Não ir na onda - correr contra o tempo
Não ir na onda – correr contra o tempo
Jorge Olímpio Bento
A função de Director da RPCD impõe que fale acerca de algo que faça sentido no
actual momento. Seria fácil abordar o ímpeto, que uns dizem reformista,
fracturante e estruturante e outros chamam destrutivo, aniquilador e alienante;
e que consome, há 3-4 anos, muitas das nossas energias e se salda, por
enquanto, em esperanças não confirmadas e em frustrações muito pesadas.
Olha-se para o país e ele parece um organismo fatigado, cansado de existir.
Perante a descrença na possibilidade de conseguir um presente à altura da
grandeza do seu mais exaltante passado, entregou-se à desilusão e depressão.
Caiu no conformismo e no pasmo; tudo lhe é indiferente. A hora é dos agentes da
desclassificação e indiferenciação culturais e civilizacionais, do relativismo,
do vale tudo e da destruição do corpo social, da sua arquitectura e dos seus
contratos. Só falta legalizar também o incesto! Sim, porque a sua proibição foi
o primeiro acto constitutivo de cultura, que, daí em diante, consistiria para
sempre em separar o homem e o animal, em inserir no mundo `natural´ divisões,
distinções, critérios, valorações e classificações que não são atributos da
natureza, mas reflectem a diferenciação e os conceitos civilizadores impostos
pela prática, pela actividade e pelo pensamento humanos. Destruam tudo quanto
ainda afirma a condição humana; será quase nula a resistência! Já são poucosãos
que enfrentam o politicamente correcto; demaisãos heróis são hoje escassos, a
coragem minguou e a vocação para mártir passou à história.
Cesso aqui o reparo; não vou seguir por aí. Alea jacta est: os dados estão
lançados e não vale a pena chorar maisão leite derramado. Quem quis pôde tomar
posições nos momentos em que importava e não era cómodo assumi-las. Mas esse
tempo passou; ser corajoso e crítico agora, numa altura em que as decepções são
muitas e se expressam em voz alta, não é sinal de exemplar comportamento ético,
mas antes de um oportunismo vil.
Vou tentar cumprir a obrigação, sem me prender muito à formulação precisa de um
tema que presida a algumas derivações em dó maior.
1. Nos nossos ouvidos ressoa, todo os dias, uma música celestial com termos
tais como: criatividade, flexibilidade, adaptabilidade, abertura, reforma,
mudança etc. Estas palavras enlevam, porém camuflam as suas genuínas intenções.
Convidam a aderir ao veloz e voraz e rejeitar o estável e durável, a apreciar o
frenesim e desdenhar da reflexão, a optar por ligções e compromissos frouxos e
ligeiros que a toda a hora possam ser abandonados. Rebaixam a defeitos e
factores de prejuízo os saberes sólidos, o vínculo e a fidelidade ao profundo e
consistente, as atitudes e actos louváveis, as habilidades e virtudes
confiáveis. E promovem a mais-valias e requisitos desta hora a disposição para
destruir o que está feito e quem o fez, o apego ao volátil e superficial, ao
movediço e postiço, às aparências e simulações, ao efémero e supérfluo, ao
instantâneo e fugaz, ao plástico e reciclado. O que agora vale é a propensão
para flutuar de posições e opiniões, prescindir de visões do mundo, confiar na
desordem e espontaneidade, aceitar como inevitável a desagregação da sociedade
e das suas instituições, encarar a novidade como progresso, a precariedade como
valor, a instabilidade como imperativo, o hibridismo como identidade.
O acento tónico não é posto na educação, por ser atribuição do Estado, mas sim
nas aprendizagens, por serem obrigação dos indivíduos. São estes que devem
adquirir as que constam da ementa oficial do mercado, se quiserem acompanhar a
moda e não ser deitados pela borda fora. De resto nesta nossa sociedade de
consumo, as pessoas precisam de se submeter a uma constante remodelaço, para
que não lhes suceda o mesmo que acontece às roupas e não ficarem obsoletas. O
mesmo é dizer que têm de orientar a sua vida para o consumo, sendo elas mesmo
transformadas em mercadorias, como regista Zygmunt Bauman.
