Experiência estética do nadador. Um estudo a partir da perspectiva de atletas
de natação de alto rendimento
INTRODUÇÃO
A estética do desporto vem-se afirmando como um domínio que contribui para um
melhor entendimento do fenómeno desportivo, exaltando o seu valor e realçando-
o como manifestação cultural
(19)
. Remete para o conhecimento do sensível, do emotivo, do que de mais profundo
existe no ser humano, aliando-se, ainda assim, à racionalidade.
Um contributo apreciável para o desenvolvimento desta temática tem surgido por
meio das aproximações ao domínio da arte (argumentando-se a favor e contra a
consideração do desporto neste âmbito), assim como por um certo esforço de
categorização dos desportos de acordo com a importância relativa da estética na
expressão da performance
(7, 8, 9, 17, 21, 25, 26, 30)
. O presente trabalho funda-se no pressuposto enunciado por diversos autores
(9, 10, 11, 19, 26, 29)
de que o desporto (e, consequentemente, a pluralidade dos desportos), pode ser
considerado como um objecto estético que compreende qualidades estéticas
latentes e que é passível de que acerca dele se emitam juízos estéticos (juízos
de gosto).
Parece ser inegável que um dos elementos centrais do desporto é o corpo, que se
constitui igualmente numa categoria nuclear da estética do desporto. Bento
(6)
sinaliza que o desporto funciona como um campo de criação do homem,
responsável pela configuração de ossos, músculos e articulações, sem esquecer a
consciência, a vontade e a sensibilidade. O mesmo autor realça o desporto como
uma forma de regresso do homem ao seu corpo, com o desejo de intencionalizar a
sua biografia, escrever nele marcas e registo de aculturação e socialização. Na
verdade, o corpo desportivo promove uma personalidade e uma identidade entre a
multiplicidade de corpos. É hoje possível, com algum conhecimento, identificar
o corpo de um nadador, de um ginasta, de um halterofilista, porque cada um tem
inscrito em si as marcas específicas do grupo no qual se forma: O desporto é
plural para corresponder à diversidade dos corpos individuais.(6, p. 174).
Numa direcção análoga Lacerda(19) refere ser clara uma estreita ligação entre a
plástica do corpo humano nos diferentes movimentos desportivos e o morfótipo
desse mesmo corpo, assim como Boxill(8) evidencia que o morfótipo desempenha um
papel fundamental na apreensão e especialização técnica e, por consequência, na
atracção estética.
No domínio científico, o primado da técnica é confirmado e apontado como
determinante do rendimento individual
(12)
. Também no contexto da estética a sua importância é basilar: Boxill(8) refere-
se à técnica como factor potenciador da estética e da formação de um estilo
individual, aprimorado pela vontade de vitória, sendo que Arnold
(1)
chama igualmente a atenção para a possibilidade que o domínio técnico encerra
de aumentar a excelência e expressão individuais.
Wright
(31)
enfatiza as potencialidades da técnica como catalizador de respostas
emocionais no observador, testemunhando a sua afinidade com a estética.
As respostas emocionais ao desporto são, em boa parte, resultado da
manifestação da técnica em performancesque elevam o corpo ao lugar da
concretização e o situam no patamar último da competição, a vitória. Kupfer
(18)
destaca que a vitória resulta da interacção humana entre equipas e entre
adversários, sendo essa interacção propiciadora de atracção estética. Do mesmo
modo, Platchias(26) realça o prazer estético desencadeado pelo atingir o
resultado desejado por meio de uma exibição que se consubstancia num padrão
vitorioso que desperta emoções, vividas por todos e por cada um na sua forma
mais elevada. O acesso à dimensão estética do desporto não se confina ao
observador ou ao atleta, mas ambos podem aceder à experiência estética.
O presente estudo desenvolveu-se a partir da consideração do ponto de vista do
atleta relativamente ao desporto, tratando-se, no caso vertente, do universo
sensível e emocional do atleta de natação de alta competição. A natação é uma
modalidade que detém qualidades estéticas próprias, que podem ser observadas e
vividas pelo espectador, e às quais o nadador pode igualmente aceder, sendo
conduzido para uma experiência estética.
