Reconstrução anatómica do LCA com duplo túnel: Onde nos encontramos hoje?
INTRODUÇÃO
A reconstrução artroscópica de um feixe único do ligamento cruzado anterior
(LCA) com enxerto autólogo como o tendão rotuliano, isquiotibiais ou
quadricípite permanece o gold standard no tratamento da rotura do LCA no doente
ativo[1,2,3]. Durante os anos 90, a universalidade do conceito de
"isometria" defendia a localização postero-superior do túnel
femoral na chanfradura intercondiliana (entre as 12 e 1 horas no joelho
esquerdo, 11 e 12 horas no joelho direito, com uma flexão de 90º), replicando
essencialmente as fibras anteriores do LCA[4]. Estudos anatómicos recentes[5-7]
vieram contrariar o conceito anterior, revelando que, ao invés de uma estrutura
homogénea de um feixe simples, o LCA compreende dois feixes funcionais
independentes, designados segundo a sua inserção na tíbia: o feixe anteromedial
(AM) e o feixe posterolateral (PL) (Figura_1). Durante o arco de movimento
funcional do joelho, o LCA funciona essencialmente como freio à translação
anteroposterior excessiva. Estudos biomecânicos demonstraram ainda que o LCA,
mais especificamente o feixe PL, desempenha um papel crucial na resistência às
forças rotacionais impostas ao joelho[8]. Na sequência destes estudos, alguns
autores questionaram o princípio utilizado na ligamentoplastia tradicional do
LCA. Zantop e Fu[9] reportaram resultados insatisfatórios em 11 a 30% dos
doentes submetidos a reconstrução do LCA com feixe simples e, numa meta-análise
recente, Biau et al[10] revelaram que apenas cerca de 60% dos doentes atingem
níveis de recuperação completos após a reconstrução segundo este príncipio.
Adicionalmente, está sobejamente descrita na literatura a incidência de
alterações degenerativas 5 a 10 anos após a reconstrução do LCA[11,12]. Jonsson
et al[13] associaram o desenvolvimento de atividade cintigráfica subcondral,
incapacidade de retorno a níveis de atividade prévios e scores funcionais
subjetivos pouco satisfatórios à persistência de um teste pivot-shift positivo,
tendo concluído que a eliminação do pivoting poderá ter maior influência na
prevenção das alterações osteoartrósicas do joelho do que a normalização da
laxidez anteroposterior. Foi com base tanto no conhecimento anatómico atual,
que enfatiza a importância do feixe PL na restauração da cinemática normal do
joelho[14], como nos resultados menos positivos que foram associados à
reconstrução de um único feixe, que surgiu o conceito de reconstrução anatómica
do LCA.
Estudos biomecânicos em cadáver revelam que, de facto, a reconstrução anatómica
dos dois feixes estruturais do LCA permite restabelecer de forma mais
aproximada a estabilidade anteroposterior e rotacional do joelho LCA-
deficiente, quando comparada com a reconstrução tradicional[15,16]. Quando
consideramos a estabilidade rotacional em particular, estes estudos refletem um
melhor controlo com a reconstrução adicional do feixe PL, comparativamente à
reconstrução de um feixe simples[16,17]. O conceito cirúrgico de duplo túnel é
igualmente suportado por outros trabalhos anatómicos e biomecânicos que
relacionam a reprodução do footprint (pegada) nativo com a restauração das
funções biomecânicas do joelho[18,19].
A técnica de replicação da anatomia complexa do LCA, através de um procedimento
de duplo-túnel, para a reconstrução separada dos feixes AM e PL foi descrita
inicialmente por Mott[20] em 1983. Rosenberg e Graft[21], em 1984, introduziram
um procedimento assistido por artroscopia utilizando dois túneis femorais e um
túnel tibial (Figura_2). Atualmente, são vários os aspetos técnicos e variações
ao mesmos descritos na literatura[9,22-26], todavia, importa salientar que nem
todas as técnicas duplo-túnel podem ser consideradas reconstruções anatómicas,
sendo que alguns autores defendem que apenas reconstruções que incluam dois
túneis femorais e dois túneis tibiais poderão ser assim designadas[27]. Apesar
da florescência deste conceito nos últimos anos, os ensaios clínicos
controlados são ainda raros e os existentes apresentam follow-ups curtos. A
transferência intra-operatória da anatomia nativa dos dois feixes do LCA em
extensão para a anatomia artroscópica em flexão tem dificuldades associadas com
aspetos técnicos fulcrais como a identificação da posição artroscópica correta
dos pontos de inserção, direção dos quatro túneis, enxertos ideais e técnicas
de fixação[28]. Outra das dificuldades na abordagem da lesão e planeamento da
cirurgia passa inevitavelmente, pela ausência de ferramentas que permitam
abordar a cinemática complexa da estabilidade ligamentar durante os movimentos
pivotantes do joelho in vivo.
