Estudo das dimensões da qualidade de vida nos pacientes hemodialisados
Introdução
A qualidade de vida (QV) é um conceito de interesse geral em vários contextos
da sociedade, podendo ser entendida como a quantidade de bens materiais ou
espirituais, a qual surge associada a determinados indicadores biomédicos,
psicológicos, comportamentais e sociais, constituindo uma medida subjetiva de
perceção pessoal que varia ao longo do tempo (Castro et al., 2003).
O interesse em quantificar e qualificar a QV tem aumentado, tornado-se um
importante indicador de saúde e bem-estar dos utentes, especialmente nas
situações de doença crónica nas quais a vida se mantém por tecnologia, como é o
caso dos pacientes submetidos a tratamento de hemodiálise (Liem et al., 2007;
Lima et al., 2010).
A insuficiência renal crónica terminal (IRCT) diz respeito a um processo
fisiopatológico de múltiplas etiologias resultante dum inexorável desgaste do
número e da função dos nefrónios, sendo necessário recorrer a terapêuticas de
substituição da função renal tais como a hemodiálise, a diálise peritoneal e o
transplante renal (Snively e Gutierrez, 2004). A sua manifestação é
inespecífica durante grande parte da sua evolução, podendo a sintomatologia
surgir quando o rim já perdeu cerca de 90% da sua capacidade funcional (Levin
et al, 2008). Consequentemente, os rins perdem a capacidade de eliminar
substâncias tóxicas, de manter adequadamente o equilíbrio da água e dos
minerais, de libertar hormonas convenientemente e de manter todo o equilíbrio
do corpo.
Segundo a National Kidney Foundation, estima-se que, na América, cerca de 26
milhões de adultos sofram de IRC e que outros 20 milhões estejam em risco de
desenvolver a doença, devido ao envelhecimento progressivo da população e ao
aumento da prevalência de outras doenças crónicas tais como a diabetes mellitus
(Thomas, Kanso e Sedor, 2008). Feehally (2007) estima que a IRC é causada em
44% dos casos devido à diabetes mellitus, em 26% por hipertensão arterial, 8%
por glomerulonefrites, em 2% por doença renal poliquística e, nos restantes
20%, associa-se a etiologias desconhecidas.
Apesar dos avanços nos tratamentos dialíticos terem contribuído para aumentar a
sobrevida de utentes portadores de insuficiência renal crónica terminal (IRCT),
estes enfrentam uma elevada taxa de morbilidade e mortalidade. Ferreira e Filho
(2011) referem que há uma estreita relação entre QV e morbi-mortalidade em
hemodiálise, o que constitui um argumento válido para a sua avaliação
permanente e a implementação de ações específicas que visem a promoção da QV.
Os estudos existentes dão-nos conta que o tratamento hemodialítico, efetuado,
regra geral, 3 vezes por semana, tem repercussões nos contextos, físico,
emocional e social dos pacientes (Ferreira e Filho, 2011). No entanto, ainda
subsistem algumas dúvidas mais abrangentes sobre o efeito das limitações desta
doença/tratamento nas vivências dos sujeitos, reportando-se às implicações no
seu projeto de vida. Daí surge a questão de partida que orientou o nosso
estudo: Qual é a perceção de qualidade de vida dos pacientes hemodialisados?
Pelo exposto, neste estudo procura-se comparar a perceção da QV com o tempo de
diálise. Pretende-se também identificar e descrever o nível de QV de acordo com
as suas dimensões, explorando a relação entre estas e as mudanças na saúde,
procurando-se contribuir com dados relevantes sobre o impacto destes
tratamentos no bem-estar e dia a dia destes pacientes.
Metodologia
Trata-se de um estudo descritivo correlacional, com uma abordagem quantitativa,
desenvolvido numa clínica com 120 sujeitos em tratamento hemodialítico, situada
numa região urbana de grande densidade populacional. Após a obtenção de
autorização, em janeiro de 2011 procedeu-se à explicação dos procedimentos e da
finalidade do estudo, tendo todos os sujeitos assinado o termo de consentimento
livre e esclarecido. Para a colheita de dados aplicou-se um questionário
individual.
