Programa de redução de riscos e minimização de danos em Torres Vedras -
Avaliação e reflexões
1 ' Introdução
Actualmente, no contexto do direito aos cuidados de saúde, a população que
servimos pode contar com o enquadramento legal necessário ' baseado nos
princípios do humanismo e do pragmatismo ' que permite intervir ao nível da
prevenção e redução de comportamentos de risco e na minimização de danos
individuais e sociais, provocados pelo consumo de drogas.
Vimos cumpridas expectativas fundamentais e legítimas que surgiam do trabalho
no terreno, cenário que, desta forma, sofreu mudanças significativamente
positivas. Ao longo dos últimos anos, a intervenção em redução de riscos e
minimização de danos tem sido balizada e legitimada formalmente, sendo a sua
regulação social assumida e transmitida através da própria legislação e
orientações específicas: A primeira meta da intervenção de redução de danos é
tentar estabilizar o comportamento problemático do indivíduo e prevenir uma
maior exacerbação das consequências prejudiciais. Tende a estimular a
manutenção da mudança de comportamento e a não permitir que o problema se
agrave. A redução de danos promove o acesso a serviços de baixa exigência como
alternativa às respostas tradicionais de alta exigência.(Estratégia nacional
de luta contra a droga 2005-2012, p. 6851)
2 ' Características do programa
Desde sempre, a equipa de tratamento de Torres Vedras sentiu necessidade de
intervir na área da redução de riscos e minimização de danos, nomeadamente
através de um programa de metadona de baixo limiar. Em 2005, através do
estabelecimento de uma pareceria local com a Câmara Municipal de Torres Vedras
e da articulação com os serviços regionais do I.D.T., I.P., criámos um
programa de baixo limiar de exigência com o objectivo de reduzir riscos e
minimizar danos em doentes que não tinham condições para cumprir um programa de
tratamento estruturado na unidade local de tratamento, assim como atrair
doentes que nunca tinham iniciado qualquer processo de trata-mento em
nenhuma unidade especialidade do I.D.T., I.P. funcionando, no fundo, como um
instrumento de mediação dos doentes para outros programas de tratamento que
mais se adequassem a cada realidade individual.
Assim, foi delineada a estratégia de separar os espaços físicos dos programas
de baixo e alto limiar.
De facto, sempre considerámos que as diferenças (de objectivos) entre os
programas de alto e de baixo limiar de exigência remetem para a necessidade do
estabe-lecimento da diferenciação, também entre os espaços. Consideramos
que seria uma discriminação positiva.
As evidências da prática clínica que funcionaram como fundamentos para esta
acção basearam-se na consta-tação de que os doentes em fases de consumos
têm, frequentemente, comportamentos de desestabilização que passam pelo
incumprimento de regras e por outros comportamentos, inclusivamente de risco,
em relação às substâncias. Ora, a conhecida influência interpessoal faz com
que, potencialmente, outros doentes, até aí em cumprimento do tratamento,
também se pudessem desorganizar.
Faz parte do protocolo de entrada em programa de redu-ção de riscos e
minimização de danos, a obrigatoriedade de consulta médica, a avaliação por um
técnico psicos-social sempre que necessário, a indução de metadona sob
avaliação médica, ou de enfermagem, consoante sintomatologia e protocolo de
serviço, e a realização e entrega dos exames complementares de diagnóstico
solicitados no espaço de 4 semanas (condição que é indispensável para a
permanência em programa).
A equipa do programa de redução de riscos e minimização de danos é
multidisciplinar, sendo com-posta por uma médica psiquiatra, uma técnica de
ser-viço social, enfermeiros, técnicos psicossociais e um psicólogo clínico
que intervém em contexto de crise quando necessário.
3 ' Evolução do movimento clínico
Entre Dezembro de 2005 e Maio de 2009, o número total de doentes admitidos no
programa foi de 241 (204 homens e 37 mulheres).
Ao longo dos anos, a admissão de novos doentes atingiu o seu patamar mais alto
no ano de 2008, com um número de 83 doentes que entraram no programa de redução
de riscos e minimização de danos.