A carreira desportiva de uma das autoras, aliada ao forte interesse de ambas
pelo estudo da estética do desporto, constituíram os principais motivos para o
desenvolvimento da investigação. Para a ex-atleta de natação, a vivência do
corpo, do seu eu desportivo, despertou-a para um território sensorial e
emocional, a princípio subconsciente e irreflectido, mas a pouco e pouco cada
vez mais presente e mais lúcido no seu percurso desportivo. À medida que
conhecia mais piscinas, mais parecia que se envolvia com a sua estrutura,
criando quase que laços afectivos com umas, rejeitando outras, valorizando
águas, pistas, blocos de partida e as sensações e sentimentos experimentados. A
preocupação com as linhas do corpo, com a definição dos músculos, o nadar sem
ruído, o toque da água, o estar em unidade com ela, todos estes aspectos
começaram a habitá-la de forma cada vez mais nítida e recorrente, manifestando-
se a performance como o apontamento final de um longo, sofrido e prazeroso
processo, vivido durante muitas horas, dias, meses. Já não bastava apenas
nadar, mas nadar com estética, ter beleza a nadar, num belo corpo de nadadora,
tirar gozo de nadar em belas piscinas, as quais se encontram mais equipadas e
decoradas em campeonatos de alto nível. Nadar comprido, deslizar, estar em
harmonia com a água, como se ela integrasse um pouco a solidez do corpo da
nadadora, que se liquefazia (em certa medida) para dela participar, começaram a
ser aspectos integrantes do seu mundo da natação, em paralelo com a importância
crescente atribuída ao envolvimento ambiental em que decorria a prova. Todos
estes aspectos passaram a representar cenas do quadro desportivo da atleta,
da sua pintura da modalidade e do seu trânsito permanente entre artista e
obra. O corpo que nadava, que corporizava a performance era, simultaneamente,
o corpo que fruía e que vigiava a sua estética.
Foi-se compreendendo que a importância destes aspectos era partilhada por
muitos nadadores. Compreendeu-se ainda que, neste processo, a observação do
outro exerce também uma forte influência na vontade do atleta ser belo a nadar.
Torna-se quase impossível ser indiferente ao estilo de certos nadadores como,
por exemplo, o emblemático Michael Gross [1], cuja alcunha nos media era o
albatroz, tanto pela amplitude (213 cm) e o planar da sua braçada de mariposa,
como pela beleza dessa amplitude. De igual modo, é incontornável mencionar a
delicadeza do estilo de Popov [2] e a facilidade do nado de Michael Phelps [3].
Deste modo se entende que um atleta é actor e espectador: descobre no sentir e
no observar o fascínio e a quase obsessão por que a sua técnica seja estética,
o gozo que deriva dessa facilidade e o prazer, quase poético, que nasce da
relação do corpo com a água e com o movimento. Estar na água e mover-se nela é
algo de profundamente vivido, como tão bem descreve Christine Rodes:
Pouco a pouco intervalo mais as golfadas de ar, descomprimo, tranquila, tenho
a impressão feliz de ter o busto maior, de vaguear em pleno céu líquido. A água
está morna a ausência de peso provoca euforia Sentada em parte alguma e sobre
nada Cada vez me sinto melhor no fundo da piscina. Já não me apetece sair, que
pena ter de respirar [ ] a carícia da água é divertida, superficial e
absorvente. A água liberta e cativa ao mesmo tempo porque nela tudo se move,
mas tudo se move com ela [ ] Assim, depende do seu próprio movimento. Pouco a
pouco, ausento-me. A embriaguez absorve-me, um tudo-nada mórbida. Algo me diz
que devia sair A superfície, esse horizonte visível, cede ao rosto escondido
das coisas. O real é um espelho sem mácula.
(Christine Rodes, Pour La Dance, 1986 In: Folha de sala do
espectáculo de dança Waterproof de Daniel Larrieu)
As concepções de diversos autores acerca do conceito de experiência estética em
termos gerais
(5, 24)
e no contexto do desporto
(8, 14)
, foram importantes para o estabelecimento do objectivo do estudo que consistiu
em caracterizar a experiência estética do nadador de alto rendimento. Entende-
se que a experiência estética do nadador se funda em sensações e emoções que
decorrem do uso do corpo que encarna o desporto, ou seja, o corpo que nada.