Para a determinação da amostra (n=67), foi utilizada uma técnica de amostragem
aleatória simples por sorteio do número dos processos clínicos. Como critério
de inclusão foi definido que deveriam saber ler e escrever. Quinze indivíduos
foram excluídos do estudo por: 2 por óbito; 6 por apresentarem transtornos
psicológicos; e 7 por não concordarem em participar pesquisa, ficando a amostra
reduzida a 52 sujeitos.
Instrumentos de medida
Neste estudo, utilizou-se um questionário específico de avaliação da QV em
pacientes insuficientes renais, em programa de diálise, designado Kidney
Disease Quality of Life (KDQOL-SFTM1.3), validado e difundido em vários países,
incluindo Portugal (Hays et al., 1997; Ferreira e Anes, 2010).
Este instrumento é composto por 80 itens, que incluem o Short Form - 36 Item
Health Survey (SF-36), 43 itens específicos da doença renal e 1 item de
identificação geral de saúde. O SF-36 é composto de 36 itens divididos em oito
dimensões, que se agrupam em 2 componentes: componente física [desempenho
físico (4 itens), função física (10 itens), dor (2 itens), saúde geral (5
itens)]; componente emocional [função emocional (5 itens), função social (2
itens), desempenho emocional (3 itens), vitalidade (4 itens)]. O estado da
saúde atual comparando há um ano (1 item) é analisado à parte. O módulo
específico sobre a doença renal (ESRD) inclui itens divididos em 11 dimensões:
sintomas/problemas (12 itens), efeito da doença renal na vida diária (8 itens),
peso da doença renal (4 itens), atividade profissional (2 itens), função
cognitiva (3 itens), qualidade da interação social (3 itens), função sexual (2
itens), sono (4 itens), apoio social (2 itens), encorajamento do pessoal de
diálise (2 itens) e satisfação do doente (1 item). Em cada domínio os scores
variam entre 0% (pior perceção) e 100% (melhor perceção).
Tratamento estatístico
Para a análise e tratamento dos dados, recorreu-se ao programa estatístico SPSS
e foi estabelecido o nível de significância para p≤0,05. Na descrição
estatística segundo as variáveis utilizadas, apresentou-se: a distribuição de
frequências nas categóricas (sócio-demográficas/económicas e clínicas); o uso
de medidas de tendência central (média) e de variabilidade (desvio-padrão, dp)
nas dimensões genéricas e específicas da qualidade de vida, sendo apresentados
os valores obtidos pela média±dp.
Na comparação das médias entre os géneros, utilizamos o teste T de Student.
Para a análise das diferenças de médias entre os grupos tendo em conta há
quantos anos realizam diálise, recorremos ao One-Way Anova. Utilizou-se o
coeficiente de correlação para analisar a associação entre variáveis métricas.
Resultados
Os participantes deste estudo apresentam uma idade média de 53,9±16 anos, sendo
que 24% efetuam tratamento hemodialítico há menos de 1 ano, 54% entre 1-5 anos
e 22% há mais de 5 anos. Quando questionados sobre as co-morbilidades
associadas, a mais prevalente nesta população foi a hipertensão arterial (55%),
seguida da diabetes mellitus (25%), da doença cardíaca (8%) e 12% com duas ou
mais destas doenças crónicas.
A maioria dos nossos sujeitos é do género masculino (60%); apresentam
escolaridade inferior ao ensino secundário (67%); sendo 70% inativos, dos quais
56% são reformados/pensionistas e 15% estão desempregados; 45% dos
entrevistados declararam rendimentos entre os 250 e os 750 euros; 38% referem
ser casados.
Pela observação da tabela 1, verificamos que o sexo masculino apresenta melhor
perceção da QV total (68,0±13) e da componente específica da doença renal
(69,9±14), comparativamente às mulheres (56,7±11 e 51,6±9, respetivamente),
sendo estas diferenças estatisticamente significativas.
