Serão crises de identidade?
Serão crises de identidade?
Will it be identity crisis?
José Vasconcelos-Raposo
Os relatos de progressos científicos surgem a um ritmo verdadeiramente notório.
Mas esses progressos não acontecem em todas as áreas científicas. No caso da
medicina, em múltiplas áreas de especialização, através de investigações que
conjugam diversas áreas do saber os avanços fazem-se e consolidam-se. Em outras
áreas, porém, pouco de novo surge e até por vezes assistimos ao definhar de
domínios do conhecimento que de algum modo, num passado recente, pareciam ser
promissoras. Apenas como forma de destacar a complexidade em que desenvolvem as
consequências das eventuais crises disciplinares, falaremos, de forma breve,
de´alguns incidentes na Psicologia, na Educação e Desporto. Não é nosso
propósito aprofundar qualquer problema, mas sim alertar para a necessidade de
se repensar a forma de estar numa comunidade científica.
Várias áreas da Psicologia têm sido absorvidas por outras disciplinas, entre
elas as agora designadas neurociências. Num passado recente esta foi por
excelência uma área onde predominavam os psicólogos, mas atualmente intervêm
pesquisadores de várias áreas científicas. Outro caso é o que verificámos com a
Psicofisiologia que com a sua emancipação da Psicologia Fisiológica passou a
atrair pesquisadores de outras áreas do conhecimento, nomeadamente das
engenheirias e isso permitiu-lhe ganhar novos contornos e ritmos de progresso.
Mais recentemente na área da Psicologia da Saúde pudemos verificar um apelo aos
psicólogos para que tomem em consideração as práticas do dia-a-dia das pessoas
que pretendem estudar. Sem se ter em conta as vivências e crenças dos cidadãos,
tal como estas se transformam de geração em geração, dificilmente os psicólogos
poderão ser bem sucedidos nas suas intervenções profissionais. No caso da
Psicologia do Exercício e Saúde observa-se um crescente número de psicólogos a
publicar nesta área, mas este despertar parece estar desatempado, uma vez que
domínios científicos como a medicina e outras ciências já assumem papel
pioneiro. Nesta área em particular não é possível manter um perspectiva teórica
de carácter mentalista acente em heranças teóricas que datam das décadas de 50
e 60, tal como nos é dado observar quando olhamos às grelhas curriculares dos
cursos que a maioria das Universidades oferece para treinar novas gerações de
psicólogos. Mais do que em qualquer outra disciplina da Psicologia o estudo da
fisiologia humana é de primordial importância.
Por último, tomemos o caso da Psicologia do Desporto que se manteve,
primordialmente, entre os muros das instituições de ensino superior. Por um
lado, os psicólogos dedicaram muito do seu tempo à pesquisa e em alguns casos,
maoritariamente entre os académicos norte americanos, verificámos uma tendência
para reclamar o estatudo de atletas de elite aos praticantes de nível
universitário, o que de todo está longe de representar o conceito de elite. Tal
fato resultou numa certa desvirtualização da realidade das evidências
acumuladas. Por outro lado, a intervir nesta área do conhecimento tínhamos os
pesquisadores que emergiam com formação em ciências do desporto e educação
física e que nos seus trabalhos tendiam a trazer para a literatura uma
realidade diferenciada, na medida em que reflectiam com maior propriedade os
conhecimentos práticos dos desportos em estudo. Consequentemente, assistimos ao
renascer de um debate sobre quem são efectivamente os psicólogos do desporto.
Tal debate na sua essência evidencia uma formação debil na área da Psicologia,
pois se para se produzir saber em Psicologia e ser reconhecido como tal fosse
necessário ser Psicólogo de formação de base, um volume muito grande dos corpos
teóricos que sustentam a prática profissional seria posto ao lixo. Confundiram-
se realidades profissionais.
