Vinculação e Sistema de Prestação de cuidados em dependentes de substâncias em
tratamento. Adaptação Portuguesa do Questionário de Prestação de Cuidados
1 ' Introdução
O consumo abusivo de substâncias está associado a um conjunto múltiplo de
processos desenvolvimentais aos níveis genético, neurofisiológico, psicológico,
familiar, sociológico, e cultural (Hawkins, Catalano & Miller, 1992;
Panksepp, Nocjar, Burgdorf, Panksepp & Huber, 2004; Esteves & Vieira-
Coelho, 2007).
Dentro dos processos caraterísticos do contexto familiar, um domínio central é
a qualidade emocional das relações, tanto no passado infantil do sujeito, como
nas relações actuais adultas. De facto, um dos factores protectores das
adicções considerado mais consensual entre os especialistas é uma relação de
apoio e afecto entre pais-filhos (e.g. Abraão, 1999). Por outro lado, a
inclusão da família no tratamento de dependências vê-se associada ao aumento do
sucesso do mesmo (McCrady & Epstein, 1996; O'Farrell & Fals-Stewart,
2000; Neto & Torres, 2001).
Muitos indivíduos com problemas de abuso e dependência de substâncias não
apenas relatam ter vivido experiências familiares traumáticas na infância, como
demonstram ter padrões inseguros de vinculação e receio da intimidade nas suas
relações próximas e íntimas adolescentes e adultas, com os pais, os pares e os
parceiros íntimos (Geada, 1990; Walsh, 1995; Torres, Sanches & Neto 2004;
Thorberg & Lyvers, 2006). Nestes casos, as relações humanas íntimas, ao
invés de proporcionarem um porto emocionalmente seguro para o sujeito podem,
pelo contrário, tornar-se um factor potencialmente ameaçador para o bem-estar
psicológico, tal como havia sido aludido por Freud (1930), no caso da etiologia
das adicções a drogas e álcool. Mais recentemente Esteves & Vieira-Coelho
(2007), em relação ao uso de substâncias na sociedade contemporânea, reafirmam:
vivemos numa época em que não se tolera a dor e a tristeza passageiras,
procurando-se respostas imediatas e eficazes, principalmente de ordem
farmacológica, para qualquer mal-estar (Esteves & Vieira-Coelho, 2007, p.
14).
Alguns autores propuseram que o abuso de substâncias é motivado por défices de
regulação emocional (Taylor, Bagby & Parker, 1999; Grotstein, 1999; Torres,
Chagas & Ribeiro, 2008) associadas a perturbações do sistema de vinculação
(Flores, 2001; Torres, 2003, 2008). Evidências recentes mostram que clientes de
programas para tratamento de adicção (alcoolismo, heroína, anfetaminas/cocaína,
e cannabis) são caracterizados por vinculação insegura, alto receio da
intimidade e baixa diferenciação do Self(Thorberg & Lyvers, 2006), e que o
tratamento da dependência de substâncias deverá ter em conta as representações
de vinculação dos indivíduos, de forma a potenciar e promover uma recuperação
mais bem sucedida (Caspers, Yucuis, Troutman & Spinks, 2006). Outros
estudos verificaram que o tipo de relações próximas com o cônjuge, a família de
origem e a família dos cônjuges permite diferenciar entre os sujeitos que
recaem e os que se mantêm abstinentes por mais tempo (Kosten et al., 1987;
Lavee & Altus, 2001).
Assim, entender o papel que a regulação das ligações sociais (social bonding),
em particular as relações de vinculação e de prestação de cuidados emocionais,
desempenha nas trajectórias de vida e de tratamento de pessoas dependentes de
substâncias, é uma área crucial, não apenas para a compreensão científica de
fenómenos psicossociais desviantes, como para a sua prevenção, tratamento, e
prevenção da recaída.