GRÁFICO 1' Movimento clínico.
O facto de, em 3,5 anos, terem passado 241 pessoas diferentes por este programa
é revelador de um ele-vado índice de procura. Especificamente, a média de
procura anual é de 69 pessoas, ou seja, 6 pessoas novas por mês. Estes números
são ainda valorizáveis se atendermos à percentagem de pessoas sem
experi-ência de contacto prévio com unidades de tratamento. Assim, para 75
pessoas (31,2%) foi a resposta que, pelas mais diferentes razões, fez sentido
em determi-nada altura da sua vida.
Entendemos ainda, em relação aos objectivos do pro-grama, salientar a opção
pela intervenção de primeira linha, defendida também por Coutinho R. (2004, p.
86) quando preconiza estas intervenções face a respostas dos serviços de
tratamento mais estruturados. Este autor salienta a importância de termos
programas compatíveis com as capacidades e necessidades dos consumidores.
3.1 ' Transição entre o programa de baixo e alto limiar de exigência
Em relação à transição entre programas, importa referir que um dos objectivos
iniciais ' dar resposta aos doentes que não cumpriam o programa na Equipa de
Tratamento ' revelou-se uma valiosa medida para 9 doentes que, durante este
intervalo de tempo, necessitaram de outra resposta (por incumprimento dos
programas). Representam apenas 2,2% do total de seguimentos, o que revela que o
programa da Equipa de Tratamento continua empenhado em reter as pessoas num
programa de tratamento estruturado. Muitas vezes, isso representa não recorrer
a esta resposta, que seria prática, mas os técnicos não a têm assumido sempre,
pelo respeito pelos projectos dos utentes e na expectativa de que a sua
capacidade de reorganização os faça prosseguir o seu objectivo de manutenção da
abstinência.
No que respeita à passagem dos doentes do baixo limiar para a Equipa de
Tratamento, os números que consideramos mais importantes referem-se às 123
pessoas que foram transferidas para o programa de tratamento. Estes dados podem
significar o trabalho de motivação e a reorganização de comportamentos dos
nossos doentes, executados sempre com base no respeito pelos tempos das
pessoas, pelas suas opções e, na essência, promovendo a redução de riscos e a
minimização de danos.
3.2 ' Outros Encaminhamentos
Do total de saídas do programa de redução de riscos e minimização de danos, 12
doentes foram encaminhados para desabituação física de opiáceos, sendo que, 10
destes doentes prosseguiram tratamento em comuni-dade terapêutica.
Estes encaminhamentos foram feitos já depois da entrada em programa de redução
de riscos e minimi-zação de danos.
Ao reflectirmos sobre os abandonos, verificamos que representam 49% dos
seguimentos. Este aspecto pode revelar a dificuldade, ou a incapacidade de
reorgani-zação de alguns doentes. No entanto, sublinhe-se que se trata
mesmo de apenas alguns doentes, pois muitos destes_abandonos_são_múltiplos_na
mesma_pessoa.
3.3 ' Grávidas (incluindo as detectadas no programa)
No programa foram acompanhadas 6 grávidas, tendo sido encaminhadas, com a maior
celeridade possível, para o programa de tratamento, mesmo que não estivessem
asseguradas todas as condições gerais definidas. Este dado reflecte a
preocupação em dar respostas específicas e especializadas, de acordo com a
problemática/situação de cada doente.
3.4 ' Caracterização sociodemográfica da população
Relativamente à idade dos doentes, verifica-se que 52% têm mais de 30 anos,
sendo a idade média de 34,7 anos.
GRÁFICO 2' Idade.
Se, por um lado, o tipo de intervenção em questão é indicada para esta faixa
etária, não podemos deixar de reflectir nos doentes abaixo desta faixa etária
que foram admitidos neste programa. Alguns deles, muito jovens, foram aceites
devido à perigosidade dos riscos a que estavam expostos com os consumos que
praticavam, associados a outros actos ilícitos e, consequentemente, aos danos
inerentes a esses comportamentos. Sempre foi uma preocupação prioritária desta
equipa trabalhar a motivação destes jovens, para poderem transitar para outro
tipo de resposta da Equipa de Tratamento.
