Influência da dançaterapia na mobilidade funcional de crianças com paralisia
cerebral hemiparética espástica
A paralisia cerebral (PC) descreve um grupo de desordens do desenvolvimento do
movimento e postura, causando limitação da atividade, que são atribuídos a
distúrbios não progressivos que ocorrem no desenvolvimento do cérebro fetal ou
infantil até o segundo ano de vida pós-natal. As desordens motoras da PC podem
frequentemente estar acompanhadas por distúrbios sensoriais, percepção,
cognição, comunicação, comportamental, desordens epiléticas, dentre outros
prejuízos (B-Jan, 2006; Blair & Watson, 2006; Stanley, Blair, &
Alberman, 2000).
A etiologia da PC é multifatorial e geralmente não é estabelecida, devido a
dificuldade de precisar a causa e o momento exato da lesão (Greenwood, Yudkin,
Sellers, Impey, & Doyle, 2005). No entanto, a etiologia compreende aspectos
pré-natais (malformações do sistema nervoso central, infecções congênitas e
quadros de hipóxia), peri-natais (anóxia peri-natal) e pós-natais (meningites,
infecções, lesões traumáticas e tumorais) (Blair & Watson, 2006; Cans et
al., 2007; Garne, Dolk, Krägeloh-Mann, Holst-Ravn, & Cans, 2008).
O quadro clínico da PC é caracterizado por uma disfunção predominantemente
sensório-motora, com alterações do tônus muscular, da postura e da movimentação
voluntária e involuntária (Morris, Kurinczuk, Fitzpatrick, & Rosenbaum,
2006). Dentre os tipos de alterações de tônus a forma espástica é a mais
frequente, sendo caracterizada por hipertonia muscular associada à persistência
de reflexos posturais primitivos que alteraram os padrões de movimento e todo o
organograma de aprendizagem e aquisição motora (Pato, Souza, & Leite,
2002).
Topograficamente, a PC é classificada em tetraparética com acometimento
simétrico e equivalente nos 4 membros (40%), sendo estes casos os mais graves e
de prognóstico de reabilitação limitado; diparética com acometimento dos
membros inferiores, contudo, os membros superiores são levemente afetados,
promovendo melhor prognóstico e maior chance de aquisição de marcha (35%); e
hemiparética no qual apenas um dimídio corporal encontra-se alterado (25%)
(Moura & Silva, 2005).
Diante dos prejuízos ocasionados por essa patologia, a fisioterapia objetiva
estimular as aquisições motoras e minimizar as contraturas/deformidades,
tornando as crianças mais independentes possíveis. Existem diversos métodos
para abordar os pacientes com paralisia cerebral. Neste contexto, diversos
estudos demonstraram os benefícios da dançaterapia tanto nos aspectos
cognitivos, como hiperatividade e agressi-vidade, quanto nos aspectos físicos/
motores, como flexibilidade, coordenação, equilíbrio e mobilidade funcional
(Pacchetti et al., 2000; Palo-Bengtsson, Winblad, & Ekman, 1998).
Adicionalmente, estudos utilizando dança-terapia em indivíduos com patologias
neurológicas, como autismo e doença de Parkinson, relataram refinamento e/ou
aquisição de habilidades motoras (Erfer, 1995; Protas et al., 2005).
Diante do exposto, o objetivo desse estudo foi investigar a influência da
dançaterapia na mobilidade funcional de crianças com paralisia cerebral
hemiparética espástica. Assim, a compreensão dos fatores que influenciam as
aquisições motoras é essencial para a prática clínica, uma vez que a estrutura
teórica poderá ser utilizada para validar os métodos clínicos de avaliação e
intervenção em pacientes com distúrbios neuro-sensório-motores.
MÉTODO
Amostra
Participaram deste estudo 10 crianças do sexo feminino, com idade média de 7.2
anos (± 1.2 anos), diagnóstico de paralisia cerebral hemiparética espástica
(CID-10 G80.0) e nível III no Gross Motor Function Classification System
(GMFCS).