Investigar em Psicologia deverá ser o direito de cada um, desde que na sua
prática evidencie ser conhecedor dos códigos de conduta que regulam essa
prática. Para que a motivação para aprofundar conhecimentos se consolide e o
conhecimento progrida é da maior importância ter acesso aos instrumentos que
torne esse desejo em realidade. Mas alguns reclamam que apenas os psicólogos
deveriam ter acesso aos instrumentos psicométricos. Passadas que são algumas
décadas, assistimos a um gradual abandono da pesquisa por parte dos
profissionais da Educação Física e do Desporto. Ficaram os Psicólogos e com
eles o aparente empobrecimento da disciplina, enquanto os outros profissionais
continuaram a empenhar-se no desenvolvimento de conhecimentos e áreas de
intervenção inovadoras no mercado de trabalho. Diga-se, em abono da verdade,
que esse dinamismo se traduz em sucesso na forma do coaching. Num artigo
recente propunha-se que se redefinisse a área da Psicologia do Desporto e que
esta designação fosse restrita para intervenções com atletas de elite e que os
outros domínios fossem abrangidos pela designação de psicologia da performance.
Mais uma vez se intervem de forma desatempada. Aquilo que agora propõe, foi já
ultrapassado e consolidado na prática dos profissionais do coaching.
A outra realidade, para a qual os psicólogos têm toda a ligitimidade de
reclamar um papel activo, prende-se com a necessidade de regulamentar a prática
profissional de quem faz intervenções clínicas, seja lá em que domínio de
intervenção for. Mas esse controlo, felizmente, já se consolidou com a
intervenção das Ordens e dos Colégios Profissionais. Seria uma afronta aceitar
que indivíduos sem preparação para aplicar técnicas de mudança comportamental o
fizessem. Importa nunca perder de vista que ao longo da sua história a
Psicologia só ganhou e fez progressos notórios com a participação de estudiosos
de muitas áreas do saber.
A Educação Física, dependendo dos países em causa, conhece diferentes
realidades. Por exemplo, no Brasil os profissionais deste ramo do saber
reclamam para si uma identidade que é digna de registo. Apresentam-se como
classe profissional e são eficazes na sua intervenção sócio-política. Em
Portugal, a identidade de classe parece ter desvanecido com o emergir de uma
perspectiva que defende que tudo o que é prática de atividade física é
desporto. Escusado será dizer que esta classificação, aos olhos de uma prática
científica alicerçada em critérios de rigor, se fica pelo mero discurso e
vigente em algumas práticas institucionais onde os seus proponentes ainda
exercem o poder. Mas em verdade encontrou eco em muitos profissionais que
beneficiando da sua formação como Educadores Físicos asseguravam o seu
vencimento de base, mas depois todo a sua alma e empenho dirigia-se para o
treino onde eram, tipicamente, mal remunerados. Mas os limites da proposta de
que tudo é desporto também não encontrou eco entre os próprios proponentes. Na
realidade, enquanto pesquisadores e quando querem publicar os seus trabalhos em
revistas científicas de qualidade reconhecida não têm alternativa que não seja
a de proporcionarem definições operacionais onde a atividade física, o
exercício físico e o desporto estão claramente diferenciados uns dos outros.
Mais, mesmo onde se oferece a formação em ciências do desporto e em educação
física, graças aos requisitos legais para a prática profissional de professor
de educação física, todos têm de frequentar o mesmo tipo de treino para a
habilitação profissional e aí, mais uma vez a conceção de que tudo é desporto
parece deixar de fazer sentido. Mas o que é verdareiramente relevante nesta
discussão é a confusão que se gerou tanto ao nível da identidade profissional,
assim como a que se gerou ao nível da formação desses profissionais. Em suma,
os alunos que procuram cursos em Educação Física e em Ciências do Desporto
recebem uma formação superior que não está suficientemente consolidada nem
diferenciada quer para a educação física quer para o desempenho da função de
treinadores.
Numa altura em que o conhecimento progride a ritmos tão acelerados, uma visão
segmentada das áreas científicas é contraproducente. Por exemplo, quer a
Psicologia quer a Educação Física e Desportos têm centrado muita da sua
pesquisa no estudo da obesidade. Numa fase incial da pesquisa, para uns o foco
estava, entre outros aspetos, nos mecanismos compensatórios a que os indivíduos
recorrem regularmente sendo os comportamentos alimentares um deles. Para
outros, os alimentos traduziam-se em número de calorias ingeridas e que para
combater a obesidade era importante desenvolver programas com o objectivo de
gastá-las. Com o tempo criaram-se parcerias entre áreas científicas e
gradualmente apareceram perspectivas mltidisciplinares e hoje, já com o apoio
da investigação no âmbito da genética, a compreensão da obesidade vai muito
para além das perspecivas monodisciplinares e discutem-se variáveis
intervenientes em aspectos do comportamento humano nunca antes tido em
consideração. Mas quem fala nestes exemplos poderia encontrar muitos outros.