2 ' Neurociência dos afectos, ligações sociais e a compreensão das adicções
Vários autores (em especial Jaak Panksepp e colaboradores) têm-se debruçado
sobre a neurofisiologia da dependência de substâncias químicas, e a sua relação
com sistemas inatos de bonding social, em particular a vinculação da criança
aos progenitores (Panksepp, 2003; 2005; Panksepp et al., 2002, 2004). Os
sintomas afectivos e psicofisiológicos da privação de opiáceos são idênticos
aos resultantes do isolamento e exclusão social, ambos modulados pelo sistema
opióide endógeno, o que indica que estes processos ocorrem com base nas mesmas
estruturas e processos neurobiológicos (Panksepp et al.2003, 2004). Em modelos
animais, a separação precoce entre a cria e a mãe produz evidências
comportamentais de perturbação, tais como as vocalizações de ansiedade
(distress calls[McLean, 1985]), que são suprimidas pela administração de
opiáceos e agonistas opiáceos (para uma revisão ver Torres, 2003). Numa
extrapolação para o ser humano baseada nas homologias estruturais e funcionais
das áreas subcorticais do cérebro comum a todos os mamíferos (McLean, 1985,
1990), estes auto-res propuseram que emoções de ansiedade, stresse e o mal-
estar induzidos por um nível desadequado de contacto afectivo próximo com os
progenitores e pares podem ser aliviados e suprimidos pela administração de
substâncias químicas, que actuam directa ou indirectamente na regulação do
sistema opióide endógeno. Estas substâncias demonstram actuar no alívio e
redução do stresse afectivo decorrente da falta de ligação social,
possivelmente devido à emergência de um sentimento positivo equivalente ao que
é sentido pelo envolvimento emocional positivo decorrente da ligação social,
diminuindo o desconforto e mal-estar resultantes da desadaptação social e da
dificuldade no relacionamento próximo com os outros (Panksepp, 2003-2005).
3 ' Vinculação da criança aos pais
O sistema de Vinculação (attachment system) pode ser definido, num contexto
evolutivo e adaptativo, como um sistema biopsicológico motivacional inato de
alta plasticidade e flexibilidade em função da experiência, cujo objectivo é
aumentar a probabilidade de protecção e sobrevivência através do
estabelecimento de uma base segura, que deriva de uma relação com uma figura
cuidadora (Bowlby, 1969-1980). Bowlby e colaboradores hipotetizaram que a
prestação de cuidados parentais recebidos e percebidos durante a infância
repercutir-se-á ao longo da vida através da organização do sis-tema de
vinculação (sob a forma de comportamentos, afectos e representações mentais) '
organização essa baseada em modelos internos que se construíram na interacção
entre os cuidadores e a criança ' que se constitui enquanto substrato
emocional, cognitivo e comportamental para todas as experiências relacionais do
indivíduo (Bowlby, 1969-1988; Shedler & Block, 1990). Nas últimas décadas,
a investigação em psicologia/ psicopatologia do desenvolvimento tem produzido
vasta evidência de que a organização do sistema de vinculação acompanha o ser
humano ao longo do crescimento, desde, sensivelmente, os primeiros 6 meses de
vida até à idade adulta e é um factor promotor da saúde mental aos níveis
emocional, social e do Self (Weinfield, Sroufe & Egeland, 2000; Sroufe,
2005).
O sistema de prestação de cuidados (Caregiving) foi também proposto por Bowlby
(1969/1980) como um sistema inato, complementar do sistema de vinculação. Isto
é, complementar da necessidade do outro em se sentir ajudado e protegido. No
entanto, este sistema tem sido pouco aprofundado na investigação subsequente
sobre o assunto (Simpson & Rholes, 1998; 2000).