PRINCÍPIOS BÁSICOS NA RECONSTRUÇÃO ANATÓMICA DO LCA
A anatomia é a base da cirurgia ortopédica. Dentro do conceito de reconstrução
anatómica do LCA residem quatro princípios fundamentais. O primeiro é a
reconstrução dos dois feixes funcionais do LCA. O segundo passa pela reprodução
dos pontos de inserção do LCA nativo através do posicionamento dos túneis na
sua verdadeira localização anatómica. O terceiro princípio assenta na obtenção
do padrão de tensionamento adequado para cada feixe, sabendo que o feixe AM se
encontra tenso durante todo o arco de movimento atingindo um máximo entre os 45
e os 60º, enquanto que o feixe PL se encontra tenso essencialmente em extensão
(Figura_1). O quarto e último princípio é advogado por inúmeras escolas[18,29]
e defende cirurgia individualizada para cada doente.
A origem femoral do LCA é uma área ovoide que ocupa cerca de 18x11mm[30]. Nesta
área, o feixe AM ocupa a porção mais proximal e o feixe PL ocupa uma posição
mais distal, próxima da superfície articular anterior do côndilo femoral
externo. Cada um dos feixes ocupa aproximadamente 50% da inserção femoral
total, com áreas de 47±13 mm2 para o feixe AM e 49±13mm2 para o feixe PL[31].
Na tíbia, as inserções para os feixes AM e PL localizam-se entre as espinhas
medial e lateral, numa área ampla que se estende posteriormente até à raíz
posterior do menisco externo[18]. A área de inserção total na tíbia foi
descrita como sendo de forma oval, com um diâmetro de 11 mm no plano coronal e
17 mm no plano sagital[32]. Os feixes do LCA são designados de acordo com a sua
posição dentro desta área estando o feixe AM localizada na sua porção mais
anterior e medial e o feixe PL na sua posição mais posterior e lateral. O
tamanho da inserção tibial do LCA é cerca de 120% o da inserção femoral[18].
CONSIDERAÇÕES BIOMECÂNICAS
O LCA é um elemento fulcral na resistência tanto à translação anterior da tíbia
como ao torque rotacional imposto ao joelho[14]. Conforme referido
anteriormente, a literatura atual sugere que cada um dos feixes do LCA
contribui de forma singular para a cinemática do joelho. Apesar de ambos os
feixes funcionarem em conjunto, o feixe AM revela-se o principal antagonista da
translação anterior, enquanto que o feixe PL tem maior influência na
estabilidade rotacional[8]. A distribuição das forças entre os feixes AM e PL
em resposta a cargas de direção anterior aplicadas na tíbia foi estudada por
Sakane et al[33] através da utilização de tecnologia robótica. Neste estudo, o
feixe PL suportou a maior parte da força entre os 0 e os 15º de flexão e o
feixe AM assumiu a maior parte da carga a partir dos 30º de flexão.
A reconstrução do LCA que segue estes princípios assume assim vantagens
biomecânicas potenciais sobre a reconstrução de um único feixe por permitir um
maior controlo da translação anterior da tíbia e melhorar a resposta às cargas
rotacionais combinadas impostas ao joelho[28,34]. Tashman et al[35]
desenvolveram uma análise cinemática de joelhos normais e joelhos submetidos a
reconstrução de um feixe único do LCA, avaliando a translação antero-posterior
e a rotação do joelho durante a atividade desportiva em plano inclinado. Os
doentes submetidos a cirurgia de reconstrução do LCA demonstraram padrões de
translação anterior da tíbia muito semelhantes aos sujeitos com LCA intacto,
revelando, contudo, uma cinemática rotacional anormal[35]. Os resultados de
Tashman foram confirmados por Ristanis et al[36] que sublinharam a falência da
reconstrução tradicional do LCA na restauração da mecânica rotacional normal da
articulação do joelho durante atividades de elevada exigência.
RESULTADOS CLÍNICOS E LIMITAÇÕES
s resultados clínicos disponíveis parecem defender a superioridade da
reconstrução duplotúnel na restauração da estabilidade anteroposterior e
rotacional após rotura do LCA[24, 28,37-43].
Siebold et al[28], num estudo de nível I de evidência, compararam os resultados
clínicos em 70 doentes randomizados prospetivamente para reconstrução anatómica
com duplo túnel ou reconstrução de um feixe único, tendo verificado vantagens
significativas no grupo submetido a reconstrução duplo-túnel tanto no que
respeita à estabilidade anterior e rotacional como na pontuação obtida na
escala International Knee Documentation Committee (IKDC) 2000. As pontuações na
escala subjetiva de Cincinnati, escala de Lysholm e IKDC subjetivo não
demonstraram, contudo, diferenças significativas entre grupos. Yasuda et al[40]
compararam igualmente os resultados clínicos entre os dois tipos de técnicas,
tendo demonstrado menos laxidez anterior na reconstrução anatómica, com base
nas medições do KT-2000. As vantagens da reconstrução duplo-túnel são, assim,
evidenciadas em vários estudos[18,19,22,23,25,28], no entanto, não foram ainda
demonstradas diferenças significativas nos resultados subjetivos. Meredick et
al[44], numa metaanálise de 2008, reportaram não existirem diferenças clínicas
significativas nem na laxidez instrumentada com artrómetro (KT-1000) nem no
teste de pivot-shift nos doentes submetidos a reconstrução com duplotúnel. Os
resultados obtidos não permitem, portanto, suportar a filosofia da reconstrução
anatómica do LCA que defende um melhor controlo da rotação do joelho. Por outro
lado, verifica-se que nem todos os procedimentos duplo-túnel poderão ser
considerados anatómicos já que a realização de dois túneis na tíbia e dois
túneis no fémur não resulta, per se, numa restauração anatómica do LCA[29].