No que se refere ao grau de escolaridade e ao tra-balho, verifica-se que
68% dos doentes não possui a escolaridade obrigatória, e o maior grupo (39%)
tem apenas o 2º ciclo, o que pode ajudar a perceber a sua considerável
dependência de trabalhos ocasionais e sazonais que, apesar de precários,
constituem ganhos importantes.
GRÁFICO 3' Escolaridade.
Ao entrar no programa de redução de riscos e minimi-zação de danos, 58% dos
utentes estavam desempre-gados. Este valor reforça a importância desta
interven-ção, enquanto base/plataforma para uma reorganização
socioprofissional destas pessoas.
GRÁFICO 4' Situação Profissional.
Verifica-se, segundo os dados destacados, um aspecto relevante: 42% dos doentes
que já passaram por este programa pertencem a outros concelhos que não Torres
Vedras. Isto significa que, geograficamente, a intervenção contempla uma área
supra-concelhia con-siderável. É, portanto, de realçar, o esforço que
muitos doentes fazem para garantir a sua assiduidade, condi-ção necessária
para a transição de programa.
Importa também salientar a forma como o programa vai sendo conhecido pelos seus
utilizadores. Temos a certeza que esta informação é feita pelos próprios
doentes entre os seus pares.
GRÁFICO 5' Concelhos de Residência.
Sobre a caracterização familiar, consta que 35% dos doentes têm filhos e 80%
dos doentes têm algum tipo de apoio em termos de coabitação. Existem, portanto,
poucos doentes sem abrigo, o que é característico desta região, onde, na maior
parte dos casos, há ainda um importante suporte familiar.
GRÁFICO 6' Filhos.
GRÁFICO 7 'Coabitação
Outro aspecto relevante da caracterização social desta população remete para os
problemas judiciais. No nosso programa, constatámos que 6,2% dos doentes já
cumpriram prisão efectiva.
4 ' Tempo de permanência no programa
Relativamente à permanência em programa, o tempo médio é de 2,3 meses, o que
pode ser relevante, pois, embora muitos doentes necessitem apenas de 5 semanas
para transitar, a maioria necessita de mais tempo. Há muitos abandonos, com
períodos mais curtos, mas também existem doentes já com 3 anos de programa,
dado que nunca conseguiram, ou quiseram, alterar o seu percurso.
5 ' Comportamentos de risco
Entre a população que acedeu a este serviço, 16,5% tinha consumos EV no momento
de entrada no programa de redução de riscos e minimização de danos. Sendo este
um número significativo, não tem existido, no entanto, correspondência com o
número de seringas trocadas. Não podemos deixar de pensar: será que o número
reduzido de troca de seringas se deve à postura da equipa? Pensamos que não.
Temos total abertura e incentivamos a troca de seringas, enquanto este
comportamento for a opção do doente. Sabemos que a maioria abandona consumos EV
na fase inicial do programa com metadona.
GRÁFICO 8' Seringas Trocadas no Programa.
À semelhança de outros programas, neste programa de redução de riscos e
minimização de danos o poli-consumo é uma realidade: 49,3% dos doentes
referem consumos de cocaína, à entrada, concomitantes com os de heroína, assim
como outras substâncias, nome-adamente cannabis.
6 ' Co-morbilidades
Em relação à co-morbilidade, é de referir que 46% dos doentes são portadores de
HCV (110 pessoas). Este número é preocupante, pois é conhecida a resistência
dos serviços especializados em iniciar tratamento para esta patologia aos
doentes que mantêm consumos.
GRÁFICO 9' HCV.
Sobre o VIH, 9% dos doentes são portadores de VIH tendo sido, na sua
totalidade, encaminhados para con-sultas de especialidade e estando alguns
a aderir à terapêutica antiretroviral.
GRÁFICO 10' HIV.
Registam-se 2 casos de tuberculose diagnosticados e apenas 1 doente com
hepatite B. Em relação à co-morbilidade psiquiátrica, importa referir que 3
doentes já fizeram ou fazem medicação antipsicótica oral.
