I Would Be Dead Now
PÁGINA DOS EDITORES
I Would Be Dead Now
Carlos Costa Almeida
Editor Científico
JS, sexo masculino, raça caucasiana, de 66 anos de idade, cidadão britânico a
viver em Portugal há cinco anos, nascido e anteriormente residente em
Inglaterra, teve um acidente vascular cerebral. Foi atendido no local e
transportado de imediato pelo INEM para o Serviço de Urgência do Hospital dos
Covões (agora incluído no CHUC), em Coimbra, hospital central de referência da
sua área de residência. Deu entrada seguindo a Via Verde dos AVCs, foi
observado, tratado, internado, evoluiu bem, teve alta. No estudo da circulação
carótido-vertebral feito por ecodoppler foi detectada uma estenose
significativa da carótida esquerda, que a angioTAC confirmou com indicação para
intervenção, na sequência dum acidente vascular a que se atribuiu natureza
isquémica. Por isso foi enviado à minha consulta.
Veio com a esposa, ambos simpáticos, cultos, educados, britânicamente contidos,
falando em inglês entremeado ocasionalmente com algumas palavras, muito poucas,
em português com um sotaque típico. Disse-lhe que precisava de ser operado, e
perguntei-lhe se para isso não preferiria ir a Inglaterra. Respondeu-me,
naturalmente em inglês: "Doutor, eu tive um AVC e ao fim de meia hora
estava a ser tratado - tratado, veja bem - neste hospital. No meu país isso não
seria possível! Por isso é aqui que quero continuar a ser tratado. É neste
hospital que eu quero ser operado."
E foi. Fez-se-lhe endarterectomia carotídea esquerda, sem intercorrências ou
complicações, esteve internado quatro dias. Voltou passado um mês, em consulta
de controlo pós-operatório. Sempre acompanhado pela esposa, sem sequelas
evidentes de AVC, bem dispostos os dois. Exibe a cicatriz cervical, "You
did a great job here" - afirma. Prescrevo o clopidogrel, conversamos,
conversa rápida de consultório, o tempo (claro, ou não fosse ele inglês!), a
política europeia, a crise, o euro. Levantamo-nos, depois de me despedir da
esposa estendo-lhe a mão. Aperta-ma com a sua e diz, com alguma tremura no
porte fleumaticamente britânico: "You know, if I lived in my country I
would be dead now. Portugal saved my life. Obrigado."
Podem crer que no momento fiquei emocionado. Disfarcei o melhor que pude,
acompanhei-os à porta do gabinete. É destes momentos - pessoais, como este, ou
apenas conhecidos através de outros - que se constrói o enorme prazer de ter a
nossa profissão. Basta o sentimento íntimo de ter feito um bom trabalho, e que
acabou bem, frequentemente reconhecido por colegas e, às vezes, se calhar não
muitas, pelos doentes. Mas este caso teve um sabor muito especial, porque foi a
opinião de um paciente estrangeiro esclarecido, que não fala por ouvir dizer,
com possibilidade de estabelecer comparações e de escolher, e que deu
fortemente preferência ao nosso Serviço Nacional de Saúde e aos nossos
hospitais.
Um SNS sob ataque de há vários anos para cá, em processo de descaracterização,
de restruturação que parece uma desestruturação, de redução, e eliminação. Um
SNS que trabalhava bem. Aquele doente inglês, ao pôr frontalmente em causa o
National Health Service, fala obviamente do NHS de agora, depois da governação
da Mrs. Thatcher. Depois das restruturações, descaracterizações, fusões e
eliminações que sofreu, muito na senda do que tem vindo a ser feito por cá. Não
do NHS que serviu de exemplo ao Mundo, e até deu o nome ao nosso. É claro que o
nome manteve-se, o serviço também, mas não são nada do que eram, e os doentes
sabem disso. Continua a haver grandes médicos e óptimas instituições médicas na
Grã-Bretanha, mas já não são o NHS que costumava ser. E todo o esquema de
assistência se ressentiu disso, agora que nos Serviços médicos dos hospitais
públicos por lá há pessoal administrativo que toma parte em decisões que
deveriam ser puramente clínicas. A minha emoção ao ouvir o desabafo do paciente
inglês tratado em Portugal, deveu-se também à pena de termos entre nós algo de
bom durante tanto tempo e os nossos doentes tantas vezes não o apreciarem
devidamente, e estarmos se calhar a resvalar no sentido de a perder.
Mudar por mudar, não. Em equipa que ganha não se mexe, diz o povo e o bom
senso. Em momentos de crise há frequentemente a fraqueza, por parte dos
dirigentes menos esclarecidos, de mudar para ver o que é que dá, sem o
discernimento de atender ao que está bem e assim o manter. É claro que mais
tarde ou mais cedo virá a exigência de responsabilidades, e a exposição pública
do mal que foi feito e de quem o fez, mas em geral tarde demais para o
corrigir. E Portugal não pode dar-se ao luxo de deixar destruir o pouco que
dentro de si funciona bem. A Saúde é um exemplo disso, e um exemplo para o
estrangeiro, e matéria em que não se deve querer copiar o que vem de fora.