4 ' Sistema de prestação de cuidados (Caregiving system)
O Sistema de Prestação de Cuidados (Caregiving), tal como foi definido por
Bowlby (1981), refere-se aos comportamentos de fornecimento de protecção e
apoio aos que se encontram dependentes ou momentaneamente em necessidade. Este
sistema desenvolve-se desde cedo no contacto dos cuidadores com o bebé, havendo
uma forte interacção e complementaridade entre o sis-tema de vinculação do bebé
e o sistema de prestação de cuidados dos pais: o bebé em necessidade activa o
seu sistema de vinculação, que vai despertar, por sua vez, o sistema de
prestação de cuidados do cuidador, que irá ao encontro das necessidades do
primeiro, agindo de uma forma suficientemente boa que potencia o
desenvolvimento de uma base segura (Secure Base) e um porto seguro (Safe Haven)
(Marvin, Cooper, Hoffman & Powell, 2002).
5 ' Vinculação e prestação de cuidados entre adultos
Nas relações entre dois adultos, o sistema de prestação de cuidados
(Caregiving) enquadra-se em comportamentos de apoio emocional em situações
específicas, levando as pessoas a corresponderem mutuamente aos sinais de
ansiedade e stresse e à necessidade de segurança emocional uma da outra, agindo
como base segura de bem-estar emocional e, ao mesmo tempo, potenciando um grau
confortável de autonomia (Kunce & Shaver, 1994). Assim, na prestação de
cuidados entre adultos, existe uma relação bidireccional entre a procura de
cui-dados e a prestação de cuidados em ritmos alternados. Estudos indicam que a
forma como uma pessoa efectua prestação de cuidados aos outros está em estreita
ligação com a própria história de vinculação na infância e com a forma como
representa e percepciona a prestação de cuidados que teve enquanto criança e
adulto (Feeney & Collins, 2001; Kunce & Shaver, 1994; Reizer &
Mikulincer, 2007). Observa-se que pessoas com um padrão seguro de vinculação
apresentam maior sensibilidade e responsividade aos sinais do outro, através de
cuidados adequados às necessidades do outro (sensíveis, contingentes e não
intrusivos). Em contrário, os adultos com padrões de vinculação inseguros têm
tendência a utilizar comportamentos controladores ou compulsivos na sua
prestação de cuidados (Faria, Fonseca, Lima, Soares & Klein, 2001; Feeney
& Collins, 2001; Khunce & Shaver, 1994).
6 ' Tradições de investigação sobre as relações próximas e a vinculação no
adulto
Simpson & Rholes (1998) distinguem duas tradições no estudo da vinculação
na idade adulta: (1) a tradição da Vinculação da Família Nuclear; e (2) a
tradição da Vinculação a Pares e Relações Românticas.
A primeira, desenvolvida independentemente por Main, Kaplan & Cassidy
(1984) e por Waters & Waters (2006), assenta no acesso ao conteúdo
implícito e organização dos modelos internos nos adultos, inspirado nas
classificações da Situação Estranha e nos desenvolvimentos de Mary Ainsworth e
colaboradores (Simpson & Rholes, 1998).
Por seu lado, a investigação da vinculação através de questionários de auto-
relato (Hazan & Shaver, 1987) faz parte da tradição de investigação da
vinculação adulta a Pares e a Relações Românticas, e despoletou um vasto
desenvolvimento de medidas psicométricas com ointuito de abordar a vinculação e
as diferentes trajectórias desenvolvimentais em adolescentes e adultos
(Brennan, Clark & Shaver, 1998; Collins & Read, 1990).
Nos últimos anos tem-se debatido a equivalência e concordância dos constructos
oriundos das duas tradições, de forma a promover a discussão e a encorajar a
comunicação e troca de informação entre os dois grupos acerca das suas
descobertas numa tentativa de unificação da teoria da vinculação (Waters et
al., 2002; Crowell & Treboux, 1995; Corcoran & Treboux, 2002; Moreira
et al., 2006).