7 ' Algumas características do progra-ma de redução de riscos e minimização de
danos da equipa de tratamento de Torres Vedras
Se compararmos o estudo da nossa população de consumidores com o estudo de
Godinho etal.(2007) sobre uma população que acede a programas de redução de
riscos e minimização de danos em unidade móvel e em centro de abrigo, em
Lisboa, verificamos que esta última é uma população ligeiramente mais velha,
com mais co-morbilidade, mais excluída socialmente (mais desemprego, menor
escolaridade, menor apoio familiar), com mais problemas com a justiça e com
mais consumos EV. Relevante é ainda o facto de, no nosso programa, existir uma
maior percentagem de encaminhamentos para programas mais estruturados e
trabalharmos com uma população com maior apoio sociofamiliar.
Existem, no entanto, indicadores semelhantes aos do nosso estudo: a média de
idade dos doentes que frequentaram o programa corresponde a 34,7 anos, um
número elevado de utentes desempregados, uma elevada taxa de infecção VHC,
consumos significativos de cocaína à entrada em programa, baixa
escolariza-ção, assim como um número importante de utentes que nunca
procuraram ajuda assistencial para a sua problemática de toxicodependência.
À semelhança do estudo de Godinho etal.(2007), o número de abandonos no nosso
programa foi signi-ficativo. No entanto, pensamos que tal se deve às
grandes dificuldades de acessibilidade por parte dos doentes dos concelhos
limítrofes e à fraca rede de transportes que servem as freguesias do concelho
de Torres Vedras.
Ao contrário da descrição efectuada por Godinho etal.(2007), no nosso programa
a utilização de substâncias psicoactivas por via EV é pouco comum, a
prevalência da infecção VIH é reduzida, a transição dos doentes no Programa de
Baixo Limiar para um programa de trata-mento estruturado é significativa,
os problemas judiciais são pouco prevalentes e existe um número muito
signi-ficativo de utentes com suporte familiar, o que poderá significar que
a população que frequentou o programa não apresenta índices de exclusão tão
marcados como o estudo realizado por Godinho etal.(2007).
8 ' Reflexão final
Tal como preconizado na Estratégia nacional de luta contra a droga 2005-2012
(pág. 6851) A primeira meta da intervenção de redução de danos é tentar
estabilizar o comportamento problemático do indivíduo e prevenir uma maior
exacerbação das consequências .
Tem sido esta, claramente, a premissa orientadora desta equipa. Para
consumidores de opiáceos, os consumos continuam a ser danosos, os riscos
inerentes a estes consumos continuam a ser elevados individualmente, mas também
para a sociedade que os rodeia.
Este programa, inserido numa cidade caracterizada pelos traços rurais típicos
da região a que pertence, serve uma população de 7 concelhos.
Consideramos que é uma intervenção simplificadora de processos. É atraente para
os doentes, pois a resposta medicamentosa, que é a sua necessidade prioritária,
está desde o primeiro momento assegurada. Esta intervenção tem trazido pessoas
para junto do sistema de saúde, sendo que, após a estabilização de
comporta-mentos, algumas delas têm conseguido pensar no seu percurso. A
possibilidade de ter espaço e tempo para reorganizar a dependência de opiáceos,
pode, como sabemos, funcionar como instrumento de mudança, que, por mais ténue,
irá certamente no sentido da pro-moção da saúde individual e pública.
O nosso trabalho mantém-se como uma intervenção de primeira linha e contraria a
ideia de que os programas de redução de danos significam uma atitude de
desistência do tratamento. Afirmamos também o respeito pela pessoa, nas suas
diferentes opções e assumimos o nosso papel enquanto técnicos de saúde.
Concluindo, importa salientar que este programa nas-ceu como uma
intervenção necessária e identificada pelos técnicos da equipa de tratamento de
Torres Vedras, antes da remodelação do I.D.T., I.P., que trouxe a reorganização
em Centros de Respostas Integradas e as áreas de missão, como resposta a um
novo para-digma. Uma resposta da equipa em termos de horário pós-laboral
era recomendável, assim houvesse meios.