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EuPTCVHe1646-21222014000100013

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variedadeEu
ano2014
fonteScielo

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Síndrome compartimental do antebraço

CASO CLÍNICO Doente do sexo masculino, 41 anos, que recorre de manhã ao SU com um quadro progressivo de dor no antebraço e parestesias na mão direita desde que acordou.

O seu acompanhante referiu que o doente esteve embriagado no dia anterior, não tendo memória dos acontecimentos desse dia.

Não tinha história de traumatismo major ou ponto de aplicação visível. No entanto, ao exame objectivo apresentava edema tenso do antebraço, dor à palpação local agravada com o estiramento do punho e dedos, e pulso radial mantido. O pulso radial estava presente mas diminuído e o tempo de preenchimento capilar era elevado (superior a 2 segundos) e superior ao contralateral.

Foi submetido a estudo radiográfico, que excluiu lesões ósseas.

Por apresentar exame objectivo sugestivo de síndrome compartimental do antebraço, foi utilizado o medidor de pressão compartimental existente no Serviço (Figura_1). Verificou-se que a pressão era de 40mmHg no compartimento anterior e 34mmHg no compartimento posterior, para uma PA de 135/100 mmHg. O doente foi mantido em observação com analgesia, sem crioterapia e com membro pendente. Nas 4 horas seguintes, o quadro clínico manteve-se, sem alívio significativo das queixas com analgesia endovenosa. A pressão do compartimento anterior do antebraço foi de novo medida: 60mmHg. Devido a este agravamento, optou-se por realizar fasciotomia do compartimento anterior do antebraço. Nas análises pré-operatórias salientavam-se: creatinina 3,3 mg/dL e ureia 121 mg/ dL.

O doente foi submetido a fasciotomia do compartimento anterior do antebraço, a qual foi prolongada até ao canal cárpico (Figura_2). A fasciotomia ficou aberta, tendo ficado previsto o seu encerramento em segundo tempo, após 48 a 72 horas. O pós-operatório nesse dia decorreu com normalidade, havendo apenas moderado repasse hemático do penso.

Na manhã seguinte, por degradação do estado geral e por repasse significativo do penso, foram pedidas novas análises: Hemograma: Hb 10,8 g/dL (), leucócitos 10.000/μL sem neutrofilia Coagulação: INR 0,9, aPTT 27,1 seg Bioquímica: Creatinina 6,2 mg/dL (↑↑↑), ureia 144 mg/dL (↑↑↑), CK 16559 U/L (↑↑↑), LDH 1127 U/L (↑↑↑), AST 933 U/L (↑↑↑), ALT 141 U/L () Estes valores eram compatíveis com rabdomiólise maciça e insuficiência renal aguda por necrose tubular aguda secundária a mioglobinúria. Nessa altura foi instituída terapêutica farmacológica dirigida para a mioglobinúria.

Doze horas depois, foi feito novo controlo analítico: creatinina 7,1 mg/dL, ureia 158 mg/dL, CK 16162 U/L e LDH 1341 U/L. Devido ao agravamento da função renal, o doente foi transferido para uma Unidade de Cuidados Intensivos e posteriormente para Nefrologia para hemodiálise, tendo alta após 3 semanas com recuperação da função renal. Voltou à Consulta de Ortopedia sem queixas de dor ou parestesias e com função normal do membro. Nessa altura foi referenciado à Consulta de Cirurgia Plástica para eventual cobertura com enxerto de pele.

Entretanto, abandonou a consulta de Ortopedia.

FISIOPATOLOGIA Todos os grupos musculares são cobertos por fáscia, um tecido conjuntivo inelástico que separa os grupos musculares em compartimentos. A pressão compartimental em repouso é geralmente < 10mmHg1,2. No entanto, a fáscia torna estes compartimentos pouco expansíveis, tendo assim capacidade limitada de compensar aumentos de pressão intersticial.

O síndrome compartimental é um síndrome clínico secundário a um aumento da pressão intersticial de um compartimento muscular que tenha duração e intensidade suficientes para causar um compromisso isquémico e neurológico desse segmento (e segmentos distais), se não for descomprimido1. É mais frequente nos compartimentos anterior e posterior profundo da perna, e compartimento anterior do antebraço. No entanto, pode ocorrer em qualquer região em que haja músculo esquelético envolvido por fascia mais espessa.