Foram excluídas as crianças que apresentavam distúrbios associados como retardo
mental, malformações congênitas, síndromes genéticas, alterações sensoriais
(i.e., visuais ou auditivas), bem como as que foram submetidas a procedimentos
cirúrgicos nos últimos 12 meses e mudança da dose de relaxante muscular durante
o período da pesquisa. Os critérios de inclusão foram: capacidade de
compreender ordens simples, possuir comprometimento topográfico apenas de um
hemicorpo e níveis de gravidade III definido pela Gross Motor Function
Classification System (GMFCS).
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos
da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e os responsáveis pela criança
assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido após serem informados de
todos os procedimentos de avaliação e intervenção fisioterapêutica durante o
estudo.
Instrumentos
A escala Gross Motor Function Measure (GMFM), criada por um grupo de
pesquisadores canadenses, é um instrumento padronizado voltado especialmente
para crianças com paralisia cerebral, que tem por finalidade mensurar a função
motora grossa e suas mudanças em um determinado período de tempo, focado no
quesito quantitativo. Essa ferramenta tem se mostrado útil como teste que
preenche os critérios de confiabilidade e validade para os fins acima relatados
(Ketelaar & Vermeer, 1998; Mancini et al., 2002; Russel, Rosembaum, &
Cadman, 1989, 2002).
Totalizando 88 itens, o teste envolve cinco grandes áreas motoras denominadas
dimensões, as quais contemplam as seguintes habilidades: deitar e rolar
(dimensão A), sentar (dimensão B), gatinhar e ajoelhar (dimensão C), em pé
(dimensão D), e por fim, andar, correr e pular (dimensão E). Cada dimensão
possui um número específico de itens e a pontuação de cada item é determinada
pela maior pontuação adquirida dentro de três tentativas para atingir o
objetivo da atividade. Com o resultado de cada dimensão é possível determinar
as áreas que necessitarão maior enfoque terapêutico, denominadas áreas metas.
Neste estudo, as áreas metas avaliadas e selecionadas foram as dimensões D e E,
em virtude dos sujeitos possuírem nível III sendo capazes de andar em espaços
internos e externos sobre superfícies regulares usando aparelhos auxiliares de
locomoção. Para a aplicação da escala, foram utilizados como materiais uma bola
pequena, carrinhos e bonequinhos, com o objetivo de estimular ao máximo a
criança e assim elucidar suas habilidades motoras.
Procedimentos
O estudo foi dividido em duas etapas, sendo a primeira etapa constituída de
período controle, em que as crianças não foram submetidas a nenhum tipo de
tratamento, e a segunda etapa em que foi aplicado um protocolo de dançaterapia
(a partir desse ponto em diante serão tratados como primeira e segunda etapa).
Foram realizadas mensurações da função motora grossa das dimensões D (de pé) e
E (andar/correr/pular) com a escala GMFM antes da primeira etapa (I), após a
primeira etapa (II) e após a segunda etapa (III), realizadas sempre com os
mesmos critérios e pelo mesmo avaliador. O avaliador possuía formação e
treinamento para aplicação da GMFM.
Inicialmente, as crianças foram submetidas ao teste GMFM nas dimensões D e E.
Em seguida, foi iniciada a primeira etapa do estudo, composta por um período de
seis semanas que as pacientes não eram submetidas a nenhuma intervenção motora
(controle).
Após a primeira etapa, as crianças foram novamente submetidas às avaliações das
dimensões D e E da escala GMFM. A segunda etapa foi composta por três sessões
de 60 minutos durante seis semanas, totalizando 18 sessões de programa de
exercícios baseado em dança. As sessões foram elaboradas baseando-se nos
conhecimentos sobre dança de Laban, progressão qualitativa do movimento (PQM) e
dançaterapia de Fux. A dinâmica das sessões foi estruturada da seguinte
maneira: No início da sessão as crianças realizavam alongamento bilateral
ativo-assistido dos músculos dos membros superiores (bíceps braquial, tríceps,
flexores e extensores do punho) e membros inferiores (quadríceps, isquio-
tibiais e solear) sendo realizadas três séries de quinze segundos em cada
músculo. Em seguida, foi aplicada a dançaterapia. Durante a dançaterapia, foram
realizadas atividades visando a aquisição/aprimoramento da mobilidade funcional
utilizando bastões, bolas e bancos; sendo realizadas atividades individuais e
grupos. Por fim, foram repetidos os mesmos exercícios de alongamentos
realizados no início da sessão.