Habitando um corpo centro
(28)
, um corpo que nasce da relação eu-outro, o atleta torna-se e molda-se corpo
para si, para o outro, para a prática e para o elemento água. O atleta, por
estar dentro da performance(1), cria e renova permanentemente o desenho de
realizaçõesexcelentes e únicas, e formula juízos de gosto no que concerne à
estética do seu movimento. Nesta criação, experiencia a água e o leque de
possibilidades associadas à imersão do seu corpo nesse elemento, vive o espaço,
a presença do público, as cores, os sons..., cedendo lugar à experiência
estética.
METODOLOGIA
A explicitação do objecto de estudo foi efectuada tendo em conta um conjunto de
problemáticas teóricas de enquadramento, que serviram de suporte ao
desenvolvimento do trabalho empírico. A consideração desse quadro conceptual (a
que se aludiu de forma breve na Introdução), permitiu a operacionalização dos
conceitos emergentes da literatura que fundamentaram o trabalho de campo. Este
foi orientado e enformado para a procura de esclarecimento de dimensões
relacionadas com o universo sensível, emocional, comunicacional - estético -
dos atletas. Deste modo, fez-se uso do método qualitativo por meio da aplicação
de uma entrevista semi-estruturada, o que possibilitou a exploração de algumas
vias passíveis de orientarem futuras investigações. Esta metodologia permitiu
não apenas descrever a informação recolhida, mas também valorizar o significado
atribuído pelos atletas `aos diferentes aspectos inerentes à problemática em
estudo e interpretar o seu sentido. Como assinalam Quivy e Campenhoudt
(27)
, a vantagem associada a esta metodologia reside na possibilidade de recolher
testemunhos e interpretações dos interlocutores, respeitando os seus quadros de
referência, a sua linguagem e as categorias mentais. A análise da experiência
estética resultante da percepção do objecto experimentado, vivido e sentido,
nas dimensões subjacentes à prática desportiva da natação de alto rendimento,
implicava entrar em linha de conta com os significados atribuídos pelos actores
e a intensidade da sua dedicação e ligação à modalidade e seu universo
envolvente.
O grupo de estudo integrou 10 nadadores de alta competição (5 homens e 5
mulheres), com percursos desportivos relevantes (entre os quais 7 nadadores
olímpicos, Pequim 2008) e idades compreendidas entre os 19 e os 29 anos.
A informação recolhida através de uma entrevista semi-estruturada foi tratada
por meio da técnica de análise de conteúdo. Optou-se por uma análise categorial
temática para assim restituir o sentido do discurso dos entrevistados e tentar
chegar ao conteúdo implícito da comunicação. Esta análise assentou nos
postulados sugeridos por Bardin
(3)
para uma análise categorial, calculando e comparando frequências de certas
características previamente agrupadas em categorias significativas. Fez-se uso
ainda da contribuição da análise da avaliação para o registo dos diferentes
juízos, bem como a sua direcção (como foi o caso do belo/feio, gosto/não
gosto).
Neste sentido, as categorias foram definidas, integradas e formatadas no guião
da entrevista segundo agrupamentos temáticos sugeridos pela literatura e de
acordo com o objectivo da pesquisa. As respostas dos entrevistados foram
analisadas mediante o enquadramento nas categorias pré-existentes, criando-se,
igualmente, outras categorias que decorreram do processo analítico. No primeiro
grupo integraram-se as categorias corpo, técnica, vitória-derrota e contexto
ambiental; no segundo, a categoria sentir a água.
RESULTADOS
Os resultados do estudo apresentam-se na presente secção. De forma a ilustrar e
enriquecer a análise citam-se, regularmente, excertos dos discursos que melhor
permitem conhecer a experiência estética dos nadadores, bem como a sua
reflexividade sobre esta temática.