O quadro clínico clássico é representado pelos 4 "P's": pain (dor desproporcionada à lesão), paresthesias (parestesias), pallor (palidez) e pulseless (ausência de pulso)3.

O síndrome compartimental tem uma incidência de 3,1 por cada 100.000 habitantes, e 69% dos casos são secundários a fracturas1. Pode ocorrer por:

* Aumento do volume contido no compartimento: fracturas (sobretudo se fechadas), lesão grave de tecidos moles (ex: esmagamento ou esforço muscular extremo), lesão vascular, extravasamento de fluido (ex: artroscopia) * Redução do volume do compartimento: queimaduras (sobretudo circunferenciais do membro), reparação de hérnia muscular.

Pode também ocorrer secundário a causas extrínsecas ao membro (ex: imobilização gessada fechada) ou associado a patologia médica como síndrome nefrótico, diabetes, hipotiroidismo ou distúrbios da coagulação.

Existem 3 teorias para o mecanismo fisiopatológico1:

* Teoria da pressão crítica de encerramento arteriolar - pressão intersticial crescente supera a pressão de perfusão das arteríolas, colapsando-as e interrompendo a perfusão local * Teoria do gradiente arteriovenoso - a perfusão local de um compartimento é proporcional ao gradiente arteriovenoso (a diferença entre a pressão arteriolar e venosa locais). A pressão intersticial crescente causa um aumento progressivo da pressão venosa, havendo interrupção da perfusão local quando a pressão venosa se aproxima da pressão arterial (gradiente arteriovenoso = zero).

* Teoria da oclusão microvascular - pressão intersticial crescente supera a pressão intracapilar, interrompendo a perfusão capilar local.

Independentemente do mecanismo, todas as teorias apontam para a interrupção da perfusão local e consequente isquémia como o factor desencadeante do síndrome compartimental.

As fibras musculares são muito sensíveis a isquémia, sobretudo as oxidativas tipo 1 que são as predominantes no compartimento anterior do antebraço. Após 6 horas de isquémia, pode ocorrer necrose muscular maciça (rabdomiólise), com entrada da mioglobina em circulação. Esta precipita nos túbulos renais, causando mioglobinúria e necrose tubular aguda com insuficiência renal aguda secundária. Esta necrose muscular pode ser irreversível, podendo ter como consequência uma contractura de Volkmann (contractura em flexão do punho, por necrose dos músculos do compartimento anterior do antebraço) ou até amputação.

Pode haver também lesão neurológica isquémica irreversível por isquémia, compressão ou toxicidade metabólica (acidose local prolongada)4. Mesmo após descompressão cirúrgica, se esta for tardia, a libertação súbita na circulação de grande quantidade de produtos de necrose muscular acumulados pode causar um síndrome de reperfusão1 potencialmente fatal, com resposta inflamatória local e sistémica severas, coagulação intravascular disseminada e falência multi- orgânica.

DISCUSSÃO O mecanismo fisiopatológico subjacente é a descida crítica da pressão de perfusão local e distal do membro, por aumento da pressão tecidular local. Como tal, perante a suspeita de um síndrome compartimental, o membro deve ficar pendente e sem crioterapia (ao contrário do edema vasoactivo), para melhorar a perfusão distal. Aqui, a força da gravidade pode agravar o edema mas melhora a perfusão distal do membro.

A decisão de operar foi essencialmente clínica, mas suportada pela medição seriada da pressão dos compartimentos.

Clinicamente, o síndrome compartimental manifesta-se por dor desproporcional à lesão, agravada com o estiramento passivo dos músculos (19% de sensibilidade e 97% de especificidade) e edema tenso do compartimento (sensibilidade 54%, especificidade 76%)5,6,7. O pulso e preenchimento capilar estão sempre presentes na fase aguda. Podem haver também manifestações neurológicas (13% de sensibilidade e 98% de especificidade) como parésia, hiperestesia ou parestesias7. É de notar que as manifestações clássicas de ausência de pulso e sinais neurológicos são manifestações tardias de síndrome compartimental, não sendo correcto esperar que estes ocorram para que se proceda à descompressão, pois pode existir lesão irreversível3,8.