Ao final das 18 sessões de tratamento, as crianças foram novamente submetidas
ao teste GMFM, seguindo os mesmos critérios da avaliação I e II.
As variáveis estudadas foram as pontuações das dimensões D e E da GMFM da
primeira avaliação (início da etapa I), segunda avaliação (final da etapa I) e
a terceira avaliação (após a etapa II). Os resultados foram comparados mediante
os desempenhos das três avaliações realizadas durante o estudo.
Análise Estatística
Os dados dos desempenhos funcionais de cada dimensão (D e E) do teste GMFM das
três avaliações (I, II e III) foram submetidos às análises de homogeneidade
(Levene) e normalidade (Shapiro-Wilk), seguidos por meio do teste Kruskal-
Wallis (p < .05). O teste de comparações múltiplas utilizado foi o teste de
Dunn (p < .05).
RESULTADOS
Os efeitos da dançaterapia são demonstrados nas Figuras 1 e 2, que apresentam
as percentagens dos desempenhos obtidos nas três avaliações para a dimensão D
(em pé) e dimensão E (andar, correr e pular). A Figura 1 demonstra os
resultados do desempenho da dimensão D nas três avaliações. Constata-se que não
houve mudança de desempenho da primeira para a segunda avaliação (p = 1.00),
permanecendo as participantes com itens similares nas mesmas. Entretanto, na
terceira avaliação observou-se aumento significativo em relação às performances
anteriores para a habilidade em pé (p < .01).
Figura 1. Médias e desvio padrão (± DP) das percentagens de desempenho na
dimensão D
Figura 2. Médias e desvio padrão (± DP) das percentagens de desempenho na
dimensão E
Nota-se na Figura 2 que o comportamento motor na primeira avaliação da dimensão
E é apresentado na segunda avaliação da mesma dimensão, em que houve igualdade
dos desempenhos para os itens de habilidades motoras de andar, correr e pular
(p = 1.00). Contudo, na avaliação III, verificou-se um aumento significativo em
relação às avaliações I e II (p < .01).
DISCUSSÃO
Durante anos, o planejamento e execução do movimento voluntário foram
relacionados apenas a uma região específica do córtex e que cada movimento
estava codificado no córtex motor como um padrão de impulsos nervosos
transmitido apenas pelo trato cortiço-espinhal aos neurônios motores
associados, a fim de produzir o movimento desejado (Kottke & Lehmann,
1994). Atualmente, vários estudos sugerem que o movimento automático é
resultado da integração de múltiplos sistemas, e não apenas músculos e
motoneurônios estão envolvidos, mas todos os elementos do organismo participam
conjuntamente para assegurar um resultado funcional (Thelen, 1995). Entre esses
elementos estão incluídos os sistemas sensoriais, integrações de componentes
neurais, suporte vegetativo, tais como a respiração e a função cardíaca, e os
elementos anatômicos (Newel, McDonald, & Baillargeon, 1993).
A dança é uma abordagem corporal, com o objetivo de proporcionar e automatizar
novos movimentos, além de promover resultados no âmbito psicológico (Pratt,
2004). A dança-terapia é definida como o uso terapêutico do movimento que
fornece integração emocional, social, cognitivo e físico no indivíduo. Este
método vem sendo utilizado com o objetivo de reabilitar pessoas com prejuízo
físico e/ou psicológico (Xia & Grant, 2009). A prática da dançaterapia
busca estimular a aquisição motora de forma lúdica e prazerosa, desenvolvendo
habilidades, tanto em indivíduos típicos, como em indivíduos com alguma
patologia e/ou disfunção, tornando-se uma ferramenta adequada para o tratamento
de comprometimentos funcionais e motores (Fux, 1988). Estudos utilizando
tomografia por emissão de pósitrons do encéfalo demons-traram que durante a
realização da dançaterapia diversas regiões, tais como o córtex pré-frontal,
cerebelo e núcleos da base, são ativadas devido às novas experiências motoras
(ritmo, velocidade, coordenação e equilíbrio) e emocionais (motivação, auto-
estima e bem-estar) em que os praticantes são expostos (Brown, Martinez, &
Parsons, 2006).