Corpo do nadador
As experiências individuais de cada um no e com o seu corpo deram a perceber a
vivência de um corpo sensível, construído para a prática, através da
preocupação pela estética da forma: quanto mais fino, mais magro, forte mas
magro tu fores, melhor para a dinâmica da água (E4). Trata-se de um corpo que
se apresenta num morfótipo ideal para a natação, que pretende ser portador de
visibilidade estética por referência a padrões desportivos e que,
simultaneamente, não recusa, mas antes parece ansiar, pela aproximação a
estereótipos sociais: somos sempre mais elegantes, um aspecto mais saudável,
os músculos mais definidos ( ) as pernas são mais bonitas do que as pernas das
outras pessoas (E8). Giddens
(13)
explica que os ( ) nossos corpos são profundamente afectados pelas nossas
experiências sociais, bem como pelas normas e valores dos grupos aos quais
pertencemos. Assistiu-se a um desdobrar de si em múltiplas visões decorrentes
da multiplicidade das formas corporais destacadas (musculatura definida,
magreza, ombros largos, membros superiores compridos), cada uma proveniente do
modo como cada atleta vive, sente e comunica com o seu corpo, e resultante
também do projecto (28) que cada um tem com ele: O que eu mais gosto é de ter
um tónus muscular, de ter forma e costas largas. Eu acho que até já cheguei a
um ponto exagerado mas até acho bonito. (E4), ou, numa outra opinião: tenho
uns braços compridos e penso que me são bastante úteis (E10).
O corpo de nadador, na fala dos entrevistados, é um corpo que pretende
transmitir um poder triplo que se consubstancia na força: i) que deriva do seu
morfótipo; ii) com que domina o meio (água); iii) que representa para o outro.
Assim, uns abordaram a questão do modo seguinte: se estamos com alguma coisa
fora do lugar, isso influencia na posição, na flutuação ( ) pode ser uma
questão de estética envolvida, pode ser feito fora de água, modelar o corpo
fora de água para ele funcionar melhor dentro de água (E4);outros reforçaram a
vertente da plástica do movimento na auto-percepção para o domínio do meio: eu
na água sinto-me maior ( ) sinto-me grande a nadar ( ) quando estou a nadar
imagino o dobro daquilo que sou, porque sinto-me a nadar muito comprido, porque
sinto que a minha braçada é forte, porque sinto que a minha ondulação é muito
boa (E9); outros ainda sublinharam a efectivação do seu poder sobre o
adversário: dentro de água quero é ganhar ao que está ao lado. E o que eu
sinto é vontade de fazer melhor do que ele, vontade de conseguir fazer melhor
do que aquilo que faço (E5).
O poder transparece em gestos próprios de cada nadador, gestos singulares que
parecem garantir individualidade pela forma como se manifestam em performances
únicas e vitoriosas. O corpo estilizado pelas conveniências da prática(6) é a
representação de um atleta, é a sua marca identitária na competição e só se
torna possível pela forte consciência de si mesmo: eu tenho uma estrutura um
pouco pesada, então eu tenho que ter uma força a mais para carregar a minha
estrutura (E4). Na alta competição a consciência e a percepção de si são
fundamentais na sensibilidade do corpo para a adequação ao gesto. Obter um
elevado grau de sensações e percepções cinestésicas condiciona o
desenvolvimento da coordenação das actividades motoras e facilita a correcção
técnica favorecendo a percepção do gesto ideal
(15)
, conforme testemunharam os atletas: eu tenho que me sentir a nadar bem e
sinto as minhas provas ( ) eu sabendo como é que hei-de fazer, consigo fazer
com que o meu corpo faça aquilo (E1).
Técnica
A capacidade de aprimorar um gesto é dada, para além das possibilidades
decorrentes do morfótipo ideal, pela especialização técnica de cada um. A
facilidade com que o corpo que realiza o movimento expressa a técnica,
representa uma mais-valia estética, traduzindo-se quer em graciosidade e
harmonia, quer numa melhor apropriação do corpo à água e a si mesmo: é preciso
uma técnica extremamente refinada para se conseguir deslocar com agilidade
(E4), ou ainda, como referiu outro entrevistado: se tivermos uma técnica muito
apurada, somos muito mais eficientes, o rendimento é muito superior (E10). A
eficiência técnica pode resultar em prazer estético, como afirmou o mesmo
nadador: O que me dá prazer quando estou na água é ser eficiente, com o
mínimo de esforço possível fazer o melhor tempo possível (E10).
Enquanto observadores de natação especializados, os nadadores acedem à
experiência estética também pela via da observação, sendo que a facilidade no
desempenho técnico continua a ser valorizada em termos estéticos: o que fica
bem são aquelas técnicas em que a pessoa nada comprido e parece que não está a
custar nada. É mesmo bonito de ver uma nadadora a nadar comprido (E6).
