenas células de 7 meses [0,5 – 17 meses] e no CPPC uma
sobrevivência global mediana de 5 meses [0,4 – 16 meses]. Relativamente aos
casos de linfoma não Hodgkin, a sobrevivência global mediana foi de 70 meses [4
-120 meses]. Nos dois casos de teratomas do mediastino posterior, a
sobrevivência global mediana foi de 20 meses – Quadro II e Fig. 4.
Quadro II – Sobrevivência global mediana por tipo histológico
Fig. 4 – Sobrevivência global mediana por histologia
Em relação aos factores de prognóstico estudados, verificou-se que um bom
estado geral (performance status0/1), o diagnóstico histológico de linfoma e a
ausência de metastização se correlacionam positivamente com a sobrevivência
global, havendo diferenças estatisticamente significativas (p=0,033, p=0,041 e
p=0,027, respectivamente).
Também os doentes não fumadores apresentam uma maior sobrevivência global em
relação aos doentes fumadores (p=0,038) – Figs. 5-8. De referir que estes
factores de prognóstico foram calculados ao fim de 6 meses, pois a partir daí o
número de doentes vivos não permite obtenção de valores estatísticos
significativos para a análise das variáveis, que são independentes para o
prognóstico. Fazendo uma análise de regressão linear para estudo da potência
das variáveis, observa-se que estas apresentam de facto potência estatística
para a amostra de doentes em estudo.
Fig. 5 – Avaliação da sobrevivência global mediana aos 6 meses em função do
estado geral (performance status)
Fig. 6 – Avaliação da sobrevivência global mediana aos 6 meses em função do
tipo histológico
Fig. 7 – Avaliação da sobrevivência global mediana aos 6 meses em função da
presença de metástases
Fig. 8 – Avaliação da sobrevivência global mediana aos 6 meses em função dos
hábitos tabágicos
Após quimioterapia de 1.ª linha, 12% dos doentes apresentaram resposta parcial
e 68% estabilização do quadro.
Quinze doentes faleceram no internamento (25%), sendo que todos eram fumadores
(carga tabágica ≥ 40 UMA) e com mau estado geral (performance status≥ 2). Doze
destes doen tes encontravam-se igualmente em estádio IV. Mais de 90% dos que
tiveram alta apresentaram regressão do SVCS que, posteriormente, recidivou em
17% dos casos.
Discussão e considerações finais
A síndroma da veia cava superior (SVCS) resulta de um conjunto de sintomas e
sinais causados pela obstrução do fluxo sanguíneo ao longo da veia cava
superior (VCS). Os sintomas que rapidamente orientam para esta síndroma incluem
o edema da face, pescoço, tórax e membros superiores, associados frequentemente
a dispneia e tosse. Menos frequente é o aparecimento de disfonia, dor torácica,
disfagia e hemoptises. Ao exame objectivo observa-se frequentemente distensão
das veias do pescoço, edema da face e membros superiores, face pletórica e
taquipneia. Cianose, síndroma de Horner e paresia das cordas vocais, embora
raros, podem igualmente estar presentes3.
Desde que o SVCS foi descrito pela primeira vez, em 1757, por William Hunter, o
espectro de condições associadas passou de entidades de etiologia infecciosa,
como a tuberculose e aneurismas da aorta ascendente sifilíticos, para
patologias malignas3. Actualmente, o SVCS traduz neoplasia em cerca de 95% dos
casos descritos, sendo o carcinoma pulmonar de pequenas células (CPPC) a causa
mais comum, seguido do carcinoma epidermóide e do adenocarcinoma do pulmão, do
linfoma não Hodgkin e do carcinoma de grandes células do pulmão1,3,14.
A causa não maligna de SVCS mais frequente é a trombose associada a cateteres
intracava ou a fios de pacemaker
15
.
Causas raras adicionais incluem metástases de neoplasias das células
germinativas, sarcoma de Kaposi, neoplasia da mama, cólon ou esófago, timoma,
linfoma de Hodgkin e sarcoidose
16
. A gravidade da síndroma depende da rapidez de início da obstrução e da sua
localização. Quanto mais rápido se instalar maior será a gravidade dos sintomas
devido à ausência de tempo para as veias colaterais se acomodarem ao aumento do
fluxo sanguíneo4-6.
O presente estudo mostrou resultados sobreponíveis às várias séries publicadas
no que diz respeito à etiologia do SVCS e ao estádio dos doentes na altura do
diagnóstico. No entanto, o número de doentes com diagnóstico de adenocarcinoma
foi mais elevado do que o habitual, uma vez que este tipo de neoplasia é
geralmente periférico e não condiciona obstrução de grandes vasos.
Efectivamente, na série descrita, 16,7% dos doentes que apresentaram SVCS como
manifestação inaugural tinham adenocarcinoma, número manifestamente elevado,
tendo em conta que em algumas séries a percentagem neste tipo de patologia não
ultrapassa os 2-4%
11-13
. Na presença de um doente com SVCS de etiologia desconhecida, a prioridade
deverá ser o de estabelecer o diagnóstico da doença subjacente antes da
ponderação de qualquer terapêutica, uma vez que 75% dos doentes têm sintomas
com mais de uma semana de evolução antes de recorrer a cuidados médicos, 3% a
5% dos doentes diagnosticados com SVCS não apresentam neoplasia e a causa de
morte relaciona-se geralmente com a evolução da doença e não com complicações
decorrentes do SVCS3. Na ausência de obstrução traqueal, edema laríngeo grave
ou sintomas neurológicos tradutores de edema cerebral, o SVCS não deve ser
considerado como emergência oncológica e, portanto, o tratamento prévio ao
diagnóstico não é indicado.