Importa ainda referir que a identificação da posição dos túneis após a
reconstrução do ligamento pode revelar-se difícil com a ressonância magnética
ou com o estudo radiográfico simples, já que estes são representações 2D de uma
situação 3D.
A comparação das diferentes técnicas e avaliação dos resultados de forma a
corroborar dados com significância é atualmente muito dificultada pela carência
de um instrumento que permita ao ortopedista quantificar em termos absolutos e
simultaneamente a estabilidade anteroposterior e rotacional do joelho.
RECONSTRUÇÃO ANATÓMICA FEIXE-ÚNICO
O conceito e os princípios associados à reconstrução anatómica do LCA que
decorreram da investigação da técnica de duplo-túnel podem ser igualmente
aplicados à reconstrução de um único feixe. Conhecendo detalhadamente as
inserções do LCA, o cirurgião poderá aproximar a posição e o tamanho dos túneis
à anatomia do LCA nativo[29]. Freddie Fu[29], conhecido defensor da técnica
duplo-túnel, defende a reconstrução anatómica de um feixe simples quando o
ponto de inserção é inferior a 14 mm, face às dificuldades técnicas que a
realização de dois túneis poderá comportar. Aliás, na Universidade de
Pittsburgh, cerca de 30% das ligamentoplastias do LCA são realizadas
reconstruindo apenas um único dos feixes, respeitando, no entanto, o princípio
da anatomia. Está advogada a reconstrução rotineira de apenas um dos feixes do
LCA nos doentes esqueleticamente imaturos, com alterações degenerativas do
joelho, lesões multiligamentares ou que apresentem contusão medular dos
côndilos femorais[29]. Ao conceito anatómico aplicado à reconstrução
tradicional têm-se associado resultados clínicos e biomecânicos satisfatórios
conforme demonstrado recentemente por Ho et al[45], que obtiveram resultados
cinemáticos equivalentes entre a reconstrução antómica feixe-único centralizada
nas inserções femoral e tibial do LCA e a reconstrução duplo-túnel.
CONCLUSÃO
A reconstrução anatómica do LCA permanece um assunto complexo e um procedimento
exigente do ponto de vista técnico. Os objetivos major da reconstrução duplo-
túnel passam pela replicação dos parâmetros biomecânicos nativos e da anatomia
normal do joelho. No entanto, deve ser enfatizado que a ciência atual não
providenciou ainda estudos a longo-prazo que documentem, de forma inequívoca,
as vantagens clínicas das técnicas de reconstrução independente dos dois feixes
do LCA. Adicionalmente, o desenvolvimento de uma medida objetiva da
estabilidade rotacional do joelho assume importância fundamental para que o
clínico possa avaliar a cinemática in vivo do joelho reconstruído, já que a
persistência pós-operatória de um teste pivot-shift positivo é, neste momento,
a principal condicionante de mau prognóstico após reconstrução do LCA[13]. Por
outro lado, os valores da laxidez instrumentada (KT) que fazem parte da escala
de prognóstico IKDC não demonstraram uma correlação evidente com os resultados
subjetivos[44].
Os principais oponentes desta técnica mantêm acesa a discussão relativa ao
posicionamento adequado dos túneis, padrões de tensionamento do enxerto, tempo
aumentado de cirurgia e custos associados. Dependendo das técnicas de fixação
escolhidas pelo cirurgião, os custos de uma abordagem duplo-túnel aumentam de
forma significativa quando comparada com as técnicas tradicionais. Não
obstante, toda a controvérsia relativa à reconstrução duplo-túnel e à abordagem
anatómica da ligamentoplastia do LCA conduziu ao "renascimento" da
cirurgia do LCA, fomentando a análise crítica da anatomia ligamentar e das
técnicas utilizadas na prática clínica.
Ainda que os ensaios controlados em laboratório e os estudos clínicos relativos
à reconstrução dos dois feixes funcionais do LCA pareçam promissores, são
fulcrais estudos clínicos adicionais que permitam o aperfeiçoamento e a
estandartização desta técnica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"Siga as pegadas" esta pode acabar por ser a melhor metáfora para a
reconstrução do LCA. Os autores acreditam que respeitar os footprints é crítico
para o sucesso da reconstrução do LCA. A curva de aprendizagem, o tempo
aumentado de cirurgia, a dificuldade na revisão e, essencialmente, a ausência
atual de evidência que suporte de forma inequívoca a técnica duplo-túnel, são
aspetos capitais que condicionam a nossa opção de prosseguir com o
aperfeiçoamento das técnicas anatómicas de feixeúnico. Entretanto, absorvemos
com interesse o desenrolar da discussão científica atual.