Recentemente têm vindo a ser desenvolvidas em Portugal adaptações de
questionários para avaliar a organização da vinculação nos adultos (Moreira,
Lind, Santos, Moreira, Gomes, Justo, Oliveira, Filipe & Faustino, 2006;
Soares, 2009). A Adult Attachment Scale(Collins & Read, 1990), adaptada
para Portugal por Canavarro et al., 2006, com o nome de EVA (Escala de
Vinculação do Adulto), tem sido estudada nos últimos anos em várias populações
clínicas e não clínicas. Foi utilizada no presente estudo, por avaliar três
dimensões associadas à vinculação (Conforto com a Proximidade, Confiança em
depender e Ansiedade de Abandono) e também por ser mais económica em termos de
disponibilidade de tempo por parte dos inquiridos.
No que toca aos instrumentos de avaliação da prestação de cuidados
(Caregiving), o Questionário de Cuidados (Caregiving Questionnaire) de Kunce
& Shaver (1994) é ainda hoje um questionário de referência nos estudos
entre adultos (Reizer & Mikulincer, 2007). Assim, com o objectivo de
desenvolver estudos científicos para uma melhor compreensão do sistema de
prestação de cui-dados (Caregiving) nas relações adultas e íntimas entre
pessoas com problemas de dependência de substâncias, considerámos pertinente
desenvolver a adaptação do Caregiving Questionnairede Kunce e Shaver (1994)
devido à escassez de instrumentos específicos de mensuração do sistema de
prestação de cuidados na língua portuguesa, e ao facto de demonstrar, na sua
versão original, correlações fortes com os estilos de vinculação do adulto
(Bartholomew; 1991; Kunce & Shaver, 1994; Reizer & Mikulincer 2007).
7 ' Objectivos do presente estudo
1. Desenvolvimento da adaptação do Questionário de Cuidados
(Caregiving Questionnaire) de Kunce & Shaver (1994) numa amostra
clínica de dependentes de substâncias em tratamento (participantes
integrados em comunidade terapêutica e em programa de metadona).
2. Testar a validade do novo instrumento através das estruturas de
correlações entre uma medida de vinculação já validada em Portugal e
o questionário de sistema de prestação de cuidados.
3. Comparar os resultados obtidos por estudos anteriores em amostras
normativas com os resultados obtidos na presente população clínica de
dependentes de substâncias.
8 ' Método
8.1 ' Processo de adaptação e tradução do questionário de prestação de cuidados
Todo o processo de adaptação foi conduzido de acordo com as orientações da
Comissão Internacional de Testes (Geisinger, 1994; 2003) acerca dos métodos de
tradução e adaptação transcultural de um instrumento e foi acompanhado pelo
autor do questionário, Dr. Phillip Shaver. Neste estudo foram elaborados os
seguintes quatro passos: 1) tradução e retroversão dos itens do questionário
por tradutores profissionais independentes; 2) revisão da versão retrovertida
do instrumento pelo autor original; 3) adaptação do rascunho do instrumento com
base nos comentários dos revisores; 4) estudo de campo.
8.2 ' Participantes
O estudo contou com um total de 116 participantes, que se encontravam em dois
tipos diferentes de tratamento para dependência de substâncias: (1) tratamento
de Comunidade Terapêutica, que contou com 65 participantes pertencentes a três
comunidades terapêuticas: uma comunidade no centro de Lisboa, outra nos
arredores de Lisboa e a terceira na Margem Sul; e (2) Programa de Metadona, que
contou com 51 participantes. Esta amostra de programa de metadona foi recolhida
em Lisboa Ocidental (47 participantes) e em Lisboa Oriental (4 participantes).
Os dois grupos apresenta-ram-se como sendo equivalentes em todas as variáveis
sociodemográficas excepto na idade(p=0.015).
TABELA 1' Descrição sociodemográfica da amostra. Médias e percentagens das
variáveis.