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Os sucessos garantidos por aquele tsunami da facilidade são evidentes:
certificados de destruição de utopias e ideais, produção em série de
identidades com duradoira infantilidade, de especialistas sem espírito e de
indigentes culturais, metidos entre palas e varais, presos ao vazio e alienação
do presente e sem noção e inquietaçã para o futuro. Eles poderão vir a conhecer
a fartura e os arrotos materiais, mas dificilmente escaparão à companhia
permanente da pobreza, do fastio e cansaço espirituais.
Afinal é tudo lógico e coerente. Todo o enredo do mercado e do consumo funciona
cada vez mais em redor da produção de atracções e seduções, procurando que os
sujeitos não cortem nunca a linha de chegada da corrida atrás de novos desejos
e, muito menos, da sua satisfação. No fundo nada deve merecer a paixão forte e
longa do consumidor. Este tem que estar sempre pronto a trocar o alvo da sua
fixação. Ou seja, a lógica e a cultura nuas e cruas da sociedade de consumo
implicam e baseiam-se muito mais no esquecimento do que na aprendizagem.
Atente-se bem nisto! Estar em movimento, mudar a toda a hora, não é sinónimo de
mal-estar, mas uma proposta de bem-aventurança. Assim como a resposta é o final
azarado da pergunta, a satisfação seria o azar, a limitação e o cansaço do
consumidor. Antes de mais este deve ser mantido num estado de excitação
incessante e perpétua inquietude, visando viver sensações ainda não
experimentadas.
2. Obviamente não estou a falar no Processo de Bolonha. (Ou será que estarei?!)
Estou a falar sobretudo do convite para aderirmos a uma mobilidade que nos
confina, se formos atrás das loas que a adornam. Lançados num vasto e
desconhecido mar, sem cartas de navegação e com bóias de sinalização
inexistentes ou submersas ou mal visíveis, temos duas opções: ou nos atiramos
para a frente empolgados pela jubilosa promessa de novas descobertas ou nos
pomos a tremer do medo de morrer afogados. são estas as alternativas, porque
não é realista e não adianta procurar refúgio num porto seguro. Assim apenas
temos as duas opções e não podemos contar com ninguém. Estamos sós e não há
passageiros entre nós; todos somos tripulação. Logo o sucesso da nossa escolha
depende da qualidade da embarcação e da firmeza, ousadia, coragem e
clarividência dos marinheiros. Quanto mais resistente a nau, menos razão para
temer o mar caprichoso e revolto. E maior será a probabilidade de vencer a
distância, se para tanto ela contar com a dedicação empenhada e esforçada e a
lucidez da visão e decisão dos marinheiros. Se estes aproveitarem a
oportunidade para ser heróis e não caírem na tentação da cobardia.
Não temos meios e instrumentos para intervir de maneira planeada na realidade,
nem para escapar aos efeitos da conjuntura neoliberal. Mas temos a obrigação de
transmitir ferramentas, métodos e saberes para a compreender a ela e às suas
causas e consequências perversas, para a enfrentar e recusar. Para reavivar o
passado imanente no presente e encher este de futuro.