Associada a toda esta tentativa de diferenciação disciplinar está a procura
pela publicação. Publicar muito é a ordem do dia. Nesta busca quase eufórica
sem dúvida que as revistas científicas têm ganhado, nomeadamente no número de
artigos submetidos. Mas esse novo volume acarreta um preço, pois nesse volume é
pouco perceptível que a preocupação de quem quer publicar seja efectivamente a
de contribuir para o conhecimento. Cada vez mais é notória a preocupação em
somar mais uma publicação ao índice de produtividade. Por um lado, importa dar
resposta às solicitações que as instituições impõem aos seus docentes/
investigadores, mas por outro é fundamental preservar a qualidade científicae
que nos tempos atuais assume contronos de transdisciplinaridade.
Como podem as revistas científicas intervir na busca de um equilíbrio entre
volume e qualidade de publicação?
Neste quadro de limitações e vantagens de pesquisa transdisciplinar, importa
questionar qual o papel que as revistas científicas poderão ter. A resposta não
é simples, mas obrigatoriamente passa por um maior compromisso por parte dos
conselhos editoriais para que a qualidade dos estudos a publicar seja mais bem
controlada. Atualmente, a nossa experiência sugere que um dos grandes
obstáculos a ultrapassar é a tendência para produzir trabalhos em massa e isso
traduz-se, entre outros problemas, na submissão de relatos de estudos com
amostras excessivamente pequenas. A revista Motricidade, pela sua parte, já deu
alguns passos no sentido de contrariar esta prática, mas todos os manuscritos
submetidos a partir do 1 de Janeiro de 2013 serão sujeitos a um escrutínio
ainda mais apertado no que se refere ao tamanho das amostras. Procuraremos: 1-
incentivar os autores a serem mais explícitos no que se refere aos contributos
efectivos que os seus trabalhos fazem; 2- solicitar que os critérios de decisão
sejam claramente transpostos para o manuscrito: 3- continuar a contrariar a má
prática de submeter trabalhos onde se adicionam autores sem que a dimensão do
trabalho o justifique.
Com o fechar de mais um ano de edição, importa dizer algo sobre o que foi este
ano. Crescemos, tivemos de lidar com mudanças com as quais não esperavamos, mas
fomos capazes de dar respostas atempadas. Fomos avaliados, mantivemos a nossa
classificação, mas na essência melhoramos em todos os domínios em que fomos
avaliados e em particular na área da Psicologia sentimo-nos injustiçados.
Continuamos respeitando a liberdade de cada autor seleccionar as fontes para
fundamenar os seus trabalhos, mas estamos conscientes que nos penaliza a
ausência de uma política que encoraje a citação da nossa revista. Talves tenha
chegado ao momento de aderirmos às práticas vigentes e assim ganhar mais
competitividade, melhorando o nosso factor de impacto e assim ir ao encontro
das regras a que os pesquisadores são sujeitos.
Olhamos o futuro com entusiasmo. Cerca de 70% das pessoas que visitam a nossa
revista fazem o download das normas de publicação e os restantes documentos de
apoio que proporcionamos no nosso site. A ter o mesmo significado de anos
anteriores, teremos em 2013 um acréscimo de submissões. É ainda gratificante
saber que cerca de 50% das visitas que recebemos resultaram de uma busca
directa através do nome da própria revista. Em 2013 iremos aumentar o número de
artigos por volume. Ainda em 2013 estaremos mais uma vez envolvidos na
organização do Encontro Internacional de Pesquisadores que de novo terá lugar
em Montes Claros, Minas Gerais, durante o período de 8 a 12 de Outubro. Seremos
também a revista onde se farão as publicações associadas aquele evento.
Porque a Motricidade resulta de esforço colectivo, a todos os que connosco
colaboram deixamos o nosso sentido OBRIGADO.