Facilidade, eficiência, deslize, leveza, velocidade, amplitude, suavidade,
flutuação e fluidez emergiram como os requisitos estético-técnicos valorizados
pelos nadadores, não só porque são indutores de uma melhor adaptação ao meio,
traduzindo-se em melhores resultados, mas também porque suscitam prazer
estético e promovem mais e melhores sensações de nado, como explicou um dos
entrevistados: fazer de maneira a conseguir ganhar posições onde a pessoa
sente que desliza mais ( ) e sentir quando é que realmente se está a andar
(E2). Deste modo, o nadador rende-se à fruição do seu movimento: é aquela
sensação de leveza nas competições, de leveza e de estarmos a voar (entre
aspas) (E7). O nadador dá lugar à procura destas sensações, à perfeição do
gesto e à melhor consciência de si, no sentido de garantir exibições vitoriosas
mas, ao mesmo tempo, belas, em que a harmonia do corpo com a água e a ausência
de ruído são uma preocupação constante e permanente: haver alguma suavidade
naquilo que se faz, apesar de transmitir muita força, a força não quer dizer
que seja à bruta, pode ser forte mas de uma maneira suave, não estar a lutar
com a água, estar a deslocar-se nela (E8).
A técnica potencia a estética(8, 31) e a formação de um estilo individual. Ao
ser autor e agente da sua performance(1) , o atleta saboreia como recompensa a
sensação e a emoção resultantes de um gesto excelente: até nos treinos
consegues dar muito mais a pensar na técnica e isso ao início custa mas no
final é mesmo gratificante, porque estás a nadar bem, custa-te menos e nadas
muito mais rápido (E6).
Sentir a água
Na adaptação da técnica ao corpo imerso no meio aquático, desenvolve-se um
conceito comum: sentir a água. Este conceito remete para o universo sensível,
emocional e comunicativo do nadador na relação que constrói entre si e o
elemento água. Dessa relação de intimidade resulta um estado de fusão, que
procura a harmonia com o elemento líquido e proporciona um prazer extremo que
se inscreve no domínio estético. Com frequência, essa intimidade percebeu-se
viva mas mergulhada no domínio do subconsciente, sendo à medida que os
atletas falavam sobre ela que desenhavam e se tornavam conscientes desse
envolvimento:Sentir a água passar pelo nosso corpo, sentir a agarrar a água
com as mãos, com o antebraço, com tudo aquilo ( ) para nós a água faz tão parte
da nossa vida de nadador que já nem pensamos (E1). De facto, a experiência
estética é muito recorrentemente irreflectida, talvez por ser algo de co-
natural ao homem. No entanto, a familiaridade com a água, o at homeness (a que
alude Cordner(6) ) do corpo que nada, precipita para a experiência estética.
Quando estamos submersos sentimos o corpo ser tocado por inteiro, e a água, por
si só, desperta para a sensibilidade
(2)
.
Por outro lado, nadar e estar na água desempenha um forte papel nas fantasias
inconscientes
(4)
, sugerindo estados emocionais agradáveis e harmoniosos e despertando os
sentidos (resultado do aumento da sensibilidade do nadador ao meio): eu gosto
de me sentir com a água (...) gosto de andar debaixo de água, gosto do barulho,
da sensação de estar completamente submersa ( ) de sentir a água a passar-me no
corpo todo (E9).Da imersão na água resulta um ampliar da sensibilidade que
promove a fantasia e, em última instância, constitui a manifestação óbvia da
simbiose eu-meio, na adaptação de um corpo à água pela consciência dos seus
movimentos: Sentir a água é como se fosse uma camisola que nos envolve toda, é
como se estivéssemos dentro de um saco e depois tirassem o ar ( ) o saco cola-
se à pele ( ) é como se estivéssemos aconchegados por alguma coisa que é a
água. (E10). Esta forma de sentir é particularizada nos pormenores das
descrições dos atletas:sentem-se águas mais pesadas e menos pesadas ( ) não
sei porquê, mas porque parece que quando puxamos, quando fazemos a braçada
puxamos mais água, logo parece que a água é mais pesada (E8).