Tabela 1 ' Perceção da QV (média ± DP) por sexo e tempo de diálise
Comparando a perceção da QV de acordo com o tempo de diálise, o que corresponde
a outro dos objetivos do nosso estudo, constata-se que o SF-36 nos sujeitos
cujo tempo de diálise se situa entre 1 e 5 anos é significativamente menor do
que aqueles que realizam diálise há menos de 1 ano. Acrescenta-se ainda que
estes sujeitos, com tempo de diálise inferior a 1 ano, são os que apresentam
melhor QV comparando com os restantes.
Quando analisamos os valores obtidos nas diferentes dimensões que constituem as
principais componentes da QV total, observam-se piores resultados na saúde
geral e no peso da doença, respetivamente no SF-36 e ESRD. Verificam-se
melhores resultados para o SF-36 no desempenho físico e emocional; para o ESRD
nos sintomas/problemas, qualidade da interação social e função sexual (gráficos
1 e 2). De um modo geral, constata-se que os homens demonstram melhor perceção
da QV em todos os itens, havendo diferenças estatisticamente significativas na
função emocional do SF-36 e nos efeitos da doença na vida diária do ESRD.
Gráfico 1 ' Valores relativos às dimensões do SF-36 por género
Gráfico 2 ' Valores relativos às dimensões do ESRD por género
Na tabela 2, apresentam-se as correlações entre as componentes da QV,
verificando-se que os aspetos específicos da doença renal (ESRD) se associam de
uma forma positiva e significativa com a componente emocional (r=0,74; p<0,01)
e com a componente física (r=0,65; p<0,01). Associadamente, constata-se que
estas componentes se correlacionam negativamente com a perceção da mudança na
saúde, -0,42 (p<0,01) e -0,34 (p<0,05), respetivamente.
Tabela 2 ' Correlações entre as componentes da QV
Discussão
Os resultados do presente estudo mostram que os sujeitos, particularmente as
mulheres, tratadas por hemodiálise apresentam níveis mais baixos de QV, com
diferenças estatisticamente significativas na função emocional do SF-36 e nos
efeitos da doença na vida diária do ESRD. A literatura existente sugere que, no
curso das doenças crónicas, as mulheres são mais afetadas na QV do que os
homens (Cowling et al., 2004; Hallert, Sandlund e Booqvist, 2003; Lindquist et
al., 2003; Norris et al., 2004).
Também o Dialysis Outcomes and Practice Patterns Study (DOPPS) que reporta
dados internacionais de pacientes hemodialisados fornece referências e
indicadores nesta temática, que vêm de encontro aos nossos achados (Lopes et
al., 2007). Braga et al. (2011) indicam que as mulheres tendem a ter pior QV
pela ocorrência de outros fatores para além dos clínicos, como a
responsabilidade de cuidar da casa e dos filhos o que as torna mais suscetíveis
a stress físico e mental. Liem et al. (2007) expõem que as experiências
prévias, as frustrações resultantes de expectativas não concretizadas e a falta
de suporte social são potenciais fatores determinantes a serem considerados.
Paralelamente, estes autores verificaram que quanto menor o tempo de tratamento
piores as implicações na componente mental da QV. Em oposição, os nossos
resultados apontam para maiores danos na componente física, sugerindo que esta
doença/tratamento tem maiores implicações numa fase inicial, nomeadamente nos
primeiros 5 anos, tendendo a melhorar depois. Alguns estudos relacionam ainda a
menor escolaridade e os baixos rendimentos com prejuízos na QV, alegando que:
i) quanto maior o nível de escolaridade, maior o acesso às informações
permitindo uma avaliação mais assertiva dos eventos traumáticos; ii) as
condições económicas tendem a afetar o acesso aos tratamentos e aos recursos
disponíveis (Lopes et al., 2007; Sesso, Rodrigues-Neto e Ferraz, 2003).
Contudo, no presente estudo não se verificam associações estatisticamente
significativas entre estas variáveis, pelo que não podemos considerar que os
fatores socioeconómicos tenham uma influência direta na QV.