8.3 ' Instrumentos
8.3.1 ' EVA: Escala de Vinculação do Adulto (Adult Attachment Scale)
A validação deste questionário para a população portuguesa foi elaborada por
Canavarro et al. (2006). As dimensões que compõem o EVA são: (1) Conforto com a
proximidade, que avalia o nível de conforto do indivíduo ao estabelecer
relações próximas e íntimas (e.g. Sinto-me bem quando me relaciono de forma
próxima com as pessoas); (2) Confiança em depender, que avalia se os
indivíduos sentem que podem depender de outros em situações em que necessitam
deles (e.g. Acho que as pessoas nunca estão presentes quando são
necessárias); e (3) Ansiedade de abandono, que avalia grau em que o indivíduo
se sente preocupado com a possibilidade de ser abandonado ou rejeitado (e.g.
Preocupo-me frequentemente com a possibilidade dos meus parceiros me
deixarem). Este questionário é composto por 18 itens com uma escala tipo
Likert de 5 pontos (1 ' Nada característico em mim; 5 ' Extremamente
característico em mim). As dimensões apresentaram os seguintes índices de
fiabilidade no presente estudo: Ansiedade de abandono (α = 0,80) Conforto na
proximidade (α = 0,54), e Confiança em depender (α= 0,70).
8.3.2 ' Questionário de Prestação de Cuidados (Caregiving Questionnaire)
1
O Questionário de Prestação de Cuidados tem como objectivo medir o tipo de
comportamentos de prestação de cuidados que cada indivíduo fornece ao parceiro
ou cônjuge. É constituído por 32 itens com uma escala de resposta do tipo
Likert de 6 pontos (1 ' Nada característico em mim; 6 ' Extremamente
característico em mim). A adaptação portuguesa, elaborada por nós no âmbito
deste estudo, apresenta valores de alfa de Cronbach satisfatórios para as
quatro dimensões do questionário (ver tabela 2).
TABELA 2' Descrição de alfas de Cronbach, definições dos constructos, e
exemplos de itens das dimensões do Questionário de Cuidados
9 - Resultados
9.1 ' Correlações entre as escalas do questionário de prestação de cuidados
Verifica-se que, tal como era esperado teoricamente, positiva entre Cuidados
controladorese Cuidados1) existe uma correlação positiva entre a Sensibilidadee
a Manutenção de proximidade, 2) existem correlações negativas entre estas duas
dimensões e a dimensão Cuidados controladorese, finalmente, 3) uma correlação
compulsivos.
TABELA 3' Correlações entre as dimensões do Questionário de Cuidados para a
amostra total.
No estudo original de Kunce & Shaver (1994), as correlações entre as
escalas são semelhantes e foram as seguintes: Manutenção de Proximidade com
Sensibilidade = 0,49; Cuidados Controladores com as duas escalas anteriores = -
0,30; e a escala de Cuidados Compulsivos com Cuidados Controladores =0,44
(Kunce & Shaver, 1994, pp. 226-228). Para verificar se as pequenas
diferenças na magnitude das correlações entre o estudo original e o presente
estudo são significativas utilizou-se o teste de Fisher, para verificar a
significância da diferença entre dois coeficientes de correlação (Cohen, 1988).
Verificámos que nenhum dos coeficientes de correlação apresenta diferenças
significativas nas duas amostras.
9.2 ' Correlações entre a vinculação e a prestação de cuidados no presente
estudo
Na amostra total dos participantes em tratamento, observa-se a existência de um
Padrão de correlaçõesentre os constructos que é congruente com o que seria
esperado teoricamente, ou seja: a Ansiedade de abandonona vinculação
correlaciona-se positivamente com prestação de Cuidados controladorese
compulsivos, enquanto o Conforto com a proximidadee a Confiança em dependerna
vinculação se correlacionam positivamente com estratégias de Manutenção de
proximidadee de Sensibilidadena prestação de cuidados.