Sentir a água parece provocar uma maior vivência de si, aumentando o universo
sensorial das respostas à adaptação da técnica, promovendo mais emoções e
permitindo experiências estéticas mais intensas. Vê-se aumentada a
possibilidade da qualidade do movimento, da vitória e da estética, como é
declarado por um dos nadadores:eu só consigo nadar ao mais alto nível, ao meu
nível, se me estiver a sentir bem dentro de água. Tenho de entrar na água da
piscina e ter essa vontade de me sentir bem a nadar, de sentir a água, senti-la
passar nas mãos, sentir ter as sensações todas, senti-la nos pés, sentir a
velocidade da água a percorrer o corpo sentir isso (E5).
Vitória-derrota
A vitória, ou o atingir o objectivo estabelecido, torna-se a finalidade última
de todas estas criações, sensações, emoções, transformações e adaptações. O
corpo sensível experimenta-se em performances que podem ser vitoriosas ou não,
consoante o objectivo a que cada nadador se tenha proposto, e desaguam no
prazer estético desencadeado pelo atingir o resultado esperado(26). Nesta
dimensão, e de acordo com a informação contida nas entrevistas, a experiência
estética pode-se desenvolver: i) na experiência resultante das emoções e
sensações que decorrem da vitória do atleta; ii) na experiência vivida pelo
nadador com a resposta emocional que a sua prestação desencadeia nos outros;
iii) na experiência decorrente das emoções e sensações que lhe são
proporcionadas pelas vitórias dos outros, o que evidencia a importância da
interacção humana, também ela propiciadora de atracção estética(18). Como
mencionava um nadador: o espectáculo da vitória, o festejar daqueles que
ganham e o festejar, entre aspas, daqueles que perdem essas emoções para mim
trazem muita estética, são belas (E9).
A vitória e a derrota estão, portanto, implicadas na experiência estética,
manifestando-se a fruição de cada uma delas por um estado emocional que conflui
para uma multiplicidade de opiniões e formas de sentir e viver o momento. A
propósito da vitória, foi referido por um nadador: a sensação que mais me
agrada é, realmente, aquela sensação de vencer ( ) a sensação de felicidade
depois (E4), ou, como evidenciou outro atleta: é uma sensação de prazer e de
plenitude E(8).
A derrotaapareceu para os entrevistados, como uma pretensa ponte para o
aprimorar das capacidades e gestos do corpo, induzindo à procura interminável
pela excelência e experimentando-se em estados emocionais de desilusão e
frustração, por oposição à festa e à alegria da vitória: quando nado
mal também relaxo acabou a prova má relaxo já para o lado da tristeza (E4).
Numa outra perspectiva, veiculada por outro nadador, a derrota pode traduzir-se
num desafio renovado: perceber o que correu mal ( ) mas as derrotas são
importantes quando conseguem gerar uma frustração que nos faz querer fazer mais
e melhor (E8).A derrota foi ainda perspectivada como uma possibilidade de
fruição estética, na medida em que permite ao atleta rever-se como humano: as
derrotas a mim ensinam-me mais do que as vitórias (E9). A capacidade de
sobreviver às emoções derivadas da derrota, pode ser lida como um caracter
distintivo dos atletas, como uma encenação do eu(6) , conforme o discurso de um
nadador: admiro a personalidade e a maneira de ser do Popov ele chegou a ser
conhecido como um homem ice ... ele não festejava demais as vitórias e nas
derrotas não ficava totalmente derrotado, parecia que aquilo até era uma
derrota para ele mas que estava a aprender (E5). A derrota pode, deste modo,
abrir espaço à superação, como realçou um outro atleta:Ainda continuo a
competir porque vivo constantemente com o sentimento, com a sensação, de que
consigo fazer melhor (E10). Se a vitória constitui a expressão da excelência
no desporto, a derrota pode assumir-se como uma via na procura dessa
excelência, como um processo de aprendizagem que humaniza o resultado.
Contexto ambietal
Embora marginal à performance em si, o contexto ambiental em que decorre o
treino e a competição desportiva é passível de exercer influência na
experiência estética do nadador. Masterson(21) evidencia que a luz, a cor, o
som, concorrem para a intensificação da estética do espectáculo desportivo.