Contudo, as co-morbilidades associadas têm implicações significativas, quer nos
sintomas/problemas quer no peso da doença renal, o que vai de encontro ao
amplamente relatado na literatura, onde se evidencia que a existência de outras
doenças crónicas compromete grandemente a QV dos pacientes em hemodiálise
(Santos, 2006). Apesar de nesta amostra encontrarmos uma grande percentagem de
hipertensos, importa referir que estes atribuem menor peso a esta doença uma
vez que o tratamento da hipertensão é menos agressivo, consistindo apenas, na
maioria das vezes, na monitorização da pressão arterial, anti-hipertensores
orais e alteração dos estilos de vida (Braga et al., 2011). Estes autores
acrescentam ainda que quando há associação da hipertensão com outras doenças
crónicas, particularmente com a diabetes, o indivíduo portador de IRC refere
maiores prejuízos na QV.
Nos dados obtidos nas dimensões genéricas do KDQOL-SF, destaca-se que o peso da
doença e a atividade profissional apresentam piores resultados no ESRD à
semelhança do descrito por Varela et al. (2011). Estes autores realçam ainda
que os pacientes em tratamento hemodialítico demonstram grandes dificuldades
para gerir as limitações/imposições inerentes à doença tais como o tempo
despendido nas sessões de hemodiálise e a sua periodicidade, o que dificulta a
manutenção do seu vínculo laboral.
Varela et al. (2011) verificaram que a componente física é mais afetada que a
mental nestes pacientes, o que se evidencia também nos nossos resultados.
Contudo, depreende-se que existe uma grande diferença entre a função quer
emocional, quer física e o respetivo desempenho, denotando que os sujeitos
tendem a reportar-se mais aptos e capazes do que as suas funções lhe permitem.
Vários estudos mostraram que, devido à limitação cardiovascular os sujeitos
apresentam dificuldades físicas para desempenhar suas atividades diárias e para
cumprir as exigências do tratamento e do autocuidado (Herzog, Mangrun e
Passman, 2008).
Acrescenta-se ainda que os aspetos específicos da doença renal (ESRD) têm uma
relação positiva com a função quer física, quer emocional, subentendendo-se
que, quanto melhor lidam com as particularidades da sua condição de saúde,
melhores resultados reportam nestas componente, ou seja maior a capacidade
destes sujeitos aceitarem e lidarem com o tratamento/doença. Braga et al.
(2011) apontam que quanto maior tempo de diálise maior a probabilidade dos
pacientes elaborarem respostas mais conformistas no decorrer do tratamento e do
confronto perante a cronicidade da doença, apesar de não representar uma
garantia efetiva de preservação da QV.
De sobremaneira, nota-se que estes factos relacionam-se negativamente com a
avaliação das mudanças na saúde, ou seja os sujeitos que relatam melhores
resultados nestas componentes tendem a identificar/percecionar menos mudanças
duma forma global. Face ao exposto, julgam-se necessários mais estudos,
concretamente de natureza longitudinal para esclarecer as relações de
causalidade implicadas nesta dinâmica. Supõe-se que exista um ciclo vicioso
entre estas variáveis, os resultados indicam que as questões emocionais tendem
a afetar os aspetos da doença e paralelamente também influenciam as mudanças na
saúde, considerando o que é reportado e percecionado pelos pacientes.
A interpretação dos resultados obtidos deve ter em conta algumas limitações
deste estudo: i) o reduzido tamanho da amostra; ii) o tipo de estudo e iii) as
variáveis analisadas, pelo que se sugerem novos trabalhos que suprimam estes
condicionalismos.
Conclusão
Considerando a importância da QV como um indicador de resultado, além de sua
influência na morbidade e mortalidade destes pacientes, a identificação de que
a mesma se associa com os aspetos específicos da doença renal pode tornar
possível uma intervenção mais eficaz nestes aspetos. Mais, o presente estudo
chama a atenção para existência de níveis mais baixos de QV nas mulheres,
embora o sexo não seja uma característica modificável, é possível providenciar
cuidados específicos, tendo em conta que a função emocional é a mais afetada.