Ora isso obriga-nos a não ir na onda. Porventura fazendo de conta que vamos,
mas indo sempre do outro lado, nem que ele pareça ser o de fora. Ensinando a
dedicação ao trabalho, o apego emocional às instituições, o sentido e espírito
de corpo, a gratificação nos resultados duramente alcançados, o envolvimento
pessoal num ambiente de labor porfiado. Colocando as relações e conexões diante
das desagregações, a serenidade diante do frenesim, a cultura diante da
frivolidade, a profundidade diante da superficialidade, as convicções diante
das tentações, os princípios e valores diante dos interesses e manhas, a
humildade diante da arrogância, a probidade e sensatez diante da agitação e
estardalhaço, a perseverança diante da desistência, a filosofia diante da
imbecilidade, a substância diante da vacuidade, a espiritualidade diante da
futilidade, a dignidade diante da baixeza, a superação diante da resignação, a
simplicidade diante da presunção, a sinceridade diante da falsidade, a verdade
diante da mentira, a nobreza diante da vileza, a essência diante da aparência,
a civilidade diante da venalidade, a responsabilidade diante da leviandade, a
força da firmeza diante da cedência à fraqueza, o estudo diante da preguiça, a
disciplina e o esforço diante da folia e do carpe diem, o brio e pundonor
diante do abandono e desleixo, a procura diante da sorte, o mérito cimeiro
diante do nivelamento rasteiro, o conhecimento diante da ignorância, a dúvida
diante da certeza, a admiração diante do pasmo, a discrição diante da exibição,
a correcção diante da simulação, a luz diante da escuridão, a liberdade diante
da servidão, a autonomia diante da dependência, a sanidade diante da demência,
a sabedoria diante da irracionalidade, a lucidez e a decência diante da
ligeireza e maledicência, o carácter diante da habilidade, a tranquilidade
diante da deriva, a legalidade diante dos jeitos, os deveres diante dos
direitos, a modéstia diante da vaidade, o comedimento diante da excentricidade,
a alvura diante da sujidade, o trigo diante do joio, as normas e regras diante
do regabofe e laxismo, a frontalidade diante do calculismo, a verticalidade
diante do oportunismo, a ética e deontologia diante do relativismo, a
autenticidade diante da hipocrisia, a lealdade e fidelidade diante da traição,
a amizade diante da intriga, a rectidão diante da esperteza, a palavra corajosa
diante da cobardia ardilosa, a honradez e integridade diante da desonestidade e
imoralidade, a sensibilidade diante da brutidade, a solidariedade diante da
indiferença, a humanidade diante da animalidade.
Mas... é necessário tudo isto? Não vejo outra solução. Ademais não nos basta a
esperança, por ser um sentimento ambivalente. Pode brotar dela o optimismo para
ultrapassar a tristeza e a desgraça do presente e para confiar na vinda de um
futuro risonho. Mas pode, do mesmo jeito, convidar ao conformismo e comodismo,
à demissão e passividade, à aceitação daquilo que nos aflige, a não agir, a
esperar e a entregar-se à lotaria do que há-de vir, sem nos mobilizarmos
activamente para vencer o que nos afronta e buscar o que nos falta.
3.Os primeiros tempos de experiência do Processo de Bolonha – que prometi não
abordar, embora não me canse de gritar que o rei vai nu – produziram já sinais
e resultados que não podemos deixar de tomar em conta, porquanto contradizem os
fins expressos, mas mostram aqueles que não são ditos e subjazem à proposta
economicista, escondida na massa bolonhesa.
Como disse Kissinger, ninguém caminha pelos seus próprios pés para a sepultura.
Por isso mesmo, temos que aprender a lição e alterar o cenário. Tal como foi
até agora, não pode ser. O nosso intuito e destino são iguais ao lema do
desporto: citius, altius, fortius!Revêem-se na elevação e altura e não no
abaixamento e rasura. É nessa direcção que os nossos passos devem avançar,
firmes, determinados e justificados pela experiência consciencializada. Como
dizia Nietzsche, devemos fugir do gorduroso odor ao estábulo, isto é, da
manada, a sete pés. Para não nos deixarmos contaminar.