9.3 ' Associação entre número de familiares com problemas de dependência de
substâncias, vinculação e prestação de cuidados
Tendo em conta que a existência de progenitores com problemas de dependência
pode ser considerado um indicador de disfunção parental, bem como a existência
de irmãos com os mesmos problemas pode ser um indicador de disfunção familiar,
testámos a associação entre estas variáveis do contexto familiar e as dimensões
de vinculação e prestação de cuidados dos participantes.
Os resultados da tabela 4 mostram que a variável Pai com problemas de
dependência tem uma associação positiva com a dimensão Ansiedade de abandono e
negativa com a dimensão Confiança. Para a variável Mãe, não foram encontradas
associações com as dimensões da vinculação ou da prestação de cuidados
(possivelmente devido ao número reduzido de mães com problemas de abuso de na
amostra em estudo (11%)). Relativamente à fratria, foi observada uma associação
negativa com a Manutenção de proximidade. O somatório de número de familiares
com dependência de substâncias apresentou uma associação positiva com a
dimensão Ansiedade de abandono, e negativa com a Manutenção de proximidade.
TABELA 4' Correlações entre as dimensões dos questionários EVA e QC na amostra
total do presente estudo.
Prestação de cuidados
M. Sensibilidade C. C. Compulsivos
Proximidade Controladores
Ansiedade de -,160* -,276** ,404** ,373**
abandono
VinculaçãConfiança em ,418** ,377** -,162 -,007
depender
Conforto com ,453** ,364** -,232 -,216
a proximidade
9.4 ' Comparação descritiva entre o presente estudo e estudos normativos com os
mesmos instrumentos
Verifica-se que, em relação aos valores médios obtidos no estudo de adaptação
do EVA de Canavarro et al. (2006), com uma amostra de 434 participantes da
população não-clínica, a média de Ansiedade de abandonodos participantes em
Comunidade Terapêutica apresenta um desvio-padrão acima, tanto do encontrado na
amostra de participantes da população normativa, como do verificado nos
participantes em tratamento de substituição com Metadona do presente estudo.
Por outro lado, a média de Confiança em dependerdos participantes em Comunidade
Terapêutica está sensivelmente um desvio-padrão abaixo dos participantes da
população não-clínica. A média de Conforto com a proximidadenão regista
diferenças tão salientes como as outras dimensões, mas também é mais baixa do
que a da população normativa.
No que se refere ao questionário de prestação de cuidados, pode-se verificar na
tabela 5 que, comparativamente às médias obtidas no estudo original de Kunce
& Shaver (1994), pertencentes a uma amostra de 393 estudantes
universitários dos Estados Unidos avaliados como tendo uma vinculação segura
segundo a Adult Attachment Interview(AAI), os valores médios de prestação de
cuidados em ambos os grupos de tratamento da presente amostra apresentam
valores claramente mais baixos na dimensão de manutenção da proximidade e
mais elevados na dimensão cuidados compulsivos. Assim, os valores médios das
escalas de prestação de cuidados na presente amostra estão mais próximos dos
estilos amedrontado (fearful) e demitido (dismissing) da Adult Atachment
Interview. No entanto, sabendo que as médias são pertencentes a uma amostra
norte-americana, as diferenças culturais podem ser importantes para a
contextualização destes resultados, pelo que é necessário esperar por estudos
em amostras normativas portuguesas para uma comparação mais idónea.
TABELA 5' Correlação entre familiares com problemas de dependência de
substâncias e as escalas dos questionários.
Ansiedade Conforto ConfiançaM. Sensibilidade C. C.
proximidade control. comp.
Pai ,277** -,040 -,230* ,006 ,018 ,031 ,058
Mãe -,024 ,013 -,059 -,085 -,027 -,005 -,010
Irmãos ,075 -,103 ,024 -,166* ,116 ,065 -,092
Somatório
familiares ,179* -,095 -,120 -,171* ,082 ,065 -,015
TABELA 6' Média e Desvio-Padrão para as dimensões dos questionários no estudo
presente e nos estudos originais.