No passado, o SVCS era considerado uma emergência médica potencialmente fatal,
sendo os doentes submetidos com urgência a radioterapia (RT), de modo a aliviar
a obstrução.
Para além dos dados referidos, que aconselham a tomada de medidas terapêuticas
apenas após o diagnóstico estabelecido, deverá igualmente ser considerado que,
no caso de se ponderar a realização de RT como terapêutica inicial e prévia ao
diagnóstico esta pode dificultar a análise histológica posterior.
Num estudo de Loeffler et alcom 19 doentes com SVCS no contexto de massas
mediastínicas e que receberam RT de emergência, o diagnóstico histológico por
biopsia só foi estabelecido em 11 (58%)
17
.
Quanto ao tratamento, no caso dos tumores quimiossensíveis como o CPPC e o
linfoma não Hodgkin, este passa predominantemente por QT, geralmente sem RT. Na
sua maioria, estes doentes obtêm uma remissão a médio/longo prazo, com melhoria
sintomática a surgir ao fim de uma a duas semanas de tratamento
9-13
,
18-20
. Nestes tumores, a RT isolada leva a resultados pouco expressivos e pode
comprometer o sucesso posterior da QT11-13,
20
. Numa revisão efectuada em 2002 por Rowell et alem doentes com SVCS inaugural,
o tratamento com QT aliviou os sintomas em 77% dos doentes com CPPC, sendo que
apenas 17% acabaram por apresentar recidiva8. Em algumas situações, a adição de
RT em combinação com QT sistémica pode diminuir as taxas de recidiva local,
especialmente em casos de CPPC limitado. Estes resultados, no que respeita ao
tratamento, são similares, tendo os doentes com linfoma não Hodgkin sido
sujeitos a QT sistémica, com boa resposta, ao passo que nos doentes com CPPC a
QT foi efectuada isoladamente em 14 doentes ou associada a RT em 10,
apresentando estes últimos lesões de maior dimensão, embora passíveis de
irradiação ou doença limitada, com melhor taxa de resposta com terapêutica
associada.
Quanto ao carcinoma pulmonar de não pequenas células (CPNPC), a abordagem
terapêutica é diferente dos tumores quimiosensíveis referidos, devendo ter a
orientação geral aconselhada para cada estádio, nomeadamente a associação de QT
e RT nos estádios IIIB e QT no estádio IV. No entanto, a radioterapia é usada
mesmo neste último estádio em casos de obstrução grave, com o objectivo de
redução mais rápida da compressão e em casos em que o doente não apresente
condições para a administração de quimioterapia. Na amostra de doentes relativa
a este estudo observa-se que nos doentes com adenocarcinoma apenas três foram
sujeitos a terapêutica combinada QT+RT, enquanto a maioria (5) foi sujeita a
tratamento com RT isolada para paliação dos sintomas e sinais associados ao
SVCS, tendo dois efectuado apenas tratamento de suporte médico.
Os doentes com carcinoma epidermóide tiveram uma abordagem terapêutica similar;
seis foram submetidos a QT e RT e 11 apenas a RT isolada pelos mesmos motivos.
Estes dados são igualmente sobreponíveis à literatura disponíve13.
Na presença de sintomas tradutores de risco de vida, como os decorrentes de
edema cerebral ou obstrução grave da via aérea, deverá ser ponderada a
introdução de prótese intravascular, procedimento com baixo risco de
complicações e associado a um rápido alívio sintomático3,21. Esta intervenção
poderá igualmente ser efectuada em casos de menor gravidade, na presença de
tumores com terapêutica de eficácia limitada ou nos casos em que os sintomas se
mantêm após a terapêutica preconizada ter sido efectuada3,21.
Embora na quase totalidade dos doentes estudados tenham sido prescritos
corticóides e diuréticos, o papel destes fármacos permanece incerto, não
havendo evidência clínica do seu benefício3,21 .
Um dado importante a realçar é o de que, apesar de uma boa caracterização dos
doentes com neoplasia pulmonar em vários estudos publicados, estes referem-se
habitualmente a doentes com SVCS no decurso da doença, sendo escassas as
referências na fase de apresentação da doença. Neste estudo, a presença de SVCS
não se revelou um factor de mau prognóstico em si mesmo, tendo em conta a
sobrevivência global (OS) observada ser em cada um dos tipos histológicos
sobreponível à descrita nos casos em que não se encontra SVCS, o que vem de
encontro ao que é descrito maioritariamente na literatura
9
,
11
,
12
.
Existem no entanto descrições em sentido contrário, como no estudo de Martins e
Pereira, o qual refere o SVCS como factor de mau prognóstico, com OS de 5 meses
22
.
A avaliação dos factores de prognóstico nesta série de doentes revelou que
aqueles com CPPC apresentam de forma significativa uma sobrevivência global
menor. Verificou-se o mesmo resultado nos doentes fumadores, nomeadamente
naqueles com uma carga tabágica elevada (≥ 40 UMA), o que poderá estar
relacionado com a menor resposta à terapêutica descrita nos indivíduos que
mantêm o consumo tabágico, para além de um possível aumento das comorbilidades
associadas a esta adição, não sendo possível no entanto fundamentar esta
informação, dado o registo e análise das comorbilidades não ter sido objecto de
estudo. A menor sobrevivência global associada ao estádio IV deverá ser
consequência de um estádio mais avançado associado à presença de metástases.