O discurso dos entrevistados deu a perceber um conjunto de características
influenciadoras da experiência estética que surgiu associado ao lugar no qual
decorre a prática da natação, a piscina: dimensões, espaço, cores, luzes,
público, equipamentos técnicos e temperatura, foram alguns aspectos enunciados
como intervindo sensorial e emocionalmente no atleta, comunicando algo de
significativo no que se refere à relação corpo/lugar. Estes factores funcionam
como experiência fenomenológica(2), já que provocam um impacto no jogo das
percepções e emoções. Trata-se de uma percepção captada na experimentação dos
objectos, cheirando, tocando, sentindo(24) , como referia um dos entrevistados:
a água é uma coisa que eu gosto imenso de ver, a água assim azulinha ou
límpida ( ) e quando estão luzes associadas então é o que me fascina mais
(E8); um outro entrevistado mencionou: para mim é a luz! Principalmente nas
piscinas descobertas, eu gosto muito da luz ( ) transmite-me muita força e
muito mais alegria (E8). Um outro ainda sublinhou: gosto de olhar para os
blocos, gosto de olhar para as pistas e se a piscina acaba lisa (caldeira
finlandesa), rentinha, ou se tem paredes a delimitar aquela ideia de
continuidade para mim eu gosto eu gosto mais. (E2). Estas características
parecem accionar diversos estados emocionais e promover a criatividade ao nível
do modo como o nadador vê a sua prestação, enquadrada na relação que estabelece
com o espaço, como é bem expresso no discurso que se segue, formulado a
propósito de uma piscina onde o entrevistado nadou: Era exactamente um
anfiteatro onde nós entramos, os artistas. Tinha bancada a toda a volta, estava
tudo negro e as luzes apontavam para o palco, o palco era a piscina e isso é o
essencial ( ) e a primeira vez que eu entrei na água senti que estava no palco
e que estava a ensaiar ( ) é o meu mundo aquilo, fico no meu mundo ao máximo
(E9). O espaço surge como potenciador das qualidades estéticas do momento
desportivo, projectando um conjunto de estímulos que favorecem uma comunicação
própria entre o atleta e o recinto desportivo, intensificando a qualidade da
experiência estética: eu gosto do sol directo numa piscina, isso dá-me uma
energia, sinto-me muito bem num ambiente assim (E4) ou, como referiu outro
nadador: gosto de sítios amplos, gosto de espaço, gosto de ter a sensação de
liberdade (E8) e ainda um outro, a propósito de uma piscina olímpica: a de
Atenas tinha umas bancadas, aquilo parecia um estádio de futebol mas sem relva
no meio era a piscina! E isso dá uma força enorme à piscina, gostei! (E2).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O corpo sensível do nadador dissolve-se em si próprio, na água e nos demais
elementos essenciais ao universo da natação, numa procura permanente da
excelência do gesto e do movimento, na apropriação de um espaço que quer como
seu. Esse corpo sente-se, vive-se e comunica-se intensamente, acedendo à
experiência estética pelo desporto. A natação contém em si o potencial que
desperta este conceito.
A experiência estética do atleta de natação funda-se, primeiramente, no corpo
do nadador, pela sua forma, poder e consciência, que lhe permitem retirar
sensações agradáveis ou desagradáveis da actividade que desenvolve.
A vivência estética propaga-se pelo impacto da técnica no corpo e no nado,
desmembrando-se em facilidade, eficiência, deslize, leveza, velocidade,
amplitude, prazer, suavidade, flutuação, fluidez.
Sentir a água representa uma categoria estética quase exclusiva da natação,
originária na relação que se estabelece com e no elemento água. Neste desporto,
corpo e água fundem-se num só, tornando-se o ambiente líquido agente promotor
de uma dupla personalidade: a do indivíduo que vive em meio terrestre e a do
nadador que vive no meio aquático.
A experiência estética decorre da emoção implicada pelo atingir o melhor
resultado, expresso pela vitória, e convive também com a emoção da derrota,
consubstanciando-se em estados emocionais multiformes.
A relação corpo/lugar, materializada no contexto ambiental em que ocorre o
treino e a competição de natação, afigura-se como um cenário importante à
estruturação da experiência estética. Os elementos constituintes do espaço
(dimensões, luz, cores, sons), são incorporados pelo nadador, que lhes atribui
sentido e significado emocional.
O presente estudo constituiu uma primeira aproximação à compreensão da
experiência estética do nadador de alto rendimento. As particularidades
inerentes ao facto de se tratar de um desporto que se desenvolve no meio
líquido (locusoriginal da vida humana, na sua dimensão intra-utrina),
constituem um desafio suplementar à estética do desporto pelo que o caminho
para futuras investigações está em aberto.