Vinculação (EVA)
Grupo Grupo
Escalas Comunidade Metadona População Normativa
Terapêutica
Ansiedade de 3,41 2,30 2,43
Abandono (DP= 0,78) (DP= (DP= 0,74)
0,77)
Confiança em 2,83 3,03 3,27
depender (DP= 0,65) (DP= (DP= 0,53)
0,58)
Conforto c/ 3,27 3,26 3,49
proximidade (DP= 0,74) (DP= (DP= 0,58)
0,57)
Prestação de Cuidados (CQ)
Manutenção 4,78 4,77 5,35
Proximidade (DP= 0,91) (DP=
0,73)
4,10 4,26
Sensibilidade (DP= 0,81) (DP= 4,51
0,60)
Cuidados 3,44 2,89
Controladores (DP= 0,90) (DP= 2,43
0,75)
Cuidados 4,20 3,52
Compulsivos (DP= 1,02) (DP= 2.11
0,99)
Nota: o desvio padrão do estudo original do questionário de prestação de cuidados (Kunce & Shaver, 1994) não foi publicado pelos autores. Os valores da tabela referem-se a sujeitos na categoria vinculação segura na entrevista AAI
10 ' Discussão de resultados e conclusão
Com base nos resultados obtidos, podemos concluir que o processo de adaptação
portuguesa do Questionário de Cuidados realizada neste artigo, com uma amostra
clínica de pessoas com dependência de substâncias em tratamento, apresenta uma
estrutura sólida, que vai ao encontro da versão original de Kunce & Shaver
(1994). Em geral, os resultados são também congruentes com a teoria da
vinculação e com a hipótese de que o sistema de prestação de cuidados é um
sistema complementar da vinculação.
1. Ao nível da consistência interna (Alfa de Cronbach) das dimensões dos
questionários, estas apresentam-se com valores satisfatórios para o
questionário de prestação de cuidados, que indicam que os itens constituem bons
indicadores dos constructos psicométricos.
2. Entre as dimensões do questionário de Prestação de Cuidados, obtiveram-se
estruturas de correlação congruentes com os pressupostos teóricos e
significativamente semelhantes às estruturas de correlação do instrumento
original.
3. Os resultados obtidos nas correlações entre as escalas dos dois
questionários (Vinculação e Prestação de Cuidados) seguem a tendência descrita
na literatura, segundo a qual pessoas que apresentam uma organização menos
segura (mais ansiosa) da vinculação apresentam estratégias mais desadequadas na
prestação de cuidados ao outro. Assim, indivíduos com mais ansiedade de
abandono apresentam uma prestação de cuidados mais compulsiva e controladora e
menos sensível (Feeney & Collins, 2001; Kunce & Shaver, 1994).
4. No que concerne à associação entre variáveis indicadoras de
disfuncionalidade parental e familiar, verificou-se que a existência de um pai
com dependência de substâncias tem impacto significativo no sistema de
vinculação dos participantes, nomeadamente no que diz respeito a uma maior
ansiedade de abandono e a menor confiança na dependência emocional. Por outro
lado, a existência de dependência de substâncias na fratria tem associação
significativa com o sistema de prestação de cuidados, especificamente com a
manutenção de proximidade.
Estes resultados vão assim ao encontro da literatura: indivíduos com histórias
familiares problemáticas apresentam vinculações mais pobres que, por sua vez,
conduzem à pobreza do sistema de prestação de cuidados (Kunce & Shaver,
1994). Este mecanismo pode estar baseado em perturbações no desenvolvimento da
empatia ' na capacidade de percepcionar estados emocionais dos outros (David,
2010).
No campo das limitações, os resultados presentes neste estudo estão assentes
numa amostra clínica com especificidades próprias, no que concerne às relações
interpessoais e a vivências traumáticas precoces e ao longo do desenvolvimento.