A medição dos compartimentos é especialmente útil em doentes com alteração do estado de consciência ou do estado neurológico (lesão vertebromedular ou de nervo periférico, analgesia loco-regional), em compartimentos dificilmente avaliáveis ao exame clínico (ex: compartimento posterior profundo da perna) ou quando existe clínica mas sem história sugestiva tal como neste caso5.

Existem diversos critérios para a decisão de operar com base no valor de pressão do compartimento, sendo que classicamente o mais utilizado era o valor absoluto de 30-40 mmHg como limiar para se proceder à descompressão. No entanto, actualmente o critério mais sensível e específico é o cálculo do ΔP do compartimento2,3. O ΔP é a diferença entre a pressão do compartimento e a pressão diastólica do doente. Se esta diferença for inferior a 30mmHg (ou 40 mmHg no contexto de fractura), a pressão de perfusão poderá estar comprometida, havendo indicação para fasciotomia. Isto significa que em hipotensão (ex: choque hipovolémico) o risco de síndrome compartimental é maior. No caso deste doente, o ΔP à entrada estava no limiar para descompressão.

Apesar de o quadro clínico ser sugestivo, o doente não tinha história nem sinais de trauma significativo.

Como tal, em vez de ser imediatamente submetido a fasciotomia, ficou em observação durante várias horas. Provavelmente, se a decisão de operar fosse mais precoce, a rabdomiólise e a consequente insuficiência renal poderiam ser sido atenuadas.

Por outro lado, no pré-operatório, o doente apresentava creatinina 3,2, o que não foi valorizado na altura. A terapêutica médica dirigida para a mioglobinúria consiste na estimulação da diurese com fluidoterapia (NaCl 0,9% a 500mL/h) e alcalinização da urina com bicarbonato de sódio (1 ampola por cada litro de soro), de modo a diminuir a precipitação da mioglobina nos túbulos renais que causa a necrose tubular aguda8. Podem-se associar diuréticos como furosemido ou manitol. Se esta terapêutica dirigida tivesse sido instituída mais cedo, provavelmente as consequências em termos renais poderiam ter sido menos graves.

As fasciotomias devem ser feitas com precauções, nomeadamente: antibioterapia adequada, abertura de todo o compartimento, verificação de todos os compartimentos do segmento, sem encerramento primário da pele ou fáscia, e preenchendo todos os espaços. De um modo geral, todos os compartimentos do segmento afectado devem ser verificados e descomprimidos. No entanto, evidências que, no caso de atingimento do compartimento anterior do antebraço, a descompressão de apenas este compartimento é geralmente suficiente9. A descompressão deve ser estendida até ao túnel cárpico3,4. Actualmente, existem dispositivos de encerramento por vácuo que permitem um encerramento mais precoce da ferida cirúrgica e com menor necessidade de enxerto de pele3.

CONCLUSÕES O síndrome compartimental é uma patologia que pode comprometer o membro afectado ou até a vida do doente, se não for tratado. O diagnóstico é essencialmente clínico e exige um alto grau de suspeita. Geralmente ocorre em contexto de trauma major típico como esmagamento de membro ou traumatismo fechado de alta energia. No entanto, existem doentes em que a história ou a clínica são pouco elucidativas, nomeadamente na ausência de traumatismo major conhecido, em doentes com alteração do estado de consciência ou submetidos a anestesia loco-regional. Nestes, a medição dos compartimentos pode ser uma ajuda determinante para a decisão de proceder à fasciotomia.

Após a confirmação diagnóstica, o tratamento cirúrgico é emergente, devendo ser efectuado até às 6 horas após a lesão.

É importante o controlo analítico seriado da função renal (ureia, creatinina) e dos marcadores de lesão muscular (mioglobina, CK, LDH, AST) para a detecção precoce da mioglobinúria e da degradação da função renal, de modo a ser instituída terapêutica médica adequada para prevenir a evolução para insuficiência renal aguda por necrose tubular aguda. Esse controlo deve ser feito mesmo após a fasciotomia, pois pode existir lesão muscular em evolução ou um síndrome de reperfusão.


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