Diversos autores documentaram os efeitos da dançaterapia no sistema
cardiorrespiratório e redução da obesidade (Ahn, Im, Hong, & Hur, 2007;
Emery, Hsiao, Hill, & Frid, 2003; Noreau, Martineau, Roy, & Belzile,
1995; Noreau, Moffet, Drolet, & Parent, 1997). No entanto, outros
benefícios são observados com a utilização dessa técnica. Lundy e McGuffin
(2005) verificaram que a dançaterapia reduz significativamente comportamentos
agressivos em crianças com desordens mentais. Outro estudo propõe efeitos
positivos no desempenho cognitivo de idosos com demência após 25 sessões de
dançaterapia (1 sessão semanal) (Verghese, 2006). No mesmo estudo, outro achado
foi o aumento do tempo de balanço e diminuição do tempo de apoio duplo nos
indivíduos do grupo submetidos à dança, indicando resultados benéficos desta
técnica na marcha. Adicionalmente, idosos submetidos a um programa de exercício
baseado em dança obtiveram melhor equilíbrio (Escala de Berg) e mobilidade
funcional (Teste Time up and go) quando comparados ao grupo que praticou
exercícios físicos aeróbicos (Hackney, Kantorovich, Levin, & Earhart,
2007). A dançaterapia também melhorou a imagem corporal e auto-percepção física
em adolescentes (Burgess, Grogan, & Burwitz, 2006). No presente estudo, os
resultados mostraram que a dançaterapia proporcionou benefícios na mobilidade
funcional de crianças com paralisia cerebral.
Em um contexto teórico, a abordagem dos sistemas dinâmicos abrange vários
conceitos da física, da matemática e da biologia. Essa abordagem aplicada ao
desenvolvimento motor é composta de vários pressupostos e princípios que tentam
explicar como ocorre o comportamento motor. Entre eles, estão os conceitos
baseados em restrições, exploração-seleção e auto-organização (Thelen, 1995).
As restrições referem-se aos elementos do organismo, da tarefa e do ambiente,
que influenciam ou delineiam a realização do comportamento motor. As restrições
do ambiente incluem fatores como a gravidade, a temperatura, meio (aquático/
terrestre) e barreiras arquitetônicas; as restrições da tarefa referem-se aos
movimentos que necessitam ser realizados para que o objetivo da tarefa seja
atingido e as restrições do organismo são limitações impostas por
características motoras/físicas da criança, que neste caso, é a lesão
neurológica do tipo hemiplegia (Newel, McDonald, & Baillargeon, 1993).
Sendo assim, observando as alterações entre a segunda e a terceira avaliação
das dimensões D e E, percebe-se que a diminuição da influência das restrições
da tarefa, relacionada às características dos movimentos utilizados durante a
dançaterapia, modificaram as denominadas restrições e se tornaram fatores
favoráveis para a criança realizar os determinados movimentos nas habilidades
funcionais estudadas. Além disso, acredita-se que as semelhanças dos resultados
entre a primeira e a segunda avaliação podem estar associadas à manutenção das
restrições da tarefa; em virtude que após alteradas com a utilização da técnica
utilizada, a criança apresentou evolução. Tal pode ser explicado pelo sistema
motor mostrar adaptabilidade e flexibilidade na presença de mudanças
biomecânicas de propriedades motoras durante o desenvolvimento e em condições
de diferentes tarefas (Kottke & Lehmann, 1994). Para Barela e Duarte
(2006), as restrições impostas na ação se auto-organizam de acordo com as
circunstâncias impostas por cada tarefa. Desse modo, acredita-se que as
mudanças na tarefa promoveram alterações no repertório motor da criança em
virtude das novas experiências sensoriais, motoras e emocionais.
CONCLUSÕES
Conclui-se que a dançaterapia é um método de tratamento que propicia estímulos
capazes de influenciar na aquisição da mobilidade funcional de crianças com
paralisia cerebral hemiparética espástica. Sugere-se a inclusão da dançaterapia
como recurso fitoterapêutico na rotina das clínicas de reabilitação e a
realização de uma abordagem multiprofissional que possa incluir essa técnica
nos tratamentos das crianças com PC, que tem como objetivo melhorar a
mobilidade funcional.