É assim importante referir que este estudo não teve um grupo de controlo
normativo e que o questionário adaptado não foi ainda aplicado a uma amostra
não-clínica. Contudo, a realização de novos estudos com diferentes amostras
(clínicas e não-clínicas) é necessário para o desenvolvimento deste instrumento
e da sua validação, de forma a contribuir para a abertura de novos
desenvolvimentos no conhecimento do sistema de prestação de cuidados
(caregiving) e da sua relação com o sistema de vinculação.
Por fim, parece-nos importante ressalvar, uma vez mais, a pertinência que a
teoria e investigação acerca dos sistemas de vinculação e prestação de cuidados
poderão ter para a reflexão e abordagem de questões ao nível da prevenção e
tratamento dos comportamentos adictivos (Flores, 2001), assim como na
elucidação de factores facilitadores da adesão ao tratamento, do sucesso deste
e da manutenção de abstinência pós-tratamento (Lavee & Altus, 2001).
A utilização destas medidas psicométricas de relações interpessoais próximas,
no contexto de tratamento da dependência de substâncias, pode vir a ser útil
para a identificação de pontos fortes e fracos no funcionamento socioemocional
dos pacientes. Nesse âmbito, estas medidas poderão, eventualmente, servir para
trabalhar aspectos relacionais que melhorem a adesão ao tratamento, a prevenção
do abandono, e produzam efeitos de prevenção de recaídas despoletadas por
stresse associado a conflitos relacionais com familiares, parceiros e/ou
cônjuges (Kosten et al., 1985).
Como nota final, deixamos algumas indicações que, embora sejam ainda de
carácter especulativo, procuram suscitar linhas de reflexão, tanto ao nível da
investigação, como da própria intervenção. Os presentes resultados são
congruentes com a literatura e investigação sobre a associação entre adicções e
problemas nas relações interpessoais próximas, em particular na vinculação
(Shedler & Block, 1990; Geada, 1990; Panksepp, 2002/2005; Torres et al.,
2003; 2004; 2008; David, 2001; 2010). Na linha de estudos realizados nas áreas
da neurobiologia dos afectos, as substâncias adictivas actuam no sistema
opióide endógeno, reduzindo a evidência de stresse provocado por ansiedade de
separação (Panksepp et al, 2002, 2004; Walsh, 1995; David, 2001; Torres, 2003/
2008).
Aquilo que se verificou nos nossos resultados é que os participantes em
programa de Metadona apresentam uma Ansiedade de Abandonosignificativamente
inferior aos participantes em Comunidade Terapêutica (em que apenas 10.8% tomam
metadona e numa dose muito inferior ' 33,5mg em média). Se tomarmos em linha de
conta as ideias de Bowlby (1991; pp. 245-263 e pp. 423-448) de que a ansiedade
de abandono faz exacerbar a ansiedade de separação, estes resultados são
congruentes com a noção de que os opiáceos podem reduzir a ansiedade de
separação ligada à ansiedade de abandono. No entanto, esta redução da ansiedade
de abandono não significa que a organização profunda dos sistemas
biopsicológicos de vinculação e prestação de cuidados seja afectada, mas pode
reflectir apenas uma alteração ao nível sintomático (diminuição do sentimento
subjectivo de ansiedade de abandono). Por outro lado, os participantes em
Comunidade Terapêutica podem manifestar uma maior ansiedade de abandono devido
à situação actual de afastamento da família, amigos e parceiros. Para averiguar
de forma mais profunda a organização da vinculação necessitamos de instrumentos
de avaliação que acedam aos modelos internos inconscientes e aos
scriptscognitivos implícitos, possibilitados por análise de entrevistas em
profundidade como a AAI (George, Kaplan & Main, 1984) e análise de
narrativas de base segura (Waters & Waters, 2006).
NOTA:
1
' A versão completa do questionário adaptado pode ser facultada mediante
contacto com os autores do artigo.