Também não poderemos deixar de ter em conta as exigências da FCT e de cumprir
os padrões e figurinos de produtividade que ela impõe. Mas isso não nos obriga
a enterrar as bitolas axiais do Humanismo e do Iluminismo e a desvalorizar o
conhecimento de orientação. Nem a deitar fora o património da língua portuguesa
e a cometer a estultice de abater o nível elevado que a Faculdade usufrui na
respectiva comunidade. O equilíbrio entre os dois pólos é desejável e possível
Sabemos bem que a ciência, seja no silêncio dos laboratórios, seja nos
conhecidos e badalados centros de investigação e reflexão, está a ser despida
dos grandes ideais e fins, em proveito dos meios; e é convertida em mera
técnica. Simultaneamente altera-se radicalmente a noção de progresso que antes
a animava. Não se orienta tanto por finalidades transcendentes; está sujeitaao
império do paradigma produtivista, visa sobretudo igualar e superar, tanto
quanto possível, a concorrência em números e citações, apresentar a toda a hora
dados alterados, segundo os normativos em moda e face ao contexto
constantemente mutante. Ajuda assim a impor este e serve o interesse e a
voracidade de um mercado em permanente e febril ebulição. Ela é fim em si
mesmo, segue um imperativo de produção consumista, em obediência a ditames
semelhantes aos da selecção natural de Charles Darwin. não se trata mais de
dominar a natureza ou aconselhar a sociedade em funão da liberdade e
felicidade, mas apenas de competir, uma necessidade de proveniência exógena,
isto é, imposta de fora pela obrigação absoluta de `progredir ou perecer`.
4. Perante este quadro é curial renovar algumas afirmações.
Esta Faculdade alcançou identidade e notoriedade, à escala nacional e
internacional, como Escola de formação e investigação no sujeito plural do
desporto, com um perfil que a distingue das suas congéneres. É isso que deve
continuar a ser - a Faculdade de Desporto – tanto no plano de estudos como no
objecto de investigação e reflexão, combinando e valorizando devidamente a
competência, a mestria e a diversidade de contributos que a sua missão
comporta.
Ignorar tal singularidade ou tirar à Faculdade a devida e conquistada
autonomia, fundindo-a com outras numa unidade maior, isso seria trair o seu
legado, cercear as suas potencialidades e amputar a Universidade de um forte
braço da sua internacionalização. Porque é indiscutível que a Faculdade tem a
seu crédito um elevado capital neste capítulo.
Retomemos, pois, com redobrado afinco a nossa disciplina básica, que tem sido e
deve continuar a ser a da corrida. Contra o destino e contra a compressão que
nos espreita. Temos que comer o pão ganho com o suor do rosto. Não vivemos mais
no paraíso e deixamos que os ventos do mal se evadissem da Caixa de Pandora e
fustigassem a nossa vida. Temos que correr e porfiar para contornar esses
ventos, para os voltar a reunir e manter sob nosso controle.
Conhecemos o barro de que somos feitos, mas somos igualmente animados pelo fogo
do céu. Somos de carne frágil, mas temos uma alma aberta à grandeza de sonhos e
ideais. Corramos, portanto, contra o conformismo e o comodismo, contra a
preguiça e a indolência, a desídia e a sonolência, a insuficiência e o auto-
contentamento. Não nos basta o que vemos e somos, queremos e precisamos de ir
mais além. Corramos para fora e para dentro de nós. Para chegarmos mais fundo e
longe e ficarmos mais próximos da nossa singularidade: de seres errantes e
peregrinos à procura de uma forma que nos transcenda e defina como humanos,
quase divinos, quase perfeitos, quase felizes.
Corramos para nos afastarmos do que nos diminui, ameaça e persegue e para nos
abeirarmos daquilo que não temos e é o mais necessário, o mais valorizado, o
ético e o estético, o mais bonito que tanto nos atrai. Para entregarmos esse
testemunho e passarmos a outros o gosto, o apego e afeiçoamento à árdua e
exigente tarefa de correr, à longa caminhada que doravante lhes toca fazer,
mesmo sabendo que podem chegar à meta exaustos e tombar para o lado.
Estar parado é andar para trás e olvidar que as velas ardem até ao fim.
Corramos, pois; tanto quanto possível, cúmplices e juntos e dando o nosso
melhor! Corramos com alegria, porque a tristeza é um vício que leva a achar que
geme o vento que na nossa vida canta. Sejamos portadores de alegrias para nós e
para os outros! É esta a essência da nossa missão.
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Bauman, Zygmunt (2008): Vida para consumo: a transformação das pessoas em
mercadorias. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Rua Dr. Plácido Costa, 91
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Portugal
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